E Deus Criou a Mulher: Mulheres e Teologia
By Anselmo Borges and Isabel Caldeira
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Anselmo Borges
Há iniciativas inimagináveis há poucos anos. No dia 26 de fevereiro de 2009, a partir de uma colaboração da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – no quadro do Mestrado e Doutoramento em Estudos Feministas, que integra também um seminário sobre “Mulheres e Religiões” – e do Instituto Universitário Justiça e Paz, teve lugar na Faculdade de Letras um Colóquio subordinado ao tema “Mulheres e Teologia” (…). E Deus Criou a Mulher é o resultado desse colóquio.
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Book preview
E Deus Criou a Mulher - Anselmo Borges
e deus criou a mulher
mulheres e teologia
coordenado por
anselmo borges e isabel caldeira
introdução
Há iniciativas inimagináveis há poucos anos. No dia 26 de fevereiro de 2009, a partir de uma colaboração da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – no quadro do Mestrado e Doutoramento em Estudos Feministas, que integra também um seminário sobre Mulheres e Religiões
– e do Instituto Universitário Justiça e Paz, teve lugar na Faculdade de Letras um Colóquio subordinado ao tema Mulheres e Teologia
, que reuniu 200 participantes.
A teologia regressou, assim, à Universidade de Coimbra, na Faculdade de Letras, que substituiu, há um século, a Faculdade de Teologia. Como sublinhou o seu Diretor, Carlos André, a Faculdade de Letras, que deveria antes chamar-se Faculdade de Humanidades – pois pergunta pelo Humanum, na sua raiz, nas suas múltiplas dimensões, no seu sentido – não pode ignorar a reflexão sobre o Divino.
A Universidade de Coimbra, na sua reorganização dos saberes, não quer esquecer a importância das religiões na investigação e no ensino. Não se trata de restaurar a Faculdade de Teologia, mas de perceber que as religiões têm o seu lugar na Universidade, para que esta seja precisamente Universidade, até no seu sentido etimológico-histórico. Impõe-se a presença do estudo do facto religioso nas escolas públicas, designadamente na Universidade, em perspetiva dialogante e crítica. Porque a religião é uma das dimensões constitutivas do Humanum e porque é preciso superar a ignorância e também a irracionalidade e o fundamentalismo religiosos.
Fazer regressar a teologia por via de uma perspetiva feminista é dar um passo em frente no sentido de derrubar preconceitos de duas ordens: por um lado, o de pensar que a religião só diz respeito aos crentes, por outro, o de que o feminismo só interessa a mulheres que não gostam de ser mulheres e falam umas com as outras sem abertura ao mundo. Com esta publicação, prova-se, afinal, que o feminismo quer a abertura ao mundo, mas um mundo que necessita de ser reavaliado com um olhar crítico que desvele uma história de subalternização das mulheres. Como nos diz Fernanda Henriques, «a voz das mulheres – se for uma voz emancipadora – instaurará uma ordem espiritual diferente, operando uma rutura na conceção do poder. Por brotar da experiência traumática de discriminação praticada por um poder fortemente hierárquico, a voz teológica no feminino tenderá a desenvolver uma espiritualidade que não desvalorizará a compaixão e que privilegiará a horizontalidade das relações.»
É um facto que não é possível ensinar literatura, história, filosofia, artes, sem uma cultura religiosa mínima. Por outro lado, vivemos num mundo cada vez mais multicultural e multirreligioso. Ora, sem paz entre as religiões, não haverá paz no mundo. A paz exige o diálogo inter-religioso, mas o diálogo pressupõe o conhecimento das religiões. Introduzir uma perspetiva feminista no ensino é ajudar a derrubar ideias estabelecidas e a construir um mundo mais justo e igualitário.
Em 2002, a pedido do ministro francês da Educação Nacional, o filósofo Régis Debray apresentou o Relatório sobre O ensino do facto religioso na escola laica
. O ministro Jack Lang escreveu no prefácio: se «a escola autêntica e serenamente laica deve dar acesso à compreensão do mundo», as religiões enquanto «factos de civilização» e «elementos marcantes e, em larga medida, estruturantes da história da humanidade» têm de estar presentes, e os professores, sem privilegiarem esta ou aquela opção espiritual, devem dar o justo lugar ao seu conhecimento nas várias disciplinas escolares.
Debray sublinha que «a história das religiões não é a recolha das lembranças da infância da humanidade». E é preciso reconhecer também que relegar o facto religioso para fora dos circuitos da transmissão racional, portanto, escolar, não é o melhor remédio para enfrentar «a vaga esotérica e irracionalista» bem como o fundamentalismo. Evidentemente, uma vez que se trata da escola laica, deve tornar-se claro que «o ensino do religioso não é um ensino religioso». É a laicidade que torna possível a coexistência das várias opções espirituais. Então, é preciso passar de «uma laicidade de incompetência» – a religião não nos diria respeito – a uma «laicidade de inteligência» – é nosso dever compreendê-la.
Por sua vez, estudar teologia com um olhar feminista é aprender a escrutiná-la questionando as versões do universal que propõe e as exclusões em que se baseia, como alerta Teresa Toldy, fazendo eco de Judith Butler. Afinal, «se a comunidade, pelo menos, de discurso, é constituída, muitas vezes, através de exclusões, de invisibilizações sexistas, como havemos de confiar que delibere sobre a questão do discurso sexista?»
Desta vez falou-se apenas do Catolicismo e a partir do Catolicismo, com a consciência de que o debate terá de abrir-se, no futuro, a outras religiões e outras formas de espiritualidade. Contudo, como disse na sessão de abertura Adriana Bebiano, coordenadora executiva do Programa de Estudos Feministas, «uma vez que a nossa cultura é maioritariamente católica, temos o dever de começar pela autointerrogação».
A partir dos textos presentes ao colóquio, revistos pelas oradoras, surge agora a público este livro, Mulheres e Teologia[1].
As religiões, na sua ambiguidade, têm sido e podem continuar a ser fatores de libertação. De facto, a sua influência neste domínio foi e é sobretudo negativa e opressora. Uma hermenêutica crítica deve contribuir para, por um lado, pôr a nu a opressão das religiões e os seus mecanismos, e, por outro, libertar o seu potencial emancipatório. Citando ainda Adriana Bebiano, o Catolicismo «tem sido um poderoso instrumento de regulação e opressão das mulheres. O seu poder de moldar consciências, a sua eficácia em ‘engenharia de almas’, tem contribuído para este problema que é muito mais vasto: é global: a construção do feminino segundo um modelo patriarcal que subalterniza as mulheres – de diversas formas –, faz de nós produtos ‘derivados’ do ‘sexo-que-é’: o masculino (Maria Irene Ramalho)».
Intervindo sobre Teologia e Feminismo
, Fernanda Henriques, da Universidade de Évora, constatando que Deus se tornou um ídolo masculino patriarcal – se Deus é masculino, o masculino é Deus e, então, como é que as mulheres se pensam quando se dirigem a Deus figurado no masculino? –, afirma que as teologias feministas devem ser um braço da teologia da libertação, fundamentais para a renovação da Igreja e decisivas para equilibrar as representações do homem e da mulher no seu valor na sociedade.
A teóloga Julieta Dias, ao tratar de As mulheres no Novo Testamento
, mostra o seu lugar relevante não só no seguimento de Jesus mas também na edificação das primeiras comunidades cristãs. A Samaritana percebeu que Jesus era o Messias. Quem pode negar a presença de mulheres na Última Ceia? Não foi uma mulher, Maria Madalena, a primeira a ver
Jesus ressuscitado, tornando-se assim a apóstola dos apóstolos?
Laura Santos, da Universidade do Minho, escrevendo sobre Teologia e Sofrimento
, centra-se no mito de Adão e Eva. Jesus não se lhe referiu. A sua importância veio pelos escritos de São Paulo e através da doutrina do pecado original. Transformou-se «uma narrativa mítico-simbólica num facto histórico, com todas as consequências negativas daí advindas, sobretudo para as mulheres», havendo mesmo quem ponha em causa a possibilidade de este mito «ser hermeneuticamente corrigido».
Teologia e Ética
, no seu desafio mútuo, é a problemática analisada por Teresa Toldy, da Universidade Fernando Pessoa. Pergunta essencial: Que utilidade tem a teologia para uma vida melhor e a felicidade humana, objetivo também da ética? Esta questão tem um recorte específico, quando relacionada com as realidades e problemáticas das mulheres, tanto no domínio ético como no teológico.
Dizer o Indizível: o saber feminino de um não-saber
é o tema de Isabel Allegro de Magalhães, da Universidade Nova de Lisboa. No quadro da obsessão masculina de a tudo dar nome, a quase totalidade das teologias abraçou o racionalismo, esquecendo que Deus é o Absoluto Indizível. É tarefa das teologias feministas contribuir para a aproximação da teologia negativa e dos grandes místicos de todas as religiões: «Regressar à luminosidade do Mistério, abrir possibilidades para um encontro de pessoas vinculadas a diferentes tradições, intensificar o sentido da responsabilidade pelo mundo e pela vida de todos, poderão ser alicerces seguros para as vozes a vir nas teologias: feministas e no feminino».
A teologia feminista surge da rebelião das mulheres contra o seu apagamento e silenciamento pelas religiões dominadas pela visão patriarcal. Daí a importância das suas interrogações, dos textos, das suas revisões da história, da sua reformulação das crenças e das práticas religiosas. Mas, como nos diz Juan José Tamayo, não esqueçamos que a causa da emancipação e da igualdade (não clonada) das mulheres não é só assunto de mulheres, mas sim de todos os cidadãos e cidadãs comprometidos na luta contra a discriminação sexual.
Fevereiro de 2011
Anselmo Borges
Isabel Caldeira
[1] Lamentamos a ausência nesta publicação do contributo de Maria Carlos Ramos, que falou no Colóquio sobre As mulheres no Antigo Testamento
, mas que não pôde, por motivos de saúde, enviar o texto.
Agradecemos a Maria Irene Ramalho, Coordenadora científica do Programa de Estudos Feministas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, pela sua generosa colaboração na revisão dos textos.
teologia e feminismo
Fernanda Henriques[1]
A questão de