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Não há finais felizes, capítulo 3 de 3: Revelações
Não há finais felizes, capítulo 3 de 3: Revelações
Não há finais felizes, capítulo 3 de 3: Revelações
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Não há finais felizes, capítulo 3 de 3: Revelações

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About this ebook

Num tempo desconhecido, um grupo de estranhos, conhecidos, amigos, sai da sua vida tranquila ao embarcar numa jornada improvável para ajudar uma rapariga misteriosa a recuperar a sua identidade.
Depois de revelados os segredos do passado, cabe a Soliari encontrar a resposta ao maior segredo de todos: o futuro.
O último capítulo de Não há finais felizes revela o destino da protagonista, assim como as reviravoltas que levaram as personagens a conhecer-se, num final rodeado de escolhas difíceis e decisões ambíguas, encerrando a trilogia.

LanguagePortuguês
PublisherPedro Moreira
Release dateOct 24, 2016
ISBN9781370553730
Não há finais felizes, capítulo 3 de 3: Revelações
Author

Pedro Moreira

Unknown.

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    Não há finais felizes, capítulo 3 de 3 - Pedro Moreira

    Não há finais felizes, Capítulo 3 de 3: Revelações

    Pedro Manuel Ramos Moreira

    Published by Pedro Moreira at Smashwords

    Copyright 2016 Pedro Moreira

    Capítulo III – Revelações

    Dia de Treino

    ?? D. L.

    - Que grande dor de cabeça... - Sussurro, pondo a mão na têmpora direita, ainda sem saber onde estou. Só sei que me dói a cara. Olho em redor. Vejo jovens, rapazes e raparigas, dispostos em filas, vestidos com roupa de treino. Estou num salão enorme, de paredes altas e iluminação abundante, dada pelos raios de sol que passam através do telhado de vidro. Está calor aqui dentro. Ao fundo, uma porta aberta, enorme, ajuda a fazer o ar circular. Cheira a suor. Estou noutro sonho! E esta dor de cabeça... É da pancada que me derrubou e me deixou a dormir.

    - Outra vez! Posições! - Vejo toda a gente colocar um pé atrás e levantar os punhos. Imito-os. - Comecem! Esquerda, direita! Esquerda, direita! - Estão todos a esmurrar a atmosfera. Faço o mesmo que eles.

    - Vamos, mais rápido! Com genica! Um, dois, três! Um, dois, três! - Um homem, de farda militar, impunha o ritmo. Será o oficial que treina os recrutas naquele momento, suponho. Está longe, na outra ponta da sala, dirigindo-se na minha direção, circulando entre as fileiras. Ainda não o consigo ver bem. Não é o único homem fardado no local. Ao fundo, perto da porta da rua, uma meia dúzia deles socam sacos de areia, e mais dois lutam um com o outro. Esta gente leva os treinos a sério. Bem os tento acompanhar, mas sou tão desajeitada... Pouco depois de começar já acho que não aguento mais, os braços pesam-me, não estou habituada a isto. Damos murros, mais murros, mais murros, nem sei se muitos ou poucos, mas que me parecem intermináveis.

    - Vinte e três! Estás a passear os braços ou a dar murros? - Grita ele para o ar, zangando-se com alguém, quando está quase a chegar ao pé de mim. Manda-nos parar. - Sentido. - Todos se põem de pé, hirtos. Faço o mesmo, limpando o suor da testa. - Saltitar. - O homem de farda começa a saltitar, contando até três, repetidamente. Todos o imitam. Devia ser pouco mais velho que eu, teria vinte e tal ou trinta anos. Usa o cabelo negro muito curto e não tem barba. É um pouco mais alto que eu, mas é bastante mais largo, não que seja gordo, tem é um porte muito atlético. Conta até três, repetidamente, e salta, salta, salta...

    - Parou. Agachamentos. Comecem! - Continuou a contar, já sem nos acompanhar no exercício. Mais uma vez, como posso, vou fazendo o mesmo que os outros todos. Não sei quantas vezes já me agachei e levantei, mas sinto todos os músculos das pernas a doer. Acho que me doem músculos que nem sabia que tinha. Novamente, comprovo que o cansaço e as dores nos sonhos que tenho parecem tão reais como na realidade mesmo.

    - Pontapés, perna direita. Posições. Vamos! - Todos recuam a perna direita e, de acordo com a contagem, vão-na elevando e pontapeando o ar. Depois de já estar cansada de saltitar e fazer agachamentos é que ele pede isto? Vou dando pontapés, mas falho metade das contagens. Eles dão dois ou três, eu dou um. Mas, vendo o resto dos rapazes e raparigas, isto é bonito de se ver. Parece um baile onde se dança, em perfeita sintonia, ao som da canção dos números de quem os canta. Já vi uma dança assim. No mosteiro, da primeira vez que lá fomos, recordo-me de ver dezenas de crianças, de ambos os sexos, dispostas em quadrado, a treinar movimentos de batalha, de mãos nuas, desferindo socos e pontapés no ar. Moviam-se em perfeita harmonia, sincronizadas umas com as outras, tal como aqui, apesar ter a impressão que a dança das crianças parecia mais bela que esta, mais pomposa, mais artística, ao passo que aqui se nota bem a rigidez militar.

    - Vinte e três! Estás a dormir? Mais rápido! Troquem, perna esquerda. Comecem! Um! Dois! Três!

    Ele grita com alguém e todos trocam de perna. Continuo ao meu ritmo: lenta e desajeitada. Que coisa tão repetitiva. Gostava de saber para que treinam isto. Não será mais útil treinar com armas?

    - Vinte e três! Acorda! Agora as duas pernas. Um, dois! Um, dois! - E continuamos, continuamos, continuamos. Estou ofegante e banhada em suor, acho que nem fora do sonho me lembro de me sentir tão cansada. E, decididamente, tenho muito mais jeito para usar uma espada do que para andar à porrada. Sou lenta, sou fraca, sou inútil. Os outros estão todos a movimentar-se a uma só voz, bailando ao ritmo da canção dos números, mas eu danço tão mal neste baile que desafino a música e tudo.

    - Vinte e três! Estás a gozar comigo?

    - Ai! - Grito, assustada, ao ouvir um berro mesmo ao meu ouvido. Era o oficial. Ouço uns risinhos vindos dos lados, uma rapariga à minha frente vira-se também para trás e ri-se. E eu fico sem saber o que dizer.

    - Eu?

    - Não, a minha avozinha! Vês aqui mais alguma vinte e três? - Vinte e três? Então, somaram-me mais dez números? Eu costumo ser a treze... - Aqui ninguém tem tratamento especial! Treinas a sério ou eu trato de ti. - Afasta-se de mim e anuncia a todos que estava na hora de trocar golpes com um parceiro. A fila da frente vira-se para trás, todos assumem posições de combate, e começam, lentamente, a trocar golpes. Nada de sério, atacam, defendem, dão socos, pontapés, denunciados, sempre esquivados ou bloqueados.

    - Vinte e três, vai com calma, sim? - Diz-me a rapariga que ainda agora se tinha rido de mim. Deve ser impressão minha, mas acho que ela está com medo. De mim? Deve estar a gozar comigo, isso sim. Estou tão cansada que mal consigo levantar os braços. As pernas parecem-me coladas ao chão.

    - A saltitar, pá! - Grita o oficial, enquanto passa ao pé de mim. Realmente, estão todos a treinar saltitando, menos eu. E todos estão a trocar golpes há um bom bocado, menos nós. Vejo a outra rapariga engolir em seco. Não se mexe. Deve estar à espera que eu a ataque. Nem sei por onde começar. Ficamos ali, a olhar uma para a outra, com cara de parvas.

    - Eu disse para teres calma, mas também não fiques parada... - Diz-me ela, olhando para o oficial, que estava de costas para nós, quase no fim da fila, a caminhar. Ia-se virar em breve. Não seria muito bom se nos visse ainda paradas. Aproximo-me dela e atiro um murro, devagar, sem sequer tentar acertar-lhe. Recebo dois socos no queixo e um pontapé na cara em troca. Fico estatelada, de costas no chão.

    - Vinte e três! - Acho que a ouço gritar, assustada. Não devia estar à espera que eu não me desviasse. Não consigo ver nada, só vultos. Estou fora de combate. Acho que pararam de treinar. A próxima coisa que vejo é a cara do oficial, mesmo à minha frente, a dar-me palmadas na cara.

    - Estás bem? Sabes onde estás? - Levanto a cabeça. Estava toda a gente a olhar para mim. Sou mesmo ótima nisto de tentar passar despercebida...

    - No chão... - Digo, baixando a cabeça de novo. Ouço alguns risinhos.

    - Ela está bem. Pessoal, bom treino! Podem sair! Vinte e três, esfregona! Uma novidade para ti!

    Deitada, ouço os sussurros e conversas de todos, como se estivessem a falar aos meus ouvidos. Ouço dois rapazes a dizer que era a primeira vez que ficava eu a limpar o ginásio. Ouço a rapariga que me derrubou a dizer, entre risos, que me tinha atirado ao tapete, como se isso fosse uma grande proeza. Ouço alguns a dizer que têm que ir dormir cedo, que amanhã há treino outra vez, logo de manhã. Deixo-me ficar deitada durante alguns minutos. Estou muito cansada para me levantar e ainda estou tonta. Continuo a ouvir as conversas dos jovens. Falam de comida, festas e namoricos. Estou a ver que sou a antissocial do grupo, ninguém mais falou de mim.

    - Então, queres algum convite por escrito, ou ficas a dormir aí? - Levanto-me. Já todos saíram do salão, menos eu e o oficial. Que me olha, com ar de reprovação. - Então? Que se passa contigo?

    - Nada.

    - Nada? De certeza? É que esta não é a vinte e três que eu conheço. Estás farta disto, é?

    - Estou farta que se metam na minha vida. - Respondo, rispidamente.

    - Boa. Agora também já és mal-educada? Talvez a esfregona te refresque as ideias. Sabes onde está. - Diz isto e volta-me as costas, afastando-se.

    - Não sei, não. Se nunca a usei... - Bem, estou mesmo mal disposta. Acho que ando a aprender demais com o Maximus.

    - Na arrecadação ao lado do vestiário. - Diz, apontando para uma porta na lateral. - Podes começar por limpar logo essa parte. E despacha-te. Ainda quero dormir hoje.

    Sim, depois de estar a treinar não sei quanto tempo, de ficar estafada, de ficar inconsciente, só o que me faltava era ir fazer limpezas. Arrecadação ao lado do vestiário. Vejo três portas ao lado umas das outras. Vestiário masculino, vestiário feminino, e uma porta sem nada escrito. Abro-a. Uma esfregona velha, um balde de madeira e montes de tralha a que nem ligo. Começo pelo vestiário dos rapazes. Bato à porta, para ter a certeza que não está ninguém, e entro para o limpar. Que chiqueiro. O chão está a meter nojo, algum deles entrou para aqui com as botas enlameadas. Patearam tudo. Isto vai demorar...

    O chão é de azulejo. Fica escorregadio com a água, é melhor ter cuidado. Há cabides nas paredes e alguns pequenos bancos de madeira, corridos, cercando toda a sala. E um espelho, do meu lado esquerdo, completamente opaco, embaciado pela humidade e calor de trinta ou quarenta marmanjos a trocar de roupa aqui dentro depois de suarem como porcos. Esfrego o chão, volto a esfregar, uma e outra vez, até se parecer com algo habitável por humanos.

    Segunda parte: vestiário das raparigas. Entro e vejo que este, ao menos, não está tão nojento como o dos rapazes. Claro que não estar tão nojento não implica que não esteja nojento na mesma. Apenas menos nojento. Parece um reflexo num espelho do outro vestiário: tudo no mesmo sítio, mas invertido: os armários, os bancos de madeira, as pegadas no chão, o espelho à minha direita, reluzente, onde me vejo.

    Onde me vejo... A mim! Que raio? Sou eu! Sou eu mesma, não a loirinha! Aproximo-me para ver bem. Sou eu, e não pareço mais nova que agora. Isto passou-se há pouco tempo. Ora esta... Bem, é bom estar a ver um sonho comigo mesma. O monge dizia que não posso ter memórias de outra pessoa, mas eu não acredito. Agora sim, estou a rever uma memória minha! Tenho apenas uma blusa de manga curta vestida, mas tenho o número bordado no mesmo sítio onde normalmente estava a placa do uniforme: 6523. Mais três mil e tal números que a loira. Ou seja, estou a ver algo que se passou uma carrada de anos depois das outras memórias que tenho tido.

    Onde estarei? Não conheço este edifício. Mas algo me diz que estou na Academia da Luz, não é só a loira que é paladina, eu também sou. Mas sem ir à rua não posso saber com certeza, não vi janelas em lado nenhum. Vou-me despachar a esfregar isto tudo e sair daqui. Acabo o vestiário das raparigas e passo ao salão. E este sim, vai demorar.

    O oficial está à minha espera. Aproveitou para treinar mais, está aos murros com um saco de areia, lá ao fundo. Não tem a farda, está em roupa de treino, igual à minha. Vejo-lhe agora os braços, magros mas muito musculados, típicos de um corpo atlético habituado a exercício constante.

    Vou limpando, sem grandes cuidados, mesmo para me despachar. Pus os olhos no objetivo que é chegar à porta e sair daqui para ver onde estou. De cada vez que me parece que o oficial não me está a ver, salto um bocado do chão. Tenho que acabar isto e sair daqui. Esfrego, salto um bocado, esfrego, salto um bocado. Estou quase na porta.

    - Estás cheia de pressa, vinte e três. Tens alguma coisa que fazer?

    - Treino logo de manhã. Tenho que dormir bem. - Digo, aflita, achando que ele me ia parar ali. Detesto nunca me enganar.

    - Não senhora, tens treino mesmo agora, já que no treino de hoje não fizeste nada.

    Ah, bolas. Agora é que não saio daqui. Não a tempo de ver onde estou. Mas não faz mal: isto deve ser a academia, outra vez. Já lhe saco essa informação com conversa.

    - Estava a fazer o melhor que podia. - Digo, enquanto esfrego o que resta daquele chão enorme.

    - Tretas. - Diz ele, esmurrando o saco, que espanca há horas. Há horas, mesmo. Já é quase de noite... e eu limpando.

    - Pronto, terminei. Desculpe se hoje não treinei bem. Posso ir? - Digo, fazendo uma última tentativa para me safar.

    - Já te disse que não. Vem aqui ao saco.

    Largo a vassoura e, contrariada, lá vou.

    - Murros. Começa! - Põe-se atrás do saco, segurando-o. Como se eu fosse bater com tanta força que alguém o tinha que segurar para ele não se mexer. Torci logo o pulso no primeiro soco, desajeitado.

    - Mas que é isso, rapariga? Hoje estás parva?

    - Não consigo fazer melhor... - Digo, agarrada ao pulso, que ardia de dor.

    - Deixa-te de tretas, e treina como deve ser! Achas que já sabes tudo? - Eu? Não sei é nada... - Lá porque és boa, isso não te dá o direito de brincares no treino. - Então se eu sou boa, nem quero imaginar os ruins. - Hoje não sais daqui enquanto não fizeres um treino a sério. Murros! Esquerda, direita! Esquerda, direita! Vamos! Vamos!

    Sei lá quantas vezes ele repetiu as palavras esquerda e direita. Fui socando o saco. A princípio, devagar. Depois aumentei a cadência dos golpes. Mais e mais. Estava a começar a acertar-lhe com força. Bastante força, o homem que segurava o saco parecia ter que se esforçar para o manter no sítio.

    - Agora pernas. Pontapés!

    Aconteceu-me o mesmo: se nos primeiros movimentos me custava levantar a perna e equilibrar-me, aos poucos, habituei-me, comecei a sentir-me a controlar melhor os movimentos, os músculos, o equilíbrio. Começou a parecer mais natural, tão natural que, no último golpe, segurar o saco não chegou, arranquei-o das mãos do treinador.

    - Esta é a vinte e três de que me lembro. Combinação! Dois socos e um pontapé! Começa!

    Assim faço. Nada desajeitada, nada lenta, nada fraca. Parece que não sou assim tão má nisto. Ele esforçava-se bastante para manter o saco no sítio, que oscilava para um lado e para outro com cada golpe meu.

    - Chega, podes parar. Está melhor, muito melhor. Que tinhas tu hoje? - Insiste ele, achando que algo se passa comigo.

    - Tenho a cabeça noutro sítio, só isso. - Noutro tempo, melhor dizendo, onde estou a dormir.

    - Notou-se. Como é que foste ao chão daquela maneira?

    - Aconteceu...

    - Aconteceu? Normalmente és tu quem magoa os outros. - Por isso é que a miúda me disse para ir com calma. Estava efetivamente com medo que eu a aleijasse.

    - Aconteceu. Sabe como é, com uma espada na mão, até posso estar a pensar noutra coisa que me mexo naturalmente e faço tudo bem. Não sei porquê, desarmada, ou estou concentrada ou dou barraca. - Rica desculpa que inventei agora mesmo...

    - Pois, tu consegues ser melhor esgrimista que lutadora. - E ele acreditou nesta desculpa? - No entanto, és uma das melhores lutadoras que treinei até hoje. Só que, quando lutas desarmada, tens que pensar muito mais, ver os movimentos do oponente, ler as suas intenções, não te saem os movimentos com a mesma naturalidade do que quando esgrimes. E isso resolve-se sabes como? Treinando ainda mais. - E, dizendo isto, levanta os punhos e põe-se em guarda, olhando-me, começando a saltitar.

    - Então, miúda… Queres dançar?

    - Não. - Respondo, decidida. Acho que a pergunta foi retórica, pois ataca-me de qualquer das maneiras. Devagar, tal como os outros estavam treinando há pouco. Vou bloqueando alguns ataques, desviando-me de outros, contra-atacando quando posso.

    - Não te esqueças que desviares-te é sempre melhor que bloquear. Quando bloqueias podes ficar a jeito de ser agarrada ou, se o oponente for muito forte, pode-te magoar na mesma.

    - Só não entendo para que treinamos isto. Ninguém vai para uma batalha ao murro. Não bastava treinar as armas?

    - E se perdes a arma, que fazes? Gritas aos inimigos e esperas que fujam? Para mais, estamos a treinar a força física, a coordenação, a precisão, a capacidade de análise em combate, a resistência, tudo. - Cada vez atacávamos e defendíamos mais rápido, com golpes mais fortes, mais certeiros, que requeriam mais atenção para evitar. Apesar de, aparentemente, estarmos a treinar de igual para igual, sinto-me inferior, sinto que estou a esforçar-me muito para acompanhar alguém que está a abrandar para que eu consiga estar ao seu nível.

    - Mas eu sou fraca. Não consigo enfrentar um homem. - Digo, lembrando-me do presente, onde fui pouco mais que um inseto a incomodar o nosso inimigo.

    - Mas és muito rápida. Tens mais agilidade que qualquer homem. Consegues evitar os golpes. Não precisas de golpear com muita força, tens é que saber onde acertar. Olhos, nariz, garganta, rins, genitais...

    - Isso não é fazer jogo sujo?

    - Numa situação de vida ou morte não há jogo sujo nem limpo, há matar ou ser morto.

    - Acha mesmo que consigo matar alguém à pancada?

    - Talvez não, mas consegues inutilizar qualquer um, seja pequeno e fraco ou grande e forte.

    - Sim, mas o grande e forte é mais difícil.

    - Só na tua cabeça. Até pode ser mais fácil, se for mais lento. E um nariz partido ou um murro nos genitais doem o mesmo a toda a gente. Se deixares um inimigo no chão a contorcer-se com dores, não te pode fazer nada, por mais forte que seja. Passamos aos agarramentos e projeções?

    Parámos os golpes. De mãos abertas, tentava apenas agarrar-me e derrubar-me, ora apontando aos braços, ora às pernas, ora ao tronco, ora ao pescoço... Vou-me desviando como posso, mas não sei como contra-atacar.

    - Ataca também. De cada vez que me aproximo de ti tens mais uma oportunidade de me derrubar.

    - Como? - Pergunto eu, sem saber que fazer.

    - Olha, como? Parece que é a primeira vez que fazes isto! - Que me lembre, é... - Tens que ser mais rápida que eu. Agarra-me os braços ou as pernas, torce-os até me fazer doer as articulações... Como isto! - Agarrou-me a perna e esticou-ma, tentando dobrar-me o joelho ao contrário. Que dor! Paralisou-me completamente.

    - Ai! Ai! Ai! - Grito, batendo repetidamente com a palma da mão na mão dele, para que entendesse que me estava a magoar.

    - Não te vou partir a perna, tem calma. Continua.

    E continuámos. Durante alguns instantes, a perna doeu-me bastante. Imobilizou-se mais meia dúzia de vezes. Ou me torcia os pulsos, ou os tornozelos, ou as pernas, ou o pescoço... Também me projetou três ou quatro vezes, derrubando-me mais rápido do que o que eu conseguia ver: ou fingia que me ia agarrar com os braços e me rasteirava, ou fazia ao contrário, ou agarrava-me a roupa e me mandava ao chão. Observei-o. Vi como ele fazia. E comecei a tentar imitá-lo. Não era fácil.

    - Tens que ser mais rápida que eu. Tu és mais rápida que qualquer homem ou mulher. Esse é o teu ponto forte. Aproveita-o. Derruba-me!

    Não consigo. Ele apanha-me facilmente, mas eu não consigo agarrá-lo bem. Não sei se me falta força, se me falta velocidade, se me falta jeito, mas não estou a conseguir.

    - Não uses só os olhos. Sente tudo. Prevê os meus movimentos, usa a cabeça!

    Não usar só os olhos... Pode ser uma boa ideia. Já o Mestre Lei me disse que tenho os sentidos muito apurados. Mas em que é que isso me pode ajudar agora? Posso ouvir a minha respiração ofegante. E a dele. E as variações na respiração dele de cada vez que vai investir. Sinto as gotas de suor a correrem-me na pele, sinto o vento fresco de cada golpe que evito, sinto o bafo do homem de cada vez que me ataca. Cheiro o suor, meu e dele. Tenho a boca seca e a língua áspera, salgada também ela das gotículas de suor que ultrapassaram os meus lábios.

    - Vá, agora a sério! Último esforço!

    E era mesmo a sério. Estou exausta, estamos a fazer exercício intenso há horas. E ele vem com tudo para cima de mim. Já não eram só agarramentos, eram também murros e pontapés.

    - Desvia-te! Não bloqueies a não ser que não tenhas outra hipótese! A melhor maneira de encaixar um golpe é não estar lá quando ele chega!

    Acho que é aqui que, finalmente, começo a compreender algo. Os meus sentidos apurados são mesmo muito, muito apurados, e têm que servir para mais qualquer

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