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Os Crioulos de Cabo Verde
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Os Crioulos de Cabo Verde

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Numa linguagem acessível, que evita o discurso académico, mas de conteúdo rigoroso, "Os Crioulos de Cabo Verde" oferece-nos uma viagem pela História e Cultura de uma nação carismática e de gentes simpáticas, mas excessivamente avaliada pelos estereótipos da imigração ou apenas aflorada por experiências de turismo, enquanto vai reflectindo sobre o passado imperial português, o qual se pode ir tornando nebuloso neste novíssimo Portugal europeu.
LanguagePortuguês
Release dateSep 15, 2016
ISBN9788468691800
Os Crioulos de Cabo Verde

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    Os Crioulos de Cabo Verde - Paulo Aníbal da Costa Santos

    carinho.

    INTRODUÇÃO

    Numa madrugada de há alguns anos, encontrei-me num barco avistando a Ilha Brava em Cabo Verde.

    Com luz difusa e vendo a imensa Ilha do Fogo à direita, a Brava pareceu-me pouco mais que um grande rochedo no meio do mar, escuro e nebuloso.

    Enquanto tinha esta visão, não pude deixar de reflectir que cerca de três semanas antes, nada me fazia prever uma viagem iminente, e muito menos para uma ilha cuja existência desconhecia por completo. Também não pude evitar um aperto nervoso, porque a inesperada situação em que me encontrava tinha um propósito de concretização incerta para mim, que era o de assumir a leccionação das disciplinas de História e de Cultura Cabo-verdiana no Liceu Eugénio Tavares, na Ilha Brava.

    A preocupação não estava em ser professor de História, porque o currículo de Cabo Verde não é muito diferente do de Portugal, o que até me daria tempo para me documentar sobre a História do país. Resultava a minha inquietação de saber não haver manual de Cultura Cabo-verdiana, e de praticamente não saber nada sobre a matéria.

    Tinham-me explicado que na falta de docente com formação específica, como acontecia na Brava, eram os professores de História que leccionavam a disciplina, pelo que sendo o único licenciado em História da escola competia-me suprir essa sua necessidade.

    Poucos dias antes, informaram-me que era uma disciplina do 10º ano, que tinha por objectivo uma iniciação à Antropologia Cultural, introduzindo a Cultura Cabo-verdiana. Ter tido alguma formação em Antropologia e Estudos Africanos no meu desenvolvimento académico, parecia-me precioso, mas na verdade apenas funcionava como distracção para a minha ignorância de Cabo Verde.

    Na cidade da Praia, a Cooperação Portuguesa sugeriu-me que visitasse um dos liceus da cidade para me informar como leccionavam a disciplina sem manual. Seguindo o conselho, dirigi-me ao Liceu Domingos Ramos, onde um membro do Conselho Directivo e uma professora de Cultura Cabo-verdiana – dos quais infelizmente esqueci os nomes – gentilmente me forneceram uma resma de fotocópias de vários livros, a partir da qual se ensinava a disciplina.

    Foi munido dessas fotocópias que assumi as minhas funções, acabando por cumprir sete anos no seu exercício.

    Entretanto, a minha inicial ansiedade teve que ser substituída pelo cumprimento das minhas obrigações, que felizmente se conjugaram com curiosidade por um povo que me foi surgindo carismático e muito receptivo, mas completamente esquecido naquelas ásperas ilhas, no que fui reunindo sustento documental, cogitando sobre a sua cultura, acabando por criar coragem para produzir este livro.

    Relato estas recordações para dizer que esta não é uma obra de um especialista, mas apenas a de um entusiasta empenhado, além de explicarem em parte o que me dispôs para este projecto, que é uma mera interpretação de outros trabalhos e apenas pretende orientar curiosos ou eventuais descobridores de Cabo Verde.

    Não apresento um romance, mas tendo algures já lido que os romancistas escrevem para si próprios, sugere-se-me que persigo de certo modo esse objectivo, porque com o desenvolvimento da minha experiência, pensei que a primeira imagem que tive da Brava -- obscura, nebulosa e mínima – reflectia a percepção que eu tinha de Cabo Verde conjuntamente com a dos restantes portugueses, pelo que teria gostado de ter acesso a um livro como este, especialmente indo viver para Cabo Verde numa situação em que devia leccionar matérias da sua cultura, e que desconhecia!

    Além disso, a dignidade nacional e o comprometimento com os cabo-verdianos começaram a importunar-me, quando fui percebendo a ignorância quase generalizada que os portugueses têm de Cabo Verde, o que acabou por me parecer uma lacuna com o seu quê de indigência, ou no mínimo um grande alheamento para com os cabo-verdianos.

    Isto porque, tornando-me atento na averiguação da percepção portuguesa de Cabo Verde, e com uma certa inquietação de poder destoar em demasia do geral dos meus conterrâneos, fui experimentando um misto de alívio mas também muito desassossego; porque por um lado comprovei não ter divergido da sua maioria, mas por outro verifiquei que muitos portugueses apenas sabem que Cabo Verde é um país africano, uma ex-colónia portuguesa, e que tem muitos emigrantes em Portugal. Até constatei, perplexo, que vários portugueses imaginam que Cabo Verde seja muito verde, enquanto outros demonstraram pensar que é um país continental!

    Não fiz nenhum inquérito, é certo, mas a interpelação que as pessoas (dos mais variados estratos sociais e culturais) me faziam sobre Cabo Verde, quando sabiam ter ali a minha vida, era quase inevitável, pelo que nem desenvolvi grandes esforços na minha averiguação, concluindo – com salvaguarda de situações pontuais de quem viveu, passou pelo país, ou se relaciona com cabo-verdianos -- que as únicas referências que muitos portugueses parecem associar a Cabo Verde, serão além das que já referi, a morna de Cesária Évora e a ilha do Sal como experiência de férias ou destino para isso. Muitos até confundem a cachupa como sendo um prato angolano, e pouco mais…!

    Mesmo os que usufruíram dos pacotes turísticos do Sal revelam um conhecimento de Cabo Verde muito limitado e sobretudo muito descaracterizado; o que considero inevitável porque, tendo visitado aquela ilha várias vezes, experienciei sempre uma ideia de reprodução da orla marítima do Algarve, acrescentada de crioulos e senegaleses que lhe proporcionam exotismo.

    Ao mesmo tempo, fui descobrindo que a maioria dos escritos de autoria portuguesa sobre a História e Cultura Cabo-verdianas remontam à época colonial, tornando-se depois meramente cooperativos ou sem iniciativa privada. Doutro modo, o actual envolvimento português na edição de obras sobre Cabo Verde, que não esteja orientado para o turismo, parece reduzir-se ao Instituto Camões -- com grande mérito aliás, dado ter uma intervenção maioritária neste âmbito, mas naturalmente com edições limitadas -- pelo que, no mercado português, simplesmente não se encontram obras que sejam referência no conhecimento de Cabo Verde, enquanto são pontuais as bibliotecas que as proporcionam com algum acervo.

    Claro que, se não tivesse a vivência em Cabo Verde que me calhou em sorte, muito provavelmente nunca me teria tornado atento para estas percepções, como seguramente vivo ignorante de muitas outras; mas mesmo considerando esse relativismo, não pude deixar de achar surpreendente que se torne dificílimo para um português o acesso à informação sobre Cabo Verde que ultrapasse a orientada para o turismo, quando o nosso país teve ali uma intervenção genética que também é História de Portugal.

    Se estas têm sido as minhas constatações entre os portugueses, opõe-se-lhes singularmente a verificação de que os cabo-verdianos nos conhecem perfeitamente.

    Em Cabo Verde segue-se e vibra-se com o nosso campeonato de futebol, tal como se estivéssemos em Portugal, muitos conhecem a nossa política, figuras públicas e evolução social, a nossa história e cultura, as nossas regiões, e os que visitaram o nosso país falam com reverência da sua beleza, da culinária ou até da sociedade. Creio mesmo, que muitos sabem mais da nossa evolução nacional que alguns portugueses.

    Da minha perspectiva de convivência quotidiana com os cabo-verdianos, este abismo de percepções pareceu-me uma insensibilidade portuguesa, onde ainda concorre às vezes a injustiça de uma avaliação bastante circunscrita aos aspectos malignos da imigração, que tendem a associar os cabo-verdianos ao gueto e à delinquência.

    De acordo com a ideia que invoquei – que escrevemos para nós próprios, e portanto para a minha sensibilidade neste caso – já teria razões suficientes para a elaboração deste trabalho. Mas outras reflexões, improváveis num tuga alfacinha da actualidade, que não tenha criado sensibilidades como as que tenho vindo a apresentar, levaram-me a engendrar outros motivos.

    Não pude deixar de pensar na recuperação/renovação de um património português que se parece ignorar – e eventualmente suprimir por omissão continuada – num Portugal finalmente europeu. Quase distraidamente, a minha motivação foi-se ampliando em considerações sobre a universalidade portuguesa, cuja posição privilegiada pode ser uma mais-valia para nós e para o mundo, mas que às vezes se parece ignorar neste pequeno rectângulo com ilhas adjacentes em que nos tornámos, considerar coisa do passado, ou até envergonhar devido às nossas maldades; quando partindo de uma introspecção honesta só pode ser inestimável para o nosso país, e afirmá-lo no mundo globalizado em que vivemos.

    Naturalmente, tenho de considerar que estas observações não têm valor absoluto, porque muito se faz no âmbito da lusofonia, mas não pude deixar de as achar pertinentes para Cabo Verde quando percebi que permanece quase ignorado por Portugal quanto à sua actualidade, e mais ainda quanto ao seu passado que também é português, tendo até o estatuto de primeira elaboração de uma cultura crioula.

    Ora, a posição em que me achei, pareceu-me única e privilegiada para contribuir ainda que escassamente para estas expectativas -- que seguramente não serão só minhas, mas também de mais portugueses e até de cabo-verdianos -- ou pelo menos para facilitar informação de Cabo Verde, já que quem quiser documentar-se sobre a sua cultura em Portugal terá muitas dificuldades, e também não terá fácil acesso em Cabo Verde.

    Há que ressalvar mérito para o ensino público cabo-verdiano, que integrou a disciplina de Cultura Cabo-verdiana no décimo ano, ainda a oferecendo como opção nos dois anos posteriores do curso de Humanísticas. Mas, salvaguardado este acesso, a busca autónoma do conhecimento da cultura cabo-verdiana em Cabo Verde é no mínimo uma tarefa morosa. Apesar de activo, o mercado local de leitura é naturalmente acanhado, o que condiciona edições por vezes únicas e limitadas, dificilmente se reeditando obras antigas, mesmo que importantes; no que provavelmente também deve influir serem edições ou impressões realizadas quase exclusivamente fora do país (normalmente portuguesas).

    Imagino que por essas razões, algumas das obras sobre História e Cultura Cabo-verdiana - que até existem muitas, seguramente ultrapassando as que apresento na bibliografia, até porque outras terão surgido depois do meu regresso – não sejam fáceis de se encontrar ali, no que é significativo que só tenha tido acesso a muitas por empréstimo ou através de trechos em fotocópia. Felizmente, as edições do Instituto Camões encontram-se com alguma facilidade em Cabo Verde mais do que em Portugal, sobretudo na Praia e provavelmente também no Mindelo.

    Neste sentido, devo agradecer ao meu amigo e companheiro de viagem Carlos Tomás que me emprestou muitos livros, alguns essenciais, bem como ao Manuel Faustino que teve a mesma gentileza.

    Enfim, para os portugueses, cabo-verdianos, para mim e para os meus alunos que não tinham manual, ou para todos os que queiram descobrir a identidade cabo-verdiana, apresento este livro, quanto mais não seja porque terão menos dificuldades do que as que tive na sua descoberta.

    Devo alertar o leitor que as palavras em crioulo que vai encontrar não têm uma ortografia que possa afirmar ser exacta, pois que apesar de já existir um dicionário de kabuverdianu, em dejá vu não lhe consegui ter acesso por mais que o intentasse, pelo que segui os trabalhos de Manuel Veiga que indico na bibliografia.

    O leitor também irá encontrar várias referências a Gilberto Freyre e até um subcapítulo que indico basear-se na sua Casa Grande e Senzala. É um autor que se pode considerar antigo, talvez até ultrapassado para alguns, além de lhe estarem associadas algumas reticências por ter sido acarinhado pelo Estado Novo mas, não me baseando apenas neste autor, arrisquei dar-lhe relevância porque apesar do que se possa dizer sobre ele, não deixa de ser muito incisivo e lúcido, mostrando actualidade face a outros trabalhos mais recentes.

    Resta-me deixar os meus agradecimentos, antes de mais à Chanda Faustino que com admirável paciência foi lendo os vários manuscritos, e sempre com ânimo para entusiasmadas discussões que me foram muito inspiradoras, acabando por deixar muito dela neste livro. Fica um especial obrigado ao João Graça – incondicional opositor ao acordo ortográfico - que fez uma revisão sumária do português, e agradeço de novo ao Carlos Tomás, que também teve a paciência de fazer a crítica na perspectiva do leitor. Ainda envio um grande beijo de obrigado à Debora Abu-Raya (ela sabe porquê), deixo a minha eterna gratidão para os que se disponibilizaram para me ajudar a publicar este livro, e fica um abraço ao meu pai, que de algum modo também me condicionou para estas coisas.

    I - ENQUADRAMENTO AMBIENTAL

    1. Apresentação Geográfica

    Cabo Verde tem muito pouco de verde.

    O visitante desprevenido que aterre num dos seus aeroportos internacionais, no Sal, Santiago, Boavista ou S. Vicente, fica chocado com as planuras ocres e despidas de vegetação.

    Se visitar outras ilhas, verifica a persistência da paisagem seca, com variações é certo, mas dependentes de uma época muito limitada do ano.

    A resposta a quem se interrogue sobre o nome do arquipélago, situa-se a cerca de 500 km para oriente, em Dakar, no continente africano.

    Quem circular pelas avenidas desta cidade com expressão francesa pode descobrir placas com a indicação Cabo Verde, mas que se referem a uma zona da cidade que se edificou num extenso promontório que se alonga pelo mar. Esta referência remonta ao séc. XV.

    Quando os portugueses desciam a costa ocidental africana, descobriram aquele promontório repleto de vegetação, designando-o como Cabo Verde.

    Mais tarde, quando acharam o grupo de ilhas para onde aponta o cabo, chamaram-lhe as ilhas de Cabo Verde.

    Apesar de integrado na região atlântica chamada de Macaronésia, que inclui Cabo Verde e os arquipélagos das Canárias, Madeira e Açores – de origem vulcânica comum –, para Cabo Verde o que assume relevância geográfica é o facto de ser uma sub-região do Sahel e ter predominância de ventos de NE, factores que condicionam uma quase constante secura.

    O arquipélago de Cabo Verde é constituído por dez ilhas e alguns ilhéus, apresentando um desenho que sugere a letra U com base voltada para o continente africano, e distinguindo-se dois grupos de ilhas que aludem à sua posição relativa aos ventos de NE: concretamente as de Barlavento, mais a Norte – Stº. Antão, S. Vicente, Stª Luzia, S. Nicolau, Sal e Boavista – e as de Sotavento, nomeadamente Maio, Santiago, Fogo e Brava.

    Outra distinção, mais introspectiva da geografia das ilhas, refere-se ao interesse geoeconómico desenvolvido por cada uma delas.

    Neste âmbito distinguem-se três grupos:

    - O de Santiago e Fogo.

    - O das ilhas do Norte e Brava.

    - O das ilhas Orientais.

    O de Santiago e Fogo:

    - Santiago e Fogo agrupam-se por terem sido as primeiras a serem povoadas e por permitirem boa exploração agrícola, mas sendo na verdade bastante diferentes.

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