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Uma Década Queer: 50 Entrevistas em Português (2004-2014)
Uma Década Queer: 50 Entrevistas em Português (2004-2014)
Uma Década Queer: 50 Entrevistas em Português (2004-2014)
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Uma Década Queer: 50 Entrevistas em Português (2004-2014)

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About this ebook

Existem sexualidades, feminismos, ideologias, políticas, pessoas, opiniões, agendas. Porquê olhar a realidade LGBT como um monolito que pensa ou reivindica a mesma coisa a todo o tempo e a uma só voz?

Esta colectânea de entrevistas nasce para ajudar a divulgar as temáticas queer nos países de língua portuguesa, resumindo um trabalho de dez anos. Entre 2004 e 2014, como jornalista freelancer, escrevi exaustivamente sobre direitos humanos, minorias, sexualidades, políticas de identidade. As entrevistas são o que de mais importante sobrevive por estarem menos coladas à actualidade. Não abordam qualquer daqueles temas de maneira acrítica: pergunto para entender e dar a conhecer, não para apoiar ou rejeitar.
É a primeira vez que se publica em língua portuguesa um conjunto de entrevistas desta natureza. Independentemente da orientação sexual, da identidade de género e de outras características, todos os 50 entrevistados falaram, por proposta minha, de temáticas queer.
- Bruno Horta

LanguagePortuguês
PublisherINDEX ebooks
Release dateSep 7, 2015
ISBN9789898575609
Uma Década Queer: 50 Entrevistas em Português (2004-2014)

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    Uma Década Queer - Bruno Horta

    DISCURSOS

    Miguel Vale de Almeida

    Fazer o coming out dá imenso poder a uma pessoa

    Dir-se-ia que se aburguesou. Sem dor ou culpa. Membro da Juventude Comunista no fim dos anos 70, militante da Política XXI e do Bloco de Esquerda até 2006, Miguel Vale de Almeida, 48 anos, é hoje um dos protagonistas da luta dos homossexuais portugueses pelo casamento. Mas admite ter-se afastado do activismo esquerdista para agora abraçar ideias liberais de igualdade. No seu novo livro, A Chave do Armário: Homossexualidade, Casamento, Família, cruza abertamente o activismo com as teorias da antropologia. E não vê nisso qualquer problema. É o nono livro científico que escreve e o quarto ensaio editado em Portugal no último ano e meio sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo (segue-se a Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo, de Pamplona Côrte-Real e outros; Casamento entre Pessoas do Mesmo Sexo - Sim ou Não?, de Pedro Múrias e Miguel Nogueira de Brito; e O Casamento Sempre foi Gay e Nunca Triste, de José António Almeida).

    Frontal, polémico, bom comunicador, nasceu e vive em Lisboa e doutorou-se em antropologia pelo ISCTE em 1994. Bloguista inveterado, escreve "Os Tempos Que Correm", desde Maio de 2003. Tímido e pouco sociável, lê muito, sobretudo ficção das Américas. O mexicano Jorge Volpi é um dos autores que actualmente lhe interessa.

    Considera-se um ficcionista e artista plástico no armário, mas já publicou um romance ("Euronovela, 1998) e um livro de contos e desenhos (Quebrar em Caso de Emergência, 1996). De entre os seus livros mais conhecidos destaca-se Senhores de Si: Uma Interpretação Antropológica da Masculinidade" (1995).

    Na introdução do livro diz que não é fácil para o antropólogo olhar com distância as causas em que se envolve como cidadão. É, portanto, um antropólogo activista.

    Sou e não tenho nenhum problema com isso.

    Os seus pares terão problemas com isso?

    Que eu saiba, não. Sempre assumi que grande parte do que faço é para ter um efeito social específico. No passado, submetia as minhas análises antropológicas à sua utilidade social. E nas intervenções que fazia como activista tentava ser suficientemente crítico a partir do que sei da antropologia. Com este livro, quase acaba essa distinção. A meu ver, isso não prejudica uma coisa ou outra. Julgo que a mistura é libertadora, o que tem a ver com o amadurecimento. Se as pessoas amadurecerem bem, libertam-se de coisas. Agora, a questão é se aquilo que se produz do ponto de vista do activismo e do da antropologia é ou não mais rico. Se for, tudo bem.

    Parece haver uma matriz anglo-saxónica no seu modo de estar. É uma pessoa de reflexão e acção, de academismo e activismo. Que lugar ocupa ou deseja ocupar no espaço público português?

    Essa maneira de estar surgiu naturalmente, tem a ver com razões familiares, de origem e educação, e com experiências noutros lugares, nomeadamente nos EUA [onde fez o mestrado em antropologia, em 1986, pela State University de Nova Iorque]. O espaço que gosto de ocupar, e onde me sinto bem, é o da militância e activismo, mas não dou muito o corpo ao manifesto.

    Mas desfila sempre na Marcha do Orgulho LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgéneros], em Lisboa.

    Sim, mas depois não sou muito bom no trabalho colectivo e associativo, sou melhor a escrever. Tenho esse problema, sou intelectual. Mas gosto que o que escrevo dialogue com a sociedade e gosto de ter um registo radical. Não faço antropologia para dentro, mas para fora. Escrevo não apenas em livros, mas também nos média, para permitir o acesso de outras pessoas. Gosto de escrever com cuidado e tratar bem a língua, mas não gosto de ter uma língua elitista, gosto de poder dizer asneiras, falar coloquialmente, misturar registos. É um jogo delicado. Se tivesse de me descrever diria que gosto de estar na corda bamba e de correr o risco de sair do conforto de uma definição categorial muito certa: o académico, o activista, isto ou aquilo. Curiosamente, isto bate certo com o ar dos tempos. A partir dos anos 80, 90, com a transformação da sociedade em termos dos meios de comunicação, das legitimações do que as pessoas fazem e da divisão do trabalho, deu-se essa mistura de estilos. Entrei nela algures nos anos 80, na universidade. Mais até através de actividades artísticas ou associativas estudantis do que do ponto de vista científico ou activista. Foi através de leituras, de filmes que víamos, da forma como olhávamos o mundo que eu e um certo grupo de amigos, que tínhamos 13 ou 14 anos no 25 de Abril, criámos nos anos 80 um modo de estar que foi a reacção de quem recusou desiludir-se com o 25 de Abril.

    Uma reacção muito Bloco de Esquerda (BE), diríamos hoje.

    Ao BE foram parar muitas pessoas desse tipo, sim.

    O início da sua militância política coincide com o do activismo gay?

    Não exactamente. Ao formar-se o BE [em 1999] fui introduzindo no partido muitas questões de temática LGBT. Mas já participava em conferências ou debates, como antropólogo e gay assumido. Mas o meu activismo não é o activismo das associações. É o activismo de cronista, sobretudo quando escrevia no Público [entre 1992 e 1995], e da participação cívica.

    Sente-se o principal responsável pela dinâmica LGBT do BE?

    Não, porque havia todo um segmento que vinha do Grupo de Trabalho Homossexual do PSR [um dos partidos que deram origem ao Bloco de Esquerda]. Mas lembro-me de introduzir as coisas a partir de uma perspectiva menos ideológica e mais preocupada com igualdade de direitos e cumprimento da democracia, sobretudo no que se refere ao casamento.

    Considera-se o teórico do movimento gay português?

    Espero que não, é um troféu que não me agrada muito. E há outras pessoas. Aceito que seja um dos teóricos, mas é uma responsabilidade e não especial prazer.

    No livro faz a distinção entre o activismo gay left, originário dos anos 60 e 70, e o activismo gay pós-SIDA, mais actual. O seu será este último.

    Pode dizer-se que sim, mas tenho as duas coisas na minha bagagem. Pensei muito em termos da ligação entre uma teoria social de esquerda e as questões de orientação sexual, depois fui fazendo o meu percurso e acompanhando os tempos. Assim que nos EUA começou a reivindicação do casamento percebi que muita coisa já se tinha transformado. E isso corresponde a uma sociologia do período pós-SIDA.

    Mas então a sua é uma atitude recente, porque a reivindicação do casamento nos EUA é coisa já dos anos 2000.

    É quase já dos anos 2000, mas resulta dessa reconfiguração da comunidade e do movimento [gay], agora mais preocupado com a integração e o reconhecimento da igualdade jurídica de direitos e menos preocupado em fazer da orientação sexual, nomeadamente a homossexual, uma fonte necessária de rebeldia. Isto é, deixou de se ver nisso qualquer acto anti-sistémico.

    O que é bom ou mau?

    Faz parte da realidade. Se queremos promover maiores oportunidades de felicidade para um maior número de pessoas, e é isso que me interessa como programa político, seja ele qual for, temos que ter propostas o mais abrangentes possível. Não impede que se faça um trabalho crítico, e aí a antropologia entra, que fale sobre o patriarcado, a heteronormatividade e a ligação dessas realidades a outras, económicas, políticas, etc. Agora, do ponto de vista estratégico, prefiro apostar no cumprimento das promessas liberais.

    Foi difícil assumir-se como gay?

    É sempre um pouco difícil. Talvez agora já haja gerações para as quais não é difícil. Foi problemático do ponto de vista psicológico, de ansiedade. Coincidiu com o fim da adolescência e o início da idade adulta jovem, em que toda a gente passa por complicações identitárias. Eu tinha esta a mais, por falta de informação, provavelmente, e receio de reacções. Finalmente, já tarde, em 1984, quando concluí a licenciatura e fui para os EUA, fiz o coming out [a assumpção da homossexualidade] para os amigos. Na família foi mais tarde, em 1986, quando tive a primeira relação estável. Depois comecei a trabalhar na universidade e disse a toda a gente, para que no trabalho a coisa ficasse logo estabelecida. Dois ou três anos depois, comecei a ter actividade pública e aí a coisa foi por si. Publicamente, assumi numa crónica no Público, de forma indirecta.

    Alguma vez se sentiu prejudicado no trabalho por ser gay assumido?

    Directamente, não. Indirectamente, não sei. Aliás, é um dos mistérios desta questão. Muitos gays e lésbicas são prejudicados de forma directa, frontal, violentíssima, terrível. Mas também são prejudicadas sem nunca saberem que o foram. Agora, em determinados meios, para determinadas origens sociais privilegiadas, como reconheço que tenho, as coisas acontecem menos. A verdade, porém, é que fazer o coming out dá imenso poder a uma pessoa. Permite uma guerra preventiva, como diria George Bush.

    Desarma os outros?

    Completamente. Colocamos as cartas na mesa e isso torna difícil o ataque. As pessoas sofrem muitas vezes por causa da sua orientação sexual porque a vivem secretamente e os outros, ao saberem, podem manipular o segredo.

    Percebeu logo o poder que a assumpção lhe dava?

    Foi muito mais tarde. Sempre fui muito ingénuo, defeito que se transformou em qualidade, porque me permitiu fazer as coisas sem ter medo. Mas fui perdendo essa ingenuidade através do exemplo dos outros, daquilo que me contavam [sobre os efeitos da assumpção].

    Já foi beneficiado por ser gay?

    Isso não. Não consigo ver situações onde os critérios não tivessem sido os do mérito.

    Dá ideia que em Portugal a assumpção depende da profissão que se exerce. Ou se assumem os profissionais liberais, artistas incluídos, ou os académicos. Concorda?

    Percebo que se possa ter essa percepção, mas não concordo. Nos últimos anos tenho participado mais na vida associativa e conheci pessoas das mais diversas origens sociais, geracionais, profissionais, com capitais culturais completamente diferentes. Uma das coisas que mais me doem é ver que o meio artístico e do entertainment em Portugal se fecha completamente. Há um coming out interno, para os amigos, mas não para a sociedade. Ainda temos muito poucas pessoas que se assumam publicamente, logo temos uma amostra pouco representativa da diversidade. Nos últimos anos surgiu um pequeno número de intelectuais e académicos que o fizeram, sim, mas no mundo do entertainment só muito recentemente começou a acontecer alguma coisa [apresentadores Solange F. e Manuel Luís Goucha].

    Em Portugal não se usa o método de denunciar publicamente a orientação sexual das figuras públicas [outing]. Que pensa disso?

    É uma estratégia errada, só seria admissível no caso extremo de uma pessoa francamente homofóbica que praticasse actos políticos persecutórios. Mas o princípio é o do respeito pela vontade dos outros, independentemente de isso ser prejudicial para o avanço colectivo.

    Diz neste livro que o seu companheiro é Paulo Côrte-Real [vice-presidente da associação ILGA Portugal e professor na Faculdade de Economia da Universidade de Lisboa]. Vivem em união de facto desde quando?

    Desde 2001.

    Se o casamento gay for possível em Portugal tencionam casar-se?

    Sim.

    Essa é uma opção nova para si.

    A ideia de casamento cresceu entre nós e em função da luta que temos feito. Hoje parece-me inquestionável que o faria, mas houve uma altura em que pensava que não seria necessário casar. De um ponto de vista simbólico e pragmático a união de facto não é suficiente para um conjunto de coisas.

    A discussão sobre o casamento gay em Portugal foi lançada pela ILGA, através de uma petição [entregue na Assembleia da República a 16 de Fevereiro de 2006]. Se o activismo tivesse cedido na palavra casamento e aceitasse outra figura jurídica, mas com os mesmos direitos, a esta hora já haveria portugueses a beneficiar das vantagens que o casamento gay vai trazer?

    Felizmente, acho que não, porque se não ficávamos numa posição complicada do ponto de vista histórico. Grande parte das reacções que houve inicialmente de hesitação ou contra as propostas que foram feitas, ainda na fase da discussão das uniões de facto e mais tarde com o casamento, não tinham nem têm a ver com o nome, mas com o reconhecimento. Só depois de o casamento já estar colocado na agenda política é que surgiram questões do tipo está bem, mas com outro nome.

    E por que não outro nome?

    Pela questão do reconhecimento simbólico. O mundo social é feito de material e de simbólico, de forma indissociável. Se uma pessoa tem dinheiro, tem simbolicamente poder e reconhecimento. Se uma pessoa tem um diploma, que é um reconhecimento simbólico, tem maior probabilidade de obter bens materiais.

    Isso é partir do princípio de que a instituição casamento está muito bem cotada.

    Não estou a falar de prestígio, mas do reconhecimento que o Estado faz da capacidade que os cidadãos têm de aceder ou não a determinado tipo de instituições.

    Mas uma instituição é tanto mais importante simbolicamente quanto maior prestígio tiver. Uma instituição desacreditada não é simbolicamente relevante.

    Mas ela não é tão desacreditada quanto isso, porque foi reformulada pela dinâmica social. Deixou de ser uma instituição patriarcal há muito. Do ponto de vista jurídico, há absoluta igualdade entre homens e mulheres no casamento. Nas práticas sociais foi reconfigurado sob a forma da pura relação, de que fala [o sociólogo britânico] Anthony Giddens. Cada vez mais, o casamento é supostamente por amor, supostamente para durar enquanto os sentimentos durarem, para mútua gratificação das pessoas, feito na base do elogio da igualdade máxima possível entre os membros do casal, etc. O reconhecimento simbólico tem a ver com isto: considerar que aquelas pessoas [gays e lésbicas] são exactamente como as outras, porque podem aceder a tudo. A prova de que isso é verdade está em que quem se opõe ao casamento ainda tenta dizer que há uma diferença [entre casais gay e hétero].

    Admite que o debate público sobre o casamento gay estava por fazer quando em Outubro o Partido Socialista inviabilizou no Parlamento as propostas do BE e de Os Verdes para o casamento gay?

    Admitiria que sim se essa tivesse sido a verdadeira razão. Mas a razão foi apenas uma clara estratégia político-partidária. O debate já estava a acontecer e houve sempre a recusa de admitir isso. Tinha havido uma petição, debates na TV e nos jornais, crónicas, livros recentes... Mas isso agora é pouco relevante. Houve uma aceleração extraordinária nos últimos meses e resulta de um trabalho de sapa feito durante muitos anos, quando muitas pessoas achavam que não havia debate.

    Acha que se vai casar ainda este ano?

    Este ano já não, ainda temos de ir a eleições, ver o resultado das ditas e em função disso ver os timings legislativos.

    Antes das Europeias estava mais convicto de que o casamento gay seria uma realidade este ano?

    A maioria política existe. Os partidos que apoiam a alteração do Código Civil têm uma maioria, mesmo comparando com os resultados das Europeias. Estou convencido de que não esperaremos muito tempo. Agora, digo sinceramente, se o PSD tiver uma maioria absoluta é uma derrota para nós e teremos de esquecer o assunto durante quatro anos.

    Tem defendido que se deve discutir a adopção por casais gay ao mesmo tempo que se discute o casamento, para não dar argumentos aos opositores. Mas o que é facto é que ninguém fala de adopção. Porquê?

    O que digo é que não deve haver receio de responder a qualquer pergunta sobre a adopção. E a resposta que se deve dar é a de que o assunto está mal colocado. Está a ser utilizado como espantalho para assustar as pessoas em relação ao casamento. A adopção não depende da alteração à lei do casamento, depende de outros articulados da lei. E é apenas uma parte de um conjunto mais vasto de questões que são a homoparentalidade e a reprodução. Quando um certo tipo de opositores elegem a adopção como questão, não posso deixar de dizer que estão a mexer no fantasma da ideia de uma criança a viver com um casal de homens – com um casal de mulheres aceita-se melhor. Tem de se dar uma resposta a esse argumento falacioso e explicar que o que está em causa é a igualdade de acesso ao casamento, o que não quer dizer que não haja outras coisas por cumprir. A luta contra a homofobia não acabará depois da aprovação do casamento. O casamento é apenas uma de muitas

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