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Terra de Sonhos
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Terra de Sonhos

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About this ebook

"Terra de Sonhos" é uma compilação de textos que o autor escreveu na adolescência (entre os onze e os quinze anos). Fantasmas à Lareira, que abre este livro, é a sua primeira grande experiência de ficção narrativa. Nela se conta a história de dois irmãos que vivem numa aldeia. A vida familiar, a escola, os amigos, os vizinhos, as pequenas peripécias que vão acontecendo, entre elas a aparição de fantasmas, fruto da imaginação e da superstição, são os principais temas deste pequeno romance. Miguel Anão é a segunda narrativa publicada no livro, e conta a história de um jovem cientista que, para salvar o mundo da destruição nuclear, faz um pacto com as formigas e as abelhas. O livro contém ainda outras narrativas de curta dimensão, algumas composições e um diário. Em todos estes textos se descobre um adolescente imerso na “terra dos sonhos” de que é feita a literatura e de que deriva a essência humana que impele à descoberta e à aventura.

LanguagePortuguês
PublisherJosé Machado
Release dateJan 28, 2018
ISBN9781386769040
Terra de Sonhos
Author

José Leon Machado

José Leon Machado nasceu em Braga no dia 25 de Novembro de 1965. Estudou na Escola Secundária Sá de Miranda e licenciou-se em Humanidades pela Faculdade de Filosofia de Braga. Frequentou o mestrado na Universidade do Minho, tendo-o concluído com uma dissertação sobre literatura comparada. Actualmente, é Professor Auxiliar do Departamento de Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde se doutorou em Linguística Portuguesa. Tem colaborado em vários jornais e revistas com crónicas, contos e artigos de crítica literária. A par do seu trabalho de investigação e ensino, tem-se dedicado à escrita literária, especialmente à ficção. Influenciado pelos autores clássicos greco-latinos e pelos autores anglo-saxónicos, a sua escrita é simples e concisa, afastando-se em larga medida da escrita de grande parte dos autores portugueses actuais, que considera, segundo uma entrevista recente, «na sua maioria ou barrocamente ilegíveis com um público constituído por meia dúzia de iluminados, ou bacocamente amorfos com um público mal formado por um analfabetismo de séculos.»

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    Terra de Sonhos - José Leon Machado

    Fantasmas à Lareira

    CAPÍTULO I

    Uma noite fria e escura de inverno varre uma pequena e bela aldeia minhota. Numa das muitas casas de granito espalhadas pela mansidão dos campos, uma família, aquecendo-se à lareira que ilumina a cozinha, descansa e conversa para se descontrair do dia de trabalho. Na noite lá fora, negra e trémula, vagueiam milhentos fantasmas, como conta o Ti Joaquim, um homem honrado e dado à virtude. Agora está velho, cansado pela triste vida que passou. É viúvo e tem apenas uma filha já casada e com dois filhos. Todos vivem entre as mesmas paredes e sob o mesmo teto, exceto o genro, que emigrou para um país onde se ganha melhor a vida.

    Os dois netos ouvem o avô com muita atenção, parecendo ter medo do que ele diz. São dois rapazes com várias diferenças entre si. O João é o mais inteligente e o Manuel o mais trabalhador, sendo também o mais traquinas.

    Sentado num mocho perto da lareira, o avô conta com a voz rouca pela idade:

    – Manuel e João, quando eu era da vossa idade, aventurava-me pelas bandas do rio. E certo dia à noite, eu e outro amigo fomos para aquelas paragens. Quando estávamos perto da água, sabeis o que o que vimos?

    – O diabo! – respondeu o Manuel amedrontado. – Ou então um anjo com cara de diabo.

    – Nada disso! – interrompeu o avô. – Um barco com dois fantasmas dentro, vestidos de preto, a cara tapada e uma lanterna pendurada num pau. Pareciam vir do fundo do inferno.

    As crianças tremeram com a cara que o avô fazia.

    – Ouviam-se pios de morcego e de mocho – continuou o avô. – Nós deitámos a correr pelos campos fora e só fomos parar dentro de casa.

    – Tiveram medo? – perguntou o João.

    – Se tivemos! Nunca mais nos chegámos junto do rio à noite.

    A conversa terminou aqui, pois a Dona Joana tinha acabado de lavar a loiça do jantar e mandou os filhos para a cama. Depois de estes saírem, disse o Ti Joaquim para a filha:

    – Os teus pequenos são adoráveis. Se o teu marido não estivesse na França, eles seriam mais divertidos e alegres.

    – Gostam do pai – respondeu ela.

    O velhote levantou-se, pegou numa vasilha com água e atirou-a para cima do fogo. O lume apagou-se e saíram os dois para o interior da casa, seguindo cada um para o seu quarto. O sono de todos foi pesado, pois trabalharam muito no campo durante o dia.

    No dia seguinte de manhã, a aldeia acordou com o céu quase limpo, a mostrar que seria um belo dia de inverno. Na pequena casa do Ti Joaquim, toda a gente se levanta. Enquanto a Dona Joana prepara o pequeno-almoço, os filhos lavam a cara e o avô rapa a barba. Depois de almoçarem, vão para o campo iniciar os trabalhos. Cada um leva uma enxada ao ombro. O Manuel e o João com as suas parecem já uns homens. O avô, a manquejar, parece uma charrua enferrujada a mover-se. Quanto à Dona Joana, leva um ar ligeiro, próprio das mulheres de trinta anos.

    Chegam às propriedades pertencentes ao Ti Joaquim. Eram dois campos de um hectare cada, um outro de cerca de três hectares, onde crescia o centeio, e duas pequenas leiras. Resolveram plantar tronchudas nas duas leiras e estavam ali para preparar a terra. Enquanto cavavam, par a par, o Manuel perguntou:

    – Ó avô, aquilo que ontem nos contou foi verdade?

    – Claro que foi! Eu seja cego! E houve quem depois visse os fantasmas por diversas vezes.

    – O avô só inventa! Enche-nos a cabeça com coisas aterrorizadoras para andarmos assustados – concluiu o João.

    – Se não acreditam no que vos contei, a mim pouco me importa – concluiu o velhote metendo a enxada na terra húmida. – Se um dia virem o fantasma, não tratem de correr, não...

    – O melhor é termos cuidado – sugeriu o Manuel a meia voz ao irmão, para que o avô não ouvisse. – Sabe-se lá o que pode haver no rio.

    De tarde, os dois irmãos foram à escola. O João e o Manuel frequentavam a terceira classe, tendo este último já reprovado um ano. Embora fossem educados ao modo da aldeia, o João fugia um pouco à regra. Pelo caminho, falavam do que o avô lhes tinha contado à lareira na noite anterior:

    – O avô talvez tenha dito a verdade acerca dos fantasmas – disse o Manuel.

    – Sim, mas com algum exagero – respondeu o irmão.

    – Nunca mais me chegarei àquela parte do rio à noite. Safa!

    – És um cobardolas!

    E assim foram caminhando, a conversar sobre este e outros assuntos, até chegarem à escola.

    CAPÍTULO II

    O tempo foi passando e a estória dos fantasmas foi sendo esquecida. Poucas coisas mudaram nas últimas semanas na aldeia. O centeio cresceu bastante e as tronchudas foram plantadas. A novidade mais importante era a construção de um café pelo Justino Gomes, um ex-emigrante. Seria um passatempo nas tardes de domingo para o povo da aldeia. As famílias viviam da agricultura e o nível económico era baixo. Produziam o necessário para subsistir e vendiam o excedente no mercado da cidade.

    Um domingo, o Ti Joaquim encontrava-se na velha taberna a beber um copo com os amigos. Todas as reuniões e encontros da aldeia se faziam na taberna, propriedade de Manuel do Souto, presidente da Junta de Freguesia e homem prestigiado pelo povo. À volta de uma mesa retangular de madeira no centro do estabelecimento, estavam três homens: o Ti Joaquim, o Zé das Fontes e o Ti Ribeirinho, todos eles muito amigos. Por detrás do balcão estava o Manuel do Souto a limpar malgas. O Zé das Fontes dizia:

    – Este ano haverá muito pão. A chuva carregou pouco. Tivemos cá uma sorte!...

    – Muita sorte, mesmo. Se não fosse Deus, nosso senhor, e a minha falecida Maria, as minhas sementeiras estariam a zero – acrescentou o Ti Joaquim.

    – Querem que lhes diga uma coisa? – interrompeu o Ti Ribeirinho. – Eu tenho andado a pensar num assunto muito importante.

    – Então fale, homem! – pediu o Ti Joaquim.

    – Como a nossa terra não tem energia elétrica, poderíamos fazer qualquer coisa para a mandar vir.

    – Não é má ideia – disse o Zé das Fontes –, que pudéssemos usar essa novidade para iluminar as casas. Mas é quase impossível.

    – Quase impossível?! – repetiu o Ti Ribeirinho indignado. – É um pouco difícil, mas podemos tentar. As outras freguesias aqui ao redor já a têm.

    – Teremos muito trabalho... – disse o Zé das Fontes, acabando de beber o vinho do seu copo.

    – Primeiro é preciso meter a papelada com o pedido nos Serviços e na Câmara – lembrou o Manuel do Souto. – E depois esperar. Eu amanhã vou à cidade, preencho os papéis, meto-os e vamos ver no que dá. Podem contar comigo.

    Entretanto, chegou o homem mais temido da aldeia, o Domingos Feio. Sempre que saía de casa, levava a espingarda consigo. Como era muito ciumento, não gostava de ver ninguém a dizer bom dia à esposa. Certa vez, correu um indivíduo a tiro apenas por ele ter passado pela esposa e lhe deitar os olhos. Quando se cruzava com alguém conhecido, não dizia as saudações. Quando alguém o saudava, ele não respondia. Além de ser o homem mais temido, era também o mais bruto e o mais estúpido da aldeia.

    Entrou na taberna, pôs-se estacado à frente do balcão como um soldado em sentido, mexendo apenas os lábios. Quando os três fregueses notaram a sua presença, calaram-se.

    – Um quartilho numa malga de litro! – disse para o taberneiro.

    – Numa malga de litro?! – exclamou o Manuel do Souto. – Mas a malga é grande demais.

    – Faça o que eu lhe pedi e ande depressa, que estou com o gargalo seco.

    – Vou deitar o vinho numa malga de quartilho.

    – Não! – gritou ele furioso. – Não quero beber por uma chávena. Isso é prás senhoras. Gosto de beber à minha vontade, como homem de pelo na venta.

    – Está bem – disse o taberneiro encolhendo os ombros e pegando numa grande malga onde deitou um quartilho de vinho que mal cobriu o fundo.

    O Domingos Feio pegou na malga e, virando-se para os três homens da mesa, grunhiu:

    – Por que pararam de falar? Têm medo de mim?

    – Não temos medo de ninguém! – respondeu o Ti Ribeirinho.

    – Mas pode ser que tenham. Cuidadinho! Uma palavra mal dita e vão para os anjinhos.

    – Devias ter vergonha de vir para aqui importunar quem está sossegado.

    – Caluda! Não me torne a falar nesse tom!

    – Eu, se fosse a ti, metia a cabeça num saco e nunca mais a tirava – interrompeu o Ti Joaquim.

    O bruto poisou a grande malga em cima do balcão, atirou algumas moedas e saiu da taberna como um foguete.

    – Este homem é o diabo em pessoa – comentou o Ti Ribeirinho. – Deve andar empecido.

    CAPÍTULO III

    Certo dia, as crianças brincavam alegremente no recreio da escola. Era de tarde, o céu estava muito nublado, mas não chovia. O Manuel e o João comiam um pedaço de pão com chouriço, sentados numas pedras encostadas a um muro. Uma menina de cabelos loiros aproximou-se dos dois e disse a sorrir:

    – Quereis brincar à cabra-cega?

    – Vamos? – perguntou o Manuel ao irmão.

    – Não me apetece. Vai tu.

    – Anda também. Precisamos de mais dois – pediu a menina.

    – Não, ide vós – recusou o João.

    O Manuel acompanhou a coleguinha, que se chamava Isabel. Aproximaram-se de um grupo de meninas e organizaram o jogo. O Manuel foi escolhido para cabra-cega. As meninas vendaram-lhe os olhos com um lenço e começou o jogo. O miúdo, não vendo nada, tentou reconhecer através de apalpadelas as companheiras. Elas riam, correndo à volta dele e evitando ser apanhadas.

    Entretanto, aproximou-se o Paulo, filho do temido Domingos Feio. Julgava-se o mais forte da escola e, onde se metia, arranjava sempre sarilhos. Era malcriado, chateava-se por tudo e por nada, andava sempre à bulha com os colegas e, quando se zangava, era capaz de deitar a escola abaixo. Sentou-se ao lado do João e perguntou:

    – Estás a ver as burrinhas das raparigas e o maricas do teu irmão a jogar?

    – Não te admito que fales assim do meu irmão!

    – A sério? Que gracinha!

    Tocou com o indicador direito no queixo do João e acrescentou:

    – Olha bem para mim: eu é que não admito que me fales assim. Sabes o que te pode acontecer? Isto.

    E deitou-lhe as mãos ao pescoço.

    O João ficou tão aflito que nem conseguia falar. O outro largou-o por fim e exclamou:

    – Até tenho pena de ti!

    Deu-lhe um empurrão e o miúdo caiu no chão.

    – Que belo tombo! – disse o malandro a rir-se.

    – Eu vingo-me – respondeu o João com as lágrimas a virem-lhe e olhando o pedaço de pão caído por terra.

    – De quem é que te vingas? Diz-me de quem! Eu avisei. Agora apanhas a sério.

    Levantou-o do chão e deu-lhe uns socos.

    O João retornou ao chão. As crianças que jogavam à cabra-cega foram alertadas pelo barulho e pararam o jogo. O Manuel tirou o lenço dos olhos, viu o irmão por terra e atirou-se como uma fera sobre o Paulo. Desenrolou-se uma luta de pontapés, socos e arranhadelas. Os dois irmãos, juntos, lutaram desesperadamente. A luta mesmo assim era desigual, pois o Paulo era um matulão e sabia defender-se. Como a professora saiu ao recreio, o matulão teve receio de ser castigado e afastou-se. Na cara dos dois irmãos ainda se via a aflição da luta. Mas como já tudo estava resolvido, foram jogar com as meninas.

    Ao cair da tarde, as aulas terminaram e todos foram para casa. Quando o Manuel e o João chegaram, a mãe, vendo-os sujos, perguntou-lhes o que tinha acontecido. Eles ficaram muito aflitos, pois, se a mãe soubesse que eles andaram à porrada na escola, batia-lhes. O João, vendo que o irmão nada dizia, resolveu falar:

    – Não aconteceu nada.

    – E as vossas roupas? Olhai-me para essas calças!

    – Calças? Que calças?

    – As vossas, claro.

    Os dois olharam para as calças que levavam vestidas. Tinham-se esquecido de as limpar depois da zaragata.

    – Não respondem?

    A Dona Joana pegou num chicote que estava pendurado por detrás da porta da cozinha e disse:

    – Ou falais a bem, ou a mal. Quem é o primeiro?

    – Tropeçámos e caímos – disse o João a medo.

    – Não acredito. Andastes à porrada na escola, não foi?

    O João começou a choramingar.

    – Já percebi tudo!

    A Dona Joana deu três chicotadas ao de leve no traseiro de cada filho e estes começaram a chorar.

    – Foi o Paulo Feio que se armou. Bateu no João, eu fui acudir e demos-lhe uma lição – disse o Manuel entre soluços.

    – Até que enfim! Confessaram. Já para o quarto, seus malandros! – ordenou a mãe batendo com o chicote na mesa.

    O avô chegou nesse momento e ficou admirado com aquela barulheira.

    – O que é que se passa aqui?

    – Fizeram das deles! Andaram à porrada.

    – Empresta-me o chicote. Vou ensiná-los a andar direitinhos.

    Aproximou-se dos netos e deu-lhes mais algumas chicotadas.

    – Tomem! Tomem! Tomem!

    E deixou-os a gemer. Eles meteram-se no quarto a chorar, mas o avô disse-lhes que, se não se calassem, levariam mais.

    Pobres crianças! Levarem porrada inocentemente! Mas, como é uso da aldeia, não podemos dizer nada. São costumes.

    CAPÍTULO IV

    A primavera chegou. As ameixeiras, os pessegueiros, as cerejeiras e as pereiras estavam carregadas de flores. As herdades pareciam um jardim. Os prados estavam cobertos por um tapete de pequenas flores amarelas, vermelhas e violeta. As poucas laranjas existentes nas laranjeiras que escaparam à chuva do inverno cintilavam ao sol. O centeio já crescido abria-se em espigas ainda verdes. A rama das batatas, plantadas há pouco, furavam a terra fresca.

    Os pássaros chilreavam alegres. Nalgumas cerejeiras em flor, os pardais acasalavam para formar novos lares. As andorinhas, acabadas de chegar, já tinham começado a construir os ninhos. As lagartas, que

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