Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente
By José Leon Machado and Gil Vicente
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"As duas barcas tinham encostado ao cais não muito longe uma da outra. A tripulação podia até trocar palavras entre si. Mas isso não acontecia, pois os anjos e os demónios estavam proibidos de se relacionarem por causa de uma lei que, embora não fosse ratificada por ambas as partes, tinha o acordo implícito das mesmas.
Eram barcas muito diferentes. Uma estava pintada de negro e tinha escrito a estibordo em letras de fogo Barca do Inferno. As velas não se sabia bem de que cor eram devido à sujidade. Cheirava mal e era quase impossível alguém aguentar-se dentro. Não fossem os seus tripulantes demónios e certamente teriam fugido para lugar mais arejado."
José Leon Machado
José Leon Machado nasceu em Braga no dia 25 de Novembro de 1965. Estudou na Escola Secundária Sá de Miranda e licenciou-se em Humanidades pela Faculdade de Filosofia de Braga. Frequentou o mestrado na Universidade do Minho, tendo-o concluído com uma dissertação sobre literatura comparada. Actualmente, é Professor Auxiliar do Departamento de Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde se doutorou em Linguística Portuguesa. Tem colaborado em vários jornais e revistas com crónicas, contos e artigos de crítica literária. A par do seu trabalho de investigação e ensino, tem-se dedicado à escrita literária, especialmente à ficção. Influenciado pelos autores clássicos greco-latinos e pelos autores anglo-saxónicos, a sua escrita é simples e concisa, afastando-se em larga medida da escrita de grande parte dos autores portugueses actuais, que considera, segundo uma entrevista recente, «na sua maioria ou barrocamente ilegíveis com um público constituído por meia dúzia de iluminados, ou bacocamente amorfos com um público mal formado por um analfabetismo de séculos.»
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Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente - José Leon Machado
ADAPTAÇÃO EM PROSA
«A barca firme e segura e forte e bem aparelhada, o estado das virtudes é, e de bom e santo viver honesto, e sem querela de Deus e do próximo, em que mui poucos perecem e a maior parte salva, em tal estado assim como em a barca segura podem navegar seguramente e passar sem perigo por as ondas da tormenta deste mundo a porto seguro e [divinal] prazer que é a glória. A barca fraca, podre, rota, o estado dos pecados é, e da má e corrupta e dissoluta vida, em tal estado assim como em barca podre não pode com segurança e sem perigo as tormentas da presente vida passar, nem a porto de folgança e desejado aportar.»
D. Duarte, Leal Conselheiro (1438)
As duas barcas tinham encostado ao cais não muito longe uma da outra. A tripulação podia até trocar palavras entre si. Mas isso não acontecia, pois os anjos e os demónios estavam proibidos de se relacionarem por causa de uma lei que, embora não fosse ratificada por ambas as partes, tinha o acordo implícito das mesmas.
Eram barcas muito diferentes. Uma estava pintada de negro e tinha escrito a estibordo em letras de fogo Barca do Inferno. As velas não se sabia bem de que cor eram devido à sujidade. Cheirava mal e era quase impossível alguém aguentar-se dentro. Não fossem os seus tripulantes demónios e certamente teriam fugido para lugar mais arejado.
A outra barca estava pintada de branco, tinha escrito a bombordo em letras cor-de-rosa Barca da Glória. As velas eram brancas e deviam ter sido lavadas recentemente com um daqueles detergentes que lavam mais branco. Dentro cheirava a rosas e havia um sorriso em todos os anjos, como se estivessem a ver continuamente Deus. Porque dizem que quem vê Deus, fica assim, com um sorriso idiota na boca.
Na Barca da Glória, os anjos, sempre a sorrir, olhavam para o céu, que naquele sítio era azul, enquanto ouviam uma música de flauta e de arpa que não se sabia bem donde vinha. Na Barca do Inferno, os demónios praguejavam uns com os outros, faziam caretas e gestos obscenos. O céu, por cima, era cinzento escuro e eles nem para ele olhavam.
As duas barcas estavam a aguardar as pessoas que morriam para depois transportarem as suas almas para os lugares onde passariam definitivamente a residir, isto é, para o Céu ou para o Inferno, conforme os pecados que cometeram durante a vida.
Estavam, quer os anjos, quer os demónios, a ficar inquietos com a falta de passageiros naquele dia. Parece que não morria ninguém. Onde andaria a comadre Morte? Ter-se-ia ela esquecido de cumprir o seu dever, que era tocar nas pessoas com a ponta da gadanha e mandá-las para o outro mundo?
Pensando já que naquele dia não teriam sorte, eis que surge um passageiro ricamente vestido, com o rabo do manto a arrastar pelo chão de tão comprido, de espada à cinta e com um criado um pouco atrás carregando às costas uma pesada cadeira.
– À barca, à barca! Hou lá!, que a maré está mesmo de feição – gritou o diabo quando o viu.
E, voltando-se para o companheiro, ordenou-lhe que arranjasse espaço no convés para a ilustre personagem que acabava de chegar.
– Em boa hora logo é feito – respondeu-lhe o outro.
– Prepara as velas, levanta a âncora, pois partiremos dentro em breve.
O passageiro aproxima-se da Barca do Inferno e o diabo pergunta:
– Ó precioso Dom Henrique, que vindes vós