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Coração
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Ebook392 pages4 hours

Coração

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Numa linguagem romântica e épica, Edmondo d’Amicis dá-nos uma extraordinária lição de ética e um belo testemunho dos princípios e dos valores que, 50 anos depois, dariam corpo à Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Passaram cento e vinte e cinco anos depois da primeira edição de Coração! O significado e a importância que d’Amicis atribui a valores como a amizade, o caráter, as coisas conquistadas com esforço, a necessidade de aprender e de saber, a família, a coragem, a injustiça e a brutalidade do trabalho infantil estão evidenciados nesta obra, ainda que de forma subtil. Num tempo como este, Coração é seguramente leitura oportuna e indispensável, também para adultos.
LanguagePortuguês
PublisherNova Delphi
Release dateOct 15, 2011
ISBN9789898407436
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    Coração - Edmondo De Amicis

    Edmondo De Amicis

    coração

    prefácio

    Quando o meu pai me deu este livro li-o como a jovem que era, apenas com alguns anos mais que Enrico, e entendi-o como o relato de um ano letivo onde se contavam os dias de um menino da 3ª classe numa escola de Turim, em Itália, com as suas alegrias, dúvidas, tristezas, contrariedades, amizades e desilusões. A mim que, ao contrário de muitíssimos outros jovens como Crossi, António ou Nelli, ainda não sabia que a vida é muito mais que brincar, estudar, aborrecer-se com ligeiras contrariedades, exibir ridículas vaidades e pequenos poderes de circunstância, este livro pareceu-me triste e dramático, um pouco pesado, até.

    Guardei-o com a perceção que não o tinha percebido e que seria preciso relê-lo. O tempo passou e Coração foi ficando – na estante, arrumado entre outros livros de juventude; na minha memória, como um livro intrigante.

    Agora, cerca de cinquenta anos depois, quando regressou para cima da minha mesa de trabalho para a escrita deste prefácio, cumpriu-se a epígrafe «Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara» – tinha olhado para ele, tinha-o visto, mas só agora estava a reparar.

    E talvez não pudesse ter sido de outro modo porque entender melhor este livro impressionante implica, entre tantas outras coisas, saber alguma coisa da Itália dos finais do século XIX e das lutas pela unificação do país até então constituído por diversos Estados dominados por potências estrangeiras; saber de nomes cujos exemplo e significado nos aparecem impressos no correr das páginas: Mazzini – dirigente e pensador, Cavour – primeiro-ministro liberal, Garibaldi – um homem que odiava a opressão com a mesma dimensão com que protegia os fracos e que teve um papel fundamental nas lutas pela unificação, Vítor Emanuel II – que só depois de 1861 pôde ser rei de toda a Itália. Todos profundamente nacionalistas e patriotas para quem a construção da nação italiana era objetivo prioritário.

    Na altura, e tudo disto eu sabia Nada, e por isso nem percebi a primeira referência importante deste Coração. Podia o autor ter escolhido um ano qualquer – que os anos letivos nessas idades não são tão diferentes quanto isso – mas escolheu o de 1881/1882, o que lhe permitiu realçar, em tempo real, a figura de Garibaldi aquando da sua morte, a 2 de junho.

    Escrito numa época tão difícil da história italiana – 1886 é data da primeira publicação de Coração – reflete como o sentimento patriótico era marcante a ponto de percorrer as páginas deste romance em episódios extraordinários como a receção ao pequeno Coraci «Para poder acontecer uma coisa assim, um menino da Calábria estar em Turim como se estivesse em casa, (…) o nosso país teve de lutar durante cinquenta anos, e trinta mil italianos perderam a vida. (…) E aquele que ofender este colega, só porque não nasceu na nossa região, não será digno de voltar a levantar os olhos do chão quando passar pela nossa bandeira», a carta Itália que o pai de Enrico escreve ao filho ou os comoventes contos mensais «O pequeno patriota de Pádua», «O pequeno herói lombardo», «O tamborileiro sardo».

    Edmondo De Amicis, para além de um patriota e um convicto apoiante da unificação italiana transporta também para esta obra, e de forma inequívoca, as suas imensas preocupações sociais que, de resto, o levarão a ingressar no Partido Socialista italiano em 1896.

    O respeito pelos outros e o respeito pelo trabalho dos outros «E presta atenção porque se não conservares estas amizades dificilmente conquistarás amizades semelhantes no futuro, quero dizer, amizades fora da classe a que tu pertences, e assim irás viver numa só classe, e o homem que pratica uma só classe social, é como o estudioso que lê apenas um livro. (…) Por isso ama e respeita acima de todos os teus colegas, os filhos dos soldados do trabalho; honra-os pelas canseiras e pelos sacrifícios dos seus pais, desconsidera as diferenças de fortuna e de classe, pois só os seres desprezíveis regem os sentimentos e a educação por elas;» ou «O trabalho não suja. Nunca digas que um operário que vem do trabalho Está sujo. Deves dizer: Tem nas suas roupas as marcas, os sinais do seu trabalho. Lembra-te disso. E sê amigo do pedreirinho, primeiro porque é teu colega, depois porque é filho de um operário» são exemplos de ensinamentos aqui trazidos, sob a forma de cartas, pela mão do pai de Enrico a quem é atribuído um papel fundamental como educador que não deixa apenas à escola essa responsabilidade, no que poderia ser, já, a antecipação de um debate dos tempos de hoje sobre educação e instrução.

    Também os que têm deficiências ou incapacidades constituem motivo maior para que o autor os traga ao texto, não numa perspetiva chocantemente caritativa mas, ao contrário, numa exigência de respeito e sensibilidade, numa procura permanente de soluções. Sem poder ser exaustiva, tão importantes seriam as referências, é elucidativo um pequeno excerto de uma carta que a mãe de Enrico – outra vez a importância da família enquanto educadora – lhe escreve depois de irem ao Instituto dos meninos raquíticos «não percebeste porque é que não te deixei entrar? Para não te pôr diante daqueles infelizes ali no meio da escola, como se estivesse a ostentar numa exposição, um menino forte e saudável.»

    Respeito, sensibilidade e atenção que, mais de um século depois, ainda não calam nas nossas relações sociais nem na forma como enfrentamos, e temos o dever de procurar resolver, os problemas dos que são diferentes porque sofrem de incapacidades diversas. Para os dias de hoje, onde as sociedades se configuram à volta de ídolos perfeitos e de vidas ideais, ficam as reações do pai de Gigia, a menina surda muda a quem ensinaram a falar, como deviam ficar as reflexões emocionadas do professor dos rapazes cegos.

    O significado e a importância que De Amicis atribui a valores como a amizade, o caráter, as coisas conquistadas com esforço, a necessidade de aprender e de saber, a família, a coragem, a injustiça e a brutalidade do trabalho infantil estão evidenciados, ainda que de forma subtil, na despedida especial no final do ano que Enrico dirige a alguns dos seus companheiros e sobre os quais é expressivo na apreciação:

    Garrone – o mais bondoso da turma, um amigo e defensor dos mais fracos «Tenho a certeza absoluta que arriscaria a vida para salvar um colega, que até se deixaria matar para defendê-lo: vê-se tão claro nos seus olhos; e apesar de parecer que nos ralha com aquele vozeirão, é uma voz que vem de um coração bondoso, sente-se»;

    Derossi – o melhor aluno da turma que recebe sempre a primeira medalha mas é simples, sem pretensões e amigo «sempre cheio de energia, alegre, educado com toda a gente, e ajuda quem pode nos exames (…) oferece jornais ilustrados, desenhos, tudo o que em casa lhe oferecem; fez para o calabrês um pequeno mapa geográfico da Calábria; e oferece tudo, a sorrir, sem ligar a nada, como um grande senhor, sem preferência por ninguém»;

    Stardi – de quem todos diziam ter cabeça dura, mas que com uma determinação e uma vontade inexcedíveis mereceu receber a medalha do segundo melhor aluno em dezembro; que não é rico, mas todo o dinheiro que poupa gasta na livraria e consegue ter uma pequena biblioteca de que cuida com tanto cuidado que os seus livros «parecem todos novinhos em folha. E eu que estraguei os meus!»; é um tipo esquisito, sem nenhum talento especial mas que se faz respeitar «porque tem caráter»;

    Precossi – tem um ar assustado e triste, sofre e chora muito; nunca o admite mas todos sabemos que o pai é um alcoólico que não trabalha, que lhe bate e despreza o seu empenho na escola mas, apesar disso, estuda com muita coragem e determinação a ponto de receber uma medalha em fevereiro e conseguir fazer mudar o pai. Sobre ele disse-me o meu pai «ofereceste-lhe o teu comboio (…) mas se fosse feito de ouro e estivesse cheio de pérolas, ia continuar a ser um presente demasiado pequeno para aquele bom filho que regenerou o coração do seu pai»;

    Coretti – filho de um vendedor de lenha que tinha lutado na 3ª Guerra da Independência de Itália. Muito trabalhador, ajuda o pai enquanto procura estudar a matéria «Que queres que faça? – disse-me – ponho o meu tempo a render. O meu pai está fora com o empregado para fazer um trabalho. A minha mãe está doente. Tenho de ser eu a descarregar. Ao mesmo tempo vou revendo a gramática. A lição de hoje é difícil. Não consigo metê-la na cabeça. O meu pai disse que vai estar cá às sete para lhe dar o dinheiro – disse ao homem da carroça».

    Numa linguagem romântica e épica mas que quis adaptada à narrativa, pelo jovem estudante Enrico, dos dias desse ano escolar de finais do século XIX, Edmondo De Amicis dá-nos uma extraordinária lição de ética e um belo testemunho dos princípios e dos valores que, 50 anos depois, dariam corpo à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Passaram cento e vinte e cinco anos depois da primeira edição de Coração!

    Há muitas décadas recebi este livro como, apenas, mais um.

    Hoje, vivemos num tempo em que a ideologia neo-liberal pretende sujeitar os poderes políticos eleitos aos desígnios e interesses da grande finança e do grande capital, ao mesmo tempo que quer fazer desaparecer os valores fundamentais da solidariedade, do respeito, da democracia, da fraternidade. Vivemos num tempo em que a guerra, o desespero, a fome, a violência, os devastadores desastres naturais ou induzidos pelo Homem, ocupam, para o chamado mundo civilizado, a duração da notícia do telejornal.

    Num tempo como este, Coração é seguramente leitura oportuna e indispensável, também para adultos.

    Violante Saramago Matos, 2011

    nota biobibliográfica e enquadramento histórico

    Edmondo De Amicis, jornalista, ensaísta e escritor italiano (Imperia, 21 de outubro de 1846, Bordighera, 11 março de 1908), cumpre a sua escolaridade em Cuneo, e prossegue os seus estudos em Turim, até aos dezasseis anos, altura em que se inscreve no exército, na Accademia Militare di Modena, onde se vem a tornar oficial. Retira-se da vida militar depois de ter participado na campanha de 1866, assistindo à derrota dos Savoia na batalha de Custoza.

    O seu livro La vita militare (1868), publicado com a chancela do Ministério da Guerra, relata a sua experiência no exército e obtém um sucesso relativo mas já reflete os seus ideais pedagógicos. Após a retirada do exército inicia atividade como correspondente do jornal florentino La Nazione e assiste à tomada de Roma em 1870. Da sua atividade como jornalista surgem alguns relatos de viagem, Spagna (1872), Ricordi di Londra (1873), Olanda (1874), Marocco (1876), Ricordi di Parigi (1877), Constantinopli (1878/79), Sull’Oceano (1886), Cuore (1886), Romanzo di un Maestro (1890).

    Em 1890 Edmondo De Amicis aproxima-se do socialismo, formalizando a sua adesão oficial em 1896 e rejeitando as ideias nacionalistas anteriormente defendidas, patentes em algumas das suas obras, nomeadamente no romance Coração. As obras posteriores a esta transformação ideológica expressam uma maior preocupação em relação às classes sociais mais desfavorecidas: Amore e Ginnastica (1892), Maestrina degli Operai (1895), La Carozza di Tutti (1892), Questione Sociale (1894), L’Idioma Gentile (1905), Ricordi di un Viaggio in Sicilia (1908), Nuovi ritrati letterari e artistici (1908). Nos anos que se seguem, Edmondo De Amicis colabora também em algumas publicações socialistas trabalhando para jornais ligados ao Partido Socialista: «La critica sociale», «La lotta di classe» e «Il grido del popolo».

    A 17 de outubro de 1886, precisamente no primeiro dia de escola, no início de mais um ano letivo, a editora Treves lança o romance Coração (1886). Este foi o livro de Edmondo De Amicis mais lido e mais vendido e obteve sucesso imediato tendo sido objeto de sucessivas reedições e traduções em escassos meses após a publicação.

    Coração tem como pano de fundo o quotidiano de Enrico Bottini, um menino que vive com a família em Turim, e que iniciou há pouco tempo a vida escolar e regista o seu dia a dia, e tece reflexões acerca das suas vivências, anexando ao seu diário as cartas do pai, da mãe e da irmã, todas elas com propósitos formativos. Edmondo De Amicis inspira-se na vida escolar dos seus dois filhos, Ugo e Fulvio, para redigir este romance.

    Embora esta narrativa seja um diário ficcional de um ano letivo, escrito por um menino de oito anos, várias intenções precedem a sua génese. A intenção de criar uma unidade sobre um território multicultural e plurilinguístico, como continua a ser ainda hoje toda a Itália, de unificar um povo multifacetado através da crença no sentimento e de expressar ideias nacionalistas e fomentar uma consciência de identidade é óbvia.

    A utopia ideológica do romance Coração pretende uma total unificação cultural e linguística de Itália, um território multifacetado onde impera uma multiplicidade de dialetos, e embora o texto seja redigido em toscano, a língua oficial de Itália, ocasionalmente pontilhado por napolitano, veneto, lombardo, cria a ilusão de uma Itália unificada linguisticamente. Em toda a narrativa se expressa a exaltação do nacionalismo, e de valores éticos e a sobrevalorização do sentimento, da abnegação, do altruísmo, da integração social definindo contudo os limites e as diferenças entre as classes abastadas e as classes operárias. Este poderia ser considerado um romance de formação com algum resíduo de inspiração em Jean Jacques Rousseau, se considerarmos as convicções do autor relativamente à importância da disciplina e aos valores morais e éticos, fundamentos de uma boa formação. No entanto, o romance respira o clima vigente na época, de uma Itália recém unificada após numerosos conflitos, e de um povo em busca de traços de identidade.

    As circunstâncias históricas, no culminar dos vários conflitos que levam em 1861 à unificação definitiva da Península Itálica e a formação do Reino de Itália, impunham essa necessidade tanto a nível cultural como sociopolítico. Se Itália tinha sido unificada politicamente, essa unificação não se refletia linguisticamente e Itália continuava a manter uma enorme diversidade linguística – recorde-se que todas as regiões da Península Itálica possuíam o seu próprio dialeto, e que a língua oficial se afirmava numa das variantes do toscano, o florentino, a língua de Dante. O autor de Coração nasce na região de Ligúria e redige o seu texto em florentino.

    Note-se que atualmente o território da Península Itálica alberga vários grupos de línguas e dialetos que ascendem a mais de cem na sua totalidade. O grupo de línguas e dialetos franco-itálicos compreende as regiões de Piemonte, Ligúria, zonas fronteiriças de França, do Principado de Mónaco e Suíça, além das regiões da Lombardia, região de Trentino-Alto Adige, de Emilia-Romagna, e República de São Marino, Le Marche, Toscana, Basilicata, Sardenha e Sicília, o grupo dos dialetos do Veneto compreende a região do Veneto, do Trentino-Alto Adige e de Friuli-Venezia Giulia, (na altura em que é publicado o romance, parte desta região encontra-se sob o domínio austro-húngaro), e o Lazio, sem considerar as regiões fronteiriças da Eslovénia e da Croácia onde subsiste o italiano hoje em dia. Além disso multiplicam-se as variantes do dialeto toscano na região da Toscânia. Em seguida encontra-se o grupo dos dialetos centrais da região de Úmbria, Le Marche, Lazio, Abruzzo e também os dialetos meridionais intermédios da região de Lazio, Marche, Abruzzo, Molise, Campania, Basilicata, Calábria e Puglia. No grupo dos dialetos meridionais extremos encontram-se aos dialetos das regiões de Campania, Puglia, Calábria, e Sicília. Além disso deparamo-nos também com o grupo linguístico corso na Sardenha e na Córsega. A estes juntam-se as línguas retro-românicas, a língua ladina e o friulano, além de outras minorias linguísticas não reconhecidas.

    E no meio desta diversidade linguística, gastronómica, caracterial, que é consequência inerente de uma prolongada divisão histórica e de distância geográfica, e de várias influências do substrato linguístico dos primeiros povoadores, Edmondo De Amicis encontra o fio que reúne num só povo os vários povos da península itálica e das ilhas adjacentes: o sentimento.

    A comparação, a metáfora, a sinestesia e a personificação são os principais recursos estilísticos usados quando o autor se refere ao coração. Assim, o coração é o elemento que unifica verdadeiramente todos os italianos. E a metáfora do coração é usada indiscriminadamente ao longo do texto, tanto quando se registam os relatos dos pequenos heróis da infância, como quando o narrador se submete à moral e propósitos disciplinadores dos progenitores, é o sentimento que prevalece e comanda a ação e que medeia as decisões quando surgem conflitos. E se não se nomeia o coração, a expressividade no registo das várias situações, o uso de interjeições, o relato de emoções servem de elementos de coesão unificadores desta narrativa.

    Embora o romance Coração expresse o nacionalismo e a necessidade imperiosa de afirmação de um povo, isso não impediu que Edmondo De Amicis na sua época fosse alvo de críticas. E estas surgem através de alguns autores. Paolo Mantegazza ripostou a Cuore (Coração), a apologia do sentimento e da emoção, com o romance Testa (Cabeça), em 1887, que defende a racionalidade e é uma crítica cordial à emotividade e à utopia de Coração. Este romance de Paolo Mantegazza é uma continuação da vida de Enrico Bottini, na adolescência, e o autor dedica-o a Edmondo De Amicis.

    150 anos se passaram desde a unificação política de Itália, e mais de um século decorreu após a primeira edição de Coração em Itália, 125 anos, no entanto, há um outro ideal utópico neste livro, a apologia da infância e da aprendizagem como marca de civilização, encarnada nas personagens que retrata, nos pequenos episódios da vida de um menino e dos seus colegas de escola, no seu olhar sobre os acontecimentos, na importância que a escola adquire, na aprendizagem que advém dessa parcela fulcral da sua vida, nas amizades que conquista e no carinho que lhes devota, e que tornam esta narrativa intemporal, e refrescam a memória em relação a um mundo de ideais universais que toda a humanidade transporta e que seria necessário conservar e defender.

    Mas este romance é também e sobretudo um retrato dos valores de uma época, dos seus hábitos e das suas vivências. É um documento que permite definir e fixar um período importante da história de Itália, após a unificação, o percurso da alfabetização do país, o estado efetivo da estratificação social coeva e das formas de interação entre indivíduos, e nos fornece pistas relativamente ao vestuário, meios de transporte da época, hábitos e gestão da vida familiar, meios de subsistência, fornece-nos igualmente dados relativamente a hábitos gastronómicos e expõe as feridas de um país acabado de sair do longo conflito que antecedeu a nova ordem política, dá-nos elementos precisos em relação a profissões, mas também em relação à pobreza dominante em contraste com o bem estar dos indivíduos da pequena e média burguesia. É também um registo dos modos de comunicação entre classes e da tentativa de definir uma nova ordem social.

    Laura Moniz

    este livro é especialmente dirigido aos alunos das escolas do 1º ciclo com idades compreendidas entre os 9 e os 13 anos, e poderia intitular-se: História de um ano letivo, escrita por um aluno do terceiro ano de uma escola municipal italiana. Quando digo escrita por um aluno do terceiro ano, não quer dizer que tenha sido propriamente ele a escrevê-la, tal como foi publicada. Ele ia anotando num caderno, como sabia, o que tinha visto, sentido, pensado, dentro da escola e fora dela; e o seu pai, no final do ano, redigiu estas páginas sobre aquelas notas, tentando não alterar o pensamento, e tentando manter, o mais possível, as palavras do filho. Este, quatro anos mais tarde, quando já estava no sétimo ano, releu o manuscrito e deu-lhe um cunho pessoal, servindo-se da memória ainda fresca de pessoas e de coisas. Agora leiam este livro, meninos: espero que este vos alegre e vos faça bem.

    Edmondo De Amicis

    outubro

    o primeiro dia de escola

    17, segunda-feira

    Hoje foi o primeiro dia de escola. Aqueles três meses de férias no campo passaram como num sonho! A minha mãe levou-me esta manhã à Escola Baretti para me matricular no terceiro ano. Eu estava a pensar no campo, e ia de má vontade. Todas as ruas fervilhavam de crianças, as duas livrarias estavam apinhadas de pais e de mães que compravam mochilas, pastas e cadernos, e em frente da escola aglomerava-se tanta gente que o contínuo e o guarda civil tinham alguma dificuldade em manter a entrada livre. Perto da porta, senti que me tocavam no ombro. Era o meu professor do segundo ano, alegre como sempre, com os seus cabelos ruivos desgrenhados, que me disse:

    – Então Enrico, despedimo-nos para sempre?

    Eu já sabia disso; e mesmo assim aquelas palavras encheram-me de pena. Foi um custo para conseguirmos entrar. Senhores, senhoras, mulheres do povo, operários, oficiais, avós, criadas, todos com uma criança numa das mãos e os certificados de passagem de ano na outra, apinhavam a sala de entrada e as escadas, fazendo um burburinho que dava a impressão de se estar a entrar num teatro. Revi com prazer aquele enorme átrio do rés do chão, com as portas das sete salas de aula, por onde passei durante três anos quase todos os dias. Havia uma enchente de gente, as professoras iam e vinham. A minha professora do primeiro ano cumprimentou-me da porta da sala de aula e disse-me:

    – Enrico, tu vais para o andar de cima este ano: nem sequer vou voltar a ver-te passar! – e olhou-me com tristeza.

    O Diretor estava rodeado de mulheres muito agitadas porque já não havia lugar para os seus filhos, e pareceu-me que ele tinha a barba um bocadinho mais branca do que no ano passado. Encontrei alguns meninos mais crescidos, e mais gordos. No rés do chão, onde já tinham sido agrupados, estavam meninos do primeiro ano que não queriam entrar na sala e estacavam como burros. Era preciso empurrá-los para dentro à força. E alguns fugiam das carteiras[1]. Outros, quando viam que os familiares se estavam a ir embora, desatavam a chorar, e estes tinham de voltar para trás para consolá-los ou apanhá-los, e as professoras estavam de cabelos em pé. O meu irmãozinho foi colocado na turma da professora Delcatti; eu na do professor Perboni, no primeiro andar, em cima. Às dez estávamos todos na sala: cinquenta e quatro. Apenas quinze ou dezasseis colegas do segundo ano, entre os quais Derossi, o que recebe sempre o primeiro prémio.

    A minha escola pareceu-me tão triste e tão pequenina, ao pensar nos bosques e nas montanhas onde passei o verão! Também relembrava o meu professor, tão bom, que ria sempre connosco, e tão jovem, que até parecia nosso colega, e lamentava-me por não voltar a vê-lo lá, com os seus cabelos ruivos, desgrenhados. O nosso professor é alto, sem barba, tem cabelos grisalhos e compridos, e tem uma ruga vertical na testa, tem voz grossa, e olha-nos a todos fixamente, um a um, como se quisesse ler-nos por dentro. Nunca se ri. Eu dizia para os meus botões:

    – Este é o primeiro dia. Ainda faltam nove meses. Muitos trabalhos, muitos exames mensais, muito cansaço!

    Estava mesmo a precisar de encontrar a minha mãe à saída, e corri para lhe beijar a mão. Ela disse-me:

    – Coragem, Enrico! Vamos estudar juntos.

    E voltei para casa contente. Mas já não tenho o meu professor, com aquele sorriso bondoso e alegre, e a escola já não me parece bonita como antes.

    [1] N.T. O mobiliário escolar da época era em tudo semelhante ao mobiliário usado em Portugal até há cerca de quatro décadas atrás, sobretudo nas escolas de 1º Ciclo do Ensino Básico. As carteiras, uma espécie de bancos com tampo inclinado, unidos numa só peça, podiam ser individuais ou duplas.

    o nosso professor

    18, terça-feira

    Também já gosto do meu novo professor, desde esta manhã. Durante a entrada, quando ele já estava sentado no seu lugar, de vez em quando aparecia à porta algum dos seus alunos do ano passado, para o cumprimentar; apareciam, de passagem, e cumprimentavam-no.

    – Bom dia, senhor professor. Bom dia, senhor Perboni.

    Alguns entravam, davam-lhe a mão e fugiam. Via-se que gostavam dele e que teriam gostado de voltar a ter aulas com ele. Ele respondia:

    – Bom dia.

    Apertava as mãos que lhe estendiam. Mas não olhava para nenhum deles. Permanecia sério de cada vez que o cumprimentavam, com a sua ruga vertical na testa, virado para a janela, olhando o telhado da casa em frente.

    E em vez de se alegrar com aquelas saudações, parecia que sofria com elas. Depois olhava para nós, um a seguir ao outro, com atenção. Durante o ditado, começou a passear no meio das carteiras, e ao ver um menino que tinha a cara toda vermelha, cheia de bolhas, interrompeu o ditado, segurou a cara dele entre as mãos e olhou-o. A seguir perguntou o que é que ele tinha, e passou-lhe uma mão na testa para ver se tinha febre. Entretanto, um menino atrás dele levantou-se sobre a carteira, e pôs-se a fazer palhaçadas. O professor virou-se de repente. O menino sentou-se logo, e ficou ali, de cabeça baixa, à espera do castigo. O professor pôs-lhe uma mão sobre a cabeça e disse-lhe:

    – Não voltes a fazer isso.

    Não disse mais nada. Voltou à sua mesa e acabou o ditado. Quando acabou o ditado, olhou-nos por um momento em silêncio; depois disse muito lentamente, com a sua voz grossa, mas bondosa:

    – Escutem. Vamos passar um ano juntos. Vamos tentar passá-lo da melhor forma. Estudem e portem-se bem. Eu não tenho família. Vocês são a minha família. No ano passado ainda tinha a minha mãe: mas perdi-a. Fiquei só. Só vos tenho a vocês no mundo, não tenho nenhum outro afeto, nem mais ninguém no pensamento. Vocês vão passar a ser os meus filhos. Gosto de vocês, e vocês vão aprender a gostar de mim. Não quero ser obrigado a castigar ninguém. Demonstrem-me que têm bom coração. A nossa escola vai ser uma família, e vocês serão a minha consolação e o meu orgulho. Não vos peço que façam uma promessa em voz alta. Tenho a certeza que, no fundo do coração, vocês já me disseram que sim. E agradeço-vos.

    Nessa altura o contínuo entrou para dar indicação que a aula terminara. Saímos dos nossos lugares muito calados. O menino que se tinha levantado sobre a carteira aproximou-se do professor e disse-lhe com voz trémula:

    – Senhor professor, desculpe.

    O professor beijou-o na testa e disse-lhe:

    – Vai, meu filho.

    um acidente

    21, sexta-feira

    O ano começou com um acidente. A caminho da escola, esta manhã, repetia ao meu pai as palavras do professor, quando vimos a estrada cheia de gente que se concentrava em frente da porta da Repartição. O meu pai disse logo:

    – Houve um acidente! O ano começa mal!

    Foi difícil entrarmos. O grande átrio estava cheio de pais e de alunos, que os professores não conseguiam enfiar para dentro das salas, e todos estavam voltados para o gabinete do Diretor, e ouvia-se dizer Pobre menino! Pobre Robetti!

    Por cima das cabeças, no fundo da sala cheia de gente, via-se o capacete de um guarda civil e a cabeça calva do Diretor. A seguir entrou um senhor com um chapéu alto, e todos disseram:

    – É o médico.

    O meu pai perguntou a um professor:

    – Que aconteceu?

    – Uma roda passou-lhe por cima do pé – respondeu este.

    – Partiu-lhe o pé – disse outro.

    Era um aluno do segundo ano, que vinha para a escola

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