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A Arca Marítima da Doutora Margaret
A Arca Marítima da Doutora Margaret
A Arca Marítima da Doutora Margaret
Ebook669 pages9 hours

A Arca Marítima da Doutora Margaret

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A Arca Marítima da Doutora Margaret, é o Tomo I de uma série de romances históricos que se passam durante a luta pela independência da Índia – Azadi – da coroa britânica.  A trama dos livros inclui intriga internacional, conflito e uma história de amor comovente entre personagens interessantes daquela época.

 Em 1965 uma arca para viagens marítimas, que se acredita ser de uma médica americana, Margaret, é encontrada no almoxarifado de um hospital em  Délhi. Outro medico americano, Sharif, cujas origens são de Délhi e está contratado por esse hospital, é encarregado com a tarefa de encontrar os descendentes dessa mulher misteriosa e devolver sua arca. Sharif encontra os descendentes de Margaret em Grimsby, Ontário, Canadá. Seus diários, e outros objetos—tal como a coroa do Reinado de Jhansi—são encontrados no baú.

 A Margaret, nascida em Nova Jersey numa família pastoral Presbiteriana Escocesa, vence obstáculos enormes e consegue, em 1850, alcançar o desejo de seu coração e se forma como uma das primeiras médicas da América do Norte. Ela casa com seu primo canadense, Robert, e viaja com ele em 1854 para servir na Guerra da Crimeia. Na Crimeia, enfrentam não só as durezas da batalha, mas também outros conflitos.

 Dos eventos que levam, e se seguem, à infame Carga da Cavalaria Ligeira, a Margaret encontra um oficial russo, o Conde Nicholai. O final inesperado do Tomo I deixa a Margaret com um dilema, se deve se vingar ou continuar em sua viagem até a Índia. No final ela acredita ter tomado a decisão correta.

LanguagePortuguês
PublisherBadPress
Release dateJan 26, 2017
ISBN9781507170779
A Arca Marítima da Doutora Margaret

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    Book preview

    A Arca Marítima da Doutora Margaret - Waheed Rabbani

    A Arca Marítima da Doutora Margaret

    Waheed Rabbani

    ––––––––

    Traduzido por Raul Campos 

    A Arca Marítima da Doutora Margaret

    Escrito por Waheed Rabbani

    Copyright © 2017 Waheed Rabbani

    Todos os direitos reservados

    Distribuído por Babelcube, Inc.

    www.babelcube.com

    Traduzido por Raul Campos

    Design da capa © 2017 Stonepatch Design

    Babelcube Books e Babelcube são marcas comerciais da Babelcube Inc.

    DEDICATÓRIA

    Para minha mulher, Alexandra, pois sem seu amor, ajuda e apoio continuo esse trabalho poderia não ter sido possível.

    ––––––––

    Também

    Na afetuosa memória de minha querida mãe e querido pai, que não viveram até ver esse livro ser publicado.

    SUMÁRIO

    SUMÁRIO

    AGRADECIMENTOS

    Crítica dos Leitores Beta

    Prólogo

    Capítulo Um

    Uma Descoberta Fascinante

    Capítulo Dois

    Uma Maleta Médica de Brinquedo

    Capítulo Três

    A Arca Marítima

    Capítulo Quatro

    O Jantar

    Capítulo Cinco

    O Diário de Sharif Khan Bahadur – Primeira Parte

    Capítulo Seis

    À Procura dos Descendentes da Margaret

    Capítulo Sete

    Fuga de Niágara

    Capítulo Oito

    Na Rota Clandestina para o Canadá

    Capítulo Nove

    A Batalha no Tiacho de Quarenta Milhas

    (Encenção)

    Capítulo Dez

    Seis Anos Depois

    Capítulo Onze

    O Retorno a Nova Jersey

    Capítulo Doze

    Encontro na Taberna da Casa do Lago

    Capítulo Treza

    Uma Faculdade de Medicina para Mulheres!

    Capítulo Quatorze

    A Visita do Robert

    Capítulo Quinze

    Um Visitante de Langley

    Capítulo Dezeseis

    O Coronel Consegue Seu Desejo

    Capítulo Dezessete

    A Travessia do Atlântico e a Subida pelo Estuário do Tamisa Até Londres

    Capítulo Dezoito

    Diversão Nos Jardins De Vauxhall, Para a Guerra Na Crimeia

    e Por Fim Uma Colocação Como Médica

    Capítulo Dezenove

    A Carga da Brigada Ligeira

    Capítulo Vinte

    A Sequela da Carga

    Capítulo Vonte e Um

    A Vingança É Minha

    Epílogo

    Glossário

    Sobre o Autor

    AGRADECIMENTOS

    ––––––––

    Tenho especial gratidão a todos meus palestrantes no Programa de Redação Criativa da McMaster University, que me ensinaram tudo sobre redação de ficção. Agradeço seu constante incentive e suas sugestões na evolução desse romance. Estou endividado com meus parceiros nos grupos de redação: aqueles nas turmas da McMaster ; o Grupo HisFicCritique Group (moderado pela Anne Whitfield); Grupo de Críticos-Autores-Ficção-Históricos (moderado pela Mirella Patzer); e a Sucursal Virtual CAA (moderado pela Anne Osborne). Meus agradecimentos por todas suas maravilhosas críticas que deram uma ajuda inestimável para o desenvolvimento desse romance.

    Agradeço também aos Leitores Beta desse romance, por suas sugestões perspicazes e comentários brilhantes, mencionados no início desse livro. Manifesto também minha apreciação sincera por meus editores habilidosos: Ranjan Chaudhuri, Victoria Grossack, e Victoria Bell não por sua excelente edição, mas também por suas muitas sugestões proveitosas.

    Descobri que as pilhas de volumes das coleções históricas da Biblioteca da McMaster University são uma fonte valiosa de material de referência e sou agradecido pela atenção pontual das bibliotecárias as minhas muitas solicitações de pedidos de retirada interbibliotecários. Sou agradecido ao Senhor James Capodagli, Chefe da Head, Health Information Center Library - SUNY Upstate Medical University, pela informação sobre a Geneva Medical College durante seu período inicial, 1853 – 1857. Agradeço também à Senhorita Lisa Grimm, Arquivista Assistente da Drexel University College of Medicine, pela informação muito útil e pela ajuda em me orientar pelos seus arquivos digitais sobre a Female Medical College à época de sua fundação em 1850.

    Embora esse seja um trabalho de ficção, as seguintes fontes, entre muitas outras, foram muito valiosas durante a fase de pesquisa, na criação do fundo histórico desse romance.

    Kaye, Sir John William. A History of the Sepoy War in India, 1857-1858. W. H. Allen, London, 1880.

    Walsh, John Johnston. A memorial of the Futtehgurh mission and her martyred missionaries: with some remarks on the mutiny in India.

    J. Nesbit and Co., London, 1859

    Sen, Surendra Nath. Eighteen Fifty-Seven. Ministry of Information and Broadcasting, Government of India, 1957.

    Kinglake, A. W. The Invasion of the Crimea. William Blackwood & Sons, Edinburgh and London, 1877.

    Duberly, Frances. Journal Kept During the Russian War. Longman, Brown, Green and Longmans, London, 1856.

    As traduções do Urdu para o inglês dos versos de Mirza Ghalib (no começo do Prólogo e do Epílogo) e ghazal (na página 51) foram feitos por mim mesmo.

    Quanto à citação dos primeiros versos da cantiga Let My People Go, (na página 155) entende-se que tenham sido cantados por escravos negros no final do século XVIII. Estavam na Internet, e entende-se que é uma fonte sem vínculo autoral.

    Tenho muito que agradecer pelo amor, ajuda e apoio recebido de minha mulher, Alexandra, que permitiram transformar minhas ideias nesse romance.

    Críticas da Liga dos Leitores Beta ...

    ––––––––

    Um romance muito intrigante e marcante, cheio de situações misteriosas e suspense.  A trama se desdobra combinando fatos históricos interessantes ao presente com uma imaginação vívida.  As personagens que cercam a Arca Marítima da Doutora Margaret são reais e nos são apresentadas de uma forma fascinante, nos levando para trás na história de uma forma emocionante.  Recomendo esse livro como sendo uma leitura prazerosa ...capturou meu interesse até o final ...

    —Micheline Beniusis, Professora de Inglês

    ––––––––

    A história leva o leitor numa viagem de aventuras com uma missão convincente de descobrir a vida passada em diferentes continentes, enfrentando guerra, alegrias e tristezas.    Descreve vidas passadas no século XIX, e obriga o leitor a entender nossas diversas sociedades e culturas à luz da história e mudança de épocas.  A história cativante me manteve acordado muitas vezes até depois da meia noite até seu final ...

    —Al Beniusis,  Contador

    ––––––––

    Posso imaginar essa história num filme de ‘Teatro de Obras Primas’ e—só pensar nas roupas e nos dramas já é emocionante. Você demarca cada lado da fronteira em locais pitorescos como Grimsby, Niágara-no-Lago e Nova Jersey. Todos veem os cenários persas e indianos hoje sempre no noticiário. A maior parte do vestuário já está pronta...

    —Diana Stevens-Guille, Diretora de Escola

    ––––––––

    Apreciei a história básica. O enredo foi desenvolvido de um jeito que queria saber mais sobre a Margaret e como sua vida está ligada à história contemporânea...

    —Dra. Janette MacDonald, Mount Sinai Hospital, Toronto

    ––––––––

    "O enredo foi muito agradável e intrigante e me manteve sempre querendo ler mais—segurou-me logo no início ... apreciei muito as alternâncias entre passado e presente e as descrições históricas e de período que oferece ..."

    —Dr. Josie Marciello, Toronto

    ––––––––

    Gosto da ideia do sonho logo no início do romance ... A trama não é só cativante, há uma aura de mistério—e o conflito entre a Margaret e sua família gera tensão por todos os lados. O ambiente que você escolheu é a bonita década de 1960, num contraste nítido com a década de 1850. Você as descreveu de uma forma muito bonita ... a narração na primeira pessoa é bastante eficaz...

    —Sheila Abedin, Especialista em Recursos Humanos

    ––––––––

    A primeira pessoa, primeiro o Doutor Wallidad, depois o avô e a Margaret, é uma abordagem eficaz ... a trama é boa, entrelaçando dramas passados e presentes. Você incluiu tantos detalhes da vida da Margaret que gerou muito interesse. Segurou minha atenção o tempo todo ... acho que o elemento histórico do enredo aguça seu interesse. Os detalhes da Estrada de ferro humana clandestina e da Guerra da Crimeia são ótimos. Acrescentar a Florence Nightingale também chama a atenção. Os detalhes prometidos sobre a rebelião também me mantiveram interessado. Incluiu muito detalhe valioso ...

    —Margaret Smith, Assessora Sênior, Avaliação Socioeconômica

    ––––––––

    O enredo principal? Sim, funciona ... Mas preciso confessar que prefiro a história da Margaret. Um pouco porque é histórica e um pouco por causa de sua personalidade ... Gosto de suas descrições dos ambientes. São sugestivos. Bem feito. Gosto também do fato que o Dr. Walli observa os jardins em todos os lugares que visita. É puma faceta memorável de sua personalidade ...

    —Guylaine Spencer, Hamilton, Ontário

    ––––––––

    Dois enredos? Gosto. Acrescenta riqueza e profundidade à história ... Foi um início muito eficaz. Com certeza dá um incentive para mergulhar na parte introdutória da trama. Também gostei de como voltamos sempre àquele sonha, da mulher a cavalo com cabelos no vento. Ajudou a amarrar a história do Walli e cria a relação dele com a Margaret. Foi uma leitura prazerosa? Em geral me leva um mês para ler um romance. O seu em duas semanas e meia. Você decide.

    —Stephanie Hill, Estilista.

    "A abordagem do [Waheeds] para descrever o Levante Indiano por uma perspective indiana fascina o leitor ocidental e deve ser bem recebida..."

    —Ian Walker, autor de LOCA, e a Virtude da Insensatez

    ––––––––

    As famílias Wallace, Barinowsky e Sharif

    Prólogo

    [Ah ko chahie ek umr asar hone tak]

    Um suspiro leva uma eternidade para acometer,

    [Kawn jeta hai teri zulf ke sur hone tak?]

    Quem vive o suficiente para todos seus charmes prevalecerem?

    —Mirza Ghalib, Délhi, 1797 - 1869

    ––––––––

    A LUA CHEIA parecia estar pendurada num céu limpo, como uma lanterna presa por uma força invisível. Galopávamos por uma planície sem árvores que descia até as águas cintilantes de um rio muito largo. Deve ser o poderoso Ganges, pensei, ao ver inúmeras piras acesas em todas as ghats. O rio continuava sem fim, parecendo desaguar nos céus pontilhados de estrelas levando as cinzas dos que já se foram. Embora houvesse olhado para as estrelas cintilantes muitas vezes antes, havia alguma coisa estranha com elas naquela noite, mas não conseguia dizer exatamente o que. Poderia ser seu padrão estranho que haviam formado, ou seu brilho descomunal? No ar quente da noite, o suor escorria pelo meu rosto e corpo, encharcando minha túnica leve de algodão e meu culote hípico.

    A cavaleira a minha frente, vestida só com uma capa branca, não parava de gesticular para que eu não ficasse para trás. Não fossem os fatos que montava usando uma sela de amazonas, uma sela feminina tipo sião,e tinha longos cabelos louros que refletiam o luar, pensaria se tratar de um homem. Sua técnica de equitação era perfeita; no brilho da lua, ela conduzia seu cavalo saltando valas e contornando pedregulhos sem perder uma passada..

    Montanhas altas despontavam adiante por cima das longas sombras de arvores frondosas que se aglomeravam em vários grupos.. Fora o barulho seco das patas dos cavalos galopando, o inconfundível e singular estrondo de canhões, embora distante, reverberava como trovões vindos do lado distante das montanhas.. Inclinei-me para frente e conferi que meu mosquete estava no coldre da sela, pois temia que a nossa jovem Godiva estava com certeza se atirando de cabeça para me levar ao campo de batalha. Enquanto eu sabia que uma rebelião havia se espalhado por todo o território, não conseguia entender se lutaríamos no lado dos revolucionários indianos ou dos britânicos.

    Sem aviso, a silueta de outra pessoa montada num corcel branco, apareceu no cume de um pequeno morro, se movendo vigorosamente na direção das alturas. Havia alguma coisa estranha, quase assustadora, no cavalo e no cavaleiro.. O cavaleiro estava caído na sela, com sua cabeça na crina do cavaloe seus braços abraçando seu pescoço. O animal estava disparado, guiado quase que por instinto a um destino específico..

    Corre. Temos que salvar a Rani, a personagem loura a minha frente gritou para mim, enquanto apontava para o cavaleiro machucado.

    A Rani? Foi só quando chegamos mais perto que vi as vestimentas coloridas da cavaleira, resplandecente como uma rainha indiana. Ela parecia estar machucada, já quase sem vida. Seu longo cabelo negro, se esticava pelo pescoço pálido do cavalo, que parecia estar manchado de sangue. Continuei me esforçando para acompanhar, o que agora sabia serem, duas mulheres cavalgando numa ladeira cada vez mais íngreme e dotada com mais vegetação..

    Por quê? Porque temos que ajudá-la? gritei em resposta.

    Olha para as estrelas.

    Olhei para o céu outra vez, e foi nesse momento que percebi as estranhas formações dos planetas e das estrelas. Os planetas mais distantes, Urano, Netuno, Plutão e outros, haviam se aglomerado em torno da lua formando um Yod (uma configuração importante em forma de triangulo) que também é conhecida como Mão de Deus ou Dedo do Destino. Já havia ouvido falar que essa configuração de planetas unidos em sextís e quincúncios era muito rara. Essas configurações ocorriam só uma vez por milênio, mais ou menos,, e se acreditava que tinham influências dinâmicas marcantes nas pessoas sobre quem brilhavam. Essas pessoas se transformavam em pessoas escolhidas, que passariam a fazer milagres.

    Comecei a imaginar que deveríamos estar sendo seguidos.. Fiquei em pé nos estribos e olhei para trás. Com certeza, a certa distância no vale, um destacamento montado já era visível. Por seus capacetes brilhantes e sua formação rígida, eram sem dúvida da cavalaria britânica.

    Continuamos cavalgando, seguindo o cavalo da Rani. Enfim, parecia que nosso destino misterioso apareceu diante de nós. Numa encosta remota da montanha, num pequeno vale,, quase que escondidas pelos topos dos morros e árvores, o luar brilhava numas estruturas parecidas com pirâmides de arenito, devendo compor um templo.. Parecia um lugar bastante isolado para se esconder do inimigo

    A loura a minha frente estava se distanciando outra vez. Ouvi-a gritar mais uma vez, ─Vem logo, antes que seja tarde demais. A Rani de Jhansi é a última esperança da Índia para ser livre.─

    ─Como vamos conseguir salvá-la? Só somos duas. O exército britânico inteiro está atrás daquela montanha,─ respondi gritando.

    ─A Kali vai nos ajudar. Você não vê a deusa voando por cima do pico da montanha?─

    Concentrei-me em olhar para o pico. Por um bom tempo não vi nada que não fosse o topo das árvores. Num piscar dos olhos, quase que por mágica, ela apareceu no horizonte. Era a dama de quatro braços, montada num tigre. Empunhava uma espada numa mão, e na outra um objeto o que parecia ser um tridente, uma cabeça decapitada, e uma xícara repleta de sangue. Trajava uma saia feita de braços humanos e uma coroa de crânios humanos brancos que brilhavam no luar.. Ela olhou para nós com seus olhos vermelho-fogo que ardiam dentro do seu rosto azul escuro. Era a deusa mais sagrada. Kali.

    Meu corcel cansado espumava pela boca, mas mesmo assim usei as esporas com força numa tentativa de conseguir uma última gota de energia dele, e me aproximar daquelas duas mulheres exóticas e . O animal relinchou estridentemente e se ajoelhou. Fui jogado da sela e caí no terreno empoeirado, meus ouvidos zumbindo.

    ******

    Concluí enfim que o zumbido em meus ouvidos era do meu despertador ao lado de minha cama. Havia despertado outra vez, os lençóis encharcados com suor. Era outro daqueles pesadelos recorrentes que me atormentavam desde que cheguei a Déhli vindo dos Estados Unidos. A misteriosa loura parecida com Godiva me encontrava nos meus sonhos, em diferentes lugares..

    O despertador indicava seis horas, o que sugeria ser a hora para me levantar, me barbear, tomar um chuveiro, e me preparar para mais um dia cheio no hospital. Ou assim pensava.

    Capítulo Um

    Uma Descoberta Fascinante

    ––––––––

    Maio de1965: Délhi, Índia

    O DIA CHEIO ocupava minha mente quando desliguei o motor de meu Fusquinha no pátio de estacionamento Exclusivo para Médicos do Hospital Lady Dufferin. Mas, não imaginava que começaria o capítulo mais intrigante de minha vida no subcontinente indiano..

    Apesar de já ter voltado para a Índia há quase um ano,, como um médico visitante americano do Hospital da Universidade de Johns Hopkins , não tinha conseguido me reclimatizar ao calor intenso daquela parte do mundo. Quando saí do carro, o ar úmido me recebeu, indicando o início de um longo e quente verão em Déhli. Ao passar da garage de estacionamento de concreto para a luz clara do sol, atravessei o jardim cênico do hospital, devolvendo os namestês e salamaleques dos chaukidars e dos maalis. Fontes distribuíam fios de água brilhante e mangueiras de sistemas de regar faziam chover nas plantas, tentando compensar a promessa furada da natureza de chuva. Canteiros vistosos de oleandros, hibiscos e rosas, repletos de flores vermelhas, amarelas e roxas, ladeavam as calçadas. Dançavam na brisa,como de alegria, se esforçando para bebericar alguns pingos da água que passava.

    O prédio imponente de dois andares em arenito vermelho da Lady Dufferin , construído no estilo Mogol extravagante, mais parecia um palácio de nababo do que um hospital. Meu relógio de pulso marcava oito horas. Sabendo que o saguão principal estaria cheio de pacientes e visitas, andei aceleradamente pelas calçadas cercadas por gramados bem cuidados e entrei no hospital por uma porta dos fundos. Passei por um labirinto de corredores cheirando a antissépticos que me levaram a meu consultório..

    No corredor central vi a Premila, a enfermeira da Unidade de Cirurgia, correndo em minha direção, acenando com um pedaço de papel.

    ─Doutor Sharif.─

    Esperei, e ela me deu um bilhete, com falta de ar de sua corrida para me alcançar. Antes de se afastar, sorriu e fez um namestê, juntando as palmas de suas mãos e abaixando um pouco a cabeça. Agradeci e devolvi o cumprimento.

    O bilhete era do meu chefe, Doutor Rao. Dizia, na sua caligrafia rabiscada: Wallidad, por favor me procure, logo que chegar pela manha.

    Do meu consultório, liguei para a enfermeira-chefe e pedi para segurar um pouco meus compromissos. Pendurei meu paletó do terno bege no armário e vesti um jaleco branco. Diante do espelho para pentear meus cabelos negros ondulados, que na umidade acabavam caindo por cima da minha testa,não consegui deixar de notar como o verão indiano havia bronzeado minha face num tom de cobre. Essa transformação havia me feito parecer um filho nativo da terra da qual havia partido como adolescente, há quase dezoito anos.. Caminhando a passos largos até o outro lado da ala de cirurgia, meus pensamentos pessoais se concentravam no meu retorno iminente para casa em .

    Ao abrir a porta de mogno lustrado na qual numa chapa de bronze reluzente estava gravado Doutor S. RAO - Chefe de Cirurgia, comecei a imaginar o que poderia ser tão importante para o Doutor querer me ver com tanta pressa. Via de regra, não me encontrava com ele antes de terminar minhas tarefas matinais.

    A Enfermeira Premila atravessou a sala de espera até seu consultório para anunciar minha chegada. O Doutor Rao veio ele mesmo até a porta, trajando uma camisa branca, calças escuras e uma gravata vermelha fina.

    Cumprimentou-me em voz alta. ─Doutor Walli, como está?─

    Sorrindo, balancei a cabeça e perguntei sobre sua saúde. Ele era um homem alto, magro com uma tez marrom escura típica das pessoas das províncias da Índia central. Apertou minha mão, colocou sua outra mão no meu ombro e me levou para dentro do seu consultório. Acenou para me sentar na alcova das visitas perto das janelas salientes que tinham uma visão pitoresca dos jardins, enquanto ele foi a sua mesa e mexeu em alguns papéis parecendo estar procurando um em particular..

    ─Que está acontecendo, Doutor Rao?─ perguntei, me sentando num sofá de couro bege. Vi um livro na mesa de centro com o título, Estória de Lara, gravada em letras douradas parecendo cirílicas na lombada entre algumas revistas. O título me intrigou. Um romance russo? Mas, como sabia de sua apreciação pela literatura, não dei maior importância. Ele se sentou no sofá oposto e deve ter notado minha impaciência pelo meu não obrigado a sua oferta de café. Chegou logo ao motivo de ter me chamado.

    É uma questão de devolver uma arca de navio a sua proprietária.

    Considero-me uma pessoa que não se surpreende com pouco, na maior parte dos casos, mas essa menção aparente da bagagem de alguém me deixou completamente confuso. ─Uma arca marítima, de navio, você disse?─afinal perguntei sem ter certeza que havia ouvido direito..

    ─Sim de fato, uma velha arca marítima. Uma arca grande, que pertenceu a uma médica Doutor,─ disse e, olhando para o bilhete na sua mão, continuou, ─chamada Margaret Wallace. Entendemos que ela foi uma das primeiras profissionais de medicina a trabalhar no Santo Stanley. Ouvi falar que haviam pedido a Florence Nightingale para se juntar a eles, mas ela estava ocupada na Crimeia então, a Doutora Margaret foi enviada em seu lugar. É provável que não fosse britânica, porque a etiqueta na arca contém o endereço da Missão Americana em Fatehgarh.─ Ele deu uma pausa, com certeza para ver se eu estava ficando impaciente com a história. Quando não mostrei nenhuma emoção, ele concluiu e perguntou, ─Você teria como localizar sua família? Quero dizer quando voltar para a América, e entregar a arca a ela?─

    ─Sim, acredito que sim. Mas porque está sendo pedido que eu leve essa arca para sua família?─ perguntei respeitosamente, abafando minha vontade de perguntar de forma mais direta o que isso tudo tinha a haver comigo.

    ─Sabe, Doutor Sharif, essa não é uma arca qualquer. Está no nosso depósito no hospital há bastante tempo, e antes disso estava em algum outro hospital, naquele em Jhansi com certeza, também por muito tempo.─

    ─Ela trabalhou no Santo Stanley! Isso não teria sido no meio do século XIX?─ A elevação de minha voz traiu minha descrença. Todas as possibilidades vagavam na minha mente a respeito da dona e dos bens pessoais que a arca poderia conter. Uma médica ? O que poderia ter motivado ela a entrar numa profissão tão guardada teimosamente por homens naquela época, e ainda ter vindo até a Índia? Ainda mais, sua menção a Jhansi me lembrou de alguma coisa mas que não conseguia precisar naquele momento.

    Ouvi o Doutor Rao dizer, ─Pois é, o zelador acredita que esteja aqui pelo menos desde 1857. Como ninguém veio buscar, o baú ficou lá trancado, esquecido, , no almoxarifado.─

    Essa informação adicional me surpreendeu. Deixei escapar, ─1857! Então ele deve ter estado aqui à época do Grande Mo ... quero dizer ... Rebelião.─ Corrigi-me rapidamente por ter dito Motim, pois sabia que a maior parte dos patriotas indianos era muito sensível quanto ao uso dessa palavra e preferiam chamar aquele evento histórico de Primeira Guerra de Independência da Índia, embora na prática, a maioria dos historiadores o chama de Rebelião. Implorei, ─Outra vez, Doutor Rao, por que sou eu que tenho que levar essa arca de volta à América?─

    ─Nosso Conselho de Administração, em cuja reunião participei ontem, pensa que você é a pessoa mais apropriada para devolver a arca para seus proprietários descendentes. Achamos que, sendo originalmente dessa parte do mundo, e tendo sido, digamos., ‘naturalizado’ na América,─ sorriu, ─você pode ser confiado com essa tarefa importante. E, ouso dizer, uma missão bastante sensível.─

    ─Então, muito obrigado. Fico contente em saber que os Conselheiros tem tanta confiança em mim. Não obstante, não estou prometendo nada. Tenho que pensar no assunto.─

    ─Sim, claro. Tome seu tempo. Mas, precisamos saber logo.─ O Doutor Rao cruzou suas pernas. ─Aliás, Walli, não havia uma parte de sua família imediata que foi infelizmente envolvida na Rebelião de 1857 ?─

    ─Pois é, de acordo com algumas das histórias que me foram contadas por minha avó. Meu avô serviu para o ultimo Rei Mogol em Déhli, e depois para a cavalaria da Rani de Jhansi. E você, Doutor Rao? Sua família também nãose envolveu no conflito?─   

    ─É, infelizmente,─ ele respondeu, e em seguida perguntou sem pausar, como se quisesse mudar de assunto, ─Como está sua avó?─

    ─Ela já passou dos oitenta, mas está se mantendo. Obrigado.─ Sabia que a família do Doutor Rio vinha no passado de Jhansi e, como meu avô havia estado lá no período 1857–1858, estava querendo saber um pouco mais sobre aquele reino. Nesse momento que me ocorreu. Que coincidência, pensei, a Rainha fez parte do meu sonho na noite antes. Mas, em outras oportunidades anteriores, sempre que perguntei ao Doutor Rao sobre o passado de sua família, ele foi evasivo. Senti que ele não queria falar nem sobre sua família nem sobre Jhansi. Então, não insisti sobre o assunto..

    ─Aliás, Walli, por favor mantenha essa informação crítica só com você, pelo menos até termos entregue o baú na sua casa ou de outra pessoa na América., e localizado os descendentes da proprietária.─

    ─Porque tanto segredo, Doutor? Tem alguém querendo a arca marítima?─

    ─Não. Só uma precaução.─ Ele sorriu. Notei que ele juntou a ponta de seus dedos de um jeito que sempre juntava para mostrar que não queria entrar em detalhes. ─Para manter os curiosos e caçadores de recompense longe. Gostei de saber que está considerando nos ajudar. Vamos falar mais sobre isso no almoço, podemos?─

    Levantei-me do sofá, acenei com a cabeça e saí em direção do meu consultório..

    Passei o resto da manha cumprindo minha agenda cheia como o Especialista em Gastroenterologia do hospital para problemas de vesícula e outros órgãos internos.. Estava também aprendendo mais sobre doenças tropicais como cólera e malária. Portanto, não tive tempo para refletir sobre a estranha, mas, aparentemente, importante tarefa que o médico chefe me havia pedido para executar.. A fila normal de pacientes encheu minha antessala. Atendê-la me ocupou a manha inteira.

    Encontrei o Doutor Rao outra vez no refeitório para almoçarmos. Sentamos numa mesa de canto. Um garçom usando um turbante veio tomar nossos pedidos. O Doutor Rao, um vegetariano, escolheu pratos sem carne: arroz, legumes ao molho de carril e masala-dosa. Pedi alguns pedaços do meu predileto frango tandoori , lentilha ao carril e pão naan. O garçom nos trouxe nosso pedido de lassi para beber. Sorvemos a bebida refrescante, servida em copos grandes de cobre com padrões complexos gravados em suas bordas. Depois de jogarmos um pouco de conversa for a sobre nossas famílias e assuntos gerais, discutimos o curioso assunto da descoberta fascinante: a arca marítima. O Doutor Rao esclareceu minha curiosidade com mais alguns detalhes. Conversamos bastante, até que nossos pedidos foram servidos e, logo depois, outros colegas se juntaram a nós na mesa. Fomos levados a conversar com eles e começamos a comer..

    Depois do almoço, saí correndo para executar uma complexa colecistectomia de vesícula, marcada para a parte da tarde. Naquela época, estávamos melhorando a técnica laparoscópica, usada pela primeira vez em seres humano por um cirurgião sueco no início do século XX. Consistia em minimizar as incisões no abdômen dos pacientes. Comparado com o procedimento cirúrgico usual, os casos eram beneficiados em muito por esse novo processo, pois em geral o paciente podia ter alta no mesmo dia ou no dia seguinte. Os internos queriam ter o máximo de experiência possível comigo com essa prática, durante minha curta permanência de um ano no hospital. O resultado foi que nesses últimos dias de minha permanência, fiquei sobrecarregado com pedidos de orientação e treinamento nesse procedimento.

    Durante aquela tarde, com todas as pressões do trabalho, quase me esqueci do assunto da arca. Mas mais tarde, já de volta no meu consultório, voltei a refletir sobre o pedido do Doutor Rao. Meu Deus. O que deveria fazer com o baú que me estava sendo entregue? Tinha que pelo menos vê-la antes que fosse mandada para minha casa.

    Quando o sol de fim de tarde começou a penetrar meu consultório localizado no segundo andar pelas janelas com seus dedos longos e dourados, marcando o fim do dia, suspirei de alívio e sai na varanda para respirar um pouco de ar fresco. Desse ponto mais alto é possível ver a inteira simetria artística dos jardins em baixo. O típico charbagh mogol, com gramados divididos seguidamente por cursos de água e chafarizes, proporcionava um quadro relaxante para vistas cansadas. O jardim terminava num muro limítrofe coberto por buganvílias com suas flores vermelhas, amarelas e roxas. Depois do muro se estendia a cidade vibrante.

    Os sons do transito da cidade, como berros da civilização centenária da qual havia sido berço, reverberavam nos meus ouvidos. Na distância se via a metrópole, cheia de gente, veículos, minaretes e aranha céus, uma mistura de prédios velhos e novos, brilhava refletindo os raios de sol. Num lado estava a Velha Délhi, a cidade construída pelos antigos regentes, os Mogóis. No outro estava a cidade que o Sir Edwin Lutyens havia planejado, Nova Dele cidade construída pelos inquilinos que seguiram. Sempre tive curiosidade de saber como seria a reação de um viajante no tempo dos impérios passados que haviam prosperado aqui por séculos ao ver a mistura fascinante de arquitetura antiga e moderna que agora compunha a capital. Procurei localizar na distância a Praça Connaught, circular, onde meu Tio, Arif Sharif, ainda tinha sua butique de joias. Ele, junto com minha avó,estava entre os últimos sobreviventes em Déhli das antigas gerações de famílias mogóis. Haviam sobrevivido a inúmeras guerras contra os afegãos, persas, siques, rajas indianos, britânicos, e por último os protestos e manifestações violentos que seguiram a Independência e a Divisão da Índia.

    Ocorreu-me que, da mesma forma que os dias se transformam em noites e noites cedem à escuridão, , todas as civilizações eventualmente precisam se transformar em entidades distintas. As sombras do por do sol lançadas pelos arranhas céus, domos das mesquitas e árvores altas compunham um retrato de Délhi ao entardecer, o mesmo talvez que tenha inspirado historiadores a chamar os últimos dias do Império Mudou, antes de 1857, a Era do Crepúsculo.

    Da queda dos Mogóis, minha atenção se voltou para a arca marítima da Doutora Margaret. Caramba, estava abandonada aqui por mais que cem anos. Por que ela não voltou para buscar? De onde era ela? Para onde foi?

    *****

    Naquele final de tarde, dirigindo de volta ao meu apartamento, lembrei-me mais uma vez da reunião com o Doutor Rao que parecia um filme antigo passando num DVD arranhado. Dirigir no pico da hora do rush exigia habilidades que só podiam ser aprendidas nas ruas de Délhi. Era necessário manobrar não só entre carros, mas também evitar a massa de pedestres. Derramavam da calçada na rua, contornavam veículos e cruzavam as ruas como se estivessem passeando nos Jardins Shalimar . Ciclistas costuravam em torno de carros, ônibus, taxis e riquexós todos em movimento. O som das buzinas pareciam elefantes usando suas trombas para anunciar uma debandada, cada um querendo ultrapassar o outro. A cena me lembrava de um dito popular, , Em Délhi, a preferência pertence ao maior veículo.

    Enquanto ultrapassava um ônibus superlotado, com passageiros arriscando a vida pendurados em sua porta, e até sentados no para-choque traseiro, não conseguia parar de pensar sobre os esforços que os homens têm que fazer e a dependência que temos cada um no outro, por algum tipo de ajuda, para sobreviver nesse mundo. Foi aí que a voz do Doutor Rao resurgiu, pedindo para ajudar a encontrar os parentes da médica e devolver a arca a eles. Havia concluído que aceitar a incumbência seria o caminho moralmente correto para seguir, como um ato simbólico de agradecimento pela minha recepção no hospital histórico. O Hospital Lady Dufferin foi fundado durante o Raj e recebeu seu nome de sua patrona, a mulher de um vice-rei britânico. Mas, parecia haver outra razão, talvez um pouco mística. A arca, me parecia ser um dos últimos vestígios da presença britânica na Índia. Historiadores, examinando a cronologia dos fatos, concordam que o início do domínio britânico ocorreu em 1757. Naquele ano, Robert Clive, comandando as tropas da Companhia das Índias Orientais, já havia removido os franceses de sua colônia na cidade de Chandannagar, no sul da Índia. Depois, em Plassey, derrotou o exército de Siraj-ud-daulah, o último Nababo de Bengala independente. Embora as batalhas tenham sido curtas, os eventos que as sucederam tiveram consequências duradouras para ambas as nações, e de fato para o mundo inteiro.

    Esses pensamentos mundanos deram uma grande importância ao retorno da arca marítima, algo que imaginei ter sido solicitado pela própria Lady Dufferin, com seu olhar real, do retrato, feito com ricas tintas vermelhas, azuis e toques de amarelo a óleo, que estava no saguão principal do hospital. O retrato havia me afrontado outra vez ao meio dia no caminho do refeitório. Os olhos da Lady Dufferin me congelaram, como se fosse para me lembrar da história benevolente do hospital. Era como se o retrato dissesse:. ─Você deve isso a essa médica tenaz, uma das primeiras a vir para a Índia. Devolve sua arca a sua família. Ajuda sua alma a descansar em paz─.

    Enquanto driblava outro taxi que vinha em minha direção, relembrei-me de alguns detalhes da conversa que havia tido com o Doutor Rao em voz baixa durante o almoço.

    Continuou, ─Walli, existe outro motive porque acho que você é a pessoa indicada para executar essa tarefa.─ Ele simplesmente ignorou meu olhar de questionamento e continuou. ─Acho que sua mulher encantadora poderá nos ajudar para encontrar a família da Doutora Margaret. Lembro-me de ter conhecido a Alexandra na festa de Natal ano passado quando ela veio para passar os feriados de fim de ano. Se me lembro bem, ela disse que era de origem canadense?─

    ─É verdade. Conhecemo-nos quando eu estava estudando na Universidade de Toronto. Mas porque você acha que ela pode ajudar?─

    O Doutor Rao sorriu. ─Embora a etiqueta do baú indicasse que a Margaret fosse de alguma parte dos Estados Unidos, eu acho que ela devia ser do Canadá.─

    Essa informação me surpreendeu.. Porque Canadá? deixei escapar.

    O Doutor Rao tomou um gole do seu aperitivo, sorriu e disse, ─Permita-me lhe mostrar uma coisa.─ Tirou um envelope do bolso interno de seu paletó. Com dois dedos, ele tirou do invólucro um pequeno cartão coberto por celofane e colocou na mesa a minha frente. ─Vem da coleção de um de meus sobrinhos.─

    Cravei os olhos no cartão. Era daquele tipo que colecionadores de selos usavam para mostrar suas séries mais valiosas. Através do papel transparente, podiam-se ver três selos parecidos. As imagens desbotadas dos selos eram de uma Rainha Vitória jovem, num fundo azul, , com lábios cerrados e olhos grandes e expressivos, usando uma coroa cravada com joias, e um colar combinando com brincos pêndulos.Estava Correios do Canadá Doze Centavos estava escrito numa moldura oval que contornava a imagem. De fotografias que havia visto antes, a imagem da rainha parecia ser uma das mais antigas, com ela bem jovem, feita provavelmente em 1837, quando ela ascendeu ao trono. Peguei o cartão e examinei com cuidado. Os selos pareciam ser legítimos, pois o carimbo postal,embora borrado assinalasse 1856. Engoli em seco e, incrédulo, olhei para o Doutor Rao; a essa altura, havia assumido uma fisionomia de Sherlock Holmes . ─Esses parecem ser selos da primeira emissão do Canadá. Onde que seu sobrinho conseguiu obtê-los?─

    ─Ah, estão na posse de nossa família há algum tempo.. Meu sobrinho diz que foram dados a ele por seu avô, que acha que foram encontrados num envelope entre as páginas de um romance antigo.─

    ─Ele ainda tem o envelope?─ perguntei.

    ─Não, infelizmente não. Alguém tirou os selos com vapor e jogou os envelopes fora.─

    ─E isso se passou em Jhansi?─

    ─Sim, em Jhansi. Então veja, Walli, essa informação deve facilitar muito a você e sua mulher encontrar os herdeiros desse baú.─

    ─Porque você tem tanta certeza que esses selos vieram de uma carta endereçada à Margaret?─

    ─Claro que não tenho certeza. Mas existem boatos na família que uma médica emprestara aquele livro a um de nossos parentes,─ disse, e concluiu, ─Existe uma grande possibilidade de ela ter vindo do Canadá.

    Fiquei impressionado, pois foi a primeira vez que ele confidenciou pelo menos uma pouco sobre sua família. Mesmo assim, ficou óbvio que ele não queria divulgar nenhum outro detalhe. Eu só disse, ─Você sabe , Doutor, o Canadá é um país muito grande.─

    ─Sem dúvida, mas sua população não chega nem perto da que nós temos aqui na Índia.─ Fiquei quieto e ele insistiu, ─E por outro lado, suas próprias relações de família aqui em Délhi poderiam lhe ajudar. Com certeza seu avô deve ter a conhecido.─

    Confesso que fiquei intrigado pela extraordinária possibilidade de meu avô ter conhecido essa pessoa. Fiquei curioso, pois tendo casado e me fixado na América do Norte, minhas relações com meus familiares não era das melhores. A verdade era que não havia os visto há algum tempo. Portanto, como ninguém me havia contado nada sobre ele, a vida do meu avô era um mistério para mim. Quisera, por muito tempo, saber mais sobre o papel que desempenhou na Revolução de 1857.

    Depois de mais alguns empurrõezinhos do Doutor Rao para aceitar a tarefa, no final eu concordei, quase como se estivesse motivado por uma força invisível supernatural. ─Tudo bem, vou ver o que posso fazer, Doutor. Mas primeiro tenho que falar com a minha mulher. Devolver o baú à família da Doutora Margaret pode ser uma incumbência impossível. Não fique surpreso se receber um conhecimento de embarque dizendo que está sendo mandada de volta para cá.,─eu disse.

    Ele deu uma risada. Nesse momento nossos colegas se juntaram a nós à mesa o Doutor Rao escondeu com rapidez os selos históricos no seu bolso. Fique Fiquei um pouco perplexo do porque dele não querer mostrá-los aos outros. Expliquei isso com sua natureza enigmática de sempre.

    Ao fazer a curva para entrar no acesso dos Apartamentos Intercontinentais de Délhi , me prometi fazer um esforço para não me esquecer de ligar para a Alexandra na manha seguinte, mais ou menos, às seis da manha.. Considerando o fuso horário, ainda seria a noite anterior em Baltimore, uma hora conveniente para ela. Depois de um dia comprido como sempre, ela deveria ter chagado em casa do seu escritório de advocacia.

    *****

    ─Oi, amor, tudo bem?─ A voz da Alexandra parecia jovial ao falar no telefone. A operadora de longa distância deve ter mencionado que a chamada era de Délhi.

    ─Estou bem, querida, e você?─ Tentei parecer o mais animado possível, para prepará-la pela notícia importante que queria compartilhar com ela. Depois das amabilidades de praxe e das perguntas sobre famílias e trabalhos, cheguei à questão importante. ─Ouça, amor, um baú vai chegar dentro de algumas semanas, através de uma agente internacional. Por favor receba e guarde no porão, sem abrir.─

    ─Meu Deus, está cheio de presentes que você está trazendo para nós?─ ela brincou.

    ─Até que podem ter alguns presentes lá dentro, mas não são nossos. O baú não nos pertence.─

    ─Ah! Então é de quem?─ ela perguntou surpresa, sobre os ruídos da estática na linha de telefone.

    ─Bem, você não vai acreditar nisso. Pertence a uma médica americana ou, o Doutor Rao pensa, uma médica canadense.─ Dei os detalhes da história e contei o que estava sendo pedido a nós.

    ─Mas porque não podem devolver eles mesmos?─foi sua pergunta óbvia.

    Podia imaginá-la enrolando seu cabelo louro nos dedos, que ela fazia sempre que estava confusa.

    É uma longa história. Parece que perderam contato com ela durante a Guerra de 1857. Desapareceu.

    A Alexandra insistiu, ─Mas não tentaram localizar sua família?─

    ─Acho que sim. O Doutor Rao me disse que fizeram vários esforços através dos canais diplomáticos normais, as Associações de Missionários que, acreditam ter patrocinado ela no início, e até da Cruz Vermelha, mas sem sucesso. Todas essas iniciativas não chegaram a lugar algum sem nenhum vestígio da Doutora Margaret ou do domicílio de sua família.─

    ─Hmm ... porque eles acham que você terá qualquer sucesso,─a Alexandra resmungou, com certeza entretida por essa notícia surpresa. Pensei nela, seus lindos olhos azuis brilhando, segurando o queixo com uma mão, e uma feição de questionamento, envolvida num pensamento profundo. Depois de uma pausa em silêncio, perguntou, ─Então, o que está dentro desse baú?─

    Foi a abertura que precisava para dar o resto da curiosa novidade . ─Você não vai acreditar, meu amor, mas nós não sabemos. A bem da verdade ninguém sabe.─

    ─O que! E por quê? Ninguém abriu o baú ainda?─

    Tentei manter o máximo de minha compostura antes de responder, ─Não. O baú não foi aberto,, pelo menos que eu saiba, e com toda probabilidade desde que ela o empacotou.─

    A pergunta fervente da Alexandra foi, ─E porque diabos não?─

    ─Bem , meu amor, veja, , é por causa das tradições e costumes religiosos que existem nessa parte do mundo. Você já sabe que eles não gostam de tocar em estranhos, preferindo se cumprimentar a certa distância. Não sou profundo conhecedor do assunto, mas várias seitas aqui acreditam na santidade da alma da pessoa que morreu; eles acreditam que uma parte da alma da pessoa sobrevive em qualquer pertence que a pessoa deixou. Não tenho certeza, mas acredito que poderia ser um extremo desrespeito ao espírito da Doutora Margaret permitir que sua arca seja aberta, e seus objetos pessoais tocados e manuseados livremente, por qualquer um que não seja de sua família imediata ou seus descendentes diretos. Seria como se tivessem violado a santidade de seu baú..─

    Tentei explicar esses conceitos espirituais de uma forma melhor mas mais demorada, que sempre acabava usando quando tentava explicar as complexidades da cultura Indiana a americanos e canadenses.. Mas, pelo silêncio que segui, parecia que havia fracassado.

    ─Poxa, isso parece coisa bastante esotérica. Então, só para eu entender, nos não podemos abrir esse baú, , e só devemos localizar a família dessa Doutora Margarete entregá-lo na frente de sua casa?─

    ─É. Essas são as instruções.─

    ─Na minha opinião, o objetivo disso me parece ser para acobertar alguma coisa,─ ela disse, falando como uma advogada que era..

    Respondi como um absoluto imbecil,

    ─Não . Não acho que se trata disso. Parece-me que o hospital só está querendo cumprir com sua responsabilidade entregando os pertences da notável Doutora, com segurança e correção a seus parentes.─Completei com um pouco de sarcasmo, ─Afinal de contas, você sabe, ela é americana.─

    Ela riu desse comentário.

    ─Então, afinal de contas o que aconteceu com a Doutora Margaret? Ela morreu lá?─ a Alexandra perguntou.

    Busquei uma resposta a sua pergunta, fundamentada no que sabia de minha conversa com o Doutor Rao até aquele momento.

    ─Bem, isso também é uma grande dúvida. Acredito que existam várias teorias sobre seu paradeiro depois que ela foi embora do Hospital Santo Stanley em 1856, pouco antes da guerra. Eles acreditam que ela teria recebido um convite dada Rani de Jhansi para cuidar de um dos príncipes, que, pelo que se sabe, estava muito doente. A última vez que a Doutora foi vista em Délhi foi por um instante em sua carruagem, acompanhada por alguns dos sowars da Rani, partindo em direção a Jhansi, você conhece, uma cidade a algumas centenas de quilômetros i. Irrompeu a rebelião, e todos sabem o que aconteceu com os rebeldes, mas ninguém sabe o que aconteceu com ela.─

    ─E não existem nem boatos sobre o que aconteceu com a Rani e a boa Doutora?─ perguntou a Alexandra já envolvida no enigma.

    ─O Doutor Rao me contou alguns boatos que correm no mercado. Parece que alguns militares russos estavam agregados às tropas da Rani, como consultores técnicos. Alguns acreditam que seu objetivo verdadeiro para estar lá era instigar a Rebelião

    A Alexandra interrompeu toda excitada,

    ─Bem, então parece que foram salvos pelos russos.

    ─É possível, mas continuamos não sabendo o que aconteceu com ela, e quem faz parte ou aonde estão seus descendentes.

    A Alexandra interrompeu outra vez.

    E os parentes da Rani? E ele não deve saber alguma coisa sobre o destino da Margaret?─

    ─É. É possível. Vou ver minha avó logo. Vou perguntar a ela.─

    A Alexandra deu uma pausa. Parecia que havia se interessado pela história toda.

    ─Imagino até que poderia perguntar a alguns de meus primos na Rússia se tenham ouvido falar de uma Rani indiana assistida por uma médica americana e oficiais russos. Você sabe, a boataria viaja com o vento, e em especial nos círculo de São Petersburgo e Moscou .─

    Nesse ponto comecei a pensar em voz alta sobre a possível ligação da Margaret com os russos.

    ─Mas porque ela pediria ajuda aos russos? Ela não poderia simplesmente se entregar ao lado britânico? Por qual motivo eles não a socorreriam?─

    ─Ela poderia ter feito isso. Por tudo que você sabe, ela muito bem pode ter voltado para os Estados Unidos ou Canadá,─disse a Alexandra.

    ─Isso é uma boa alternativa, e é o que o hospital pensa. E, o Doutor Rao acha, que em razão daqueles selos antigos, ela voltou para o Canadá. Enfim, minha paixão, você pode pedir ao seu lado da família em Toronto se eles conseguem encontrar algum descendente de uma Doutora Margaret Wallace em Ontário, ou qualquer outro lugar no Canadá?─

    ─Vou ver.─ A voz dela assumiu uma firmeza de quando ela se comprometia a uma tarefa maior.

    *****

    Num dos dias seguintes, quando saia da entrada do meu apartamento para a via principal, vi u sedam azul escuro estacionado do outro lado da rua. Reconheci como sendo um Volga russo pelo enorme para-choque cromado dianteiro e o escudo com um galgo no capô. Parecia que o motorista estava lendo um jornal mas era óbvio que estava mesmo é querendo esconder seu rosto. Ao passar pelo carro, consegui dar uma olhada. Tinha um rosto queimado pelo sol, cabelo louro cortado curto e feições inegavelmente eslavas. Tinha uma certeza íntima que era russo.

    Dirigi na direção do hospital, sempre buscando evitar aquela mistura de ônibus, taxis e riquexós e outros complicadores do transito, cada um querendo ultrapassar o outro. Pelos vidros traseiros ovais duplos de meu fusquinha vi o Volga azul. . Estava sempre lá até minha chegada ao trabalho. O motorista não parecia querer ultrapassar e mantinha sempre alguma distância. Quando dobrei a esquina para a entrada do hospital o sedan seguiu em frente.

    Depois que estacionei meu fusquinha, fiquei parado no jardim olhando para a rua e para os dois acessos ao hospital, para localizar o carro ou o motorista. Nenhum dos dois apareceu. Imaginando que tivesse sido só uma coincidência segui meu caminho até meu consultório.

    Naquela tarde, almoçando com o Doutor Rao, mencionei essa curiosidade do Volga azul escuro ter me seguido até o . Jocosamente comentei,

    ─Parece que os russos estão me seguindo, Doutor sahib.─

    Ele me pareceu preocupado, mas com um sorriso disse.

    ─Ah, Walli. Você tem lido romances de espionagem da Guerra Fria demais.─

    ─Mas, meu amigo, com respeito não pode estar relacionado com o fato que eu adquiri aquele velho baú? Insisti. ─Você não chegou a dizer que outros poderiam ter interesse nela também?─

    ─Nãaaao. Esquece isso, não é possível. O baú está seguro conosco. Temos seguranças aqui o tempo todo. Não se preocupe com aquele carro. Com certeza estava lá pegando alguns outros europeus, pessoal da embaixada, quem sabe, que estavam no seu edifício..─

    Enquanto essa opinião era plausível, pois outros europeus moravam no meu prédio, a minha curiosidade sobre o conteúdo do baú só aumentava. Perguntei,

    ─Então, Doutor Rao, quando posso ver esse baú tão precioso?─

    ─É claro. Acho que você deve ver antes que nos despachemos. Vou pedir a Mila para marcar─

    Terminamos nosso almoço e seguimos cada um seu caminho. Mas, durante aquela tarde, buscando algum ar fresco na varando e olhando pra a cidade, o que havia se passado pela manha chamou mais uma vez minha atenção. Lembrei-me de minha conversa anterior com a Alexandra, e de ter contado a ela sobre a suposta participação de agentes secretos russos na Rebelião de 1857. Sinais soaram na minha mente. Caramba, será que a KGB tinha conhecimento da existência desse baú? Será que haviam grampeado minha ligação internacional para a Alexandra? O que poderia haver dentro daquele baú depois de todos esses anos que ainda tinha algum significado para os russos?

    Naquela noite, depois de ter feito uma boa ginástica na sala de aparelhos do hotel—nos aparelhos e cumprindo as séries de exercícios de boxe e caratê—estava sentado na minha pequena sala de estar, lendo o jornal e ouvindo jazz na transmissão de rádio da Voz da América, quando tocou a campainha da porta. Baixei o volume, e caminhei até a porta e abri para me defrontar com uma mulher, bonita e loura, trajando um casaco azul e uma saia curta, de pé no corredor. Ela segurava um livro em sua mão, e outros volumes apareciam dentro de uma sacola de lona que estava nos seus pés.

    Deu-me um sorriso deslumbrante e disse, ─Como vai, Doutor Sharif, meu nome é.─

    Cumprimentamos-nos com um aperto de mãos.

    ─Quer comprar esse livro? Só quinhentas rupias,─ ela me perguntou num sotaque russo inconfundível, enquanto levantava o livro em minha direção.

    Buscando me recompor da surpresa que tive ao vê-la, fiquei mas assustado ainda quando vi o título do livro, A Estória de Lara. Era uma cópia do mesmo livro que havia visto na mesa de centro do Doutor Rao há alguns dias. Encostei-me na maçaneta da porta e fitei o livro da capa dura por um instante e depois voltei os olhos para ela. Ela desgrudava seus olhos azuis escuros de mim..

    Depois de ter me restaurado, peguei o livro e abri mais a porta.

    ─ Tudo bem, talvez

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