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O Engenho dos Sonhos: Antologia de Contos Fantásticos
O Engenho dos Sonhos: Antologia de Contos Fantásticos
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O Engenho dos Sonhos: Antologia de Contos Fantásticos

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About this ebook

Esta é uma antologia onde se pode passear pela imaginação e por novos e antigos mundos, conhecer personagens que nos levam mais além e partir à descoberta do desconhecido. Há quem já tenha lido alguns destes contos, contudo fica o convite para lerem os que estão por conhecer.

LanguagePortuguês
Release dateSep 1, 2014
ISBN9781310506864
O Engenho dos Sonhos: Antologia de Contos Fantásticos
Author

Carina Portugal

Carina Portugal nasceu em Cascais, a 19 de Junho de 1989, e vive actualmente na Amadora. Licenciou-se em Biologia (ramo de Biologia Molecular e Genética), pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.Apaixonada pelo género Fantástico, publicou contos em várias antologias, entre as quais: Vollüspa, com “O Acorde das Almas” (HM Editora, 2012); A Fantástica Literatura Queer, com “Duas Gotas de Sangue e um Corpo para a Eternidade” (Tarja Editorial, 2012); Trëma, com o conto “O Cais do Poeta” (2012); Dragões, com o conto “A Alma dos Mil Nomes” (Editora Draco, 2012); recentemente participou na Antologia Fénix de Ficção Científica e Fantasia, V. II e III, com os contos “Já Sinto” e “Frio, cada vez mais Frio”, respectivamente (2013).Participou em algumas webzines, como a Revista Abismo Humano (2010) e a Nanozine (2012). Para além disso, publicou os e-books “Os Passos dos Destino”, em co-autoria com a escritora Carla Ribeiro (2009), “O Retrato da Biblioteca” (2012), “Poesia Dispersa” (2013), “Duas Gotas de Sangue e um Corpo para a Eternidade” (re-edição, 2013) e “Coração de Corda” (2013).Actualmente colabora no projecto Fantasy & Co., dedicado à publicação e divulgação de contos de jovens escritores portugueses.

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    O Engenho dos Sonhos - Carina Portugal

    – Introdução –

    Escutas o soprar do vento nas velas que se hasteiam? Ele fala, sabias? Conta histórias do mundo ao Mundo, cantadas em furores e fulgores que só ele sabe enfatizar. Não te rias, é verdade. Quando toca na tua pele, transportando no seu corpo areias de desertos longínquos, conta-te as histórias dos grandes magos que secaram lagos gota a gota, que separaram os mares em dois, que plantaram flores nas nuvens e dançaram com fadas dos mundos distantes que, ainda assim, nos tocam. E se mergulhares nestas águas que nos rodeiam, verás sereias que nos espreitam curiosas e tímidas, aquelas das lendas que encantavam marinheiros e os faziam naufragar. Olha! Penso ter visto um pouco do seu cabelo flamejante ondular na maresia! Mas não te preocupes, não nos querem elas mal, estão só curiosas de ouvir também o Deus Vento que sopra manso, falando de florestas míticas onde se ama e venera a natureza. E sabes quem as habita, correndo alegres por entre troncos macios e nodosos, descalços e sempre eternos? São os elfos, quem mais poderia ser? Eles que falam a língua da Mãe Natureza e sofrem quando ela sofre. Muitos pensam que se extinguiram ou abandonaram para sempre este mundo, desgostosos. Mas eu digo-te que é mentira. Nos confins inexpugnáveis, cantam para quem os ouve. E digo-o porque os ouvi um dia. Se escutares esta brisa que enfuna as velas do barco, dir-te-á que concorda comigo. E chamas-me louco? Oh! Lamento por tal ouvir. Mas não irei discutir tal desavença ou falta de crença contigo. Prefiro ouvir as histórias, o canto belo que sopra doce no assobio do vento. Quanto a ti, entretém-te com a arte de navegar. E se vires alguma sereia acenar-te, aproxima-te. Ela só quer conversar. E talvez, quem sabe, te enamores dela e aqui fiques, banhando-te na maré do desconhecido. Mas nada temas, pois é singelo e belo. Só se esconde por pensar que não simpatizarás com ele.

    Síndrome da Fantasia – Mar Alto (Parte I)

    – Os Sapatos Negros –

    Parte I

    As águas do Tejo borbulhavam e trepavam os degraus feitos de pedra antiga, tentando tocar-lhe os sapatos negros. Tentativas vãs. Consultou o relógio de bolso e deixou os olhos seguirem os três ponteiros, instante a instante, as engrenagens vibrando-lhe na palma da mão enluvada. Por fim, detiveram-se em simultâneo sobre o número doze escrito em numeração romana. Ao longe, escutou a primeira badalada. O som das que lhe seguiram embrenhou-se na noite, anunciando a chegada do dia 25 de Dezembro.

    De cada um dos lados, as duas enormes sentinelas de pedra estalaram, o mármore fracturando-se com a magia que vagueava na noite. Representavam as duas colunas do templo de Salomão – a sabedoria e a devoção. Significados poderosos. Um brilho etéreo emanou dos seus corpos. Sorriu. Um fumo negro tomou conta do mostrador do relógio, escurecendo o vidro, escondendo números e ponteiros. Aproximou-o dos lábios e soprou. Na sua mão, o objecto desfez-se em pó negro e voou na direcção das águas. Erguendo-se, sem aviso, uma onda tomou para si as partículas, engolindo-as.

    Baixou a mão, mantendo o olhar fixo para além das águas. Engoliu em seco, humidificando a garganta, e chamou a si as palavras que lhe enchiam a mente. Entreabriu os lábios.

    De entre o fumo que ensombra a Memória,

    Dos confins negros do que é perdido e História,

    As águas agitaram-se, as ondas tornaram-se maiores.

    Agiganta-te para não mais cair,

    Sê do mar senhor e consome o que da Terra quis partir

    E conquistar o que é teu por direito e bem,

    Consome-os e entrega-os à Terra de Ninguém.

    Quando a invocação terminou, o Tejo serenou. Franziu as sobrancelhas. Alguma coisa estava errada. Onde se encontrava o poderoso gigante que se deveria erguer sob as suas palavras?

    – Talvez o sacrifício de há sete anos não tenha corrido bem. Talvez possa haver sobreviventes – disse alguém, atrás de si.

    – Morreram todos, certifiquei-me.

    Voltou-se, encarando a presença áurea cujos pés ossudos flutuavam a dois palmos do chão. Tinha a expressão de uma jovem desolada, os olhos encovados e vazios, o rosto sugado, as mãos encarquilhadas. Quanto à voz, entranhava-se na medula e gelava o corpo.

    – Certificaste-te mal. – Ela foi cortante. – Invoca um morto, estripa-o da verdade e descobre quem sobreviveu. Tens seis dias e algumas horas para remediar o teu erro, de forma a podermos libertar o nosso Senhor da sua prisão de água e nevoeiro. Caso contrário…

    Ficou a vê-la desaparecer no ar. Ainda lá estava, algures, tal como a sua ameaça espectral. Cerrou os punhos e fitou o rio uma última vez, antes de se afastar do Cais das Colunas.

    *

    Por fim, o último cliente. De pernas cruzadas, ele olhava em volta, tão interessado no estabelecimento como estaria um caracol num velório. Não que ele tivesse ar de caracol, vestido dentro de um fato negro, engomado na perfeição. Mas que tinha ar de quem passara o dia num enterro, tinha. Âmbar suspirou e saiu de trás do balcão com um prato na mão.

    – Eis o seu pedido, senhor – disse, pousando-o diante dele. – Bom apetite!

    Antes que pudesse recuar, uma mão de dedos gélidos crispou-se-lhe no pulso. Ergueu uma sobrancelha. Seria um daqueles clientes com a mania que podia fazer o que lhe apetecesse das empregadas? Forçou um sorriso.

    – Deseja mais alguma coisa? – Ao encará-lo, um calafrio percorreu-lhe a espinha. Os olhos eram tão escuros que a íris se confundia com a pupila, e brilhavam, correspondendo ao esgar sagaz que lhe bailava nos lábios.

    – Cabelo e olhos de uma cor tão característica – comentou, observando-a como se se tratasse de uma mercadoria. – Presumo que o seu nome lhes faça jus, não é assim, Âmbar?

    Libertou-se com um puxão do braço e recuou.

    – Com licença – disse, afastando-se, desconfiada.

    Ao passar junto ao balcão ousou um vislumbre para trás. Ele não pegara ainda nos talheres. Antes, bebericava do copo de vinho, seguindo-a com o olhar, enquanto o pé oscilava indolentemente. Voltou o rosto para a frente e abanou a cabeça. Aqueles sapatos eram-lhe estranhamente familiares. Como era possível que a perturbassem mais do que qualquer coisa naquele sujeito?

    Saiu do restaurante mal tirou o avental, deixando que fosse o gerente a tratar do resto. Puxou a gola do casaco para cima, escudando-se do vento cortante. Nem as luzes de Natal conseguiam disfarçar o frio da noite. Desceu a avenida vazia, de mãos nos bolsos e pescoço encolhido.

    Um estalido ecoou no ar, sobrepondo-se aos restantes sons. Olhou para trás, atentando o interior escuro dos carros estacionados, a esquina da rua transversal mais próxima e os ramos retorcidos das árvores. Talvez o barulho proviesse delas. A noite estava cheia de pequenos sons que de dia eram imperceptíveis.

    Consultou o relógio. Tinha pouco menos de dez minutos para chegar à estação mais próxima do Metro.

    Retomara a marcha, quando um novo ruído a perturbou – o som de passos que a seguiam, de sapatos a baterem nas pedras do passeio. Um arrepio subiu-lhe espinha acima. Mordeu o lábio inferior e acelerou. Os passos imitaram-na. Por um momento, conteve a respiração. Tinha medo de olhar para trás, medo do que poderia encontrar.

    Uma rajada de vento soprou o som para longe de si. Atreveu-se a rodar a cabeça e espreitou por cima do ombro. Arregalou os olhos. Era o homem do restaurante, e estava a menos de três metros. Ele esboçou um sorriso simpático, contudo os globos oculares reluziram como os de um animal nocturno.

    Não foi preciso mais. Sem tomar atenção à estrada, Âmbar precipitou-se para a beira do passeio e atravessou para o outro lado. Os ouvidos tornaram-se surdos a outros sons que não a sua respiração, o bater desenfreado do coração, ou os próprios movimentos. Desceu os degraus do Metro de dois em dois, e quase caiu ao reparar, tarde demais, num mendigo encolhido que ali se refugiara. Saltou por cima dele, agarrando-se ao corrimão, no último momento. Ainda assim torceu o pé. Ofegou, enquanto se endireitava e corria para as cancelas, ignorando a dor. Abriu a mochila, atabalhoada, sem deixar de olhar para trás. Não viu ninguém, não ouviu nada.

    As mãos encontraram o passe. Mal as cancelas se abriram, saltou para o outro lado, como se ao fecharem-se se erguesse uma barreira entre ela e o exterior. Olhou para o lado de lá. Aguardou, com uma mão sobre o peito. Os segundos passaram-se.

    Estava a ser idiota. Ele podia nem sequer estar a persegui-la. Podia ter ouvido o seu nome de outro empregado, não havia nada mais lógico. Respirou fundo e contou até dez, antes de baixar a mão e tentar descontrair os ombros. Guardou o passe na mochila e fitou o seu interior, hesitante, antes de tirar de lá um pequeno canivete que usava para cortar fruta. Escondeu-o no bolso, por precaução, mantendo lá a mão e não se atrevendo a largá-lo.

    Cautelosa, entrou na plataforma. Não havia ali vivalma. Espreitou os túneis negros, donde o eco distante de um comboio ainda sussurrava.

    Recuara dois passos, com um suspiro de alívio, quando embateu num corpo. Paralisou. Ele estava ali, surgira do nada.

    Parte II

    – Tão apressada, Âmbar – notou, pousando-lhe as mãos nos braços. Ela encolheu-os. – Temos um assunto para pôr em dia. Sete anos é muito tempo de espera.

    Aquela voz… lembrava-se dela. Era a mesma que lhe sussurrava nos pesadelos, desde aquele dia. Escapou-se dele num movimento brusco e correu para a saída.

    Porém, sem perceber como, os pés enrolaram-se um no outro, descoordenados. Caiu, desamparada, gemendo de dor. Tentava levantar-se, quando se deparou com um tentáculo de fumo negro enrolado à volta dos tornozelos. Seguiu o corpo de fumo que se originava sob os sapatos dele.

    – O que queres de mim? – A voz saiu num sussurro sufocado e trémulo.

    – Ah, de ti quero só resposta a uma curiosidade – disse.

    O eco de cada passo enchia a estação, enquanto ele se aproximava, e gritava-lhe para que fugisse. Ele debruçou-se sobre si. Os filamentos de fumo treparam-lhe pelo corpo acima, avançando em direcção ao rosto, trazendo-lhe recordações demasiado nítidas. As luzes tremeram e apagaram-se. Não, na verdade fora uma tontura que a assolara e lhe escurecera a visão. Ao longe escutou o rosnar do comboio.

    – Onde estavas escondida, naquele dia, pequenina?

    *

    As vidraças do salão estilhaçaram-se, cuspindo vidros em todas as direcções. Encolheu-se por detrás da correnteza de mesas onde estava a comida e cobriu a cabeça com os braços.

    – Mantenham-se todos nos vossos lugares – ordenou uma voz forte, masculina, acima de si. – O banquete ainda agora começou.

    Rastejou para debaixo da toalha e escondeu-se. O coração batia tão depressa que parecia um tambor aos seus ouvidos. Tentou controlar a respiração, temendo que a denunciasse. Devagar, os passos do homem ecoavam no tampo da mesa, como que num passeio. Pararam por um instante, para logo a seguir um copo de cristal ser esmagado. Tapou a boca com a mão, abafando um guincho de medo.

    Pouco depois, atreveu-se a levantar a toalha, muito ligeiramente, e espreitou.

    As mesas redondas espalhavam-se pelo salão. Vestidos a rigor, os convivas reuniam-se ali para festejar o fim de um ano e o início de outro. Mas a alegria extinguira-se, dando lugar ao medo que toldava a atmosfera.

    As pessoas tinham o olhar fixo acima do seu refúgio, demasiado preocupadas para repararem em dois olhos muito abertos.

    – É a hora – disse o homem.

    Por cima da sua cabeça, a madeira estremeceu sob o impacto de um sapateado rítmico que durou apenas três segundos.

    Sem aviso, o ar em redor tornou-se mais pesado. Uma superfície translúcida surgiu, a menos de dez centímetros do seu nariz, enevoando-lhe a visão do restante salão, antes de desaparecer como se nunca lá tivesse estado. Quase gritou, com medo de ter sido descoberta.

    Escutou um novo sapateado, mais rápido. Este ecoou alto, apesar de a sala estar cheia. A toalha agitou-se, quando uma sombra desceu através da superfície exterior e se deteve junto ao seu nariz, como se pressentisse uma presença. Ela paralisou. À primeira vista pareceu-lhe uma cobra sem cabeça. Contudo acabou por perceber que não era um animal, faltava-lhe consistência para isso. Era um tentáculo de fumo negro.

    A criatura deslizou rente ao chão, avançando na direcção das mesas. O corpo parecia não ter fim. Ao aproximar-se da primeira, trifurcou-se e atacou sem aviso os três convivas, precipitando-se sobre o rosto deles. O fumo entrou-lhes pelas narinas e pela boca pronta a gritar, mas da qual saíram apenas gorgolejos. Os corpos entraram em convulsão, a pele escureceu e mirrou como que sorvida por uma sanguessuga.

    O pânico instalou-se. Os gritos encheram o recinto fazendo estremecer as paredes. Enquanto isso, novos filamentos de fumo serpenteavam pelo ar, atacando tudo o que mexia.

    Deixou a toalha cair e tapou as orelhas, encolhida no seu refúgio, esperando que ninguém desse por si. Rezando que aquelas coisas não a vissem.

    Não soube quanto tempo passou, até o silêncio ser rei. Sobre a mesa, os passos voltaram a vibrar e, logo a seguir, o homem saltou lá de cima. Através da fresta entre a toalha e o chão, viu-lhe os sapatos negros que se detiveram por um momento, antes de se afastarem. Passou-se ainda mais tempo, até se atrever a espreitar.

    O chão estava pejado de corpos. No ar pairava um fedor carregado de qualquer coisa que na altura não soube identificar. Muito a medo, saiu do esconderijo e chegou-se à pessoa mais próxima. O rosto estava tão seco como as passas que se preparara para comer; escancarados, os olhos pareciam querer saltar das órbitas.

    Só mais tarde percebeu que a única presença viva em todo o edifício era uma menina de 11 anos. Ela mesma.

    *

    – Debaixo das mesas. Porquê…? – murmurou, sem desviar o olhar do fumo negro. Há sete anos assistira a um ataque rápido. Aquela coisa obedecia à vontade do homem. Seria imune a uma lâmina? A mão crispou-se no punho do canivete, ainda no bolso.

    – Debai… – começou ele, ponderando na resposta. – Ah, claro! Como é que poderia ter imaginado que o escudo que lancei sobre mim iria alcançar uma criança? Que sorte danada… mais sete aninhos de vida. E o trabalho que me deste! E porquê? Sacrifício é sacrifício, nada mais. Sente-te honrada, que a tua morte será alimento para algo maior e poderoso, aos pés do qual te vergarias, se pudesses.

    Bateu com o salto

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