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Os Possessos
Os Possessos
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Os Possessos

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Publicado em 1872, «Os Possessos» é um romance de cariz político inspirado na história verdadeira de um assassinato que chocou a Rússia. Em 1869, um grupo de reformadores liberais, mais conhecidos por niilistas, assassinou um elemento do seu próprio grupo no meio de uma conspiração contra o czar. Dostoiévski parte do assassinato e do julgamento que se lhe seguiu para construir a sua obra, que funciona também como um manifesto contra a ideologia materialista que, segundo ele, estava a contaminar a sua pátria. O resultado é uma obra-prima profética ambientada na Rússia pré-Revolução, que antevê o pesadelo estalinista.
LanguagePortuguês
Release dateOct 3, 2015
ISBN9788893157612
Os Possessos
Author

Fiódor Dostoiévski

Fiódor Mijailovich Dostoievski; Moscú, 1821 - San Petersburgo, 1881) Novelista ruso. Educado por su padre, un médico de carácter despótico y brutal, encontró protección y cariño en su madre, que murió prematuramente. Al quedar viudo, el padre se entregó al alcohol, y envió finalmente a su hijo a la Escuela de Ingenieros de San Petersburgo, lo que no impidió que el joven Dostoievski se apasionara por la literatura y empezara a desarrollar sus cualidades de escritor. En 1849 fue condenado a muerte por su colaboración con determinados grupos liberales y revolucionarios. Tras largo tiempo en Tver, recibió autorización para regresar a San Petersburgo, donde no encontró a ninguno de sus antiguos amigos, ni eco alguno de su fama.

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    Os Possessos - Fiódor Dostoiévski

    centaur.editions@gmail.com

    PRIMEIRA PARTE

    Capítulo 1

    I

    Para relatar os extraordinários acontecimentos ocorridos nestes últimos tempos na nossa terra, forçoso se me torna dar, antes de tudo, algumas notas biográficas sobre uma distinta personagem: o muito digno Stepan Trofimovitch Verkhovensky. Servirão de introdução à crónica que me propus escrever.

    Com a máxima franqueza direi que Stepan teve sempre entre nós, se assim se pode dizer, o título de cidadão; amava deveras esta distinção e suponho mesmo que preferiria morrer a renunciar a ela. Não quero com isto compará-lo a um comediante de profissão. Deus me preserve de tal, tanto mais que o estimava pessoalmente. O gosto por esta distinção deve ter resultado do hábito, ou melhor, de uma nobre tendência que, desde tenra idade, o levou a sonhar e a ambicionar uma bela posição social. Por exemplo, a sua situação de «perseguido» e de «exilado» agradava-lhe imenso. O antigo prestígio destas duas palavras seduziu-o em todo o tempo; pronunciando-as, engrandecia-se aos seus próprios olhos, além de que terminou, com o decorrer do tempo, por se erguer sobre uma espécie de pedestal lisonjeador para a sua vaidade. Suponho bem que, com os anos, todos o foram esquecendo, mas daí a dizer-se que foi um «ilustre desconhecido», cometia-se uma injustiça. Os homens da última geração ouviram falar dele como sendo um dos corifeus do liberalismo. Durante uma certa época, ainda que curta — um breve minuto se pode dizer — o seu nome teve, em certos meios, a mesma ressonância que o de um Tchaadaifev, de um Bielinsky, de um Granovsky, ou de um Hertzen, de quem se começava a falar então no estrangeiro. Infelizmente a carreira de Stepan, quando ainda mal iniciada, foi desviada, segundo ele dizia, pelo «turbilhão das circunstâncias». Enganava-se a tal respeito. Só recentemente soube, com grande surpresa — mas fui obrigado a render-me à evidência — que, longe de estar exilado na nossa província como todos supunham, Stepan não esteve sequer debaixo da vigilância da polícia. Ao que leva o poder da imaginação! Durante bastantes anos viveu convencido de que o receavam muitíssimo, de que todos os seus passos eram seguidos, todas as suas conversas escutadas e que cada governador chegado de S. Petersburgo para dirigir a nossa província vinha com instruções especiais a respeito da sua pessoa. Se se demonstrasse, de uma forma clara como o dia, que o muito distinto Stepan não tinha absolutamente nada a temer, cometer-se-ia para com ele a maior ofensa. E contudo era um homem bastante inteligente...

    Regressado do estrangeiro, ocupou com brilho, por volta de 1850, uma cadeira no ensino superior. Só deu, porém, algumas lições sobre os árabes, se não me engano. Além disso, sustentou com entusiasmo uma tese sobre a importância política e hansiática que poderia ter tido a pequena cidade alemã de Hanau no período de 1413 a 1428, e sobre as causas obscuras que a impediram de atingir essa importância. Essa dissertação era cheia de acres palavras contra os então defensores dos eslavos, dos quais se tornou, por momentos, o negro fantasma. Mais tarde, após a sua demissão, e para mostrar o elemento de valor que a Universidade perdera com ele, publicou numa revista mensal e progressista o princípio de um estudo muito bem delineado sobre as causas da extraordinária nobreza moral dos cavaleiros da Idade Média. Disse depois que a continuação dessa publicação fora proibida pela censura. É bem possível, em virtude do arbítrio dissoluto que reinava nesses tempos. Todavia o que me parece mais provável é que foi a preguiça que o impediu de levar ao fim o seu trabalho. Quanto às lições sobre os árabes foi o seguinte incidente que lhe pôs termo: uma carta comprometedora, escrita por Stepan a um dos seus amigos, foi ter às mãos de um terceiro, um retrógrado, seta dúvida; este apressou-se a comunicá-la às autoridades e o imprudente professor foi convidado a fornecer explicações. Entrementes descobriam-se em Moscovo, em casa de dois ou três estudantes, umas cópias de um poema que Stepan escrevera em Berlim, seis anos antes, ou seja no ardor da sua juventude. Nesta altura — um ano depois desses acontecimentos — tenho sobre a mesa o poema em questão. Stepan deu-me um exemplar autógrafo com uma dedicatória e magnificamente encadernado em marroquim vermelho. Não é o poema desprovido de mérito literário, mas ser-me-ia difícil contar todo o seu tema, atendendo a que nada compreendi. É uma alegoria, em forma lírico-dramática, lembrando a segunda parte do Fausto. O ano passado propus a Stepan a publicação dessa produção da sua juventude, depois de lhe observar que havia perdido todo o caráter perigoso. Recusou com bem visível descontentamento. A ideia de que o poema era por completo inofensivo desgostou-o, e só a isso atribuo a frieza com que me tratou durante dois meses. Tempos depois — nem de propósito! — apareceu inserto numa revista revolucionária editada no estrangeiro e, naturalmente, sem autorização do autor. Esta notícia inquietou Stepan: correu a casa do governador e escreveu uma carta para S. Petersburgo, justificando-se, a qual me leu duas vezes, mas que não chegou a mandar por não saber a quem endereçá-la.

    Durante um mês viveu numa preocupação, mais aparente do que real, pois tenho quase a convicção de que no seu íntimo se sentia deveras lisonjeado. Cansou-se a procurar um exemplar dessa revista e, logo que o encontrou, não mais o deixou, pelo menos de noite; durante o dia tinha-o escondido entre os colchões e proibiu a criada de lhe fazer a cama. Esperava a todo o momento a chegada de um telegrama e pressentia-se em toda a sua maneira de agir que o seu amor-próprio estava satisfeito. Nenhum telegrama veio. Nesta altura reconciliou-se comigo, o que prova que não era odiento e a extraordinária bondade do seu terno coração.

    II

    Não nego em absoluto o seu desgosto. No entanto estou convencido de que, se tivesse dado as necessárias explicações, teria continuado a prelecionar sobre os árabes. Porém a ambição de ser apresentado como revolucionário tentou-o e pôs especial solicitude em se persuadir, uma vez por todas, que a sua carreira fora prejudicada pelo «turbilhão das circunstâncias». No fundo, a verdadeira razão porque abandonou o ensino oficial foi uma proposta que lhe fez, pela terceira vez, em termos muito delicados e muito vantajosos, Bárbara Petrovna, mulher do tenente-general Stavroguine. Esta senhora, riquíssima, pediu a Stepan para dirigir, na sua qualidade de pedagogo e amigo, a educação intelectual do seu único filho. Escusado será dizer que este lugar era muitíssimo bem remunerado. Quando lhe fizeram esta oferta pela primeira vez, Stepan encontrava-se em Berlim e tinha acabado de perder a primeira mulher. Era uma menina da nossa província, bonita mas muito frívola, que desposara na irreflexão da juventude. A insuficiência de recursos para prover às necessidades do lar e outras causas de natureza mais íntima, tornaram esta união desgraçada. Os dois cônjuges separaram-se e três anos depois a senhora Verkhovensky morria em Paris, deixando ao marido um filho de cinco anos, «fruto de um primeiro e ridente amor, sem nuvens ainda», como se exprimiu um dia, diante de mim, Stepan. Tratou de mandar a criança para a Rússia onde foi educada por umas tias, num canto longínquo do país. Declinou a primeira proposta de Bárbara e, meses depois de ter enterrado a primeira mulher casou em segundas núpcias com uma taciturna alemã de Berlim.

    Da segunda vez, um outro motivo o levou a recusar a oferta: a celebridade de um certo professor tirava-lhe o sono. Ambicionava, por isso, ingressar o mais cedo possível no magistério a fim de poder igualmente abrir voo para a glória. Intercetaram-lhe, porém, esse voo. E juntou-se a esta fatalidade a morte prematura da segunda mulher. Desde então cessaram os pretextos para se esquivar às instâncias de Bárbara, tanto mais que lhe testemunhava um interesse verdadeiramente afetuoso. Digamos como devemos: a felicidade abriu-lhe os braços e ele precipitou-se. Por nada quero que se dê às minhas palavras um sentido diferente daquele que as inspirou: a ligação entre estes dois seres, tão extraordinários, durante os anos que durou, consistiu num laço deveras subtil e delicado.

    Outras razões ainda influenciaram o espírito de Stepan para aceitar o lugar de precetor. Naquela altura o filho da primeira mulher estava numa propriedade confinante com o soberbo domínio de Skvorechniki, que a família de Bárbara possuía nas proximidades da nossa cidade. E depois, no silêncio do seu gabinete, sem se preocupar com as mil e uma sujeições a que obriga a vida universitária, poderia consagrar-se por completo à ciência e enriquecer com profundas investigações a literatura nacional. Se não realizou esta parte do seu programa, como contrapartida foi durante todo o resto da vida, no dizer do poeta, «o opróbrio encarnado». Mantinha esta atitude até mesmo no grémio, ao sentar-se à mesa do jogo. Revelava-a em toda a evidência e a sua pessoa parecia dizer: «Muito bem! Sim! Jogo às cartas! De quem é a culpa? Quem é que me reduziu a isto? Quem desviou a minha carreira? É por estas e outras que a Rússia há de soçobrar!» E nobremente batia no peito.

    A verdade é que adorava o pano verde. Nos últimos tempos esta paixão deu origem a frequentes e desagradáveis cenas com Bárbara, tanto mais que ele perdia sempre. Mais adiante terei ocasião de voltar a falar neste assunto. Por agora anotarei somente que Stepan tinha a consciência dos factos — pelo menos algumas vezes — e por isso tinha momentos de grande tristeza. Três ou quatro vezes por ano davam-lhe uns acessos de «tristeza cívica», ou por outras palavras, de hipocondria. Servimo-nos, porém, da primeira designação porque agradava mais a Bárbara. Mais tarde, além do jogo, entregou-se também ao champanhe; por diversas vezes Bárbara tentou preservá-lo destas inclinações triviais. Tinha, na verdade, necessidade de uma tutela, pois era por vezes bastante singular. No meio da maior tristeza começava a rir de uma maneira disparatada. Em certas ocasiões exprimia-se, a respeito da sua própria pessoa, em termos humorísticos, o que contrariava imenso Bárbara, sempre embebida nas tradições clássicas e constantemente guiada no seu messianismo por desígnios de ordem superior. Esta senhora teve, durante vinte anos, uma grande influência sobre o «seu pobre amigo», tornando-se por isso necessário que eu diga alguma coisa a seu respeito.

    III

    Há amizades bastante bizarras. Há amigos que quase se devoram mutuamente e, no entanto, passam a vida sem se poderem separar um do outro. Ainda mais, aquele dos dois que adoece primeiro e morre origina no segundo igual doença e fim. Mais de uma vez, e após conversas íntimas com Bárbara, Stepan, pulando sobre o canapé, desabafava a sua raiva dando murros na parede.

    Não exagero: um dia, num destes transportes de fúria, até começou a tirar a caliça da parede! Perguntar-se-á, talvez, como semelhante detalhe chegou ao meu conhecimento. Posso responder que isto se passou na minha frente, ou ainda, posso dizer que muitas vezes Stepan soluçou junto de mim ao contar-me, com as mais vivas cores, todos os pormenores da sua existência. No dia seguinte, após estes desabafos, era capaz de se deixar crucificar da melhor vontade, só para expiar a sua ingratidão. Muitas vezes mandava-me chamar, ou ia ele próprio a minha casa, com o único fim de me dizer que Bárbara era «um anjo, todo virtude e delicadeza, e ele completamente o contrário». Não satisfeito em me transmitir as suas confidências, fazia-as diretamente à interessada, em cartas longas e eloquentes, assinadas com o nome por extenso, «Daqui por uns anos — confessava ele — todos ficarão a saber que me protegeu por vaidade, que invejou o meu saber e o meu talento, e que me odiou, mas não ousou manifestar abertamente esse ódio com medo que a abandonasse, o que prejudicaria a sua reputação de romântica e amiga da literatura. Por consequência, alheio-me de tudo e estou resolvido a matar-me. Espero que me diga uma última palavra, a qual tudo decidirá», etc., etc. Pode-se imaginar, depois disto, até onde chegava, nos seus acessos de nervosismo, este quinquagenário de uma inocência infantil. Li eu próprio, um dia, uma dessas cartas! Tinha-a escrito após uma discussão violenta, originada por uma coisa fútil. Fiquei deveras admirado e pedi-lhe, quase com intimativa, para não enviar tal carta.

    — É preciso... é mais honesto... é um dever! Morreria se não lhe confessasse tudo, tudo! — respondeu ele com exaltação e mantendo-se surdo a todas as minhas instâncias.

    A diferença entre Bárbara e ele residia em que esta não lhe mandaria nunca uma carta igual. É verdade que Stepan gostava muitíssimo de garatujar. Quando não viviam na mesma casa, chegava, nas suas crises nervosas, a escrever-lhe duas vezes por dia. Sei de boa fonte que ela lia sempre essas cartas com a maior atenção, mesmo quando recebia duas em cada vinte e quatro horas. Em seguida fechara-as numa caixa especial, depois de haver retido o mais importante. Passava-se todo um dia sem que lhe respondesse e quando voltava a vê-lo, encontrava-o mais tranquilo, como se nada de particular se tivesse passado entre eles. Pouco a pouco dispunha-o tão bem que ele não ousava falar do incidente da véspera e limitava-se a fitá-la furtivamente. Ela nada esquecia, ao passo que ele, vendo-a muito calma, tranquilizava-se e esquecia bem depressa. Muitas vezes, no mesmo dia, se chegavam alguns amigos e bebia champanhe, ria e divertia-se como uma criança. Nestas ocasiões, ela fitava-o, com certeza, com um olhar mordaz! Contudo ele não se apercebia de tal! Ao fim de oito dias, de um mês, de seis meses, Bárbara lembrava-lhe, à queima-roupa, certa expressão de tal carta, ou a carta toda, sem esquecer os menores detalhes. Nessa altura corava de vergonha e a sua revolta traduzia-se, regra geral, por um ligeiro movimento de indignação.

    Na verdade, Bárbara, a princípio, chegou muitas vezes a odiá-lo. Mas — coisa que ele não notou nunca! — acabou por considerá-lo como um seu filho, uma sua revelação, podendo-se mesmo dizer, uma sua criação; tornou-se a carne da sua carne, e se o tratava e sustentava, não era apenas porque se sentisse «orgulhosa do seu talento»! Oh, quanto devia sentir-se ofendida com tais suposições. Um amor intenso se misturava nela com o ódio, o ciúme e o desdém que sentia a todo o instante por ele. Durante bastantes anos rodeou-o de cuidados, vigiou-o com a mais infatigável solicitude. Desde que se encontrasse em jogo a reputação literária, científica ou política do seu amigo, Bárbara perdia o sono. Tinha-lhe dado a mão; era por isso a primeira a ter fé na sua própria criação. Era para ela alguma coisa como um sonho. Mas, por seu turno, exigia muitíssimo dele, algumas vezes mesmo tratava-o como um escravo. Era rancorosa num grau inacreditável.

    IV

    No mês de maio de 1855 faleceu em Skvorechniki o tenente-general Stavroguine. Bárbara não sentiu muito a sua morte porque os dois esposos viviam há quatro anos separados devido a incompatibilidade de génios. No entanto a mulher pagava-lhe uma pensão. Além disso e do seu ordenado, o tenente-general possuía também cento e cinquenta âmes; toda a restante fortuna, compreendendo o domínio de Skvorechniki, pertencia a Bárbara, filha única de um rico proprietário de um estabelecimento de bebidas. Apesar disso, ocasionou-lhe um forte abalo este acontecimento imprevisto e afastou-se logo em seguida de todo o convívio. Stepan, como é natural, seguiu-a complacente.

    A primavera principiava a despir todas as suas galas. Os lilases floridos enchiam o ar com o seu perfume e as últimas horas do dia davam à natureza um encanto singularmente poético. Todas as tardes, os dois amigos reuniam-se no jardim e, até ao cair da noite, sentados debaixo do caramanchão, confidenciavam os seus sentimentos e as suas ideias. Impressionada com a mudança sobrevinda na sua vida, Bárbara falava mais do que o costume. O seu coração parecia procurar o do seu amigo. Assim se passaram várias tardes. Uma estranha hipótese se apresentou de repente ao espírito de Stepan: «Esta inconsolável viúva não terá pensado na minha pessoa? Não desejará que a peça em casamento, após terminar o luto?» Atrevida hipótese, mas, quanto mais a estudava, mais se entregava a pensamentos deste género, visto o desenvolvimento de tal raciocínio permitir abranger maior variedade de pontos de vista. Examinando a situação, encontrava-a bastante verosímil e tornava-se sonhador: «Com certeza a fortuna é imensa, mas...» O certo é que Bárbara não tinha nada de bonita: era uma mulher alta, de tez amarelada, ossuda, e o rosto muito comprido oferecia alguma analogia com a cabeça de um cavalo. Stepan hesitava cada vez mais e sofria cruelmente por não saber a resolução a tomar. Por duas vezes até, sua irresolução fê-lo chorar — chorava com facilidade. À tarde, sentado à sombra do caramanchão, o rosto exprimia, bem contra sua vontade, um misto de ternura, de zombaria, de fatuidade e de arrogância. Estes jogos de fisionomia são independentes da vontade e notam-se tanto melhor quanto mais digno é o homem. Deus sabe o que se passa no seu íntimo; todavia é provável que Stepan tivesse alguma ilusão sobre a espécie de sentimentos originados no íntimo de Bárbara. Não gostaria de mudar o sobrenome de Stavroguine pelo de Verkhovensky, por mais glorioso que fosse este último. Talvez aquilo não passasse da parte de Bárbara de um passatempo, talvez obedecesse, com a melhor das vontades, à necessidade de namoriscar, tão natural nas mulheres em certas idades.

    É de supor que a viúva não tardasse em ler no coração do seu amigo. Não lhe faltava perspicácia e ele era, algumas vezes, bastante ingénuo. Fosse como fosse, as tardes decorriam como de costume e as conversas eram sempre bastante poéticas e interessantes. Um dia, ao aproximar da noite, depois de uma conversa cheia de animação e encanto, a viúva e o precetor deram um caloroso aperto de mão e separaram-se à entrada do pavilhão onde ele habitava. Durante o verão, ele vivia no pequeno edifício que ficava num extremo do jardim. Entrando em casa, foi para a janela fumar um cigarro. Mal se tinha encostado ao peitoril, quando um ligeiro barulho o fez estremecer. Voltou-se e viu diante de si Bárbara. Não havia ainda cinco minutos que se tinham separado. O rosto amarelado da viúva tornou-se azulado e um tremor bastante percetível lhe agitou os lábios cerrados. Durante uns segundos nada disse, fixando em Stepan um olhar de uma dureza implacável. Depois entreabriu os lábios e murmurou, rápida, estas palavras:

    — Nunca vos perdoarei isto!

    Dez anos mais tarde, quando me contou esta história em voz baixa e depois de ter fechado as portas, disse-me que ficara assombrado. Por assim dizer, perdeu os sentimentos, pois nem viu nem ouviu Bárbara sair do quarto. Como ela não fez a menor alusão nos dias seguintes a este incidente, foi levado a supor que tinha sido joguete de uma alucinação, devida a um estado mórbido. Suposição tanto mais de admitir porque nessa noite adoeceu e assim se manteve durante quinze dias, o que veio pôr termo às entrevistas no jardim.

    V

    O fato quase sempre usado por Stepan foi uma invenção de Bárbara. Porque era elegante e característico, merece ser descrito: sobrecasaca preta, comprida e abotoada quase até ao cimo, chapéu mole de largas abas — no verão, chapéu de palha — gravata de cambraia branca com grande nó e as pontas livres, e bengala com castão de prata. Stepan não usava barba nem bigode e trazia os cabelos — castanhos — crescidos até aos ombros, os quais começaram a embranquecer um pouco nos últimos tempos. Quando jovem, foi, segundo me disse, extremamente bonito. Na velhice tinha ainda, em minha opinião, um ar imponente, devido à alta estatura, à sua magreza e à cabeleira merovíngia. Ainda que, para dizer a verdade, um homem de cinquenta e três anos não podia chamar-se um velho. Todavia, por uma espécie de garridice, longe de procurar parecer mais novo, desejava antes ser considerado um patriarca.

    Nos primeiros anos, ou, para melhor dizer, durante a primeira metade da sua estadia em casa de Bárbara, pensou escrever uma obra. Mais tarde ouvimo-lo muitas vezes repetir: «Tenho o trabalho pronto, os materiais coligidos e não faço nada! Não posso meter mãos à obra!» Ao pronunciar estas palavras, inclinava dolorosamente a cabeça sobre o peito. Um tal conhecimento da sua incapacidade de trabalhar aumentava mais em nós o respeito por este mártir, em quem a monomania da perseguição tudo havia morto!

    Por volta de 1860, Bárbara, desejando que o seu amigo vivesse num meio digno dele, levou-o para S. Petersburgo. Ela própria desejava provocar a curiosidade da alta sociedade e reavivar as relações que nela tinha tido noutros tempos. Passaram um inverno quase inteiro na capital, mas sem atingirem nenhum dos objetivos em vista. Os antigos conhecimentos, com quem Bárbara pensava renovar as relações, acolheram muito friamente as suas ideias, ou antes, não lhe dispensaram atenção alguma. Cheia de despeito, lançou-se na peugada das «ideias novas», pensou fundar uma revista e deu reuniões para as quais convidou os literatos. Ao mesmo tempo, organizou sessões literárias destinadas a pôr em evidência o talento de Stepan. Mas, ai!, o liberal de 1840 não conhecia o quanto se havia progredido. Para condescender com a nova geração concordou que a religião era um mal e a ideia de pátria um absurdo ridículo. Estas concessões foram porém em vão, pois não o preservaram de um fiasco lamentável. O infeliz conferencista, tendo tido a audácia de declarar que preferia um par de botas a Pouchkine, não precisou mais para levantar contra ele uma verdadeira tempestade de assobios e de clamores injuriosos. Em breve o consideraram como o mais vil dos retrógrados. A sua angústia, ao ver-se tratado dessa forma, foi tal que chorou amargamente antes mesmo de descer do estrado.

    Nada tendo, por isso, a fazer em S. Petersburgo, regressaram a Skovorechniki.

    VI

    Depois disto, Bárbara fez com que Stepan fosse «descansar» para o estrangeiro. Partiu radiante. «Lá vou ressuscitar!» — exclamava ele —. «Lá aprenderei, enfim, as novas descobertas da ciência!» No entanto, logo nas primeiras cartas apareceu a nota de tristeza. «O meu coração está compungido» — escrevia ele a Bárbara — «e não posso esquecer! Aqui em Berlim, tudo me lembra o meu passado, os meus primeiros entusiasmos e os meus primeiros tormentos. Onde está ela? Onde estão elas agora, juntas? Que é feito de vós, anjos de que nunca fui digno? Onde está o meu filho, o meu filho querido? Enfim, eu próprio, onde estou? Em que me transformei, ainda ontem forte como o aço, inabalável como uma rocha, para que um Andreiev possa dividir a minha existência em duas?» etc., etc. Desde o nascimento do seu querido filho, Stepan já o tinha visto uma única vez, durante a última estada em S. Petersburgo, onde o rapaz, já um homem feito, se preparava para entrar na Universidade. Pedro Stepanovitch, como se chamava, tinha sido educado em casa de umas tias, no distrito de O... a setecentas verstas de Skvorechniki. Bárbara custeara as despesas da sua educação. Quanto a Andreiev, era um comerciante da nossa cidade. Devia ainda quatrocentos rublos a Stepan, que lhe vendera o direito de cortar umas árvores num bosque, sua propriedade-, numa extensão de alguns quilómetros. Se bem que Bárbara tivesse dado ao seu amigo a importância necessária para seguir para Berlim, este pensou receber os quatrocentos rublos antes da partida; tinha necessidade deles para umas despesas secretas e pouco faltou para chorar, quando Andreiev lhe pediu para esperar um mês, o negociante sentia se perfeitamente à vontade em pedir esta prorrogação do prazo de pagamento, porque, além da venda ter sido combinada em segredo com Stepan, que não se atreveu a confessá-la à viúva, tinha feito o primeiro pagamento seis meses antes do vencimento obrigatório.

    Na segunda carta, vinda de Berlim, a situação modificara-se: «Trabalho doze horas por dia» — só trabalha apenas onze!, resmungou Bárbara ao ler estas palavras — «investigo nas bibliotecas, compulso os alfarrábios, tomo notas e frequento alguns cursos. Tenho visitado alguns professores. Renovei os meus conhecimentos com a excelente família Doundasov. Nadejda Nikolaievna é encantadora ainda agora! Envia-lhe saudades. O marido e os três sobrinhos não estão agora em Berlim. Passo as tardes com ela e conversamos até ao morrer o dia. São quase tardes atenienses, mas apenas sob o ponto de vista da elegância das frases e da subtilidade da conversa. Tudo ali é nobre; toca-se música, sonha-se com a renovação da humanidade, fala-se sobre a eterna beleza...», etc., etc.

    — Isto são contos para fazer dormir em pé! — exclamou Bárbara, fechando a carta no cofre das suas joias. — Se as tardes atenienses se prolongam até ao entardecer, não tem doze horas para trabalhar. Estaria embriagado quando escreveu isto? E esta Doundasov, como se atreveu a enviar-me saudades? Que vá passear!

    Não se demorou por muito tempo; ao fim de quatro meses, já cansado, voltou a toda a pressa para Skvorechniki. Certos homens são tão agarrados ao ninho como os cães à casa do dono.

    VII

    Desde então, começou um período de acalmia, que durou perto de nove anos. As explosões nervosas e os desabafos, encostado ao meu ombro, sucederam-se com intervalos regulares e sem alterar a nossa amizade. Admiro-me como Stepan não engordou durante essa época. O nariz tornou-se-lhe um pouco vermelho, o que aumentou o aspeto complacente da sua fisionomia. Pouco a pouco formou-se à sua volta um círculo de amigos, o qual, no entanto, nunca foi muito numeroso. Se bem que Bárbara não se preocupasse connosco, não era menor o nosso reconhecimento para com ela. Depois da lição recebida em S. Petersburgo fixou definitivamente a sua residência na província: de inverno, habitava a casa da cidade e de verão, o seu domínio nos subúrbios. Nunca gozou de uma influência tão grande como durante os últimos sete anos, isto é, até à chegada do atual governador. O antecessor deste, o nosso inolvidável Osipovitch, era parente próximo da viúva, que lhe prestara outrora relevantes serviços. A esposa dele tremia só ao pensar que poderia perder as boas graças de Bárbara. A exemplo do augusto casal, toda a sociedade da província testemunhava a mais alta consideração à castelã de Skvorechniki. Como é natural, Stepan beneficiava, por reflexo, daquela brilhante situação. No grémio, onde, além de assíduo jogador, sabendo perder com elegância, soubera conquistar a estima de todos, ainda que muitos o não olhassem como um «sábio». Mais tarde, quando Bárbara lhe permitiu sair da sua vivenda, ficámos ainda mais livres. Reuníamo-nos em casa dele duas vezes por semana. Estas reuniões divertiam-nos, sobretudo quando nos oferecia champanhe. O vinho era fornecido por Andreiev, já nosso conhecido. Bárbara pagava a conta todos os seis meses e, regra geral, os dias de pagamento eram dias de grande arrelia.

    O mais velho do nosso pequeno grupo era um empregado municipal, chamado Lipoutine, grande liberal, que passava na cidade por ateu. Este homem não era novo e casara em segundas núpcias com uma linda mulher, possuidora de uma fortuna razoável. Da primeira mulher tinha três filhos já crescidos. Toda a família era educada no temor de Deus e governada despoticamente. De uma avareza extrema, pudera, com as suas economias de empregado, comprar uma pequena casa e constituir ainda um pequeno pecúlio. O seu caráter irrequieto e a pequena importância da sua situação burocrática eram a causa da pouca consideração que tinham por ele; a alta sociedade não o admitia no seu convívio. Por outro lado, Lipoutine era muito mexeriqueiro, o que mais de uma vez lhe valera severas reprimendas. No nosso grupo apreciava-se, porém, o seu espírito vivaz, o seu amor pela ciência e a sua sagacidade. Ainda que Bárbara não o estimasse, encontrou no entanto um meio de captar a sua benevolência.

    Também não gostava mais de Chatov, que fez apenas parte do nosso grupo no último ano. Chatov era um antigo estudante, excluído da Universidade em seguida a uma «manifestação». Na sua infância tinha sido aluno de Stepan. O nascimento tornara-o servo de Bárbara; era, com efeito, filho de um criado de quarto da viúva, a quem ela cumulara de favores. Não gostava dele devido à sua altivez e à sua ingratidão; e não lhe perdoara o não a ter procurado logo após a expulsão da Universidade. Chegou a escrever-lhe nessa altura, mas não obteve resposta. Em lugar de aceitar a oferta de Bárbara, preferiu o lugar de precetor em casa de um comerciante educado e acompanhou ao estrangeiro a família desse homem. Para dizer a verdade, a sua posição era mais a de um hóspede bem tratado e querido da família do que a de um precetor. Foi então que Chatov sentiu um vivo desejo de visitar a Europa. Os filhos do comerciante levaram também uma governanta: era uma intrépida moça russa, entrada para o serviço na véspera de iniciarem a viagem. Recorrera a todos os meios para conseguir o lugar; por isso não pediu grande salário. Ao fim de dois meses o negociante despediu-a, devido às suas «ideias de independência». Chatov saiu juntamente com ela e, pouco depois, casaram em Génova. Viveram juntos apenas durante três semanas e separaram-se como pessoas que não dão importância ao laço conjugal; talvez a pobreza dos dois esposos tivesse tido alguma influência nesta tão rápida separação. Ficando só. Chatov errou durante bastante tempo pela Europa, vivendo sabe Deus de quê! Diz-se que foi engraxador na via pública e que, num porto de mar, esteve empregado como moço de fretes. Há um ano vimo-lo chegar à nossa cidade. Montou casa com uma velha tia, que lhe morreu um mês depois. Sua irmã Dacha, educada, como ele, à custa de Bárbara, continuava a viver em casa da viúva, que a tratava quase como filha. Tinha muito poucas relações com ela. Junto de nós mantinha-se a maior parte das vezes num grave silêncio, mas, de tempos a tempos, quando se tocava nos seus princípios, tomava-se de uma irritação doentia que lhe fazia perder toda a ponderação de linguagem. «Se se quiser discutir com o Chatov é preciso começar por o prender» — dizia algumas vezes, por gracejo, Stepan, que no entanto gostava dele. No estrangeiro, as antigas convicções socialistas de Chatov modificaram-se radicalmente em muitos dos seus pontos, o que o arrastara para o extremo contrário. Era destes russos a quem uma sugestiva ideia prende de súbito, aniquilando neles, de um mesmo golpe, toda a faculdade de resistência, Nunca conseguem reagir contra ela, e creem nela apaixonadamente, passando o resto da vida em ânsias, como se vivessem debaixo de uma pedra que lhes esmagasse o peito. O carrancudo exterior de Chatov correspondia às suas convicções; era um homem de vinte e sete a vinte e oito anos, baixo, louro, peludo, ombros muito largos, lábios grossos, rosto enrugado, sobrancelhas claras e muito tufadas. Os olhos tinham uma expressão feroz e trazia-os sempre baixos, como se uma questão de honra o impedisse de os levantar. Na cabeça, os cabelos espetados eram rebeldes a todos os esforços para os acamar. «Não me admiro nada que a mulher o tenha abandonado» — dissera um dia Bárbara, depois de o ter examinado com certa insistência. Apesar da sua pobreza, andava vestido o mais limpo possível. Não querendo recorrer à antiga benfeitora, vivia do que Deus lhe mandava e trabalhava em casa dos comerciantes quando se proporcionava a ocasião. Uma vez, foi contratado para fazer uma viagem por conta de uma casa de comércio, mas adoeceu no momento de iniciar essa viagem. Mal se pode imaginar o excesso de miséria que este homem era capaz de suportar, sem mesmo o pensar. Quando se restabeleceu, Bárbara mandou-lhe cem rublos, mas debaixo do maior incógnito possível. Chatov descobriu, no entanto, de onde lhe veio o dinheiro; depois de refletir, decidiu-se a aceitá-lo e foi agradecer à viúva. Esta fez ao visitante uma receção muito cordial, mas de que ele infelizmente se mostrou muito pouco digno. Mudo, os olhos fixos no chão, um sorriso estúpido nos lábios, ouviu durante cinco minutes o que Bárbara lhe disse; em seguida, sem mesmo a deixar acabar de falar, levantou-se de súbito, saudou-a com ar estranho e deu meia volta sobre os tacões. Na sua perturbação foi, por descuido, de encontro a um morei de valor, uma pequena mesa marchetada, que caiu, quebrando-se sobre o tapete. Esta circunstância, junta à sua confusão, fez com que saísse de casa da viúva mais morto do que vivo. Mais tarde declarou que esta visita foi, segundo a sua maneira de ver, o cúmulo da humilhação. Lipoutine censurou-o amargamente por não ter recusado com desprezo os cem rublos, e — coisa pior — ter ido agradecer à insolente aristocrata. Chatov morava nos arrabaldes da cidade. Vivia só, e as visitas causavam-lhe desprazer, mesmo quando o visitante era um dos nossos. Nunca faltava às reuniões de Stepan, o qual lhe emprestava jornais e livros.

    A estas reuniões assistia também um certo Virguinsky, homem novo, tendo mais ou menos uns trinta anos, e casado, como Chatov, único ponto em que se ajustava a semelhança entre eles. Virguinsky era um caráter muitíssimo bondoso e possuía uma cuidada ilustração, que devia em grande parte a ele próprio. Empregado inferior, tinha a seu cargo a tia e a irmã de sua mulher. Estas senhoras eram adeptas entusiastas das «novas ideias»; de resto, bastava que uma ideia qualquer fosse admitida nos círculos progressistas da capital para que a apoiassem logo, sem o mais pequeno exame. A mulher exercia a profissão de parteira; jovem ainda, vivera durante algum tempo em S. Petersburgo. Quanto a ele, era dotado de uma pureza de coração pouco vulgar e raramente tenho encontrado alguém com um mais sincero ardor de espírito. «Nunca, nunca renunciarei a estas serenas esperanças» — dizia-me ele com os olhos radiantes. Quando Virguinsky nos falava das suas «serenas esperanças», baixava sempre a voz, como se nos confiasse algum segredo. O seu aspeto nada tinha de agradável; bastante alto, mas muito franzino, com os ombros estreitos, os cabelos extremamente ralos e de um matiz arruivado. Quando Stepan desdenhava algumas das suas ideias não se zangava com esses gracejos e encontrava muitas vezes respostas cuja indiscutibilidade embaraçava o seu contraditor.

    A respeito de Virguinsky corriam certos boatos, infelizmente verdadeiros. Contava-se que, não tendo ainda um ano de casado, a mulher declarara metê-lo na sentina e substituí-lo por Lebiadkine. Este último, chegado havia pouco à nossa cidade, onde falsamente se fez passar por antigo capitão do estado-maior, era, como se vai ver, um personagem de quem se devia desconfiar. Sabia apenas frisar os bigodes, beber e alardear todas as asneiras que lhe passavam pela cabeça. Teve a indelicadeza de se ir instalar em casa dos Virguinsky e não contente por lhe darem «cama e mesa», olhava com desdém, do alto da sua vaidade, para o dono da casa. Afirma-se que, informado do mau procedimento da mulher, Virguinsky lhe dissera: «Minha querida, até agora tive por ti amor, daqui por diante adoro-te». Quase se não acredita que esta romântica frase tivesse sido realmente pronunciada. Segundo uma outra versão mais digna de crédito, o infeliz esposo teria, pelo contrário, chorado ardentes lágrimas. Quinze dias após o ver-se substituído, toda a família foi com os seus conhecidos tomar chá num bosque próximo da cidade. Organizou-se um pequeno baile. Virguinsky. manifestando uma alegria febril, tomou parte nele. De repente, sem dizer a mínima palavra e, no momento em que o seu sucessor executava uma galante fantasia, agarrou-o com as duas mãos pelos cabelos e abanou-lhe violentamente a cabeça, ao mesmo tempo que chorava e soltava gritos furiosos. O gigante Lebiadkine teve tal medo que não se defendeu e deixou-se abanar sem quase dizer uma palavra. Quando o adversário o largou, mostrou-se suscetibilizado, tal como uma honesta e respeitada personalidade que acabasse de ser tratada pouco dignamente. Virguinsky passou a noite de joelhos junto da mulher a pedir-lhe perdão, que não obteve porque não concordou em ir apresentar desculpas a Lebiadkine. O capitão do estado-maior desapareceu poucos dias depois e só nestes últimos tempos voltou a aparecer, trazendo com ele uma irmã. Terei de falar mais adiante das pessoas que começou desde então a perseguir. Compreende-se agora a razão por que Virguinsky procurou uma distração com a nossa convivência. Nunca, de resto, nos falou das suas questões domésticas. Uma vez apenas, num dia em que nos encontrámos os dois em casa de Stepan, deixou escapar uma vaga alusão ao seu infortúnio conjugal, mas para exclamar logo em seguida, agarrando-se às minhas mãos:

    — Isto não é nada, é apenas uma questão muito particular. Não modifica em nada a nossa «obra comum»!

    O nosso pequeno círculo recebia também as visitas de ocasião, como o capitão Kartousov e o judeu Liamchine. Este último era empregado nos correios. Tinha grande talento para tocar piano, como também imitava muitíssimo bem o ruído do trovão, o grunhido do porco, os gritos de uma mulher nas horas do parto e os vagidos de um recém-nascido. A sua presença era um elemento de alegria nas nossas reuniões.

    Capítulo 2

    I

    Existia sobre a terra um ser a quem Bárbara não era menos dedicada que a Stepan: era o seu único filho, Nicolau Vsevolodovitch Stavroguine. Tinha oito anos quando a mãe o confiou aos cuidados do precetor. Façamos justiça a Stepan; soube fazer-se estimar pelo aluno. Todo o seu segredo consistia em que ele próprio era também uma criança. Nessa época não me conhecia ainda; ora, como toda a sua vida teve necessidade de um confidente, não hesitou em investir de tal missão o pequeno rapaz, mal atingiu os dez ou onze anos. A mais franca intimidade se estabeleceu entre eles, não obstante a diferença de idades e de situação. Mais de uma vez, Stepan acordou o seu jovem amigo com o único fim de lhe contar, com lágrimas nos olhos, as amarguras recebidas pela vida fora, ou então relatar-lhe algum segredo doméstico, sem pensar que este procedimento era deveras censurável. Lançavam-se nos braços um do outro e choravam. O pequeno sabia que a mãe o amava muito. Pagar-lhe-ia da mesma forma? Duvido... Ela falava-lhe pouco, não o contrariava nunca, mas vigiava-o constantemente. Ele, por seu lado, experimentava sempre um certo mal estar quando sentia os olhos da mãe segui-lo para todos os lados. No que dizia respeito à educação e instrução do filho, Bárbara confiava por completo em Stepan, pois nesse tempo ainda o via através das suas ilusões. É de crer que o professor alquebrasse mais ou menos o sistema nervoso do aluno. Quando, atingidos os dezasseis anos, passou a frequentar o liceu, era um adolescente débil e pálido, cuja bondade e disposição sonhadora tinham alguma coisa de estranho. Mais tarde distinguir-se-ia por uma força extraordinária. Em todo o caso, a mãe fez bem em separar os dois amigos; talvez mesmo devesse ter tomado esta medida mais cedo.

    Durante os dois primeiros anos da sua estada no liceu o estudante veio passar as férias a Skvorechniki. Quando Bárbara foi para S. Petersburgo com Stepan, assistiu a algumas das sessões literárias organizadas pela mãe. Falando pouco, sossegado e tímido como noutros tempos, limitava-se a escutar e a observar. A antiga afeição por Stepan pareceu não haver diminuído, porém tornou-se menos expansiva. Terminados os estudos, entrou para o serviço militar, conforme a vontade de Bárbara. Incorporaram-no num dos mais brilhantes regimentos de cavalaria. Não foi nunca mostrar o uniforme a sua mãe e escreveu-lhe raras vezes. Bárbara não lhe regateava as remessas de dinheiro, se bem que a abolição dos servos lhe tivesse reduzido os rendimentos a metade. A suprir essa falta estava o capital, bastante avultado, amealhado devido a algumas economias feitas durante anos, Interessava-se sobremaneira pelos sucessos do filho na alta sociedade de S. Petersburgo. Era, até certo ponto, a desforra das suas ambições não satisfeitas. Sentia-se feliz ao dizer que as portas que ela sozinha não pudera franquear se abriam ante esse jovem oficial, rico e pleno de vida. Entretanto, certos e estranhos boatos não tardaram a chegar aos ouvidos de Bárbara. E a acreditar neles, Stavroguine tinha bruscamente começado uma vida de loucuras. Não era porque jogasse ou se entregasse demasiado às bebidas, não! Falava-se de excentricidades selvagens praticadas na sua casa ou de criados esmagados pelos seus cavalos. Reprovava-se-lhe a forma como procedeu a respeito de uma senhora de boa sociedade, que ultrajou em público depois de ter tido relações íntimas com ela! Havia mesmo alguma coisa particularmente ignóbil nesta questão. Além disto, descreviam-no como um brigão, altercando com toda a gente, insultando as pessoas somente pelo prazer de as insultar. Uma certa inquietação se apoderou da viúva. Stepan assegurou-lhe que um temperamento rico como o de seu filho devia necessariamente deitar fora as excrescências, pois o mar tinha também os seus encapelamentos e que tudo isto era parecido com a juventude do príncipe Harry, que Shakespeare nos apresenta, divertindo-se, em companhia de Falstaff, de Poios e da senhora Quickly. Desta vez, longe de classificar de «bagatela» as palavras do seu amigo, como tinha por costume fazer desde há algum tempo, escutou-o de muito boa vontade. Pediu para lhe explicar tudo com mais detalhes e leu com toda a atenção a imortal obra do trágico inglês. Todavia esta leitura não lhe trouxe nenhum sossego: as analogias marcadas por Stepan não a impressionaram nem convenceram. No desejo de ser esclarecida sobre a conduta do filho escreveu umas cartas para S. Petersburgo e esperou a resposta. O correio trouxe-lhe as mais desagradáveis informações: o nosso príncipe Harry tivera, quase seguidos, dois duelos, nos quais todos os agravos tinham sido praticados por ele; matara um dos adversários, ferira o outro gravemente e, em virtude destes acontecimentos, tinha de responder em conselho de guerra. A questão terminou por o degradarem, mandando-o como simples soldado para um regimento de infantaria e isto ainda devido à indulgência que tiveram para com ele.

    Em 1863, tendo-se distinguido, Stavroguine foi condecorado e promovido a oficial inferior e, pouco tempo depois, promoveram-no à patente de oficial. Durante todo este tempo, Bárbara mandou para a capital mais de cem cartas, cheias de súplicas e de humildes pedidos: o caso era muito excecional para que não descesse um pouco do seu orgulho. Uma vez reintegrado no seu grau, apressou-se a pedir a demissão. Não voltou a Skvorechniki e deixou completamente de escrever à mãe. Esta soube, por via indireta, que estava ainda em S. Petersburgo, mas que não convivia com a sociedade que frequentara noutros tempos. Mais tarde, soube que se tinha escondido. À força de procurarem, descobriram-no vivendo nos bairros mais pobres e imundos de S. Petersburgo: fora atraído pela mais miserável população da cidade, formada de famintos, empregados, antigos militares sempre bêbados e não tendo outro recurso que uma mendicidade mais ou menos disfarçada. Visitava as famílias destes desgraçados, passava os dias e as noites em escuros casebres, não tendo a mínima preocupação com a sua pessoa. Na aparência, esta situação agradava-lhe. Nunca fez a sua mãe o mais pequeno pedido de dinheiro; vivia do rendimento de uma pequena propriedade que seu pai lhe deixara e que dizia ter arrendado a um alemão do Saxe. Por fim, Bárbara suplicou-lhe para voltar para junto dela e o nosso príncipe Harry, acedendo, apareceu na cidade. Foi então que o vi pela primeira vez, pois até aí conhecia-o apenas de nome.

    Era um forte e bonito rapaz, de vinte e cinco anos. Confesso que o seu aspeto não correspondeu nada à minha espectativa. Havia imaginado Stavroguine como uma espécie de boémio descomposto, marcado com os traços do vício e dos excessos do álcool. Pelo contrário, era dotado de uma elegância correta, como até aí não havia encontrado: o seu modo de vestir não deixava absolutamente nada a desejar e as suas maneiras eram as de um homem habituado a viver na melhor sociedade. Todo ele foi para mim uma surpresa e a cidade inteira partilhou da minha admiração, pois todos conhecíamos já a biografia de Stavroguine. A sua chegada pôs em revolução todos os corações femininos; teve entre as nossas mulheres adoradoras e inimigas, mas umas e outras apaixonaram-se por ele. Agradou a estas, porque tinha talvez um horroroso segredo na sua existência, e àquelas, porque tinha positivamente morto alguém. Demais, encontraram-no muito instruído; na verdade, não era necessário possuir grande saber para excitar a nossa admiração e, além disso, julgava com notável bom senso as diversas questões de ocasião. Anoto esta qualidade como uma particularidade curiosa: quase desde o primeiro dia todos concordámos em reconhecer nele um elegante, sem procurar sê-lo, e de uma modéstia de admirar, o que não o impedia de ser mais ousado e mais seguro de si do que ninguém. As nossas elegantes invejavam-no e eclipsavam-se diante dele. O seu rosto impressionou-me também; tinha os cabelos muito negros, os olhos claros, de uma serenidade e de uma calma fora do vulgar, uma tez branca e delicada, uns dentes que semelhavam pérolas e uns lábios que rivalizavam com o coral. A cabeça fazia o efeito de um belo quadro antigo e, no entanto, havia nela um não-sei-quê que repelia. Dir-se-ia que tinha o aspeto de uma máscara. De estatura bastante elevada, passava por um homem excecionalmente vigoroso. Bárbara admirava-o com orgulho; todavia juntava-se a este sentimento um tanto de inquietação. Durante o primeiro semestre, viveu tranquilo junto de nós: estrito observador das leis da etiqueta provinciana, convivia com toda a gente e frequentava a melhor sociedade, parecendo, no entanto, divertir-se pouco. Fazia as suas visitas, umas rápidas, outras demoradas, ao governador, que era seu parente pelo lado paterno. Mas, ao fim de meses, e de súbito, a fera revelou-se.

    Afável e hospitaleiro, o nosso caro Ivan Osipovitch tinha sido feito mais para marechal da nobreza nos bons tempos passados do que para governador numa época como a nossa. Tinha-se por hábito dizer que não era ele quem governava a província, mas sim Bárbara. Palavras mais maldosas do que justas porque, apesar da consideração de que toda a sociedade a rodeava, a viúva tinha, há já alguns anos, abdicado de toda a ação sobre a marcha das questões públicas e ocupava-se cada vez mais dos seus interesses particulares. Dois ou três anos foram o suficiente para fazer com que os seus domínios rendessem o mesmo que antes da emancipação dos servos. A ânsia de amontoar, de entesourar, substituíra no seu pensamento as aspirações poéticas de outrora. Afastou mesmo Stepan da sua intimidade, permitindo-lhe que aluga-se um compartimento numa outra casa — há já muito que ele lhe solicitava esta permissão, sob diversos pretextos.

    Todos aqueles que mais assiduamente íamos a casa da viúva, compreendemos que, naquela altura, considerou o filho como uma nova esperança, como um novo sonho. A sua paixão por ele datava da época dos seus primeiros sucessos na sociedade de S. Petersburgo e tornou-se maior ainda a partir do momento em que lhe deram baixa de posto. Ao mesmo tempo, Bárbara tinha medo dele e, na sua frente, a sua atitude era quase como a de uma escrava. O que temia nem ela própria o podia precisar, pois era alguma coisa de indeterminado e de misterioso. Muitas vezes examinava o filho disfarçadamente, como a procurar no seu rosto uma resposta a algumas dúvidas que a atormentavam... Parece que adivinhando, a besta feroz abriu de repente as garras.

    II

    Bruscamente, sem que houvesse uma razão, o nosso príncipe comportou-se com diversas pessoas de uma insolência inaudita. Nada houve que justificasse tal procedimento, que ultrapassou de muito as garotices mais atrevidas que se podem permitir a um jovem estouvado. Um dos decanos mais considerado do nosso grémio era Pedro Pavlovitch Gaganov, homem já idoso e antigo funcionário, contraíra o inocente hábito de dizer a propósito de tudo e de nada, num tom de zangado: «Não, não me guio pelo nariz!» Um dia, no grémio, numa conversa com um grupo de sócios que não eram dos mais novos da casa, repetiu a frase favorita. No mesmo instante Stavroguine, que se encontrava um pouco de lado e a quem ninguém se havia dirigido, aproximou-se do velho, agarrou-o pelo nariz e, puxando-o com força, obrigou-o a dar dois ou três passos em frente. Não teve nenhuma razão para fazer isto. Podia ser levada à conta de simples travessura de estudante, travessura imperdoável, é certo; no entanto as testemunhas desta cena contaram mais tarde que no decorrer dela a fisionomia de Stavroguine era estranha, «como se tivesse perdido o juízo». Tempos depois, esta circunstância foi recordada e deu que refletir. Naquele momento notou-se apenas a atitude de Stavroguine após a ofensa feita; compreendeu muito bem o ato praticado e, longe de se sentir envergonhado, sorriu com satisfação maliciosa, nada indicando nele o menor arrependimento. O incidente provocou um alarido indescritível. Em volta do culpado formou-se um círculo, de onde partiram exclamações indignadas. Este não proferiu uma palavra e limitou-se a observar todos os rostos, cujas bocas se abriram para soltar exclamações. Por último, forçando o círculo, avançou num passo firme para Gaganov.

    — Espero, naturalmente, que me desculpará... Não sei, na verdade, como esta ideia me surgiu... Uma estupidez... — murmurou à pressa e com ar de vexado.

    Esta maneira arrogante de se desculpar equivaleu a novo insulto. As vociferações redobraram. Stavroguine encolheu os ombros e saiu.

    Não bastava a primeira brutalidade, quanto mais ainda a última inconveniência. Calculado e premeditado, como à primeira vista pareceu ser, o insolente procedimento de que Gaganov fora vítima, fora um ultraje lançado sobre toda a nossa sociedade. Assim o julgou a opinião pública. O grémio começou por expulsá-lo do seu seio, tendo sido a sua exclusão votada por unanimidade; em seguida resolveu-se dirigir uma queixa ao governador. Sua Excelência estava impossibilitado — atendendo ao desenlace que esta questão poderia ter ante os tribunais — de usar imediatamente dos seus poderes administrativos para meter na ordem tão grande altercador e brigão, cujas brutais maneiras de proceder comprometiam a tranquilidade de todos os que viviam na cidade. Acrescentava-se, com uma pontinha de veneno, que Stavroguine estava fora do alcance das leis. Esta frase era uma alusão maldosa à influência presumível de Bárbara sobre o governador. Este encontrava-se então ausente, mas sabia-se que voltaria breve; tinha ido a uma localidade vizinha levar à pia batismal a filha de uma jovem e linda viúva, a quem o marido, ao morrer, deixara numa delicada situação. Enquanto se esperou, fez-se ao ofendido Gaganov uma verdadeira ovação. Todas as pessoas da cidade o foram visitar para o felicitarem, quer apresentando-lhe cumprimentos, quer abraçando-o. Pensou-se mesmo em oferecer-lhe um banquete por inscrição, porém renunciou-se a esta ideia devido aos seus insistentes pedidos; talvez mesmo os organizadores desta manifestação acabassem por compreender que, ante tudo quanto se havia feito, não se devia levar mais longe a glorificação de um homem só porque o tinham arrastado pelo nariz.

    E agora, por que motivo teria acontecido isto? Qual a causa a que atribuir este procedimento? Coisa digna de nota: nenhum de nós o atribuiu à loucura, mas sim à exaltação, apesar de se supor então que, mesmo sem estar na posse da sua razão, era incapaz de se comportar de igual forma. Por meu lado ainda hoje não sei como explicar o facto, se bem que um acontecimento sobrevindo depois, pareceu-me dar uma justificação satisfatória. Acrescentarei que, quatro anos mais tarde, Stavroguine, discretamente interrogado por mim a este respeito, respondeu-me, franzindo as sobrancelhas: «Sim, não estava muito bem nessa época». Porém não nos antecipemos.

    Surpreendeu-me deveras tudo isto e mais ainda a onda de rancor que se levantou entre todos contra «um tal altercador e brigão». Não admitiam a mínima dúvida sobre que o seu procedimento fora uma afronta, deliberadamente pensada, a todos nós. Era evidente que este homem não despertara à sua volta nenhuma simpatia e fora, pelo contrário, desprezado por toda a gente. Mas porquê tudo isto? Até ao acontecimento do grémio não tinha tido uma questão com ninguém, não tinha ofendido viva alma e havia-se mostrado sempre de uma educação irrepreensível. Suponho que o aborreciam devido ao seu orgulho. As próprias mulheres que tinham começado por adorná-lo, gritavam agora contra ele ainda mais do que os homens.

    Bárbara estava consternada. Confessou mais tarde a Stepan que tinha previsto tudo isto e que em cada dia, durante os últimos seis meses, esperava precisamente algum disparate deste género. Confissão extraordinária na boca de uma mãe. «Isto é o começo!» — exclamara ela, estremecendo. Após o incidente do grémio resolveu ter uma conversa com o filho. Apesar do seu caráter um tanto resoluto, a pobre senhora não pôde deixar de tremer ao pensar em tal. Após uma noite sem dormir, foi logo pela manhã conferenciar com Stepan e chorou junto dele, ela que nunca havia chorado diante de ninguém. Queria que o filho lhe dissesse pelo menos alguma coisa, que se dignasse dar-lhe uma explicação. Stavroguine, sempre muito educado e respeitoso com sua mãe, escutou-a durante algum tempo com ar de aborrecido, mas muito sério; de repente levantou-se, beijou-lhe as mãos e saiu sem pronunciar uma palavra. Como de propósito, na tarde desse mesmo dia, ocorreu novo escândalo que, sem ter, nem de perto, a gravidade do primeiro, tornou maior a irritação de um público já muito mal disposto.

    Desta vez foi o nosso amigo Lipoutine quem sofreu. Chegou a casa de Stavroguine no momento em que ele acabava de ter a explicação com a mãe: nesse dia, o empregado dava uma pequena reunião para celebrar o aniversário natalício de sua mulher e vinha pedir-lhe a honra de assistir. Desde há certo tempo, Bárbara estava desolada por ver que seu filho gostava sobretudo de frequentar as casas das pessoas de baixa condição, mas não se atrevia a fazer-lhe observação alguma a tal respeito. Não tinha ainda ido a casa de Lipoutine, não obstante ter-se encontrado com ele. Por isso, e dadas as circunstâncias da ocasião, foi-lhe difícil adivinhar por que o distinguiam com tal convite: na sua qualidade de liberal, Lipoutine estava encantado com o escândalo e desejava que se procedesse assim com todas as notabilidades do grémio. Stavroguine sorriu e prometeu ir a casa do empregado.

    Encontrou lá uma sociedade numerosa e pouco escolhida, mas cheia de entusiasmo. Lipoutine, que recebia apenas duas vezes por ano, não olhava a despesas nestas ocasiões. Stepan, o mais considerado dos convidados, não tinha podido ir por se encontrar doente. O chá, a aguardente e os refrigerantes em uso figuravam em tão grande abundância quanto se podia desejar. Os jogadores ocupavam três mesas e a juventude dançava ao som de um piano, enquanto aguardava a ceia. Stavroguine convidou para dançar a dona da casa, encantadora senhora, que ficou deveras intimidada com esta honra.

    Deram algumas voltas juntos; depois sentou-se ao seu lado, começou a conversar e divertiu-a com a sua maneira de dizer e com o que dizia. Reparando por fim no quanto ela era bonita quando ria, agarrou-a de súbito pela cinta e, por três vezes, diante de todos, beijou-a amorosamente nos lábios. Espantada, a pobre senhora desmaiou. Stavroguine pegou no chapéu e aproximou-se do marido. Ao vê-lo completamente desorientado, no meio daquela confusão geral, sentiu-se um tanto perturbado. «Não se aflija!» — murmurou Stavroguine rapidamente, e saiu. Lipoutine correu para ele e, apanhando-o na sala de espera, ajudou-o a vestir o casaco e acompanhou-o cerimoniosamente até à porta da rua. Porém esta história, no fundo um tanto inocente, teve no dia seguinte um epílogo bastante engraçado que, pela sequência, valeu a Lipoutine a reputação de homem muito perspicaz.

    Às dez horas da manhã, a sua criada Agafia foi a casa de Bárbara. Era uma moça de trinta anos, de rosto vermelho e com uma maneira de andar bastante decidida. Pediu com insistência para falar a Stavroguine, dizendo que o seu patrão a encarregara de uma comissão muito especial.

    O nosso homem, apesar de doente da cabeça, acedeu a recebê-la. O acaso fez com que a mãe assistisse à conversa.

    — Serge Vasilitch — começou a desembaraçada Agafia — encarregou-me de lhe apresentar os seus cumprimentos e de me informar da sua saúde; deseja saber se dormiu bem e como passou depois da reunião de ontem.

    Stavroguine sorriu.

    — Apresenta os meus cumprimentos e agradecimentos ao teu patrão e diz-lhe também que, em meu entender, é o homem mais inteligente da cidade.

    — Quanto a isso — respondeu atrevidamente a criada — ordenou-me que lhe respondesse não ter necessidade dos seus ensinamentos e que o considera da mesma maneira.

    — O quê. Como adivinhou ele o que eu te ia dizer?

    — Não sei de que maneira o adivinhou, mas estava já distante de casa quando, correndo atrás de mim, de cabeça descoberta, me disse: «Agafia, se por acaso te disser que o teu patrão é o homem mais inteligente da cidade não te esqueças de responder logo: «Não necessita dos seus ensinamentos e considera-o da mesma maneira...»

    III

    Contra o que se dizia, Stavroguine teve uma explicação com o governador. Voltando à cidade, o nosso estimado Ivan tomou conhecimento da queixa apresentada pela direção do grémio. Precisava sem dúvida de fazer alguma coisa... mas o quê? O amável velho encontrava-se bastante embaraçado, pois tinha um certo medo da sua parenta. Pensando algum tempo, delineou a seguinte airosa saída: convencer Stavroguine a apresentar ao grémio, assim como ao ofendido, as desculpas devidas, por escrito mesmo, se necessário fosse; depois, insinuar-lhe por boas palavras que faria melhor em sair da cidade, em empreender, por exemplo, uma viagem de recreio à Itália ou a qualquer outro país da Europa. Stavroguine, que, como membro da família, tinha entrada em toda a casa, foi desta vez recebido na sala de despacho. Um empregado de confiança, Aléxis Teliatnikov estava sentado ante uma mesa, a um canto, e abria a correspondência oficial. No compartimento pegado, junto da janela mais próxima da sala, encontrava-se um coronel, cheio e alto, que de passagem pela cidade fizera uma visita a Ivan, seu amigo e antigo camarada. De costas voltadas para a sala, lia o Golos, sem se preocupar, talvez, com o que se estava a passar atrás dele. O governador começou a fazer, em voz baixa, uma série de considerações, um tanto hesitantes e confusas. Stavroguine, sentado perto do velho, escutava-o com uma fisionomia que não tinha nada de amável; pálido, os olhos baixos, as sobrancelhas carregadas, evidenciava bem a luta que se travava no seu íntimo, tentando abafar atroz sofrimento.

    — O teu coração, Stavroguine, é bom e nobre — disse, entre outras coisas, o governador. — És um homem educado e instruído. Venceste na alta sociedade da capital, e aqui mesmo, até há pouco, a tua conduta podia ser citada como exemplar; és o orgulho da tua mãe, que todos nós presamos. Porém, os últimos acontecimentos excitaram toda a cidade e apresentam-se a todos nós com caráter enigmático e inquietante! Falo-te como amigo da tua família, como um velho que te consagra sincera estima, como um parente cuja linguagem não pode ofender... O que te incita a cometer excentricidades fora de todas as regras e de todas as convenções sociais? Que podem denotar essas extravagâncias, semelhantes a atos de demência?

    Stavroguine escutava encolerizado e impaciente. Nesta altura uma expressão velhaca lhe passou pelos olhos.

    — Seja. Vou dizer-lho — respondeu ele com ar desairoso e, depois de ter deitado um olhar aos circunstantes, inclinou-se junto à orelha do governador.

    Aléxis Teliatnikov deu três passos para a janela e o coronel tossiu atrás do seu jornal. O pobre Ivan, sem desconfiar, apressou-se a estender a cabeça; era extremamente curioso. Ocorreu então alguma coisa de inacreditável, mas que, infelizmente, os factos confirmaram. No momento em que o velho se preparava para ouvir o relato de um segredo interessante, sentiu bruscamente a parte superior da orelha apertada pelos dentes de Stavroguine e apertada com bastante força. Começou a tremer, quase lhe parando a respiração.

    — Stavroguine, que brincadeira é esta? — gemeu ele, numa voz que não era a sua voz natural.

    Aléxis e o coronel não tinham tido tempo ainda de compreender, pois não viam bem o que se passava e supuseram a princípio que era uma conversa confidencial entre os dois. Entretanto o rosto desesperado do governador inquietou-os. Olharam um para o

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