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O Esquecimento de Gastão
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Ebook123 pages1 hour

O Esquecimento de Gastão

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   Gastão se desperta ao Real, despois de cruzar seu olhar com Valéria. Esqueceu-se de si mesmo, porém, a partir deste olhar crucial e, depois de quase morrer pelo impacto daquele instante que o expôs desnudo ante a eternidade, começa a desandar o caminho da Recordação. João anda procurando; não poderíamos dizer que ele saiba o que realmente busca, mas, sim, podemos perceber a Esperança de João na Arte de Buscar. Valéria, enquanto isso, olha o mundo e eles: João e Gastão. Nela convivem duas realidades. Uma, a cotidiana, com namorado formal e amigas e as coisas típicas de uma mocinha de sua idade. A outra, que é como uma lembrança, uma rapsódia boêmia de cigarras, como narra o poeta, ou uma voz em sua cabeça que às vezes a incomoda e outras vezes a transporta à substância essencial da Alma. Uma praça estranha em uma cidade qualquer, uma tia cega e as formigas. E os cães que tomam a cidade em uma Revolução de pulgas e fedor de cachorro. Um aniversário e alguns paradigmas do efêmero questionados por esta história de Amor Verdadeiro, além do Tempo e do Espaço. 

LanguagePortuguês
Release dateApr 14, 2018
ISBN9781547504923
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    O Esquecimento de Gastão - Juan Pedropablo

    O esquecimento de Gastão

    Magia para um Reencontro

    Juan Pedropablo

    [Tradução ao português de Antônio Vilasboas, 2017]

    Porque assim Foi É e Será

    Dedicado a todos aqueles que em algum momento de suas vidas experimentaram o milagre da Comunhão Sagrada no Olhar Reflexo

    E um dia, os elefantes se reunirão para esquecer... Todos, menos um

    _Rafael Courtoisie_

    Se eu, Sócrates, me esqueço de mim mesmo, é que não Sou

    _Platão_

    Guiado por aquela trilha de formigas, Gastão chega a uns esgotos onde catadores de papel de bocas fedorentas e desdentadas o recebem com a cortesia desdenhosa com que costumam tratar seus pares desconhecidos. Mas em minutos farejam que o recém-chegado não é um indigente comum, por certo ar de arrogância extraviada. Sondam com perguntas o mendigo desconhecido, que como andou a cata de caixas de papelão, que se era verdade que, no albergue tal iam abrir um refeitório para os necessitados, que se ele sabia algo sobre um colega que tinha encontrado em uma lata de lixo um feto de uns seis meses de gestação, que ele comeu depois de fervê-lo com batatas, cebolas e abóbora. E Gastão os escuta, atento, mas só consegue levantar os ombros, ou agachar sua cabeça, que dá no mesmo, como dizendo não sei, com o corpo, e o diz, agora com sua voz, não sei, não sei nada, não tenho nem ideia. Acontece então que os catadores de papel se entreolham, mastigando bronca e mais do que tudo desprezo, justo antes de disparar-lhe uma saraivada de insultos e cusparadas. Mas se de algo conhece Gastão é de rejeições, pelo que não lhe custa muito sobrepor-se ao mau momento e recobrar o carreiro sinuoso das formigas, que agora persegue gatinhando como um bebê. E gatinhando e babando se intromete em uma galeria de arte que expõe pinturas da vanguarda local, sem ser visto pelo guarda que olha reto para o horizonte e nunca baixa a vista. E os ali presentes não só não baixam a vista, mas olham mais alto do que o horizonte, farejando com narizes arrebitados o ar das alturas de uma arte para poucos. Por um momento Gastão passa despercebido, ao rés do chão, indo e vindo daqui pra lá atrás das formigas, até que a vontade caprichosa destas decide um desejo de bobes e o introduz nos ambíguos ares íntimos de debaixo da saia de uma dama. O imediato alarido de indignação reverbera no minimalismo da sala, perturbando a pose da guarda que, entrevado de tanto fixar o horizonte, não pode pegar Gastão, que escapa.

    ––––––––

    Ele se repõe logo da adrenalina do trote e recomeça sua obstinada perseguição. Sobe então com grande esforço pela fachada de um antigo edifício, agarrando-se a molduras e arquitraves, até que consegue chegar à balaustrada, sobre a qual ergue seu corpo em um incerto equilíbrio. E teria seguido como um gato confiado pela ferrugem do telhado de zinco, já que por ali iam as negrinhas, de não terem chamado a sua atenção outras formigas. O formigueiro do povo, pensa Gastão, enquanto olha desde cima a perspectiva de uma avenida lotada de gente, o João me disse, o formigueiro do mundo, conclui em sua mente. Enquanto isso, lá embaixo, no meio da multidão, já põem a mão na cabeça quatro ou cinco pessoas paradas na cerca em frente, pedindo-lhe que por favor não se jogue. Não te jogues, irmão, por favor, que logo vais conseguir um trabalho, porque para tudo há remédio neste mundo, para tudo, menos para a morte, gritam consternados, e contagiam a agitação a centenas e centenas de pessoas que agora se apertam no lugar excitados pela sirenes da polícia e dos bombeiros. Mas Gastão os ignora, e decepciona a morbosidade da multidão com uma meia-volta frouxa e, negligenciando seu andar, atravessa o telhado de zinco enferrujado pisando uma saliência que lhe perfura a sola desgastada do sapato. Mas ele não liga para a dor, e salta para um terreno baldio onde vasculha no meio das pastagens o caminho das formigas, desdenhando o incômodo de espinhos e carrapichos que se aderem ao tecido de seu casacão. Contorna depois o último obstáculo, um lamaçal musgoso, ao que salta sem dificuldade, para em seguida, cruzar caminhando calmamente o passeio dos álamos e chegar ao centro de uma praça onde sob um banco corrompido pela umidade está o formigueiro. Satisfeito, ele se acomoda na madeira. Fecha os olhos. Cabeceia duas ou três vezes, e quando tudo indica que o sono vai vencê-lo, boceja confortavelmente e presta atenção às esculturas que povoam a praça. A poucos metros de distância, uma loira lhe fixa dissimuladamente o olhar, e Gaston se sente nu, desamparado.

    ––––––––

    Valéria é loira, alta, de olhos azuis apoiados por um nariz reto de autoridade, e uma pequena assimetria na composição de seu rosto lhe confere um esgar que à primeira vista Gastão imagina ser desdém. Trabalha em uma repartição do estado que distribui entre os pobres a esmola do poder. Está para ser aceita em Licenciatura em Assuntos Sociais, e desde menina, quando, no jardim de sua casa de interior protegia o balanço atento das flores mexidas pelo vento, interpondo-se com alma e vestidinho de rosinhas aos socos certeiros de seus primos praticando boxe, soube que a seu lado era o esquerdo, e quando seus pais se divorciaram e ela foi viver com seu cão Batuque e sua tia cega na cidade, em um apartamento de dois dormitórios e em um oitavo andar, entendeu que sua altura era o gramado, e mesmo agora, quando salvaguarda os grilos das pisaduras precisas que sua tia cega lhe propina com rigor indeciso nos pavimentos da praça em que cultivam o hábito de caminhar a sesta, tomadas pelo braço e ruminando saudades, ela se convence de que sua cor não é a cinza, porque na cidade tudo se pinta de cinza, tia, tudo de cinza, apesar das marquises fluorescentes, apesar do carnaval de gestos e cores nas fachadas, porque na cidade a gente se esquece, tia, e é como um cinza, e é então quando no peito de Valéria afloram as cores e o aroma de sua terra natal, de nosso povo, tia, onde me diziam A Valéria, a do sol no cabelo e os olhos de água.

    ––––––––

    Mas em teus olhos estava teu império, teu sussurro de luz fria e inescapável, e a sombra de tua nostalgia apagava o gelo de teu olhar. E foi um buraco olhar-te Valéria, um buraco ao contrário, porque quando te fixaste em mim eu me senti nu, desamparado. E parecias indefenso Gastão, exposto, aí, jogado como um saco de ossos nesse banco da praça, com a expressão perdida em um olhar vazio, em um olhar que parecia de cego, porque olhavas para muito além ou aquém deste mundo que não vias. Porque me olhaste como que pedindo ajuda. Porque te olhei e soube que estava exposto a ti. Porque me olhaste e sem querer te vi. Porque me chamaste a atenção Gastão, porque me pareceu que te conhecia. Porque quis saber quem eras Valéria, e saber quem sou. E parecias bêbado ou doente, com esse casacão ridículo esfarrapado nos cotovelos, desfiado nos bolsos e sujo que era um nojo, no banco dessa praça em que passavam centenas e centenas de estudantes universitários, detendo-se para rir de teu casacão ultrapassado, o último da moda, talvez, o que está vindo, diziam, casacões à moda do avô, riam-se. Mas tu estavas alheio a tudo e a todos. E nem sequer percebeste as duas senhoras que aproximavam os rostos ao teu cochichando que parecias drogado, e que talvez alguém tinha que avisar à polícia, porque coitadinho, parece drogado. Mas bastou que limpasses com a manga a baba que caia de tua boca e mostrasses a língua como um bebê, balbuciando algo, para que as boas intenções delas mudassem em caretas de indignação, enquanto se afastavam horrorizadas e gritando que eras um degenerado, e quão perdida estava a juventude, porque estavas babando Gastão, estavas babando, falando sozinho, alheio a tudo, até que olhaste para mim. E foi como uma piedade sem piedade, uma mistura de ternura de mãe e algo mais. E de haver sabido Gastão, eu te juro que haveria cuspido em ti ou te haveria chutado, ou quem sabe eu te beijava Gastão, te beijava.

    ––––––––

    - Estás bem?

    - Sim, e tu?

    -  Eu? - Valéria sorri - Eu estou bem. Mas tu, sei lá, pensei que não estavas bem.

    -  Eu só estava olhando, as esculturas.

    -  Sim?, que bom, eu adoro pintar - diz Valéria com um entusiasmo algo fingido - e às vezes também faço algumas coisinhas em argila, pequenos objetos, tu fazes alguma coisa?

    -  Não, não faço nada, mas repara naquele reflexo, consegues vê-lo?, perto da fonte, ali onde brilha a nostalgia desse pavimento, ou aquela sombra, não sei

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