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O que acontece sob a lua
O que acontece sob a lua
O que acontece sob a lua
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O que acontece sob a lua

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About this ebook

Abalada por um luto recente, Minna e o marido Tom se refugiam para uma vila isolada na costa de Dorset, na esperança de encontrar a solidão que lhes permitirá lidar com sua perda e reconstruir seu casamento que está naufragando. Um dia, caminhando pela praia, eles descobrem um esqueleto humano. É uma descoberta que fará Minna mergulhar em um mistério que vai consumi-la pelos meses seguintes. Os restos mortais são logo identificados como sendo do Soldado Raso Lew Campbell, um soldado americano negro que, aparentemente, se afogou na área durante um exercício na época de guerra há meio século. Ficando cada vez mais preocupada com o destino do soldado morto, Minna faz amizade com uma mulher idosa melancólica, Felix, que morou na vila durante a guerra. Como Minna persuade Felix a contar sua história, torna-se claro que a senhora sabe mais sobre o soldado morto do que demonstrou inicialmente. O que Acontece sob a Lua é um romance inesquecível de recordações e perdas, sobre o legado da guerra e a necessidade de reconciliar-nos com nosso passado para viver com o presente. A confissão chocante de Felix ao final permite que ela se reconcilie com um evento que lançou uma sombra sobre a vida dela e ajuda Minna a começar a aceitar sua própria perda.

LanguagePortuguês
PublisherBadPress
Release dateSep 20, 2016
ISBN9781507155509
O que acontece sob a lua
Author

Eliza Graham

Eliza Graham spent science lessons reading Jean Plaidy novels behind the textbooks, sitting at the back of the classroom. In English and history lessons, however, she sat right at the front, hanging on to every word. In the school holidays she visited the public library multiple times a day. At Oxford University she read English literature on a course that regarded anything post-1930 as too modern to be included. She retains a love of Victorian novels. Eliza lives in an ancient village in the Oxfordshire countryside with her family. Her interests (still) mainly revolve around reading, but she also enjoys walking in the downland country around her home. Find out more about Eliza on her website: www.elizagrahamauthor.com, Facebook: @ElizaGrahamUK or Twitter: @eliza_graham.

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    O que acontece sob a lua - Eliza Graham

    1

    Minna

    Nosso segundo aniversário de casamento. Estou prestes a falar para o Tom que nossa relação está no fim, quando ele vê alguma coisa na areia.

    Ele ergue as sobrancelhas.

    – Que diabos é isso?

    – Isso o quê? – Meu coração dispara: em parte pela raiva, em parte pelo alívio por ele interromper a conversa.

    Ele dá um pulo e caminha em direção às rochas, sobre algas e troncos mortos trazidos pela tempestade da semana passada. O sol nasce e algo brilha na areia embaixo de nós, agora tão macia como uma toalha de linho. Aperto os olhos para tentar enxergar o objeto. Uma tampa de garrafa? Uma moeda? Levanto-me e vou atrás dele, com os pés esmagando os seixos até chegar à arenosa beira da praia.

    Tom estica a mão.

    – Fique aí. – A firmeza em sua voz me faz piscar.

    – Qual o problema?

    Ele se agacha, de costas para mim, e cava com as mãos como um cachorro.

    – Ai meu Deus. – Ele fica com as mãos paradas.

    – O quê?

    – Acho que você não vai querer ver… – Empurro o braço esticado que me detém e vejo o que ele desenterrou: um objeto comprido e branco.

    Um osso. O pedaço de metal está a uns trinta centímetros dele.

    – É humano? – Inclino para me aproximar.

    – Provavelmente é de uma ovelha ou vaca. – Mas percebo uma hesitação em sua voz.

    Meu conhecimento de anatomia é duvidoso, mas sei que isso não é de um animal; é um osso de perna humana. Tom cava um pouco mais e aparece uma fileira de arcos cor de marfim. Uma costela.

    – Jesus!

    Ele me envolve com o braço, me afastando.

    – Não olhe. Vá e chame a polícia.

    Concordo. Quando fico de pé, avisto a moeda novamente. Só que não é uma moeda, mas sim duas tiras de metal enferrujado, presas a uma corrente metálica. Placas de identificação de cachorro, como aquelas que aparecem em filmes de guerra antigos em preto e branco. Pego-as e esfrego meu lenço para ler a inscrição de uma delas. J. L. CAMPBELL e um número.

    – Assim poderão identificá-lo. – Começo a sentir um formigamento nas pálpebras. Pisco e desvio o olhar, entregando as placas para Tom. Que ridículo sentir esta emoção por alguém morto há tanto tempo.

    – Pobre coitado desse homem, seja lá quem for.

    – Você está bem? – Seu tom de voz expressa exatamente o tamanho da preocupação: não o suficiente para demonstrar que ele está aflito, mas não tão insignificante para ser acusado, ou para se considerar, como insensível. Ele está sempre nessa linha tênue comigo.

    – Vou fazer essa ligação. – Lembro-me de algo. – Provavelmente não devemos tocar em nada.

    – Meu Deus, você tem razão. – Já assistimos bastante dramas criminais para saber que não se deve mexer em corpos. Ele solta as placas e elas tilintam nas vértebras. Estremeço.

    – Desculpe. – Ele diz.

    Levanto-me e caminho pelo seixo da praia em direção a minha mochila para chamar a polícia pelo celular. Felizmente o sinal está bom ali, um dos motivos pelos quais escolhemos a Rosebank House para passar o verão. Tom estaria encrencado se os clientes dele não pudessem encontrá-lo a qualquer hora.

    A atendente do serviço de emergência, falando lentamente com um sotaque do interior, demonstra estar um tanto animada com as notícias e pede para esperarmos pela polícia na praia.

    – Muito emocionante mesmo. – Digo para Tom com uma voz radiante.

    Ele me olha.

    – Se você diz...

    Que grosseria. Ele provavelmente estava pensando na última vez que nós esperamos pelos serviços de emergência. Mexo em meu anel de casamento, agora solto no meu dedo. Tive que parar de usar meu anel de noivado; ele continuava escorregando.

    Eu não havia comprado um cartão para ele pelo nosso aniversário. Ele colocou um monte de delphiniums na mesa do café para mim esta manhã… flores certas porque não as colocamos em nosso casamento nem na cremação.

    Ele senta-se na areia ao meu lado novamente, e eu vejo uma veia pulsando em seu pescoço. Há apenas alguns meses, teria desejado dar um beijo nele. Agora observo e não sinto nada. Sob nós, as ondas chacoalham incessantemente na areia.

    – Precisamos conversar. – Eu digo. – Viver comigo o estava matando. Não dava para continuar.

    Luzes azuis piscam acima de nós vindo da velha casamata na falésia.

    – Mares agitados por essas bandas, há um mês ou mais. – O sargento diz. – Tempestades de primavera ruins. Provavelmente erodiram uma parte da areia fazendo o corpo voltar para a superfície.

    – Além disso, ele estava preso nas pedras até as ondas o empurrarem. – O policial propõe, apontando para as pedras irregulares que marcam o fim da enseada.

    O Sargento bufa para mostrar o que ele acha da ideia.

    – Sem crânio. Felizmente para nós, essa placa de identificação ainda está com os ossos. Deve tornar mais fácil descobrir quem ele é.

    – Você acha que ele é daqui? – Pergunto.

    O Sargento vira a cabeça.

    – A identificação me parece americana. Muitos ianques acamparam por aqui, especialmente no início de 1944.

    – Provavelmente ele se afogou em algum treinamento malsucedido. – Diz Tom.

    O policial franze a testa para Tom.

    – Que sotaque norte-irlandês, senhor Byrne?

    Endureço, uma reação de quando costumava me sentir a protetora de Tom.

    – Ele é britânico.

    – Cresci em Belfast.

    Agora o sotaque de Tom fica mais suave, o policial local tem ouvidos afiados. Tom provavelmente está tentando descobrir se é bom ou ruim eu ter me manifestado a favor dele.

    O Sargento pega o rádio. – Não resolve nada nós todos ficarmos por aqui, esse camarada foi morto há alguns anos. Espero que vocês queiram continuar com suas férias, senhor e senhora Byrne.

    E o uso de nosso título de casados me lembra da conversa que estava começando quando Tom avistou os ossos. Tom me vê recuar e eu fico vermelha. Esta sequência de reações me surpreende… fazia semanas que eu não sentia nada.

    Swanham Herald

    Soldado morto em Fontwell era americano

    Turistas descobriram os restos mortais de um Soldado Americano, sessenta anos depois que ele se afogou. Oficiais militares americanos confirmaram sua identidade como Soldado Lew Campbell, que acredita-se ter morrido em 1944 durante exercícios de treinamento para os Desembarques da Normandia.

    O corpo foi encontrado na terça-feira na Enseada de Fontwell, cerca de oito quilômetros a leste de Lulworth. A polícia acredita que o recente mau tempo e a erosão das falésias o deslocaram de um lugar ainda mais distante ao longo da costa, onde repousava.

    Fontwell situa-se na área do Ministério da Defesa e foi evacuada em novembro de 1943, para ser usada como campo de treinamento para a invasão da Europa. Seus antigos habitantes nunca voltaram para a vila. A área está aberta ao público em determinadas datas do ano.

    O Ministério da Defesa e os Funcionários do Ministério do Exterior estão tentando rastrear qualquer familiar sobrevivente do Soldado Campbell na Geórgia, seu estado natal. É provável que o corpo seja enterrado no Cemitério de Guerra americano de Madingley, Cambridgeshire.

    2

    Felix

    Algo bate ao lado de Felicity.

    Ela vira-se para ver um menino driblando uma bola de futebol da cor de uma ameixa madura em direção ao irmão. Por um segundo, ela pensa que eles estão chutando a cabeça inchada de Lew pela grama. Ela se agarra à parede enquanto o mundo gira. Maldição! Ela foi uma idiota por voltar ali.

    Quando termina de praguejar, ela fica aliviada ao ver que ninguém está olhando em sua direção… a invisibilidade é uma das vantagens de envelhecer.

    E claro, não há nenhum negro deitado ali, nenhuma cabeça sangrando e machucada, nem mesmo um homem levantando a mão na tentativa de se proteger. Apenas dois garotinhos com sua bola de futebol, desfrutando de uma tarde de verão perfeita entre as paredes esfareladas da vila.

    Desde que ela leu aquele artigo de jornal começou a ver Lew novamente. Ele aparece do lado da cama, chamando seu nome até ela acordar. Ela pensou que isso havia acabado há anos.

    – Vá embora. – Ela disse a ele na noite passada. Ele não disse nada, ele nunca diz. Apenas olhou para ela com aqueles olhos de carvão preto.

    Quase hora de ir. A vila só abre por horas definidas em determinados dias. Se você prolongar essas horas, corre o risco de sofrer um bombardeio ou levar um tiro. Felicity, conhecida por seus amigos como Felix, está aliviada, mesmo depois de percorrer todo o caminho desde o Norte para visitar este lugar e alugar uma casa nas proximidades, para poder voltar a Fontwell quantas vezes ela quisesse. A vila fica aberta todos os dias durante os meses do verão.

    Alguém chama os meninos jogadores de futebol. Ela vê uma mulher usando uma saia bufante, meio boêmia e um top de cores pálidas, com um longo cabelo dourado, caindo sobre os ombros brancos como leite. Ela faz Felix lembrar-se de Isabel, mas claro que a mulher é apenas uma turista desejosa de ver os atrativos locais. Nada mais romântico do que uma vila abandonada.

    – Acho que vocês não deveriam estar jogando futebol aqui. – A mulher bufante pega a bola deles e lança um olhar de desculpas para Felix. Ela sorri para mostrar que não se importa: Sam e o irmão sempre jogavam bola sobre aquela relva verde. Ela não pode suportar a ideia da vila ser vista como um museu.

    Ela perambula de volta para o estacionamento e se senta por um minuto em seu Vauxhall, com os olhos fechados, pensando se consegue ou não continuar com a próxima etapa de sua peregrinação. Talvez fosse melhor voltar para a casa de férias. Ela visitou o túmulo da mãe, agora completamente entregue à grama, com trepadeiras e angiospermas, então não há mesmo nenhuma necessidade de demorar-se em Fontwell. A bela mulher e os filhos retornam ao Volvo e vão embora. Eles vão sentar-se do lado de fora de algum chalé pitoresco, bebendo chá e limonada e planejando a viagem do dia seguinte.

    Que inferno! Ela veio até aqui, então ela também pode ver a antiga casa. Ela ligou o motor e percorreu a vila. A Rosebank agora fica fora da área restrita, o Ministério da Defesa decidiu que não precisa mais de toda a área. Ela acena para o soldado na cancela e o observa abaixando-a depois que ela passa… a última a sair. Exatamente como em 1943.

    Felix tira o pé do freio. A vila está abandonada à própria sorte, somente com suas lembranças e os estampidos intermitentes das armas como companhia. Ela chega ao caminho que leva à casa. Agora ela já foi restaurada. Aparentemente, não foi tão danificada por morteiros e bombardeios como as outras casas e o Ministério da Defesa manteve o telhado consertado ao longo dos anos, possivelmente, considerando-o adequado para servir de alojamento oficial. Mas agora eles venderam a Rosebank House e o terreno em volta para uma instituição de caridade ambiental local, o fideicomisso Barrows Trust, que por sua vez pagou a uma empresa de aluguel de férias para deixá-la. Os primeiros visitantes já chegaram.

    Quando Felix alugou seu próprio chalé de férias, ela disse à proprietária, no escritório de reservas, que havia morado na Rosebank. A senhora Ogle insistiu em fechar seu escritório pela tarde para mostrar os arredores.

    – Você deve estar ansiosa para ver sua antiga casa.

    Felix não estava tão ansiosa assim. O receio era maior.

    – As pessoas que a alugaram não se importarão?

    – Eles só chegam amanhã de manhã.

    Felix tem que controlar as mãos e os pés para não frear e retornar com o carro. Ela se lembra de ter pegado uma balsa de Poole para Cherbourg uma vez, anos atrás. Ela teve que sentar em sua cabine abafada até que todos estivessem em segurança rumo ao mar, temendo que pudesse olhar para trás, vendo as falésias que se afastavam, e reconhecer a enseada de Fontwell. Bobinha!

    O fideicomisso havia organizado o recapeamento da via. Na época de Felix, os buracos destruíam as suspensões de vários carros. A grande árvore de castanhas no campo sobreviveu aos morteiros. Os dois ulmeiros também. Ao virar a rua é possível ter o primeiro vislumbre da casa em Harrogate. Ela se lembrava dali como um lugar grande, pairando sobre ela.

    Uma Mercedes prata está do lado de fora. Felix estaciona ao lado dela, observando o quanto seu Vauxhall parece esfarrapado comparado com o outro. As reformas na casa haviam acabado recentemente: uma última caçamba de tijolos velhos espera ser coletada. As novas janelas ainda têm os adesivos dos fabricantes, e latas de tintas e pincéis estão em caixas de papelão na porta.

    Ela caminha até a frente da casa, olhando para as janelas do primeiro andar, até reconhecer qual era a dela: aquela debaixo do frontão esquerdo. Ela costumava descer pela glicínia… sorte que ela era uma garota magra… e saltava para o gramado. Fazia muito tempo que a glicínia havia murchado e as paredes externas estão com uma cor mais escura do que o creme de que ela se lembra. Mas sem dúvidas ainda é a casa que seu pai médico comprou em junho de 1933 para acomodar a família que imaginou que continuaria crescendo.

    Felix percebe que está olhando para algo pequeno e brilhante na caçamba e então o pega. Uma garrafa de conhaque em miniatura, sem rótulo há muito tempo. Ela solta-a, sentindo um aperto em sua cabeça. Para se distrair, ela vira-se para examinar os canteiros de flores. Alguma das rosas teria sobrevivido a mais de meio século? Uma esperança ingênua. De qualquer forma, seu pai havia arrancado a Tricolore de Flandre, a Felicité Parmentiere e a Madame Hardy do canteiro de flores quando eles estavam escavando para a Victory. Esses tremoços e matthiolas são novos, folhas tenras e verdes ondulam sobre o adubo sem ervas daninhas. Perfeito. Felix sente um calafrio.

    – Aqui está você! – A senhora Ogle vem apressada do jardim dos fundos, uma mulher magra com seus cinquenta e poucos anos vestindo Armani ou outro desses estilistas italianos. Felix alisa seu próprio vestido de linho cor de água, que parecia tão bom na loja em Harrogate, mas que amarrotava muito no carro.

    – Belo casal de jovens que comprou a casa. Ele trabalha como Relações Públicas e ela é uma designer de interiores. Ou era. – Ela abaixa a voz. – Algo deu errado, imagino. Eles querem se isolar, ele me disse. – Os olhos dela brilham, obviamente pensando no que havia acontecido com o casal sem nome. – Nada de cachorros nem filhos. Os primeiros inquilinos ideais para a Rosebank.

    Nada de cachorros nem filhos. Felix lembra-se do silêncio nas tardes de domingo da infância quando ela ansiava por animais de estimação e irmãos para ajudar a passar o tempo. Se não tivesse David para brincar, ela teria sido uma garota solitária. E David morava a quinze minutos andando dali, quase em sua porta.

    A senhora Ogle destranca a porta da frente.

    – Deixe-me mostrar por dentro.

    – Se não for tomar seu tempo. – Felix sussurra, desejando que venha à mente alguma emergência que exija sua saída imediata.

    – Me envergonharia se você viesse até aqui sem ver sua antiga casa. E estamos muito felizes com o modo como a reforma foi feita. – A senhora Ogle dá um tapinha na parede do hall de entrada. – Este é um momento de orgulho para a população local. Tivemos que lutar contra os incorporadores, sabe.

    Felix estremece ao pensar em parques de caravanas ou vilas de aposentados.

    – E ainda estão de olho na próxima porção de terra.

    – Há mais para ser liberado?

    – Em um piscar de olhos, antes mesmo de você chegar à esquina.

    Felix se lembra.

    – É a Upper Farm. Ou era.

    – A casa da fazenda está quase completamente arruinada agora e as outras construções agrícolas não são muito chamativas, celeiros de ferro ondulado e enferrujado.

    – O velho fidalgo sempre quis reformá-las. Mas alguns eventos o surpreenderam.

    A senhora Ogle balança a cabeça e alisa um amassado imaginário na saia. – Empresas de imóveis adorariam construir um pequeno conjunto habitacional para executivos ali.

    – Que os céus nos protejam.

    A senhora Ogle concorda. – Quantos anos você tinha quando saiu de Fontwell?

    – Treze.

    Ela suspira. – Deve ter sido um baque! Você vai voltar para cá agora?

    Felix sorri para se poupar de responder. A senhora Ogle, mais sensível do que o seu exterior alegre sugere, hesita emocionada.

    Ela acena para o jardim dos fundos. – Vou verificar se o jardineiro arrumou o galpão. Me chame quando tiver terminado para eu trancar.

    O hall de entrada é camomila em vez do verde cor de ervilha de que Felix se lembra. Os ladrilhos do assoalho foram reformados… preto e branco, como um tabuleiro de xadrez. Uma imagem de Lew em pé ao lado de Isabel, tão escuro perto da brancura dela, lhe vem à mente. Ela caminha pelo corredor até os fundos da casa, vislumbrando os sofás de terracota, assoalhos esfolados e paredes cor de caramelo na sala de estar, que costumava ser a sala de jantar. Uma televisão de tela plana grande ocupa o espaço onde o piano costumava ficar, com um vaso preto ou um enfeite na prateleira acima dele. Felix não incomoda se for olhar mais de perto; mesmo em sua condição transformada, a antiga sala de jantar a faz lembrar-se das refeições silenciosas com o pai viúvo. Ela segue até o corredor.

    O velho salão, utilizado somente como sala de espera para os pacientes e as visitas de domingo, agora é um estúdio com uma mesa faia e uma cadeira de escritório cinza. Inteligente. Pilhas de papéis organizadas cobrem a mesa. Felix senta-se por um instante e se imagina escrevendo cartas ou ligando para os amigos dali, olhando fixamente para a torre da igreja em ruínas atrás dos galhos ondulantes, uma visão que quase não mudou nada em mais de meio século.

    Sem saber realmente para onde quer olhar, Felix perambula até a cozinha, com armários todos pintados de creme e com granito: leve e arejado, em vez do espaço escuro como um ventre, onde ela passou muitas noites.

    Que alívio ver que os reformadores não adentraram a porta da despensa da senhora Derby… maior e mais fria que qualquer geladeira. Quantas pessoas mais jovens não entendem as despensas. Ela abre uma das portas do armário e admira as pilhas organizadas de pratos e tigelas de porcelana branca. Muita confiança da senhora Ogle deixá-la perambular por ali sozinha.

    Os construtores tiraram a parede entre a clínica e o dispensário, criando um único cômodo grande o suficiente para servir como uma sala de jantar, com sofás pequenos e uma mesa nos fundos do jardim. Se morasse ali, Felix passaria todo o verão naquele cômodo, com suas vigas e paredes cor de creme recém-erguidas.

    Um interruptor cromado a faz lembrar-se de que a eletricidade agora havia chegado àquela casa, em vez disso, usava-se o gás para acender as lamparinas em sua época. Como seu pai teria apreciado essa luz brilhante com um simples toque em um interruptor, o luxo de examinar pacientes e fazer as anotações sem cansar os olhos. Mas a luz elétrica não oferecia o brilho quente e sibilante que garantiam a companhia dela nas noites de inverno na cozinha, enquanto as ondas do rádio proclamavam Tommy Handly. E Felix sabe que a escuridão da noite lá fora ainda será absoluta: uma escuridão que pode conter qualquer coisa.

    – Aguente firme, mulher. – Ela murmura para si mesma. – Já faz anos que Johnson morreu.

    Ela vai em direção ao que um dia foi o dispensário, agora uma lavanderia, novinha em folha e pronta para uso. Os azulejos de que ela se lembra ainda cobrem as paredes, brancas e clínicas, e essas devem ser as mesmas prateleiras que seu pai fez para armazenar garrafas e pacotes. O químico em Swanham atendia seus pacientes satisfatoriamente, mas o Dr. Valance gostava de manter alguns medicamentos essenciais em casa, especialmente quando a gasolina tornou-se escassa e era reservada para viagens de emergência. Hoje em dia, as autoridades teriam um ataque se descobrissem que um médico guardava tantas drogas em suas instalações. Ela passa a mão pela prateleira de baixo, sem ter certeza do que está procurando. Nenhuma garrafa de conhaque, não desta vez.

    Seus dedos tocam em um papel. Ela pega uma pequena folha amarelada. Ela a sopra e a poeira se espalha revelando a imagem de um cormorão, prestes a mergulhar, com a cabeça ligeiramente inclinada, e os olhos fixos na presa. Ver o pássaro é como levar um choque eléctrico, ela se lembra de Lew desenhando-o como se fosse ontem.

    Felix coloca o desenho de volta na prateleira. Pertence à Rosebank House, juntamente com a garota que um dia ela foi. Se saísse do vale, ele desintegraria. Afinal, foi o que aconteceu com ela.

    3

    Minna

    Sento-me de uma vez por horas no jardim de inverno, com os olhos fixos no borrão ao final do campo onde o céu curva-se para cima e as falésias vermelhas derramam-se nove metros até a praia. Envolvo os braços ao redor do meu corpo para me segurar. Às vezes, se tenho sorte, a paisagem me distrai de meus pensamentos. Outras vezes me imagino fugindo pela porta dos fundos, pelo prado com malva silvestre, eufrásias e papoulas, e mergulhando nas falésias. Só não sei se tenho a energia necessária.

    – É uma pena não podermos ver a praia. – Tom vem ficar do meu lado. – Costumávamos ficar em um chalé bem na praia em Donegal quando crianças. Dava para deitar na cama e olhar as ondas quebrando. Ele olha para o lado. Férias de infância, outro assunto agora tabu.

    – Costumávamos ficar em uma casa como aquela no País de Gales quando eu era criança. – Eu disse, para provar que posso tocar no assunto. Na verdade, apenas uma caminhada de cinco minutos e uma fileira de chalés nos separavam do Mar da Irlanda. – Seríamos os primeiros a remar no mar na parte da manhã.

    Lá, meu queixo saliente avisa para ele. Ele concorda, como se captasse minha ideia.

    – Poderíamos encontrar o pessoal aqui nos fins de semana. – Eu digo, imaginando as pessoas se esparramando na grama com jornais e xícaras de café, eu usando um avental e trazendo sanduíches de bacon, me ocupando com assados de domingo e crumbles de maçã. Isso me ajudaria a esquecer por algumas horas? – Michael, talvez.

    O rosto de Tom se iluminou ao ouvir o nome do irmão. – E Gareth.

    – Claro.

    – Matthew e Jill, – Tom propõe. – Ou Liz. E Kris, claro.

    Kris. Uma das minhas amigas mais antigas. Não a vi nem falei com ela desde que fugi de Londres. Ela manda e-mails e mensagens para meu celular e eu leio, prometendo para mim mesma que responderei em algum momento no futuro, sabendo que não vou.

    – E os Frobishers, com a pequena Marina. – Quero acabar com todas as ideias que Tom possa ter sobre me proteger dos filhos dos outros. – Ela adoraria isso aqui. E o jardim é bem seguro.

    Ele bate no peitoril da janela. – Por que você está fazendo isso, Minna?

    – Fazendo o quê?

    – Você sabe muito bem, fingindo que está bem?

    Agarro o tecido da cortina, uma Madras frouxamente tecida em xadrez amarelo e azul.

    – Não sabia que eu estava fazendo alguma coisa. – Percebo a frieza da minha resposta. Pare com isso agora, uma voz lá no fundo me alerta. Mas não consigo. – Mas estou bem. Melhor a cada dia.

    – Você estava tentando dizer alguma coisa na praia ontem. O que era?

    Balanço a cabeça, não porque me sinta um pouco mais esperançosa quanto a nossa relação, mas porque o momento havia passado e me faltam forças para o confronto. A penumbra pressiona meu corpo na maior parte do tempo, às vezes substituída por uma energia verde-cítrica brusca que me conduz por quilômetros ao longo da orla.

    Na noite anterior, Tom não fechou as cortinas completamente. Fiquei deitada na cama sem dormir por horas, unhando o pijama que se tornou meu consolador e observando a lua cheia, tão redonda que dava para imaginar um suco amarelo-prateado pingando dela. Minha avó costumava me contar que as luas cheias coalhavam os sonhos das pessoas. Eu não me preocupei em sair da cama para fechar as cortinas: como é que meus sonhos poderiam piorar?

    O suspiro de Tom parece encher o jardim de inverno, trazendo-me de volta para o presente.

    – Vou dar uma volta. Precisa de alguma coisa? Nenhum supermercado da internet entrega aqui e o Swanham fica a oito quilômetros de distância. É por isso que alugamos o lugar – isolamento total.

    – Fiz uma compra grande. – Passei por todos os corredores do supermercado local, examinando quase todos os itens.

    – Há um catálogo que preciso ver na biblioteca.

    – Se tiver pão fresco naquela padaria boa, pegue um pouco. Ou qualquer legume que pareça bom. – Não dá para imaginar que me animarei a comer novamente, mas cozinho para Tom com mais dedicação do que nunca. As mini tortas de peixe com seus acompanhamentos de endro e os peitos de pato fritos perfeitamente cronometrados o deixam desconfortável, posso dizer. Mas ele come tudo. Provavelmente preocupado se precipitaria outra disputa de gritos. Ou um daqueles silêncios ainda mais mortais. Porque arrumo esses problemas na cozinha? Provavelmente porque vou muito pouco para outros lugares.

    – Você está muito longe de Putney, não está? – Ele se esforça muito, dando um beliscão em meu nariz como sempre fazia quando me provocava.

    – Há dias não vou à manicure. – Meu leve esforço resultou em um sorriso. – Muito menos ao Starbucks. – Não tenho visto nada além de mar e céu. O vazio à minha volta me assusta, me faz sentir exposta. Mas escolhi este exílio e que raios me partam se eu fugir.

    Fico na janela, girando minha aliança no dedo, e o vejo sair em nosso Passat. Tom odeia carros

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