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A Inveja - O Seculário de um Judeu Errante (Livro 1)
A Inveja - O Seculário de um Judeu Errante (Livro 1)
A Inveja - O Seculário de um Judeu Errante (Livro 1)
Ebook469 pages6 hours

A Inveja - O Seculário de um Judeu Errante (Livro 1)

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About this ebook

Ele era um homem do seu tempo - um pai dedicado, um devoto judeu, um trabalhador diligente, um patriota, ou assim acreditava. Mas ele estava destinado a ser um homem para todos os Tempos.

Tudo começou na Jerusalém do ano 33, quando cruzou com um obscuro pregador e seu pequeno grupo de seguidores. Uma seita que iria moldar o seu destino, questionar a sua fé, levá-lo ao exílio e a abandonar tudo o que era de mais querido para ele.

Através destas crônicas acompanhe a vida de um homem invejado, marginalizado pelos seus pares, perseguido como a prova viva do poder divino de um "messias" em quem nunca acreditou. Através destes escritos vai conhecer os protagonistas de uma era, os seus ideais, a moralidade da época, e vivenciar os verdadeiros acontecimentos que transformariam para sempre o nosso mundo, a nossa sociedade, a essência do que hoje somos.

LanguagePortuguês
PublisherPaulo Barata
Release dateAug 10, 2012
ISBN9781476297736
A Inveja - O Seculário de um Judeu Errante (Livro 1)
Author

Paulo Barata

Since my early teens I’ve been a wanderer, fortunate to have lived in three continents and experienced what plurality, humanism and tolerance are all about. A career in multinational management revealed further cultures and customs, and also the follies and foibles of men. But life is all too fickle, and there are days when I live in fear - a fear of regression, of forgetting the errors of the past and the achievements that mankind as a whole has reached. When such fears assail me, I like to hide under a book cover and exorcise those demons by reading of the heroics of past ages and how we have survived as a civilization. It helps. It helps a lot! And as soon as they’re gone, I like to write. To write fiction, historical fiction, struggling to portray in ancient settings what has always been present in our nature — the qualities, the virtues, the morals, the hope, but also the weaknesses and the sins. It’s these make us all too human. The story of the “Seculary of a Wandering Jew” is a portrait of the mutating nature of ourselves over time, inspired by faith and fate, or the lack of it. Research and imagination into words create such worlds, my own haven for these changing times.

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    A Inveja - O Seculário de um Judeu Errante (Livro 1) - Paulo Barata

    Prefácio

    O Homem

    O Descrente

    O Mercador

    O Patrono

    O Conselheiro

    O Súdito

    O Pai

    O Devoto

    O Marido

    O Viajante

    O Diligente

    O Político

    O Embaixador

    O Proscrito

    O Invejado

    Personagens

    Glossário

    Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui estão, que não provarão a morte até que vejam vir o Filho do homem no seu reino.

    Mateus - 16:28

    PREFÁCIO

    Os menos perspicazes olharão para este livro como um simples diário. Um diário de muitos e muitos dias. De dias por demais. De dias que se reproduzem em semanas, se multiplicam em meses, anos e se propagam por séculos. E a bem da verdade, este é um seculário – uma palavra até agora indefinida, supérflua para cronologias humanas – e uma saga de vivências ilustradas pelas reminiscências de um viajante na História e no Tempo.

    O Tempo, esse réprobo da existência, o sempiterno flagelo de tudo o que existe, seja homem, bicho, planta, planeta ou universo. E foram os antigos, sempre sagazes, conhecendo a sua inexorável realidade o deificaram como Chronos, um dos muitos nomes deste deus sem progenitura, gerado por si mesmo e existente antes de tudo o que veio a existir, criador onipresente do universo, da terra, do mar, do fogo e do céu, para sempre devorando a sua própria criação em perpétua autofagia.

    Durante séculos, me debati na incerteza de algum dia vir a anotar o que começo agora a escrever, e hesitava porque queria contar estórias com princípios, meios e fins.

    O começo não era difícil, mas sem um fim à vista era necessário caprichar nos meios. Precisava de um fio condutor, de algo com que todos nos pudéssemos identificar. E o que poderia ser este ilusivo expediente ? Advertido pela experiência onde a moral, os valores e as virtudes também se transfiguram com o Tempo, decidi usar os pecados – e sejamos francos, há algo mais recorrente, incônscio, instintivo e intrínseco à nossa humanidade que o ato de pecar ?

    Assim encontrei os divisores naturais para o meu seculário, para as minhas estórias. Para cada época o seu pecado, cada um destes nada mais sendo que o anátema da sua era.

    A exemplo de tudo o que é criado haverão os críticos, os céticos convictos, e os profundos descrentes – uma grande maioria certamente – mas também acredito nos que querem acreditar em estórias inverossímeis, e guiados pela cegueira da sua imaginação, galgam a lógica, a ciência e a razão.

    É para estes, heróis desta fé, que escrevo.

    Ausero ben Simão

    "O furor é cruel e a ira impetuosa,

    mas quem poderá enfrentar a inveja ?"

    Provérbios - 27:4

    O HOMEM

    — Quem é aquele homem que os soldados estão arrastando, pai? — perguntou o jovem.

    — Um pregador, eu acho.

    — Será? E estão chamando de rei?

    — Estão escarnecendo dele, filho.

    — Por inveja?

    Assim terminou um inicio. O mais significativo da nossa era.

    Este meu começo remota a Jerusalém, há vinte séculos atrás, mais precisamente para o ano dos consulados de Sérvio Sulpício Galba — um futuro imperador — e de Lúcio Cornélio Félix. Os romanos, senhores do mundo de então, nunca foram adeptos em numerar os anos. Era também o oitavo ano da prefeitura de Pôncio Pilatos, apenas trinta depois do meu nascimento, e para ser ainda mais exato, ou pedante até, 3793 anos desde o principio de todos os começos, a Criação, relatada logo no inicio do primeiro dos livros.

    Ano 33

    Jerusalém é para muitos e de muitos, e sempre foi e será uma cidade de fé, a cidade do Templo, uma cidade ainda e sempre mais eterna e beligerante que a própria Roma, a capital daquele império de pagãos que a todos dominava.

    O bulício, a confusão, a cacofonia de mil vozes em línguas semíticas. A poeira, sempre a poeira, os cheiros pungentes, as multidões. Imagine-se a agitação de quem é por natureza irrequieto na sua fé, nas suas crenças e nos seus rituais.

    Também eu era assim.

    A propósito, e já estando naquela parte do quem sou e como sou, o meu nome é Ausero ben Simão. Um nome pouco usual mesmo naquele tempo. Segundo o pai, foi nome de antepassado distinto, um dos muitos que desceram da Babilônia para a terra dos Canaanitas e se elevou pela sua sapiência e retidão, recordado como o primeiro da família a ser elevado ao Grande Conselho, o Sinédrio. Era evidente, que houve tempo quando o pai deve ter tido grandiosos planos para mim.

    Infelizmente, a boa fortuna da família dissipou-se na época da sua tardia juventude, quando vários parentes foram implicados e condenados numa revolta palaciana, algo nunca explicado em detalhe a nós. Foi o fim da abundância e também da efêmera reputação familiar. Contudo, guiado pelo seu infalível instinto de sobrevivência, como o pai nos costumava dizer quando recontava a sua saga, conseguiu-se reerguer e acabou por se tornar num próspero mercador, dono de um grande empório de tecidos e curtumes. E embora a sua reputação nunca mais voltasse aos píncaros de melhores dias, o pai conseguiu amealhar o suficiente para se retirar cedo daquela profissão, que sempre encarou como indigna das suas ilustres raízes.

    A venda do empório não só possibilitou-nos a almejada ascensão social, como também ascendemos todos para a parte alta da cidade, agora vizinhos a oligarcas, prósperos funcionários e outros notáveis. Aqui morávamos todos, não muito distante do grande palácio dos Herodes. Era uma casa de três pisos, simples, sem a frivolidade dos novos ricos ou os adornos dos helenistas, e nela morávamos cinco: Isaac, o pai, eu e Rute — minha esposa — e meu filho Daniel, ainda petiz.

    Esta mudança obrigou, tanto a mim como a Isaac, a procurar por outras ocupações, quando nos vimos sem o empório. Como filho mais velho, e porque não, o menos prendado, acabei por seguir a profissão aprendida com o pai, herdando ferramentas, uma boa parte do estoque de curtumes e alguns dos seus antigos clientes. A bem da verdade, posso aqui confessar que não era nenhum artista. Os meus produtos eram robustos, mas a confecção não tinha a perfeição e nem os pormenores que os clientes mais exigentes valorizavam. Esta falta de aptidão e, porque não, também de algum desinteresse da minha parte, reduzia muito do trabalho à reparação das mazelas de calçados usados e no conserto de outros aprestos.

    Com a aproximação do pessach naquele mês de Nissan, era visível o aumento do movimento na cidade, e também na loja, até porque muitos peregrinos chegavam na semana anterior aproveitando as suas vindas a Jerusalém para fazer compras de todo o tipo. Era também um tempo de família, e a casa enchia-se de parentes do interior, alguns com mais e outros com menos, todos acolhidos pelo pai, apenas exigindo em troca da sua hospitalidade o cumprimento rigoroso dos sagrados rituais da ocasião.

    Naqueles dias de maior fervor, recordo que naquele ano o tema era a chegada de um pregador que havia-se intitulado messias e filho do divino. Mas, se era mesmo o almejado messias, então alguém se esqueceu de fazer soar as trombetas divinas, chocalhar as muralhas da cidade e fazer estremecer as colunatas do Templo. Não era isso o profetizado? E o seu exército? O mesmo que nos iria libertar do jugo dos nossos opressores e julgar os réprobos e os infiéis? Nada disso se via, e de exércitos, apenas os mesmos emproados romanos patrulhavam vistosamente as principais vias da cidade, em pequenos grupos, parodiando-se na cadência das suas ordens.

    Confesso que não dei importância por demais aquele relato, pois não eram poucos, ao longo da nossa história, os que se tinham proclamado salvadores e divinamente ungidos, mas também não me lembrava de nenhum que se tivesse intitulado filho do Senhor. Certamente era algo novo e demasiado blasfemo para os kohanim tolerarem.

    — Pai — perguntei bruscamente. — Isto é sabido dos sacerdotes?

    A resposta não veio logo. Pai tinha este hábito de por vezes ignorar as questões que não eram do seu inteiro agrado, ou então segurava a resposta enquanto mimetizava um ar de profunda reflexão sobre a miriade de respostas possíveis.

    —Há estórias… Falam de um peregrino chegado à cidade com um séquito de seguidores. Mas sabem, não é a primeira vez que ele vem a Jerusalém. Há quem já o tenha visto por cá, só que na altura vinha com menos gente. Mas os kohanim sabem quem ele é.

    — E aceitam alguém se passar por filho do Senhor?

    — São rumores, ainda não se provou que ele realmente tenha dito isso, além do mais parece ser inofensivo. Prega a paz. Nunca ninguém o ouviu falar rispidamente de outrem, ao contrário de outros que mal reúnem um punhado de seguidores e logo querem mudar tudo e todos. Para já é apenas um excêntrico e ninguém lhe quer dar demasiada importância, até porque os sacerdotes nesta altura do ano andam ocupados com outras tarefas bem mais importantes.

    — Mas sabe-se quem são estes seguidores ?

    — Pelo que se ouve, é povo. Povo miúdo. Pescadores, artífices, nenhum daqui. Tudo do interior, do norte. Há até quem diga que alguns são dissidentes essênios. Muito do que ele prega não é novidade para estes, e os próprios essênios também se denominam nazarenos.

    — Mas há quem diga que este pregador tem grande seguimento na Galileia — acrescentou Isaac. — Dizem ser milagreiro, que já curou enfermos e até ressuscitou um morto aqui próximo a Betânia. Pelo menos foi isso que ouvi no Templo.

    — Estórias… os essênios também se dizem milagreiros e alegam ser capazes de curar com as mãos.

    — Será que ele veio a Jerusalém apenas para o pessach ?

    — Bom, ele está por aqui, resta saber se cumprirá com o sacrifício no Templo. Os essênios não cumprem o ritual sagrado.

    — Isso seria certamente um sinal das suas intenções. Se vem a Jerusalém nesta altura e não vai cumprir os rituais, então o que o traz por cá ? É melhor não armar confusão. Pilatos já demonstrou não tolerar sedições, muito menos com a cidade cheia de gente.

    Mais novo do que eu, Isaac sempre fora um fervoroso praticante dos ritos. Cambista por profissão e ainda mais por vocação, era pouco falador quando os assuntos não fossem sobre religião, valores de câmbio, ou o seu desprezo por romanos, pagãos e blasfemos, proclamando-se sempre como um fiel saduceu, um dos dois grupos que administravam o Templo em conjunto com os fariseus, estes últimos mais ao gosto do pai. Enquanto os fariseus eram mais tolerantes nas interpretações dos livros da Torá, os saduceus eram elitistas e totalmente convictos que o desígnio divino só se podia encontrar nas letras miudinhas das escrituras, meticulosamente anotadas por Moisés, rejeitando qualquer interpretação humana aos mandamentos e às leis divinas.

    Ao contrário de mim, Isaac era de baixa estatura e usava uma barba farta onde sobressaía um olhar escuro e sempre atento. Um rosto de sírio, diziam alguns, de distinto babilônio, opinava o pai. Um verdadeiro mestre em contas, era o orgulho do pai, que não obstante toda a sua religiosidade, tinha um sublime respeito por certos metais. Dracmas, siclos, denários, sestércios ou áureos, todos ele manobrava e trocava com mestria. E mesmo o seu repudio pelos romanos não o coibia de ter importantes clientes entre estes, justificando este servilismo ao pagão com a cobrança de altos juros.

    Não é por demais lembrar que a nossa cidade sempre foi assolada por cobiças e rivalidades entre seitas e grupos religiosos. Poderia ser santa, mas os seus habitantes certamente não o eram. Não era por acaso que os gentios receavam a nossa intolerância em tudo o que tivesse a ver com o nosso pacto com o Senhor e as Suas Leis, não só as mais privadas e que regiam o comportamento individual de cada um, mas também todas as outras que afetavam a vivência coletiva da cidade. Através de atos violentos e de consequências trágicas, já tínhamos mostrado ao mundo o quanto não tolerávamos a idolatria ou qualquer outra prática ofensiva aos nossos mandamentos.

    Pilatos era prefeito da Judeia há já oito anos, tinha mau gênio e um temperamento belicoso, mas também sempre se dizia isso de qualquer romano, um povo beligerante e arrogante. Ainda estava recente na memória de todos nós o episódio das imagens e efígies do exército que ele quis colocar dentro das muralhas da cidade, e dizia-se que teve de ser o próprio imperador Tibério a interceder para ele voltar atrás no seu propósito e tivesse mais tato no tratamento com o povo. De qualquer forma, isso não evitou que ele mais tarde se apropriasse de uma parte significativa do Tesouro do Templo e o gastasse em obras publicas. O resultado não se fez esperar. Mais de cem mortos quando um grupo se reuniu no mercado para protestar contra a expropriação daquele dinheiro do Templo. Afinal, clamava o povo, os impostos não serviam para custear este tipo de obras? Ainda aguardávamos pela resposta.

    Mas não eram apenas os romanos quem comandavam a cidade. Como prefeito, Pilatos tinha poderes judiciais limitados, e as suas tropas não numeravam mais de três mil soldados em toda a Judeia. Ainda competia ao nosso Grande Sinédrio julgar os judeus no seu dia a dia e fazer cumprir as leis cívicas e religiosas. E lá, no final de tudo, ainda havia Roma, que através do seu governador na Síria, era quem tudo dominava. Mas enquanto reinasse a pax romana e os publicanos estivessem saciados, os romanos preferiam não intervir.

    A apenas uns dias do festival, naquela manhã fui cedo para a oficina. Esperava ter um bom fluxo de clientes e ainda tinha de ir atrás de um dos aprendizes que ontem tinha faltado. Era sempre o mesmo problema, o absentismo nesta altura do ano quando corria livre a bebida e em todos os cantos se celebravam festas. Desci rapidamente em direção à cidade baixa mas quando estava chegando próximo ao hipódromo a multidão era muita e acabei por ter de me desviar por umas ruelas que serpenteavam até à porta de Efraim. Já dava para se ter uma idéia dos milhares de peregrinos chegados à cidade naquele ano. Todas as vias em direção ao Templo estavam lotadas e o clamor da multidão chegava a abafar as trombetas do Templo que iam soando com o marcar das horas.

    Já próximo da Decúmano Máximo, deparei-me com uma multidão seguindo alguém montado num jumento, rumando pela cardo em direção a sul. Achei estranho aquele cortejo. Uma multidão aquela hora da manhã atrás de um jumento. Alguém importante iria no mínimo numa liteira ou até mesmo num palanquim.

    À porta da loja já estavam alguns dos funcionários. e perguntei a Jona, um dos aprendizes, se sabia quem tinha acabado de passar por ali com aquela multidão.

    — O pregador Josué e os seus discípulos — respondeu indicando a turba animada seguindo pela via.

    — Quem?

    — Josué, mestre — repetiu. — Também conhecido como o nazareno. Estavam dizendo que iam agora para o Templo.

    — O nazareno? Você conhece?

    — Eu conheço, mestre — respondeu Asher, um dos meus funcionários mais antigos. — Já o ouvi pregar num olival do outro lado do vale de Cédron, perto da casa dos meus pais. Estão todos lá acampados faz uns dias, ele e um grupo de seguidores. Eram poucos a principio, mas agora juntaram-se com outros peregrinos que sempre aproveitam o olival para pernoitar durante o festival.

    — É este de quem se diz ser filho do Senhor?

    — Isso não sei, mestre. Mas tem muita gente a segui-lo, isso tem.

    — Mas você já o ouviu pregar?

    — Sim, mestre. Ele é um bom pregador. Eu acho. Falou do reino do Senhor... Falou que todos podemos nos salvar do Sheol. Todos os bons e puros — e continuando. — E os generosos e bondosos…

    — E não apenas os ricos — alguém acrescentou.

    — Bons e puros? — perguntei, enquanto me esforçava para abrir a porta. — E há muitos desses por aí?

    — Mestre, todos os que aceitarem a palavra divina e cumpram as leis de acordo com ele.

    — Quais leis? As nossas leis da Torá?

    — Creio que sim mestre… Mas também avisou-nos para não confiarmos apenas nos sacerdotes. Muitos são corruptos e não ensinam a palavra do Senhor. Preocupam-se mais com os seus bens e propriedades, e não com a salvação dos pobres.

    — E que salvação seria essa?

    — Mestre, o profeta disse-nos que quando morremos o nosso espirito ascende aos céus para junto do Senhor. Só os espíritos dos maus e dos falsos é que vão para o Sheol, para a terra do nada.

    — A dos avarentos também… — alguém mais acrescentou.

    — E ele disse tudo isso com a autoridade de um genuíno filho do Senhor? — perguntei sarcasticamente, já irritado com as insinuações de alguns dos comentários e a porta que mais uma vez relutava em ceder.

    — Ouvi isso sim, só não me recordo se foi ele ou algum dos seus seguidores.

    — Está certo — concluí finalmente abrindo a porta. — Vamos é trabalhar e cumprir com os nossos deveres do dia e com as minhas leis.

    Por volta do final da manhã, comecei a ver um movimento maior na rua, pessoas a correr em direção à saída da cidade. Pouco depois, começou-se a ouvir a cacofonia típica do aproximar de uma multidão. Apesar do barulho, não conseguia entender a razão de todo aquele alvoroço. Não parecia que estivessem a ser perseguidos por ninguém, até porque muitos paravam junto da fonte, uns para beber e outros para apenas lavarem o rosto. Não era um presságio de tumulto, mas fiquei meio apreensivo. Se houvesse qualquer indicio de distúrbio era mais que certo os romanos viessem por ali e e fechassem o comércio. Acabei por enviar Asher até ao fontanário para informar-se do que estava acontecendo.

    — Mestre, estão falando do nazareno — começou por explicar.

    — Sim?

    — O mesmo que passou aqui pela manhã…

    — Sim, eu sei, e daí? — interrompi-o, sabendo como Asher poderia ser bem verboso se não fosse contido a bom tempo.

    — … a caminho do Templo.

    — Sim, você me disse. E o que aconteceu? Causou algum distúrbio? — os romanos não iriam gostar nada disso. Era sabido como eles ficavam briguentos durante os festivais, intervindo ao menor indício de qualquer ato de vandalismo ou suspeita de tumulto.

    — Dizem que se rebelou contra os cambistas e os passarinheiros no pátio. Derrubou mesas e agrediu alguns dos comerciantes. Também muitos dos que o seguem aproveitaram-se para furtar dinheiro. Também soltaram muitos pombos quando quebraram gaiolas. Deve ter dado muito prejuízo a todos.

    Nisso ocorreu-me que Isaac poderia ter sido uma das vitimas destes distúrbios no Templo.

    — E não o prenderam?

    — Não, dizem que os guardas do Templo não conseguiram apanhá-lo. Os seus seguidores barraram o caminho. Estão todos a caminho daqui, regressando para o acampamento deles.

    — E os romanos ?

    — Não sei, ninguém falou deles.

    — Se os romanos não intervieram pode ser que não nos afete por aqui.

    Como não queria deixar a loja, despachei um dos aprendizes ao Templo para saber de Isaac. Só esperava não ter de assistir a um dos rituais profanos do pessach, o motim. Era raro o ano em que não houvesse confusão.

    Entretanto, a multidão continuava a afluir à rua e muitos curiosos, saindo das várias casas e lojas vizinhas, começavam a encher a via dificultando a passagem de outros. Alguns paravam, olhavam para trás, e nada vendo de interessante continuavam no seu caminho. Outros escapavam para os alpendres das lojas, fugindo da inclemência da canícula daquela hora, resfolgando pó e calor.

    Com a loja também vazia, acabei por sair à rua encontrando alguns vizinhos que se interrogavam da razão de todo aquele alarido. No próprio mercado, do outro lado da decúmano, também já estava lançada a confusão e já se viam alguns quitandeiros a retirar as suas mercadorias das bancadas, antecipando a desordem que sempre resultava em pilhagens. Por precaução, mandei fechar as nossas portas e recolher todo o mostruário exposto do lado de fora.

    Na falta de mais a fazer, ficamos ali quedados a aguardar a passagem da multidão, e repentinamente, surgiu ele, o pregador.

    Desta vez vinha a pé, ladeado pela turba, e a sua aparente placidez contrastava com a exuberância dos seus seguidores. De túnica branca, algo suja, e sem nenhuma capa, era de estatura mediana, cabelos longos soltos e desleixados, e uma barba rala mal semeada num rosto queixudo e enegrecido pelos sóis das suas viagens. Olhos escuros e irrequietos vagavam pela multidão, e um sorriso contido era interrompido com falas dirigidas aos mais próximos. Estranho, apenas mais um asceta, nada na sua compostura fazia crer que aquele magro indivíduo fosse alguém especial. Deveria ter o dom da palavra para atrair tantos seguidores. E sem qualquer premeditação — apenas seguindo um instinto profissional — ainda reparei nas suas sandálias. Usadas, muito usadas.

    — Deve ser um daqueles essênios que vivem no deserto — ouvi alguém comentar.

    Os essênios era um outro grupo religioso à semelhança dos fariseus e saduceus. Só que estes viviam em aldeias e vilarejos do interior, em grupos fechados onde partilhavam tudo o que tinham entre eles. Mas era pouco provável que o fosse. Eles não davam importância nem ao Templo e nem a cambistas, mas também devo admitir que conhecia pouco dos seus costumes.

    Posso aqui confessar que sempre tinha encarado a religião mais como um hábito do que uma cega devoção. Era crente e temente ao Senhor, frequentava regularmente o Templo, e como a grande maioria, tinha recebido instrução sobre as escrituras e os mandamentos. Mas não posso dizer que fosse um fiel e austero cumpridor de todas as leis, e eram muitas — para cima de seiscentas a acreditar no pai.

    — Não deve ser — retorquiu Eloy, um dos meus vizinhos da olaria do lado do fontanário. — Já conheci alguns essênios e eles nunca fariam isto, até porque eles deixaram de ir ao Templo. Há muito que o consideram impuro e nem acreditam que o Senhor ainda tenha lá a Sua presença.

    Um outro acrescentou. — Só podem ser hereges mesmo.

    E enquanto a multidão passava outros comentários se faziam ouvir, todos nesta mesma veia de uma unânime indignação por alguém interromper o decurso normal das nossas vidas de trabalho. Além disso, no nosso pacto com o Senhor não havia espaço para heresias, e quem se alvitrasse acima das leis, tão claramente enumeradas e repetidas, seria severamente castigado pelos homens ou pelo próprio Senhor.

    — Também por aí ouvi — confidenciou outro dos presentes, — Alguns aclamá-lo como messias.

    — Messias? — evidente o escárnio naquele comentário de outrem.

    E outro ainda acrescentou. — Há também quem diga ser descendente do rei David.

    — Ainda mais absurdo. Um campônio nascido lá para o norte ser descendente da tribo de David?

    — Carpinteiro, disseram-me.

    — Não é não, ele disse que o pai é carpinteiro!

    Asher ainda acrescentou. — Eu já o ouvi falar. Ele se diz pescador… E muitos dos que estão com ele também são pescadores.

    Estava surpreso! Todos já pareciam conhecer este pregador que até ontem era-me perfeitamente desconhecido, e lembrei-me da conversa tida com o pai.

    — Dizem que ele faz milagres — contribuí.

    — Também já ouvi falar nisso.

    — Isso gostaria de ver!

    — As escrituras também falam disso — explicou um dos outros presentes. — Mas cuidado, não esqueçamos Moisés. No Egito os sacerdotes pagãos do Faraó também faziam milagres!

    — É verdade.

    E assim acabamos por perder de vista o nobre profeta pescador messiânico e milagreiro, que alheio a estes e outros comentários continuou impávido rumo à porta de leste, envolto pelo seu séquito de som e poeira. Quem sabe se não estaria partindo de vez. Depois da confusão que armou seria difícil deixarem-o entrar de novo na cidade.

    Aos poucos a rua se esvaziou, e apesar do movimento voltar ao normal, poucos paravam para ver os nossos produtos e ainda menos acabavam por entrar na loja.

    Estava frustrado. Os festivais eram muito importantes para mim. Eram a época de mais movimento, e um distúrbio destes a dois dias do pessach não era um bom augúrio. Ainda mais sabendo que também tinha de contribuir para a ceia, pagar a minha parte do cordeiro, que aliás já tinha sido comprado, e ainda deixar o tributo devido quando fossemos cumprir o ritual do sacrifício. Esperava que nada tivesse acontecido a Isaac. Provavelmente teria de me socorrer dele para me emprestar alguns siclos, necessários para aqueles dias festeiros.

    Apesar de toda a comoção da tarde, nada daquilo atrasou o entardecer que sempre anunciava a hora de fecho da oficina e do regresso a casa. O aprendiz enviado para saber de Isaac ainda não tinha regressado, o que também não era de admirar. Na manhã seguinte apareceria queixando-se do movimento, o quanto se tinha esforçado, que tinha acabado por chegar já tarde e encontrado a oficina fechada, etc. Mas também, pouco podia fazer. O melhor era pôr-me a caminho. A noite não era das melhores alturas para atravessar a cidade, especialmente em dias de festival, onde o fervor religioso de uns não coibia a cupidez de outros.

    As ruas estavam agora bem mais vazias e começavam a se acender as primeiras luzes da noite nas portadas abertas das casas e pelas janelas escancaradas da cidade, iluminando as rotinas do final do dia — lojas fechando, mulheres acendendo os fogos e os braseiros onde iriam cozinhar as ceias, tudo ao bom som dos berros da garotada em relutante recolhimento doméstico. Tudo dentro do normal, e a passos largos acabei por chegar a casa esbaforido com pressa de saber de noticias de Isaac. Mas também ali tudo indicava a normalidade, os servos nos seus afazeres, a palha fresca espalhada pelo pátio, os aromas da comida, e até alguns dos hóspedes já recolhidos nos seus habituais recantos.

    Rute aguardava-me, como era costume, e após os rituais de limpeza e de troca de roupa, subi para o terraço onde geralmente encontrava o pai descansando no seu coxim ou trocando conversas com alguém, aguardando pela hora da ceia.

    — A paz esteja com o senhor, meu pai.

    — E com você também esteja, Ausero. E como foi o seu dia?

    — Não foi bom não. Distúrbios e confusões. Mas me fale de Isaac? Já chegou? Ouvi falar dos distúrbios no Templo.

    — Sim, chegou e está recolhido, mas daqui a pouco já sobe.

    — Sabe o que se passou, pai?

    — Sim, Isaac me contou. Aquele pregador Josué foi ao Templo e começou a vociferar imprecações contra os vendedores e cambistas no pátio. E enquanto gritava contra tudo e todos, pegou num cajado e derrubou algumas mesas, agredindo até alguns comerciantes. E claro, a multidão quando viu o que se passava aproveitou também para deitar abaixo mais mesas, especialmente as dos cambistas.

    — Mas Isaac foi agredido?

    — Não, mas na confusão derrubaram a mesa dele e acabaram por levar grande parte do dinheiro que tinha trocado durante o dia.

    — Muito ?

    — Bom, ele diz que sim. Mas o pior foi que na confusão desapareceram alguns registros onde ele tinha anotado as contas da semana. Vai ser difícil cobrar alguns empréstimos sem aqueles cadernos e as notas dos clientes.

    — Depois ainda se dizem crentes e tementes ao Senhor, pilhando no próprio Templo. E o que vão fazer com este pregador? Vão prendê-lo?

    — Os cambistas bem gostariam, e até alguns dos sacerdotes. Há quem o queira prender por sedição e heresia, mas com tanta gente pela cidade e arredores vai ser difícil encontrá-lo.

    — Talvez não, pai. Ainda hoje Asher me falou que eles estão acampados do outro lado do vale do Cédron.

    — Fora da cidade. Mais difícil ainda, e com tantos seguidores e peregrinos por aí, não será fácil. Mas também acredito que ele não volte à cidade. E você sabe que ele mais uma vez se intitulou filho do Senhor? Ele afirmou perante a multidão que o Templo era a casa do seu pai!

    — Já não tão inofensivo como o pai tinha dito. Típico desses Mashíach. Começam por apregoar a paz e passam rapidamente à violência quando se discorda deles.

    E Isaac chegou com os seus passos pesados ressoando no madeiramento da escada.

    — Boa tarde e a paz esteja com você, Ausero — saudou.

    — E com você também, Isaac. Já soube dos problemas de hoje.

    — Sim, infelizmente — Isaac nunca um homem de muitas palavras, e estava ainda mais soturno naquela noite. — E o seu dia como foi ?

    — Não muito bom também — queixei-me. — Infelizmente aquele pregador passou pela oficina arrastando multidões, uma a segui-lo e uma outra fugindo dele.

    Mas Isaac nem prestou atenção ou inquiriu mais.

    — Pai, combinei com alguns colegas meus para virem por cá mais logo. Estamos a pensar fazer uma petição ao Conselho para que este homem seja punido pelos seus atos. Alguns sacerdotes também o querem acusar de heresia. Este fanatismo tem de acabar e rápido. Sabe-se lá o quanto ainda pode aprontar nos próximos dias.

    — O problema vai ser encontrá-lo. Eu e o pai estávamos agora mesmo a falar nisso.

    — Os seus seguidores sabem onde se encontra. Basta apanhar um ou dois deles que acabam por falar, nem que para isso se tenha de pagar.

    — Vocês é que sabem. Vamos comer pois estou cansado e quero me retirar cedo. Estes dias de festival são muito desgastantes. Cada vez fica mais difícil andar por esta cidade com tanto peregrino.

    — Vamos sim, pai.

    Mas ainda esperamos algum tempo pela refeição, até porque alguns parentes não tinham ainda chegado.

    Depois de um jantar prolongado pelas conversas e opiniões de todos sobre o sucedido, começaram a chegar alguns cambistas e um ou dois escribas que também trabalhavam no Templo, avivando a conversa com promessas de retaliação e justiça.

    Acabei também por ficar com eles mais um tempo, curioso em saber o que planejavam fazer. Embora não fosse minha intenção me envolver, sempre seria útil como tema de conversas futuras saber um pouco mais sobre este Josué. Acabei por subir com eles para o terraço quando a sala ficou pequena demais para comportar todos os que iam chegando.

    Após uma curta discussão acordaram em primeiro lugar por nomear um deles, um escriba de profissão, para preparar a petição.

    — E quanto tempo vai levar para escrever essa petição, Menachem?

    — Se conseguíssemos hoje acertar todos os fatos e uma descrição concisa dos acontecimentos, acredito que amanhã pelo final da manhã poderia ter a petição pronta.

    — Menachem é muito urgente! Amanhã ele já pode ter saído de Jerusalém. Tenho a certeza que não vai ficar por aqui sabendo que poderá ser preso a qualquer momento. Temos de agir quanto antes!

    Isaac então sugeriu. — Vou buscar uns pergaminhos que tenho ali. Menachem, podemos redigir isso agora ou não ?

    — Certamente. Da minha parte só preciso de mais umas lamparinas para nos alumiar aqui.

    — Mas também porquê tanta pressa? Só poderemos entregar a petição ao oficial do Conselho pela manhã. E ainda vai ter de se esperar por uma reunião, pouco provável de acontecer a dois dias do pessach — opinou um dos outros.

    — Não podemos deixar isso acontecer. Se o Conselho só agir depois do shabat, então nunca mais o vemos.

    — Isaac, não estamos próximos da casa de José Caifás? O Sumo Sacerdote? — perguntou um dos presentes.

    — Sim, não é longe.

    — Então poderíamos deixar a petição com um dos seus secretários ainda hoje. Assim temos a certeza que será lida logo pela manhã.

    — Será? E ele vai aceitar receber uma petição a esta hora?

    — Acredito que sim, vamos redigi-la em nome do grêmio, e sugiro também que se acrescente ao documento a nossa indignação por este ato ter sido perpetrado por um herético que se diz filho do Senhor. Isso certamente o vai empolgar.

    — Uma boa idéia — disseram vários.

    Certamente que era. Uma coisa é acusar alguém de sedição ou de ser causador de distúrbios, e uma outra era ainda acumular a acusação com heresia e blasfêmia.

    Sendo eu o único ainda calado, também sugeri que se pagasse ao secretário para assegurar a entrega da petição naquela mesma noite ou cedo pela manhã do dia seguinte.

    Uma sugestão recebida com plena unanimidade, não fossem todos ali profundos conhecedores dos poderes persuasivos do brilhoso metal. Quanto à capacidade de persuasão do grêmio, era por demais conhecido o peso que tinham no próprio Sinédrio. Até os romanos os respeitavam, conhecedores do quanto geravam em impostos, e muitos publicanos judeus, a serviço do império, eram também membros do grêmio.

    Quando acabei por me retirar ainda a discussão seguia animada, e desci para o quarto no piso inferior onde Rute e Daniel já dormiam apesar do ruído que se infiltrava pelas gelosias das janelas.

    Rute era dois

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