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A condessa das trevas
A condessa das trevas
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Ebook428 pages5 hours

A condessa das trevas

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About this ebook

Uma mulher em fuga do seu passado, um casamento arranjado e tantas intrigas.

Paris, 1795. Marie Thérèse Charlotte di Borbone há três anos vive reclusa entre as paredes da Torre do Templo, aprisionada pelos revolucionários franceses. Viu morrer, um após o outro, todos os seus familiares e sofreu a mais terrível das humilhações: o estupro; teme não ter nenhuma saída quando recebe a proposta de libertação, em troca de doze prisioneiros de guerra.

Na mesma noite, enquanto está se divertindo com jogos de cartas e prostitutas, Leonardus Cornelius Van der Valck recebe a visita de um nobre austríaco que lhe faz uma oferta irrecusável: o imperador em pessoa lhe pede para assumir a custódia da própria prima, única sobrevivente da família real francesa. Mas tem um problema: o fascinante e astuto libertino deverá se casar com a moça, que ficou grávida durante o cárcere.

Conseguirão duas pessoas tão diferentes confiar uma na outra? E Charlotte saberá superar o trauma da violência sofrida, para abrir seu coração ao verdadeiro amor?

 Paixões abrasadoras, sequestros, troca de pessoas e intrigas políticas se sucedem para dar vida a um romance em que o amor e a coragem acompanham o leitor, página após página.

LanguagePortuguês
PublisherBadPress
Release dateJul 6, 2017
ISBN9781507174555
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    A condessa das trevas - Laura Gay

    Laura Gay

    A CONDESSA DAS TREVAS

    ––––––––

    romance

    Laura Gay

    A condessa das trevas

    Primeira Edição fevereiro de 2014.

    Todos os conteúdos são protegidos pela lei

    dos direitos autorais.

    Capa: máscara secreta by Fotolia

    http://it.fotolia.com

    SUMÁRIO

    ––––––––

    CAPÍTULO 1

    CAPÍTULO 2

    CAPÍTULO 3

    CAPÍTULO 4

    CAPÍTULO 5

    CAPÍTULO 6

    CAPÍTULO 7

    CAPÍTULO 8

    CAPÍTULO 9

    CAPÍTULO 10

    CAPÍTULO 11

    CAPÍTULO 12

    CAPÍTULO 13

    CAPÍTULO 14

    CAPÍTULO 15

    CAPÍTULO 16

    CAPÍTULO 17

    CAPÍTULO 18

    CAPÍTULO 19

    CAPÍTULO 20

    CAPÍTULO 21

    CAPÍTULO 22

    CAPÍTULO 23

    CAPÍTULO 24

    CAPÍTULO 25

    EPÍLOGO

    NOTA DA AUTORA

    PRÓLOGO

    Paris, Torre do Templo, setembro de 1795.

    C

    Charlotte abriu os olhos de repente, despertada por um som de passos.

    Odiava acordar no meio da noite, dominada pela angústia ou pelo terror por cada pequeno sussurro. Procurou acalmar a batida acelerada do próprio coração: ficou enrijecida, encolhida contra a parede de pedra da cela, enrolada no cobertor grosso de lã.

    Vivia trancada entre aquelas paredes úmidas há aproximadamente três anos, quando ela e sua família foram presas pelos revolucionários franceses. A sua tranquila existência foi interrompida para dar lugar somente ao medo e à dor. Um a um, os seus queridos familiares abandonaram este mundo: primeiro seu pai, depois sua mãe, sua tia Elizabeth e, por fim, seu adorado irmãozinho, de apenas dez anos. Uma lágrima rolou em sua face, ela apressou-se para enxugá-la com a manga puída do vestido que usava. Uma época tinha vestidos elegantes, confeccionados com os melhores tecidos, pelas melhores costureiras parisienses. Como estava distante aquele tempo!

    Às vezes pensava em seu passado como um sonho distante, existente somente em sua fantasia.

    Ouviu novamente aquele som de passos e o seu batimento cardíaco acelerou. Aguçou os ouvidos, procurando perceber se o som estava mais próximo, mas a batida do próprio coração era mais alta. Tentou respirar em ritmo normal. Os passos se aproximavam uma com lentidão desesperadora, começou a sentir espasmos nos braços e nas pernas. Aterrorizada, encolheu-se ainda mais em posição fetal.

    Naquele momento os passos pararam.

    Alguém parou diante da maciça porta de madeira e ela tremeu em pensar que tivessem vindo pegá-la.

    Não queria morrer.

    A porta se abriu com um fastidioso rangido. Charlotte prendeu a respiração, levantou o olhar sobre a sombra da figura na entrada. Um guarda entrou sorrateiramente. Era um homem alto, robusto, o nariz ligeiramente aquilino.

    — O que deseja? — perguntou Charlotte com um sussurro, levantando-se num pulo. O cobertor caiu no assoalho de pedra cinza e ela sentiu um arrepio, que não tinha nada a ver com a temperatura interna da torre.

    O homem se moveu em sua direção, os lábios curvados em um sorriso enigmático.  Agarrou-a por um braço, olhando-a fixamente com os olhos famintos como os de uma fera.

    — Não se sente sozinha nessa cela? Quer um pouco de companhia?

    O seu hálito cheirava a vinho. Charlotte procurou se desvencilhar, mas o guarda a segurou, apertando-lhe o pulso até quase fraturá-lo. Um grito de dor lhe ardeu a garganta.

    — Deixe-me, te suplico.

    — Me suplica? — disse o homem sorrindo. — A filha do falecido rei que me suplica. É quase divertido.

    Charlotte se contorceu. Estava aterrorizada. Aqueles olhos que a fixavam desejosos a confundiam. Quis falar, perguntar o que pretendia fazer, mas as palavras não queriam sair.

    Ele segurou seu queixo, erguendo-o o suficiente para poder olhá-la nos olhos. — É muito bonita.  Nobre, casta e inviolada. Inatingível para alguém como eu, não é mesmo?

    Charlotte começou a tremer. Não entendia o que aquele homem queria dela, mas estava certa de que não era nada de bom. Depois ele fixou os olhos em seus seios, evidenciado pelo decote do vestido. A empurrou contra a parede, pressionando seus os quadris contra os dela.

    — A sua pele cândida me excita — sussurrou, tocando sua face com o dorso da mão calosa. — É tão branca... parece a de uma boneca de porcelana.

    Ela estremeceu, como se a tivesse esbofeteado. Aquela mão... sentia nojo pelo que estava lhe fazendo. Tentou resistir, mas a preensão do guarda se tornou mais forte. 

    — Diga-me, quantos anos tem?

    Aquela pergunta a pegou de surpresa. — De-dezessete, senhor — balbuciou confusa.

    — Dezessete. Tem idade suficiente, então. Não deseja conhecer os prazeres que um homem pode dar a uma mulher?

    Charlotte se arrepiou. Não sabia nada daquelas coisas. Por vezes tinha escutado algumas conversas, mas as dinâmicas do ato permaneciam um mistério para ela. Entretanto, acreditava que fosse impossível sentir prazer. Tudo o que sentia por aquele homem, que pressionava o próprio corpo suado contra o seu, era repugnância.

    Naquele momento percebeu alguma coisa dura contra seus quadris. Abaixou o olhar, temendo que ele a estivesse ameaçando com uma espada. Mas não era uma espada, percebeu horrorizada.

    Engoliu em seco. — Imploro...

    O homem lhe deu um puxão, na tentativa de soltar o corpete do vestido. — Reserve as tuas preces para os santos — riu dela. Naquele momento, Charlotte sentia o tecido se rasgar e aquelas mãos ásperas lhe apertar os seios. Ficou imóvel. Quis gritar, mas quem teria vindo em seu socorro naquela prisão? Desde quando foi feita prisioneira todos zombavam dela. Não lhe tinham o mínimo respeito: era objeto de escárnio e ofensa, lhe endereçavam canções obscenas e insultos de todos os tipos.

    Procurou empurrá-lo para se libertar, mas foi inútil. Ele era muito forte. De repente a esbofeteou com um ímpeto tal que a estonteou.

    — Fique quieta! Você vai gostar, vai ver. Abrirá as pernas para mim como qualquer prostituta.  Não vejo a hora de descobrir como goza uma princesa.

    Lágrimas silenciosas escorreram pelo seu rosto. Não era possível que estivesse lhe fazendo aquilo. A virgindade era o único valor que lhe restava, não poderiam privá-la também daquele bem tão precioso para ela.

    — Não, por favor... não!

    Rindo espalhafatosamente o homem levantou as suas saias. Ela o viu desabotoar a carcela da braguilha e avançar sobre ela como um animal. Tudo o que sentiu depois foi somente dor e humilhação. O guarda profanou o seu corpo com penetrações sempre mais rápidas. Charlotte gritou com toda a força que tinha na garganta, mas aqueles golpes não pararam. Tivera a sensação de que a lacerara profundamente, até traspassar-lhe a alma.

    O sangue começou a escorrer pelas pernas, sujando-lhe as meias. O que importava, naquela altura? Ela permaneceu imóvel, os olhos fechados e cheios de lágrimas, enquanto aquele monstro terminava de fazer o que havia começado. Sentiu que ele tremeu e derramou o seu sêmen dentro dela. Depois que se limpou com uma barra da camisa e abotoou as calças, tinha no rosto um sorriso de satisfação.

    — Não foi nada mal, princesa. Talvez pudesse voltar a lhe encontrar uma dessas noites, o que me diz?

    Charlotte não respondeu. As forças tinham-lhe abandonado. Sentia-se suja no coração e na alma. Queria lavar-se, esfregar a pele até esfolá-la, infelizmente sabendo que a dor sofrida não desapareceria com o sabão. Seria atormentada pela eternidade. 

    Pouco depois escutou a porta da cela ser fechada e caiu no chão. As pernas não se sustentavam mais. Voltou a se encolher contra a parede, procurando se cobrir com as mãos.

    Enfim, chorou. Chorou todas as suas lágrimas.      

    CAPÍTULO 1

    Amsterdam, dezembro de 1795.

    L

    Leonardus Cornelius Van der Valck estava sentado em uma mesa de jogo com um copo de vinho madeira em uma mão e um maço de cartas na outra. Era costume passar o seu tempo livre fazendo farra com os amigos. Jogo de azar, prostitutas e grandes somas de dinheiro eram o seu pão de cada dia. Tudo para fugir do tédio e da inquietude que o oprimiam.

    — É a sua vez de dar as cartas — disse-lhe um baronete inglês, sentado à sua direita.

    Mas, uma esplendorosa morena de seios provocantes e com um decote generoso tinha se aproximado dele, rebolando e colocando bem à mostra a sua mercadoria.

    Provavelmente Leonardus terminaria por levá-la para cama, depois de mais alguns copos e de ganhar muito dinheiro. Considerou a ideia e deu um sorriso.

    — Não tenha pressa, Fairfax — respondeu ao baronete. — A noite só está começando.

    Lançou um olhar fugaz para a moreninha e se preparava para embaralhar as cartas, quando um homem de sóbria elegância e os traços aristocráticos o interrompe.

    — O senhor Van der Valck? — indagou cauteloso.

    Leonardus levantou o olhar e ergueu uma sobrancelha, perscrutando curioso o recém-chegado.  O seu sotaque de estrangeiro era bastante acentuado. Devia ser de origem austríaca, supôs o diplomata atento. Seguramente nunca o tinha visto.

    — Posso saber com quem tenho a honra de falar?

    O homem parou a um passo dele, o olhar impenetrável. Parecia desaprovar aquele lugar e o clima dissoluto com o qual estava impregnado. Devia ser um tipo desagradável.

    — Sou o conde Brank, a serviço do imperador da Áustria.

    — Em que posso ajudá-lo, senhor conde?

    — Trata-se de um assunto particular. Se puder me acompanhar até um local mais adequado, ficarei feliz em explicar-lhe os motivos que me trouxeram aqui. 

    Leonardus conteve o riso. Se aquele homem pensava em lhe estragar a noite, estava muito enganado. Nada e ninguém o teriam afastado da mesa de jogo e daquela senhora complacente.

    — E o que o faz acreditar que eu esteja interessado em conhecer tais motivos? — Como vê estou muito ocupado nesse momento.

    O conde se enrijeceu. Evidentemente não estava acostumado a receber recusas.

    — Talvez uma elevada soma em dinheiro pudesse aumentar a sua curiosidade.

    — Talvez — admitiu Leonardus. — Depende do que entende por elevada.

    — Não tenho tempo a perder, senhor — Brank impacientou-se. — Queira seguir-me, por favor? Estou tão ansioso quanto você para acabar com essa conversa.

    Leonardus desculpou-se com os companheiros de jogo e se levantou. Esperava que tudo acabasse rapidamente, para poder retornar aos amigos e para a exuberante morena. Mas suspeitava que a situação fosse complicada e previa problemas.

    O conde o acompanhou até uma salinha privada — os clubes de luxo como aquele tinham sempre uma — e aguardou até que Van der Valck entrasse, para depois fechar a porta com uma só pancada.

    — E então? — encorajou-lhe, visivelmente impaciente. — De que se trata?

    — É um assunto realmente sério. Melhor que se acomode.

    Leonardus bufou. Sentou-se em uma elegante poltrona adamascada e esperou o próprio interlocutor se sentar, antes de lançar um olhar indagador sobre ele.

    Finalmente, Brank decide falar: — Como bem sabe, o imperador tem uma prima que foi mantida em cativeiro pelos revolucionários franceses...

    — Vá direto ao ponto ao ponto, senhor conde. — Não tenho a intenção de dedicar-lhe a noite toda.

    — Trata-se de um assunto diplomático muito sério e delicado que não pode ser resolvido em duas palavras. — Então tenha a gentileza de se calar e me deixar continuar.

    Bufando ligeiramente, Leonardus se dispôs a escutá-lo.

    Foi-lhe explicada toda a história de uma desafortunada moça de sangue real, feita prisioneira e libertada recentemente, em troca de doze prisioneiros de guerra. Perguntou-se irritado o que tudo aquilo tinha a ver com ele, até então não lhe estava claro.

    — Está me pedindo para cuidar dessa mocinha pelo resto da minha vida? Toma-me por uma babá, talvez? O seu tom escandalizado fez com que o conde austríaco se levantasse.

    — Não sou eu que lhe peço. — É uma ordem do próprio imperador.

    A situação estava se tornando mais complicada e desagradável do que o previsto. Decisivamente pior do que sua expectativa. E estava claro que para o imperador não se podia dizer um não como resposta.

    — Por que eu? — se perguntou, não acreditando que uma aparente desafortunada fosse entregue exatamente a ele.

    — Você é a pessoa mais adequada para essa tarefa. Exerce o cargo de diplomata com discreto sucesso, é jovem e atraente e, sobretudo, não é casado.

    — O que tudo isso tem a ver com o fato de eu ser um homem solteiro?   

    O conde acendeu um cigarro com exasperante lentidão. Deu uma tragada e enfim continuou: — Foi-lhe solicitado para ter a moça como esposa, senhor. Durante o cárcere foi estuprada e agora está à espera de um filho. O casamento é necessário para calar as más-línguas.

    Leonardus empalideceu. Devia aceitar o copo de rum que lhe foi gentilmente oferecido e bebê-lo de uma vez, para se recuperar.

    — Maldição — respondeu contrariado.

    A carruagem corria velozmente na estrada de pedras que conduzia à fronteira da Suiça. Charlotte, com o ar inquieto, pôs a cabeça para fora da janela e suspirou. Viajava há muitas horas e estava ansiosa para chegar ao destino. Foi-lhe dito que o destino era uma pequena cidade fronteiriça, chamada Huningue. Ainda não estava certa de quem estaria à sua espera naquele lugar, mas esperava que fosse uma pessoa amiga. Estava tão ansiosa por conforto, após todas as tribulações vividas nos últimos anos.

    — Afaste-se da janela, madame — repreendeu-lhe sua acompanhante, com voz ácida.  Era uma mulher rígida e mal-humorada, que Charlotte julgava incapaz de ter o mínimo sentimento de afeto. A menos indicada para alguém que, como ela, tinha uma necessidade enorme de afeto.

    Se abandonou no assento e começou a brincar distraidamente com a renda da gola do vestido que usava. Era uma peça de elegância discreta, mais fechada do que estava na moda e de um tamanho maior do que o seu, de modo que escondesse a embaraçante forma arredondada do seu ventre. O cinza-escuro do tecido lhe atribuía mais o ar de professora do que o de uma princesa e o penteado era igualmente austero: os cabelos lhe foram penteados com um apertado coque na nuca. Somente acidentalmente algum cacho loiro escapava dos grampos e então esvoaçava delicadamente com o movimento do vento.

    — Quando chegaremos? — decidiu perguntar, com ar sofredor. Sentia a necessidade esticar as pernas e encher os pulmões com o ar da montanha. Apesar do frio rígido do inverno, deseja ardentemente estar do lado de fora, de poder finalmente reabraçar espaços amplos, sem nenhuma parede ao redor.

    — Falta pouco, agora. A sua acompanhante cruzou os braços. — Procure ser paciente, madame.

    Quis responder que a paciência a tinha se exaurido durante os anos de reclusão, mas mordera a língua e voltou a olhar para fora da janela.

    Estavam atravessando a Alsácia e a vista da imensidão de neve a relaxou um pouco.

    Finalmente, a carruagem parou em frente a uma construção de pedra de três andares, com telhado da cor de tijolos. A insígnia na porta indicava que se tratava de um hotel para viajantes, que tinha o nome de Hotel du Corbeau.

    Charlotte ajeitou o manto pesado de pelica sobre os ombros e aguardou que o portão da carruagem lhe fosse aberto pelo cocheiro, que a ajudou a descer.

    Notou com surpresa que eram duas pessoas a esperá-la. Um jovem alto e esbelto estava em pé, em frente à carruagem. O seu rosto tinha alguma coisa de familiar aos seus olhos, que se encheram de lágrimas ao reconhecê-lo.

    — Louis Antoine! — exclamou, correndo para atirar-se em seus braços. — É você mesmo?

    O jovem de cabelos castanhos longos e rosto oval a abraçou rapidamente para depois separar-se e lhe sorrir embaraçado.

    — É um prazer revê-la, prima — ele disse. Depois se voltou para a outra pessoa que tinha se mantido discretamente de lado.

    Charlotte seguiu o seu olhar e se viu fixando um par de olhos cinza, frios como o gelo.

    O desconhecido se aproximou cauteloso. Tinha um caminhar decidido que a princípio lhe pareceu odioso. Os cabelos eram pretos e mais curtos do que estava na moda. O rosto um pouco anguloso, mas de uma beleza impressionante. Os lábios finos, ao contrário, eram encurvados naquilo que para ela parecia um sorriso forçado, de conveniência.

    O primo se apressou em fazer as apresentações: — Este é Leonardus Van der Valck, um diplomata holandês.

    O homem dos olhos frios tomou-lhe a mão e a beijou. Charlotte sentiu um arrepio repentino, enquanto um intenso rubor lhe corava as pálidas maças do rosto. Retirou a mão, como se tivesse sido agredida e desviou imediatamente o olhar. Se perguntou o que aquele desconhecido fazia ali e se sentiu irritada com sua presença.

    — Estou muito honrado em conhecê-la, madame — disse o homem, com uma voz baixa e grave, mas com um tom que parecia contradizer as suas palavras.

    Ela lhe dirigiu um leve aceno com a cabeça e se esforçou para sorrir enquanto se deixava conduzir pelo primo até a entrada do hotel.

    — Imagino que precise se refrescar e trocar de roupa — disse Louis Antoine, em tom solícito.

    Ela deu uma última olhada para trás, onde Van der Valck tinha ficado a fixá-la com uma expressão indecifrável naqueles olhos cinza.

    — O que aquele homem faz aqui? — sussurrou, confusa. O primo sorriu enigmático enquanto lhe abria a porta do hotel. — Nos falamos mais tarde — respondeu-lhe, apressando o passo.

    Para Charlotte não restou outra coisa senão segui-lo.          

    Assim que se encontraram no interior do Hotel du Corbeau, Louis Antoine lhe apresentou aquela que seria a sua camareira durante aquela pequena estada. Tratava-se de uma jovem de cabelos acobreados e o sorriso delicado. Notando sua aparência de cansada, imediatamente se apressou em acompanhá-la ao seu quarto para preparar-lhe um banho quente.

    A sua acompanhante, Madame de Sourcy, também se retirou para se refrescar e Charlotte suspirou aliviada. Aquela mulher não lhe inspirava muita simpatia, embora não soubesse explicar o motivo. Talvez nos anos em que esteve na prisão tivesse desenvolvido uma defesa natural nas relações com o gênero humano e agora estava relutante em confiar em quem estivesse próximo a ela.

    Deixou que a camareira a ajudasse a tirar as roupas empoeiradas e depois mergulhou na banheira, sentindo um alívio imediato. Fechou os olhos enquanto era delicadamente ensaboada e voltou a pensar em seu primo.

    Tinha sido uma surpresa encontrá-lo à sua espera. Louis Antoine era o filho primogênito do irmão de seu pai, o conde d'Artois, e até o dia de seu nascimento as famílias haviam pensando em um casamento arranjado entre eles. A ideia nunca lhe fora desagradável.

    Louis Antoine tinha dotes semelhantes: beleza, elegância e boa índole. Nos seus sonhos de adolescente havia encarnado seu ideal de príncipe encantado que corria para salvá-la em seu cavalo branco para conduzi-la a um castelo, onde viveriam felizes e contentes para sempre. E então o reencontrava ali, exatamente depois da sua libertação, com o seu sorriso pacato e o olhar amoroso. Por um instante tinha desejado ser envolvida em um abraço e chorar em seu ombro, para esquecer todas as recordações penosas dos últimos anos. No entanto, não podia se esquecer de que uma verdadeira senhora nunca teria mostrado em público tal complacência.

    Deixou escapar um suspiro e teve que fazer um esforço para não ceder ao cansaço e cair nos braços de Morfeu.

    Leonardus Van der Valck ficou olhando a porta fechada do hotel, depois que Charlotte se afastou junto com o primo.

    Até agora parecia não acreditar que logo estaria unido em matrimônio àquela frágil criatura, com olhos amedrontados. E que olhos! Não podia negar que tinha ficado perturbado com a simples visão daquelas concavidades azuis que lhe traziam à memória os céus límpidos de primavera.

    Os cabelos ao contrário, eram dourados, um loiro dourado com algumas mechas um pouco mais claras que os tornavam ainda mais brilhantes. Perguntava-se que sensação teria ao acariciar aqueles cabelos sedosos.

    Nossa! Estava entrando em um terreno perigoso. Sentir-se atraído por aquela menina era a coisa mais errada a se fazer, ainda mais que o matrimônio deles seria só de fachada.

    Esses eram os acordos. Daria seu nome a ela — ou para ser mais preciso, um nome falso, visto que a sua identidade deveria permanecer secreta — mas certamente não dormiria em sua cama. Quando o conde Brank tinha-lhe mostrado os planos não lhe foram completamente desagradáveis. Não sentia o mínimo desejo de ir para a cama com aquela que, para ele, era uma perfeita desconhecida, assim como um fastidioso embaraço.

    Certo, não imaginava que fosse assim tão bonita.

    De qualquer modo estava claro que a moça não tinha por ele a mínima simpatia. Quando lhe beijou a mão, a retirou rapidamente como se tivesse sido mordida por uma cobra. E a breve olhada que tinha-lhe lançado não era nada animadora. Bem, não deveria ser ingênuo. Não devia se esquecer de que aquela era a filha de um rei, enquanto ele, um humilde diplomata sem nenhum título de nobreza, se bem que muito em breve assumiria o de conde. Era mais do que natural que a moça fosse habituada a se relacionar com homens bem diferentes dele. Homens mais refinados e seguramente menos libertinos.

    Um sorriso sarcástico lhe iluminou o semblante. Apesar disso, aquele libertino se casaria com a jovem princesa, em segredo. Se tivesse contado para os outros, ninguém lhe acreditaria.

    Depois do banho, Charlotte foi ajudada a se vestir com roupas limpas. Tratava-se de um modelo não muito diferente do anterior, com a única exceção da cor que era um violeta muito escuro e que realçava de modo espantoso a sua cútis clara.

    Uma época tinha amado as cores mais tênues e os tons pastéis, mas agora não lhe eram mais convenientes. Tinha decidido usar luto pelo resto de seus dias e estava segura de que não usaria mais roupas de cores chamativas. Deu uma rápida olhada no espelho para ajeitar melhor os cachos loiros dentro do voilette, que combinava com o vestido.

    Naquele momento alguém bateu à porta.

    Por sua ordem, a camareira correu para abri-la; uma jovem mulher entrou com

    passos decididos e parou em frente a ela.

    Charlotte arregalou os olhos pela surpresa, ao reconhecê-la. — Ernestine... é você mesma? A voz tremeu ligeiramente, enquanto fixava aquela que tinha sido a sua companheira de brincadeiras durante a infância.

    — Sim, sou eu — respondeu a moça que, a um olhar desatento, poderia parecer muito semelhante a ela.

    Eram mais ou menos da mesma altura, ambas loiras e de olhos azuis. Até a idade era a mesma. No entanto, Ernestine tinha o nariz um pouco mais proeminente e o seu sorriso parecia forçado, sua aparência era mais rígida e fechada.

    Charlotte se aproximou dela para lhe dar um abraço fraterno. No fundo, Ernestine tinha sido como uma irmã para ela. Por ocasião da morte de sua mãe, uma criada de nome Philippine Lambriquet, a família de Charlotte a tinha tomado sob sua protetora. Cresceram juntas, fazendo as mesmas brincadeiras e estudando com os mesmos preceptores.  

    — O que faz aqui? — decidiu-se por fim perguntar. De todas as pessoas que teria esperado encontrar naquele lugar isolado por montanhas, Ernestine era a mais improvável.

    — Fui convocada pela sua família — ela respondeu.

    — Oh! Aquela sim é que era uma surpresa. Talvez tivessem pensado que pudesse precisar de uma pessoa amiga, disse a si mesma, comovida por aquele pensamento gentil.

    Mas Ernestine descartou qualquer hipótese sentimental. — Você não prosseguirá em viagem para Viena, como lhe foi dito anteriormente — esclareceu em tom frio e implacável.

    — Como?  — a voz de Charlotte se abalou de repente. — O que você quer dizer?

    — Serei eu que prosseguirei a viagem em seu lugar e serei eu que vestirei as suas roupas, nos dias que se seguirão.    

    Os olhos se arregalaram pelo estupor e pela incredulidade. — O que está dizendo? Eu ...

    — Você foi julgada inadequada para cumprir o papel que lhe espera por direito — Ernestine a interrompeu, em tom áspero. Lançou-lhe um olhar de desprezo e indicou o rápido crescimento de seu ventre. — Está à espera de um filho, não está?

    Charlotte estremeceu com aquela pergunta, tão direta. Uma verdadeira senhora nunca teria se atrevido a mencionar o seu estado, mas evidentemente Ernestine tinha esquecido as regras do Bon ton.

    — Eu... não... — balbuciou confusa, antes que a sua interlocutora a interrompesse novamente, com ar de provocação.

    — Você se deu conta de que sua reputação está arruinada, minha cara Charlotte. Não poderá mais fazer um bom casamento. Não serve mais para nada, entendeu?       

    Os olhos de Charlote se encheram de lágrimas. Seria possível que a sua família pretendesse se livrar dela? Que culpa poderia ter se tinha sido violada? Ela não tinha escolhido se jogar nos braços daquele guarda. Apesar disso, bem sabia que aos olhos das pessoas seria sempre uma mulher perdida e o seu filho, um bastardo.

    Nem mesmo Louis Antoine poderia desconsiderar um fato como esse. Certamente, não a queria mais como esposa. Era mais do que compreensível.

    — Então, o que será de mim?  — decidiu perguntar com dignidade.

    — Ernestine lhe dirigiu um sorriso de escárnio. — Você se casará com um diplomata holandês. Vocês já foram apresentados, se não me engano.  O sorriso se acentuou enquanto acrescentava: — Dizem que é um libertino sem escrúpulos e um jogador de jogo de azar. Não certamente à altura de uma princesa como você, mas será recompensado lautamente, então não se oporá à vergonha de ter como esposa uma moça que traz no ventre um filho de outro.

    As suas palavras a feriram mortalmente, mas aquilo que lhe provocou maior angústia foi saber que seria esposa de Leonardus Van der Valck. A inquietante pessoa que estava presente em sua chegada. O homem com os olhos cor de gelo.

    Arrepiou-se só em pensar e sacudiu a cabeça. — Não. Não pode ser.

    Ernestine lhe dirigiu outra olhada triunfante: um sorriso gélido lhe emoldurava o rosto, enquanto a olhava com ódio.

    — Por que parece que você está zombando da minha situação? Fui mantida prisioneira, não tem a menor ideia do que isso significa, de como me trataram... — o estômago se revirou só em pensar.

    Ernestine não mudou a expressão nem mesmo por um instante. — Por toda a vida você se acreditou melhor do que eu, não é verdade?  — a agrediu com raiva. — Me tirou até o afeto de meu pai. Ele não tinha olhos a não ser para você e a mim concedia só as migalhas do seu afeto. Agora chegou para mim o momento da vingança.  

    Charlotte a olhou confusa. — Seu pai? — Não entendi...

    — Ainda não tinha percebido? Seu pai era também o meu pai. Nós somos meia-irmãs.  

    Por um instante teve a impressão de viver um pesadelo. Se aquilo que afirmava Ernestine era verdade, seu pai tinha sido infiel à sua mãe. Apesar disso, era sempre lembrado como o mais amoroso dos maridos. Ao contrário dos seus antecessores, nunca teve uma amante declarada.

    Foi pega por uma repentina sensação de náusea ao pensar em seu pai entre os braços de outra mulher.

    Abriu a boca para inalar o ar. Sentia-se sufocar, como frequentemente lhe acontecia quando alguma coisa a perturbava. Então girou a maçaneta da porta e a abriu. Fugiu pelo corredor com lágrimas nos olhos.  

    CAPÍTULO 2

    L

    eonardus estava subindo as escadas em direção ao seu quarto, quando avista uma pessoa franzina correr em sua direção. Parecia transtornada, a ponto de não perceber que estava indo de encontro aos seus braços. Tentou se esquivar, mas não deu tempo. Em um segundo foi para cima dele, com a força de um furacão.

    Somente quando percebeu o choque, Charlotte levantou os olhos em lágrimas e o reconheceu. 

    — Monsieur Van der Valck.

    — Está chorando — ele notou, espantado. — O que lhe aconteceu? — Vê-la naquele estado tinha-lhe perturbado profundamente. 

    Charlotte, depois de um momento de hesitação, desabou em soluços sufocados, apoiando o rosto em seu peito.

    — Droga! — ele praguejou, em voz baixa.  Detestava as mocinhas em lágrimas, mas dessa vez foi pego pela comoção. Aquela moça tinha sofrido muito. Tinha perdidos seus familiares queridos, vivido na prisão e em seguida, um estupro. De repente desejou poder confortá-la, só que não tinha a mínima ideia de como se consolava uma mulher.

    — Pare com isso, não faça assim — murmurou, erguendo-lhe o rosto até encontrar novamente os seus olhos azuis. Parecia tão inocente e pura que vê-la naquele estado partia-lhe o coração.

    Charlotte fungou e enxugou as lágrimas com o dorso da mão. — D-desculpe-me — balbuciou desconcertada. — Molhei sua camisa...

    Van der Valck deu um sorriso. — Não se preocupe com isso. Acalme-se. Ofereceu-lhe um lenço que a jovem, hesitante, pegou enquanto ainda soluçava. 

    — Por que está chorando? Alguém foi descortês com você? 

    Charlotte se enrijeceu. Recordou as palavras de Ernestine: logo seria obrigada a se casar com aquele homem. De repente arrependeu-se de ter desabado em lágrimas diante dele. Não deveria se mostrar fraca, ainda mais que para Van der Valck, ela não era outra coisa senão um negócio lucrativo.

    Ernestine tinha sido clara: tinha aceitado em tê-la como esposa por dinheiro. Provavelmente, após ter obtido aquilo que desejava, a segregaria em uma rica moradia, esquecendo-se até da sua existência. Não era assim tão inocente para acreditar que a relação deles seria baseada em afeto. 

    Inesperadamente o abdome se contraiu pela raiva, e seus dedos começaram a apertar nervosamente o lenço. — Que lhe importa? — respondeu com ódio.

    Leonardus a indagou desconfiado. Tinha percebido a sua repentina mudança de humor, mas não entendia o motivo. Talvez lhe tenham dado a notícia de seu casamento? Será que estava chorando por isso? Bem, certamente não podia criticá-la. Nenhuma mocinha inocente teria desejado casar-se com um demônio como ele. Entretanto, aquele pensamento o incomodou. — É meu dever assegurar-me de seu bem estar. É para isso que fui pago, madame.

    A menção ao fato de que para ele toda aquela situação fosse só um trabalho a magoou profundamente. Mordeu o lábio inferior e se desprendeu daquele abraço inoportuno.     

    — Não tenha medo — respondeu-lhe, com frieza. — Não perderá o seu dinheiro por minha causa. Não deveria chorar, mas como bem sabe, perdi minha família e fui pega em um momento de desalento. No entanto, não o aborrecerei mais com os meus problemas. Queira me desculpar.

    Afastou-se antes que de algum modo pudesse lhe responder. Leonardus a observou afastar-se empertigada e foi pego por uma inesperada irritação. Como aquela menina detestável ousava tratá-lo daquela maneira? Se aquelas eram as premissas da sua vida juntos, as perspectivas não eram nada róseas. Contrariado, estalou a língua e continuou a subir as escadas.

    Charlotte nesse ínterim saiu do

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