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A Quinta do Marquês
A Quinta do Marquês
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A Quinta do Marquês

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About this ebook

O caminho era íngreme e não permitia andar depressa. A mota resvalava e o Rui procurava equilibrá-la o melhor que sabia. Chegaram a um pequeno planalto, com o feno a balouçar ao sabor do vento. De longe a longe, viam-se árvores baixas deformadas. Mais ao fundo, erguia-se uma protuberância rochosa. No cimo, existia uma construção em cimento em forma de uma garrafa gigante, pintada às riscas vermelhas e brancas. Era um marco geodésico. Sentaram-se na sapata da garrafa e olharam à volta. A vista era espantosa. Via-se a aldeia onde viviam lá em baixo, com as casas e caminhos. Mais longe, o rio Cávado a dividir o vale ao meio, numa longa curva. Mais perto, mesmo junto ao monte, ficava a quinta abandonada onde tinham estado antes e, do outro lado da estrada, a Quinta do Marquês onde vivia o velho alemão. Era uma casa imponente, com as fachadas em granito, de forma quadrada, o centro aberto, com um chafariz no meio e um jardim de formas geométricas.

LanguagePortuguês
PublisherEd. Vercial
Release dateFeb 5, 2018
ISBN9789898392336
A Quinta do Marquês
Author

Francisco Martins

Francisco Martins was born in Santarém, Portugal. He wrote and directed his first play when he was twelve, and got curious about the effect it produced on people. Bearing that in mind, he began experimenting with essays and short stories that he only showed to a small group of friends. When he was fourteen, he started conjecturing about the underpinnings of human nature, and wrote a series of stories about significant historical events. It was only after spending a month in New York City that he started writing in English. The Salmon under the Soulberry Tree is his debut novella.

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    A Quinta do Marquês - Francisco Martins

    CAPÍTULO I

    Com o saco da marmita ao ombro, depois de mais um dia de trabalho, o Gaspar Cardoso foi a pé para casa. Pouco passava das seis da tarde e era noite. Caía uma chuva miúda que gelava os ossos. De guarda-chuva na mão, desviava-se das poças de água. Os sapatos estavam rotos nas biqueiras e sentia os pés húmidos. Enquanto cantarolava as canções da moda, ia pensando na vida.

    Fizera dezoito anos alguns dias antes e de presente a mãe deu-lhe um fato do pai que mandou virar e acertar à sua medida. Vivia a uma hora a pé da cidade de Braga. Trabalhava nas obras e, como todos os homens da família, seguiu a arte da pintura. Ele e Sara, a irmã, eram os mais novos dos sete filhos do casal, viviam com a mãe já viúva. Os outros estavam todos casados.

    O Gaspar namorava com a Arminda, uma rapariga de uma aldeia vizinha. Conhecia-a desde a infância, quando frequentavam a mesma escola. Chamavam-lhe a cigana por ser muito morena, mas ele gostava dela. Ambos sonhavam vir a ter uma vida melhor.

    A miséria incomodava-o. Não suportava a opressão dos políticos, dos senhores que ocupavam os cargos públicos e dos patrões. Acusava-os de corruptos, oportunistas e de abuso de poder. Apesar da censura, metia-se em discussões políticas com outros nas tascas. Apoiava abertamente os opositores ao regime. Era preciso fazer uma revolução. Embora não conhecesse os ideais de Marx e de Lenine, simpatizava com o comunismo. O seu espírito rebelde dizia-lhe que era comunista.

    Daí a um ano, em novembro de 1964, foram marcadas eleições legislativas. Ele foi votar pela primeira vez. A meio da manhã de domingo, vestiu-se a rigor: o fato azul-escuro que pertencera ao pai, uma camisa branca, uma gravata vermelha, e os melhores sapatos, que usava apenas ao domingo, bem engraxados. Sentia-se um homem importante, pois nesse dia decidia-se o futuro do país e a vida política nacional, acreditavam alguns, iria tomar novo rumo. No fim da missa, e após muitas advertências do padre contra aqueles que queriam destruir a nação, o Gaspar dirigiu-se à escola para exercer o seu direito de voto. Seguiu acompanhado por alguns dos jovens da aldeia. Poucos tinham sido convocados a votar, mas os que estavam na lista seguiram-no como se ele fosse o líder. Na escola, estava tudo muito calmo. O presidente da mesa, que também era o da Junta, ouviu-os chegar e foi à porta recebê-los.

    – O que se passa, rapazes? Querem alguma coisa? – perguntou autoritário.

    – Sim, vimos votar – disse o Gaspar a assumir-se como porta-voz do grupo.

    – Se é por causa disso, podem ir embora. O vosso voto já está na urna – respondeu o presidente.

    – Como é que é? – questionou um dos rapazes.

    – Foi o que ouviram.

    – Não pode ser! – exclamou o Gaspar indignado. – Eu ainda não votei!

    – Pois é, mas podes ir embora, tu e os outros. Foram instruções que recebi – explicou o presidente a desculpar-se e a tentar acalmar os ânimos.

    Os rapazes não aceitavam de ânimo leve o que ele lhes dizia e não arredavam pé.

    – É melhor obedecer. Estão-me a ouvir? É para o vosso próprio bem.

    Um deles insultou o presidente e os membros da comissão de eleições. Os outros apoiaram-no.

    – Ou põem-se a andar daqui, ou chamo a Guarda – rosnou ele.

    – Pode até chamar o Salazar – gritou um.

    Estavam decididos a invadir a escola e a acabar com toda aquela fantochada, quando apareceu o jipe da Guarda a fazer a ronda. Os agentes tentaram apaziguar a discussão, mas não adiantou nada. Para tentar repor a ordem, um deles sacou o cassetete e desatou à bordoada. Os rapazes não se ficaram e responderam a murro e pontapé.

    A chegada à escola do Sr. Guilherme veio pôr fim à violência. O Sr. Guilherme era o homem mais importante da freguesia. No tempo da guerra, matou a fome a muita gente. Desde que as minas de volfrâmio fecharam, passava pouco tempo na terra. Andava por Lisboa, segundo se dizia, em negócios de putas e aguardente.

    Os rapazes, a seu pedido, foram-se embora. O presidente é que não ficou contente com o aparecimento do homem. Sentia-se desautorizado. Vingativo, fez uma lista com o nome dos prevaricadores e entregou-a à Guarda para posterior interrogatório. Seriam apertados mais tarde. Nunca mais se haveriam esquecer do que fizeram.

    O resultado das eleições, como era de prever, deu a vitória ao partido do poder por larga maioria. Embora a oposição denunciasse haver fraude eleitoral, de nada valeu. Foi uma deceção para quem esperava alguma mudança. O Gaspar sentiu-se indignado.

    Depois de serem conhecidos os resultados oficiais, o presidente da Junta mandou chamá-lo. Queria que ele se desculpasse. Mas o Gaspar não foi lá com essa intenção. O presidente, vendo que o jovem estava com cara de poucos amigos, disse-lhe que não fez aquilo por sua livre vontade. Foi uma ordem vinda de cima. Ele é que levou aquilo muito a peito. É claro que as eleições não passavam de uma farsa. O Salazar nunca permitiria que as forças da oposição ganhassem as eleições. Fez-lhe ver bem isso. Ele ainda era muito novo para estragar a vida, não convinha envolver-se na política. Poderia ter um bom futuro se colaborasse. Daquela vez ainda teve quem lhe desse a mão, mas no futuro poderia não ser assim. O Gaspar ouviu o que o presidente lhe tinha a dizer e saiu desiludido. Não era aquilo que pretendia ouvir.

    Em 1961, iniciaram-se as guerras coloniais, que assumiram formas de grande violência. Era a luta pela independência dos países africanos, apoiados pelas potências do bloco de Leste. O Estado Novo sentiu-se ameaçado. Para segurar a revolta, foram recrutados os jovens em idade de cumprir o serviço militar. Portugal não podia perder as colónias, pois eram a herança do esforço de conquista.

    Em janeiro de 1965, apareceu o nome do Gaspar nos editais da escola. Foi chamado à inspeção militar. Os filhos dos ricos e da gente importante não ficaram aptos devido a um qualquer problema de saúde. Parece que eram todos pernetas, manetas, de pé chato, malucos ou com problemas cardíacos. Só os filhos da gentalha como ele é que levaram o carimbo de apto.

    Corria a notícia de que, se um indivíduo se casasse, não embarcava para África e cumpriria o serviço militar perto de casa. Falou com a namorada e marcaram a boda para setembro, por altura das vindimas. Porém, numa tarde de finais de fevereiro, quando a flor começou a rebentar nas ameixeiras e nos pessegueiros, ele estava tão desesperado de desejo que ela o deixou avançar demasiado e acabou por engravidar. Em maio, começou a notar-se a barriga e, devido a pressões dos pais dela, tiveram de antecipar o casamento. Ficaram a viver em casa da mãe com a irmã mais nova. Em novembro, nasceu a criança. Era um rapaz. Deram-lhe o nome de Pedro. Foi um orgulho para ele.

    Alguns meses depois, o Gaspar, recebeu a guia de marcha para assentar praça em Aveiro. Apanhou o comboio na Estação. À medida que parava nos apeadeiros e estações seguintes, o comboio foi enchendo. Iam com ele muitos rapazes conhecidos. Uns já andavam na tropa e outros iam apresentar-se pela primeira vez.

    Depois da recruta, foi para a Amadora tirar o curso de atirador. Sempre que podia, ia à terra passar o fim de semana. Às vezes, a esposa ia de comboio ter com ele. Encontravam-se na casa da irmã mais velha do Gaspar que vivia na Brandoa.

    Quando acabou o curso, foi destacado para Moçambique. De nada lhe valeu apressar-se a casar e ter filhos. Recebeu na mesma a guia de marcha para embarcar. Se morresse, deixava descendência. Mas a ideia nem por isso o tranquilizava. Na despedida, a esposa foi com ele até ao porto de embarque com o Pedrinho ao colo. Foi triste a despedida. A esposa deu-lhe uma novidade: Estava grávida outra vez. Recomendou-lhe que tivesse cuidado e que voltasse vivo. Os filhos precisavam do pai. Depois dos beijos e abraços com lágrimas à mistura, lá partiu no navio Niassa.

    O tempo ia passando. O Gaspar escrevia à esposa, mandava-lhe fotografias e dinheiro para ela e para os pequenos. Nasceu mais um rapaz, a que puseram o nome de Rui, como o padrinho, que era um dos melhores amigos do pai.

    A Arminda ouvia as notícias todos os dias na rádio. Mas estas, manipuladas pelo poder político, apenas falavam de pesadas baixas do lado dos terroristas. A cada passo ouvia comentar na aldeia que havia um funeral de mais um soldado que morreu na guerra e isto dava-lhe um aperto no coração. À noite, pedia a Deus pelo marido.

    Passados dois anos de sofrimento, o Gaspar voltou do ultramar com algumas mazelas. Quando chegou a casa, depois de ter abraçado a mulher, pegou nos dois filhos ao colo, um em cada braço, e beijou-os.

    Regressara ainda mais revoltado do que quando tinha ido. As guerras coloniais, cuja vitória militar não se vislumbrava para nenhum dos lados, começavam a desencadear por parte das Forças Armadas e dos militares regressados um forte movimento de contestação.

    Depois de retomar a vida junto da família, comprou uma motorizada em segunda mão com o dinheiro que a esposa juntou. Alugaram uma casa pequena perto da mãe dele. E assim foi arrefecendo a revolta que o consumia, pois tinha responsabilidades alargadas.

    CAPÍTULO II

    No fim do dia, a família reunia-se à mesa para jantar. O Gaspar conversava com a esposa. Os dois filhos ouviam-nos atentamente. Ele falava da necessidade de uma revolução. As coisas tinham de mudar. Só desse modo acabariam as injustiças sociais, o fascismo e a Pide. O pai entusiasmado, com os olhos inflamados, enchia novamente o copo de vinho, erguia-o a olhar para a cor vermelha e dizia, cheio de raiva:

    – Abaixo Salazar!

    E despejava o copo de uma golada, todo satisfeito.

    Os miúdos temiam a chegada da revolução que o pai anunciava. Se fosse como ele dizia, o melhor era não haver revolução nenhuma. Estava tudo muito bem assim.

    Até que, a 25 de Abril de 1974, se deu a tão esperada revolução. Nesse dia o pai saiu cedo para trabalhar. Ainda não sabia das notícias. Durante a manhã, ouviam-se muitos boatos do que se estava a passar em Lisboa. Parece que tinha havido um golpe de estado. A mãe ligou o rádio para saber o que se passava. Houve de facto uma revolta das forças armadas, que saíram à rua e tomaram conta da capital. As notícias eram acompanhadas insistentemente pelo Hino Nacional e pelas músicas do Zeca Afonso. Passava muitas vezes o Grândola Vila Morena.

    Na aldeia vivia-se um clima de incerteza. As famílias mais abastadas eram as que estavam mais preocupadas. Os mais pobres e desfavorecidos olhavam-nas com cobiça. Em breve, os bens deles seriam divididos pelo povo.

    O Pedro e o Rui passaram o resto do dia a fantasiar sobre uma possível guerra civil. O Rui achava estranho, pois eram precisas muitas armas para fazer uma guerra e ele não via nenhuma. O Pedro explicou-lhe que as armas eram guardadas nos quartéis, onde vivia a tropa.

    A mãe estava preocupada. O pai foi trabalhar para a cidade e corriam boatos de que havia conflitos por lá. Revolucionário como era, ainda se envolvia na zaragata. Rezava, a pedir a Deus pela guarda do marido.

    Pouco depois das sete, ouviram o barulho de uma motorizada a chegar. Era a do pai. Conheciam-na pelo roncar do motor. Esteve o dia todo a trabalhar e não se envolveu na confusão. O Rui achava estranho. Então o pai, que falava tanto na revolução, foi dos que lhe virou as costas?

    No ano seguinte, no verão quente de 1975, deu-se a verdadeira revolução. Os comunistas apoderavam-se aos poucos do país. Incutiam confiança aos jovens, tinham grandes apoios, ganhavam força e minavam o poder político. Nesse ano, houve conflitos graves. Em Braga, os burgueses, apoiados pelo clero, atacaram a sede do Partido Comunista, deitaram fogo ao edifício e correram com os bolcheviques.

    O pai, que era simpatizante dos comunistas, quando ouviu o que se passava, ficou indignado. Se era guerra que eles queriam, pois haveriam de a ter. Mas acobardou-se quando pensou na mulher e nos dois filhos. Deixou arrefecer os ânimos, não se envolveu na rebelião e no fim do trabalho passou pelo Campo da Vinha, para ver os estragos. O edifício estava todo queimado. Àquela hora já não havia conflito nenhum. Apenas os

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