A Linha Recta do Corvo
By Manuel Alves
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About this ebook
Lince teria uma vida relativamente despreocupada se não fosse a pequena questão de ser perseguido por assassinos, e tudo só porque chateou certas pessoas por ter testemunhado algo que não devia. Felizmente, os corvos avisavam Lince sempre que um assassino se aproximava. Infelizmente, os corvos não o ajudavam a escapar. Uma boa maneira de matar um assassino é tornar-se um assassino melhor. Pelo menos, foi o que Lince pensou.
Manuel Alves
https://www.patreon.com/manuelalves--O autor só fala de si mesmo na terceira pessoa quando tem de falar do autor ou, é claro, quando pratica a extraordinária arte da feitiçaria imaginativa — há quem lhe chame Escrita. Se houvesse na minha vida lugar para gatos, teria dois e um seria um Gremlin disfarçado. Tenho um furão e uma hiena — ambos imaginários.--The author only speaks of himself in the third person when he has to speak about the author or, of course, when he conjures the extraordinary art of imaginative sorcery—some call it Writing. If there was any place for cats in my life, I would have two and one of them would be a Gremlin in disguise. I have a ferret and a hyena—both imaginary.
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A Linha Recta do Corvo - Manuel Alves
Lince estava morto e sabia-o. Só faltava que alguém viesse matá-lo. E alguém viria. Matou o primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto, até ao décimo segundo. Uma dúzia de assassinos mortos não chegou para convencer as pessoas que o queriam morto a deixá-lo viver. Dozes homens, uns piores do que os outros, mas todos piores do que a maioria. Ao contrário deles, Lince tinha bom coração, era bom tipo. Só que era dado ao azar recorrente de chatear pessoas que não devem ser chateadas nem pelo Diabo. Matou-os todos de maneira diferente, e ainda bem, porque achava que não se podia enganar a morte duas vezes da mesma maneira. Era a sua única superstição. Não considerava superstição o facto de achar que os corvos o avisavam sempre que um assassino se aproximava. Mas isso era porque negava a existência dos corvos. Pelo menos, a existência que as pessoas lhes reconheciam. Para Lince, os corvos não eram pássaros, eram pactos com o demónio que corriam mal. Mas Lince não era um tipo supersticioso, isso era para idiotas com merda na cabeça. As coisas aconteciam porque aconteciam e não havia mistério aí. Excepto na questão dos corvos.
Limpou o suor da testa com o antebraço e cavou mais uma pazada de terra para fora da cova. Endireitou as costas e bebeu um gole da água que já tinha aquecido ao sol dentro do cantil. Deitou um fio de água nos arranhões ensanguentados que lhe raspavam o antebraço direito do cotovelo até ao pulso. Fez a mesma coisa com o joelho esmurrado que deixara uma nódoa vermelha à volta do buraco nas calças. Despejou a maior parte da água pela cabeça abaixo. Passou a mão pelo cabelo curto e limpou os olhos com os dedos. O corvo de asas abertas tatuado nas costas luzia de suor e água. O cadáver estendido em frente à cova deu-lhe vontade de bocejar o pó da boca. Cuspiu uma mixórdia cor de barro, como se tivesse passado o dia a mascar tabaco. Moía-lhe o juízo como é que um gordo daqueles sobrevivera até ali numa ocupação tão dada a hipertensões como devia ser isso de andar pelo mundo a matar pessoas. E agora tinha de abrir uma porra duma cova mais larga e funda do que as onze anteriores. O gordo bem que podia ter sido o nono ou o décimo, que assim já teria ficado