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As Aventuras de David e seus Amigos
As Aventuras de David e seus Amigos
As Aventuras de David e seus Amigos
Ebook581 pages8 hours

As Aventuras de David e seus Amigos

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About this ebook

"As Aventuras de David e seus Amigos" são um retrato vivo de um grupo de miúdos dos nossos dias que, numa sociedade ofuscada pela tecnologia, ainda se diverte ao ar livre. David, a personagem principal, é um miúdo de 11 anos que vive com os pais e os irmãos na vila mais antiga de Portugal: Ponte de Lima. Nesta obra, encontramos o David e os seus amigos numa louca e perigosa aventura em busca de um tesouro do tempo das invasões napoleónicas. Para jovens entre os 10 e os 15 anos.

LanguagePortuguês
PublisherEd. Vercial
Release dateFeb 5, 2018
ISBN9781386837091
As Aventuras de David e seus Amigos
Author

Francisco Martins

Francisco Martins was born in Santarém, Portugal. He wrote and directed his first play when he was twelve, and got curious about the effect it produced on people. Bearing that in mind, he began experimenting with essays and short stories that he only showed to a small group of friends. When he was fourteen, he started conjecturing about the underpinnings of human nature, and wrote a series of stories about significant historical events. It was only after spending a month in New York City that he started writing in English. The Salmon under the Soulberry Tree is his debut novella.

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    As Aventuras de David e seus Amigos - Francisco Martins

    Capítulo I – Apresentação

    Como de costume, o David chegou outra vez tarde a casa. A família Vilas Boas já estava a jantar. Ao entrar na cozinha, fez-se silêncio. Os manos até sentiram pena dele, porque o pai declarou que o iria castigar severamente quando voltasse.

    – Boas! – disse ele bem-disposto e a dirigir-se para o seu lugar.

    – Posso saber por onde andaste até estas horas? – perguntou o pai com maus modos.

    – Estive no parque radical com o Jorge e distraí-me nas horas.

    – Eu já te disse para não andares mais com esse rapaz – advertiu-o a mãe.

    – O Jorge é meu amigo.

    – É um vagabundo e é má companhia.

    – Vocês dizem isso porque não o conhecem.

    – A Dona Maria diz que ele rouba e é um malcriado.

    – A Dona Maria é uma cusca.

    – David, isso não se diz.

    – Mas é verdade.

    – Ele tem razão – atirou o Eugénio, a defender o irmão.

    – Pois é – concordou a Camila. – A Dona Maria passa a vida à janela a ver quem passa, para depois falar mal das pessoas pelas costas.

    – De facto, a Dona Maria não tem que fazer – concordou o pai. – É por isso que se mete na vida dos outros em vez de tratar da sua.

    – Sim – disse o David. – E o gato dela é um remeloso. Qualquer dia, o Sigma apanha-o no nosso jardim e mata-o.

    – Seja como for, não quero que andes com esse rapaz – insistiu a Magda a servir o filho.

    – Está bem... – murmurou ele com pouca convicção.

    – Antes de comer, vai lavar as mãos! – ordenou o pai.

    – Estão limpas.

    E mostrou-as.

    – Os micróbios não se veem – explicou o Eugénio.

    – Pois não – concordou a mãe. – Vá, siga, não ouviste o teu pai?

    – Pronto, eu vou.

    Levantou-se contrariado, foi à casa de banho, lavou as mãos e regressou num instante.

    O pai voltou à carga, a forçar o tom de voz, a querer mostrar que lhe iria bater:

    – O que é que estiveste a fazer no parque radical para chegares tão tarde?

    – Assisti ao torneio de skate e acrobacias de bikes.

    – Por acaso também ouvi falar – comentou o Eugénio. – Os meus colegas disseram que iriam ver.

    – Na escola havia um grande cartaz a anunciar o evento, mas eu não sabia que já era hoje – arrematou a Camila.

    – Mas foi – proferiu o David a encher um copo com água.

    – Como é que correu? – perguntou o pai.

    – Apareceu muita gente, e até veio a televisão.

    – Então foi um acontecimento desportivo importante.

    – Foi. Montaram duas rampas enormes, como os palcos dos espetáculos ao vivo e vieram os campeões nacionais.

    – E os nossos, como é que ficaram? – quis saber o pai.

    – O Geiras ficou em quinto lugar, na modalidade de skate livre, e o Rafael foi parar ao hospital.

    – O que é que aconteceu ao Rafa? – interpelou-o o Eugénio.

    – Teve um acidente – respondeu com a boca cheia.

    – Eu bem digo – anuiu a mãe. – Os desportos radicais são muito perigosos.

    – Todos os desportos têm os seus riscos – proferiu o pai.

    – Conta lá o que se passou – pediu o Eugénio.

    O David levantou-se para exemplificar.

    – Foi assim: O campeão nacional fez umas habilidades com a bike nas rampas novas. No final subiu a rampa mais alta e parou lá em cima. Acenou ao pessoal e todos o aplaudimos. De seguida saiu disparado por lá abaixo a pedalar com toda a força, subiu a rampa em frente, levantou voo a mais de cinco metros de altura... deu um salto mortal no ar, caiu direitinho e seguiu até ao final. Foi fantástico e recebeu uma grande salva de palmas. Só que o Rafael ficou com dor de cotovelo e disse: «Se ele consegue, eu também consigo». Arrancou com a sua bike para fazer o mesmo. Perto do final, parou lá em cima como o campeão. Nós aplaudimo-lo e puxamos por ele. O Rafael sorria, porque estava a correr tudo bem. De seguida largou disparado por lá abaixo, subiu a rampa do lado oposto, levantou voo, deu um salto mortal no ar e...

    – E?... – interrogou o irmão a idealizar a cena como se estivesse a ver.

    – Foi perfeito. Mas, ao cair na rampa, a bike dele partiu-se toda e o Rafael estatelou-se no chão. Bateu com a boca contra o guiador da bicicleta, partiu os dentes da frente, rebentou os lábios e ficou com as gengivas a sangrar.

    – Fogo! – atirou o pai.

    – Coitado! – lamentou a Camila horrorizada.

    – Se o Rafael tivesse uma bicicleta igual à do campeão, com certeza que conseguiria fazer a mesma proeza. – Explicou o David a voltar para o seu lugar.

    Continuaram a jantar e a conversar sobre o evento. No final a mãe juntou os restos da comida que sobrou e o pai levou-os ao Sigma. O cachorro gostava mais da comida deles do que da ração para cão e ficou todo contente ao ver o dono com o prato na mão. O Edgar voltou para a cozinha e aproveitou para levar o lixo à rua enquanto os pequenos ajudavam a mãe.

    Com tudo arrumado, os pais instalaram-se nos sofás da sala a ver televisão e os filhos sentaram-se na mesa grande a fazer os trabalhos da escola.

    Estranhamente o David não foi castigado como o pai dissera. A verdade é que o rapaz, ao chegar a casa, alegre e satisfeito, contagiou os pais e os manos com a sua boa disposição e o jantar foi animado, como era hábito naquela casa.

    Esta família vive no n.º 17 da rua do Loureiro, transversal à rua Dr. Francisco Sá Carneiro, na vila de Ponte de Lima. A casa é nova, de dois andares e de arquitetura regional com jardim. Nas traseiras da casa, existe um anexo a toda a largura do lote. A parte fechada é a garagem, têm lá guardado um Mini vermelho, que pertenceu ao pai do dono da casa e que ele anda a recuperar aos poucos. A parte aberta do anexo, abriga a casota do cão e serve de estendal para secar a roupa.

    O senhor da casa chama-se Edgar Vilas Boas. É um homem de estatura média, de olhos castanhos e cabelo grisalho com algumas entradas. Tem trinta e nove anos de idade e é engenheiro mecânico de profissão. Trabalha numa empresa de venda e reparação de tratores e máquinas agrícolas perto da vila. Magda, a esposa, é mais nova do que o marido dois anos. Alta e magra, tem o cabelo castanho, olhos cor de mel, pele rosada e conserva ainda a frescura da juventude. É formada em Gestão de Empresas e trabalha por conta própria num gabinete de contabilidade, no Centro Comercial Rio Lethes.

    O casal, como atrás ficou dito, tem três filhos. Eugénio, o mais velho, tem catorze anos de idade e frequenta o nono ano da escola secundária. Nunca chumbou e é considerado um dos melhores alunos da escola. Não é para mais: o rapaz ganhou apego pelos livros muito cedo e nunca mais o perdeu. Desde que aprendera a ler, devorava livros de banda desenhada, História, aventuras, romances e poesia. Talvez por ser o filho mais velho, protege os irmãos e, na ausência dos pais, é ele quem assume o comando de casa. Tem uma estatura normal para a idade, é muito branco de pele, o cabelo escuro e os olhos castanhos como os do avô paterno, que ele não chegara a conhecer.

    A menina chama-se Camila, tem treze anos e frequenta o oitavo ano da mesma escola do irmão mais velho. É simpática e amorosa. Fisicamente é muito parecida com a mãe. Tem a pele rosada, o cabelo castanho, os olhos cor de mel e o rosto miudinho. Quando sorri, mostra o esmalte dos dentes muito brancos e perfeitos. À semelhança do irmão mais velho, também é muito boa aluna. Gosta de estudar e esforça-se por ser a melhor aluna da turma. Quando sente dificuldades, pede ajuda ao Eugénio, e ele ajuda-a no que pode. Só em casos excecionais é que recorrem à mãe ou ao pai.

    Por fim, temos o David, o filho mais novo e o mais traquinas dos três irmãos. Tem onze anos e anda no sexto ano da escola EB de António Feijó. De cabelo castanho, olhos castanhos claros, estatura média e é ligeiramente moreno, por andar muito ao sol. Ao contrário dos irmãos, é um rapaz rebelde e cheio de vida. Faz tantas travessuras, o que levou a que o pai o apelidasse de Furacão. A mãe, às vezes, tem de lhe bater, porque o rapaz parece possuído e só lhe arranja problemas.

    O David não é mau rapaz, bem pelo contrário. Ele é educado e gosta de ajudar os outros. O problema é que não para quieto um segundo e está sempre a aprontar. A mãe, quando lhe bate por ele ter feito alguma asneira, fica triste e amaldiçoa-se por tê-lo castigado. Mas o David não é rapaz de guardar ressentimentos nem de amuar. Passados cinco minutos, não se lembra que apanhou e ri e brinca como se nada tivesse acontecido. É um rapaz esperto, mas não é tão bom aluno como os irmãos, por não gostar de estudar. Só gosta de livros de banda desenhada, e lê-os quando está a chover muito e não pode sair de casa. De resto, não quer saber dos livros para nada e é um castigo quando os pais ou os irmãos o obrigam a pegar neles para estudar alguma coisa.

    O cão da casa chama-se Sigma. Veio da Quinta do Bugalho, é um cão de tamanho médio, de pelo branco, ligeiramente comprido e liso, de raça indefinida. A Laica, a mãe, é uma cadela arraçada com pastor alemão que faz a guarda da quinta. Tem pelo castanho claro, o que é raro de se ver nessa raça. Cruzou-se com os cães que por lá apareceram e nasceu uma ninhada.

    Foi assim há três anos atrás:

    No domingo à tarde a família Vilas Boas saiu de carro para visitar os avós à Quinta do Bugalho, no Fiat Croma preto. Quando chegaram, o portão estava fechado. O Edgar parou o carro no largo da entrada, o David saiu e tocou a sineta.

    Do lado da rua, a propriedade é toda vedada com muros altos em pedra. A entrada é coberta por um telhadinho em forma de arco e tem um pormenor arquitetónico interessante: o arco é encabeçado por três fiadas de telhas cerâmicas de canudo, sobrepostas e espaçadas alguns centímetros umas das outras, que lhe dão um ar importante. O portão é em madeira pintada de verde escuro. Do lado de dentro dos muros, existem dois grandes cedros e um caminho empedrado até ao largo em frente à casa. A habitação fica um pouco afastada da estrada. É um edifício antigo, de dois pisos com forma retangular. Por detrás da casa existe o espigueiro com dois pisos, a eira, um coberto onde guardam o trator e as alfaias agrícolas, e a casota da Laica, a cadela da quinta.

    Pouco depois de o pequeno tocar a sineta, apareceu o avô João e, ao ver quem acabara de chegar, sorriu. O David cumprimentou o avô e ajudou-o a abrir o portão.

    O Edgar entrou com o carro e parou no largo em frente à casa. A avó Clarisse esperava-os à porta. Os miúdos e os pais saíram do carro e cumprimentaram os sexagenários. Estiveram a conversar alguns minutos no exterior. Depois, a mãe e o pai seguiram com a avó Clarisse para dentro de casa e o avô João ficou no exterior com os três netos.

    – Venham comigo. Vou-vos mostrar uma coisa, que já sei que hão de gostar – disse ele.

    – O que é, avô? – inquiriu o Eugénio, curioso.

    – Já vais ver. Venham daí.

    O avô João levou os netos até à casota da Laica. Baixou-se e proferiu:

    – Espreitem lá para dentro.

    Os três manos aproximaram-se da casota e viram uma ninhada de cachorrinhos deitados com a mãe.

    – Que lindos! – disse a Camila.

    – Quantos são? – perguntou o Eugénio.

    – Cinco: dois cães e três cadelas – respondeu o avô.

    O David, curioso como era, baixou-se e entrou na casota para fazer miminhos aos cachorros.

    O avô ficou preocupado com o atrevimento do rapaz e disse:

    – David, sai imediatamente daí!

    – Porquê?

    – Não vês que a Laica não gosta que lhe mexam nos filhotes? Pode-te morder.

    O David fez miminhos na cabeça da cadela, pegou num cachorrinho cuidadosamente e mostrou-o aos manos.

    O avô João ficou admirado com o comportamento da cadela e, ao ver que os miúdos não corriam perigo, deixou-os brincar à vontade.

    A Laica não permitia que pessoas estranhas se aproximassem das crias, nem mesmo os donos. Mas estranhamente não se importou com os três irmãos.

    Havia cachorros castanho claros, como a mãe, e os castanhos-escuros. Só havia um diferente: era todo branco e pequenino. E talvez por ser diferente, os irmãos rejeitavam-no. Por esse motivo estava fraquinho e doente. As crianças gostaram de um castanho claro e gordinho. Achavam que era o mais bonito da ninhada e já o consideravam seu. Até lhe deram nome: Leão.

    O Eugénio pediu:

    – Avô, podemos ficar com o Leão?

    – Podem.

    Os pequenos olhavam uns para os outros satisfeitos.

    Já dentro de casa, o pai, ouvindo-os falar do Leão, perguntou:

    – Quem é o Leão?

    – É o cãozinho que o avô nos deu – explicou o Eugénio.

    – Sim – respondeu o avô João, satisfeito com o interesse dos netos por animais.

    – Não quero cães em casa – replicou a Magda.

    – Mãe, é só um cachorrinho – implorou a Camila.

    – Nem pensar.

    – Pai, tu deixas não deixas? – tentou o Eugénio.

    – Eu?! Não! Estou totalmente de acordo com a vossa mãe.

    – Nós já falamos sobre isso antes – lembrou-os a Magda.

    – Se é por causa do trabalho, eu comprometo-me a tratar dele – garantiu o Eugénio.

    – Nós ajudamos – arrematou o David, a olhar para a irmã, à espera que ela também concordasse.

    – Não e não! – contrapôs a mãe.

    – É tão lindo! – insistiu a Camila.

    – Não duvido.

    – Então, deixa?

    – Não, e o assunto está arrumado.

    Os pequenos insistiram. Fartaram-se de implorar, mas tanto o pai como a mãe mantiveram-se irredutíveis, e a resposta deles foi sempre a mesma: Não! Os pais tinham as razões deles. Sabiam muito bem que um cão não é nenhum brinquedo. Precisa de cuidados e de atenção e, quando o cachorro crescesse, os miúdos deixariam de lhe ligar e o trabalho sobraria para os dois.

    Nos dias seguintes, os avós arranjaram donos para a ninhada. O cachorro que os três manos chamaram de Leão foi para a casa dos primos de Braga. A cadela mais bonita foi para a Quinta de Medronhos, e as outras duas cadelas foram para uma quinta em Vila Nova de Cerveira. Só sobrou o cãozinho branco, fraquinho e doente.

    No fim-de-semana seguinte a família Vilas Boas voltou ao Bugalho e os pequenos ficaram desapontados ao verem que só sobrou a pobre criatura. Sentiram pena dele e pediram encarecidamente ao pai para os deixar ficar com o cachorrinho branco.

    O Edgar disse na brincadeira:

    – Só se for um cão de loiça.

    – Se for um cão desses, deixa? – inquiriu a Camila.

    – Deixo, porque não dão trabalho nenhum.

    – Um cão de loiça! – exclamou o Eugénio pensativo. – Que raça é essa?

    – O teu pai está a gozar convosco – chamou-os à atenção o avô João.

    – Pois está – concluiu o David. – Um cão de loiça é um boneco de barro.

    – Estão a ver como chegaram lá depressa? – disse o Edgar a rir-se.

    Mesmo assim os miúdos não desistiram. Insistiram com o pai e mostraram-lhe a pobre criatura. O Edgar, ao ver que o cachorro não iria durar muito tempo, fez-lhes a vontade e deixou-os ficar com ele.

    Mas enganou-se. Os filhos empenharam-se, souberam cuidar bem dele, e o cãozinho agarrou-se à vida e vingou. Tornou-se num cão bonito, inteligente e amigo da casa: o Sigma.

    Capítulo II – O melhor amigo

    No domingo de manhã foram todos à missa das nove horas à igreja matriz. Encontraram os avós no átrio da igreja e cumprimentaram-nos. Como já estava perto da hora, decidiram entrar e sentaram-se no mesmo banco que costumavam ocupar a meio da nave lateral direita.

    Para o David a missa era sempre um grande aborrecimento. O blá... blá...blá... do padre parecia-lhe uma eternidade. Sentiu-se sonolento e sabia que não aguentaria ficar quieto por muito tempo. Para se entreter, pôs-se a observar as pessoas que estavam na missa. Deu com o amigo Jorge do outro lado da igreja, com a mãe e a irmã. Olhou para ele e, ao entrarem em sintonia um com o outro, o David fazia gestos para lhe dizer qualquer coisa. O Jorge limitava-se a sorrir.

    O Jorge é conhecido pelos miúdos da vila por ser um rapaz rebelde. O pai faleceu de acidente de viação, há dois anos atrás, e o caso ainda estava por resolver. O Antero Miranda era engenheiro agrónomo e trabalhava como vendedor num armazém de produtos agrícolas da vila. Olívia, a esposa, tinha trinta e dois anos de idade quando o marido faleceu. Trabalha numa fábrica de calçado e andava com algumas dificuldades para pagar o avultado empréstimo da casa ao banco.

    A casa situa-se na Rua do Arrabalde e é uma moradia de dois pisos com águas furtadas voltadas para o rio.

    Quando o marido faleceu, a Olívia pediu o resgate do seguro de vida que foram obrigados a fazer no nome dos dois. Com esse dinheiro pagou grande parte da dívida da casa ao banco, mas ainda ficou a dever algum dinheiro e esse encargo depressa se tornou demasiado pesado, porque ganhava pouco.

    Tem dois filhos menores para criar, o Jorge e a Emília. O Jorge é o mais velho: tem onze anos de idade, é moreno e de olhos negros. É um rapazinho simples, alegre e brincalhão, mas, desde que o pai faleceu, tornou-se num miúdo revoltado, por ser pobre e por se sentir rejeitado por alguns colegas. A Emília tem quatro anos. É uma menina pequenina e franzina. Apesar das dificuldades em que vivem, para ela, tudo é motivo de alegria e boa disposição.

    Por causa das dificuldades económicas, a Olívia tem de se conter nas despesas e não pode dar aos filhos tudo o que eles precisam. Os miúdos, desde que o pai faleceu, passaram a andar mal-arranjados e às vezes passam fome.

    O Jorge frequenta o sexto ano da escola EB de António Feijó. Quando não tem aulas, anda um pouco perdido, porque a mãe trabalha todo o dia na fábrica de calçado e ele fica sozinho durante muito tempo. Por isso, é normal encontrá-lo na rua a vadiar. A irmã frequenta o jardim de infância e passa lá grande parte do dia.

    Quando o Jorge tinha oportunidade, roubava fruta nos campos e quintais por onde passava, ou outras coisas que achasse que faziam falta em casa. Foi desse modo que ganhou fama de roubar. É por isso que os pais dos outros miúdos não deixavam os filhos brincar com ele. Mas o David, que não liga nenhuma ao que os pais dizem, nem tão pouco se importa de apanhar tareia por causa disso, continua a ser amigo do Jorge.

    Mas falávamos da missa em que estavam os dois amigos. As pessoas dos bancos perto entretinham-se a assistir à brincadeira do David e outras olhavam para ele com ar de reprovação. O rapaz a dada altura levou uma palmada no cachaço. Olhou para trás indignado e viu o pai com a mão ameaçadora estendida para ele e a fazer cara de zangado. Os irmãos riram-se baixinho e o David percebeu que tinha de se comportar direito dentro da igreja ou o castigo ainda poderia ser pior. Tentou controlar-se, mas estava a ser difícil. Para se distrair, começou a contar batimentos cardíacos com a duração de um segundo, a ver se o tempo passava mais depressa. Chegou a um ponto que lhe perdeu a conta e quase que adormecia sentado no banco.

    No final da missa quando o padre disse: «Ide em paz e o Senhor vos acompanhe», o David sentiu um grande alívio e correu para a saída, furando por entre os adultos.

    A família reuniu-se no átrio da igreja. Os avós iriam almoçar à casa deles, na Rua do Loureiro. Como ainda era cedo, os adultos acompanharam os miúdos até à casa paroquial. Para os três irmãos, seria o primeiro dia de catequese após as férias grandes. Os pais e os avós deixaram-nos à porta do centro paroquial e foram dar uma volta pela feira de antiguidades, que estava a decorrer na Avenida dos Plátanos.

    O Eugénio e a Camila entraram logo no edifício. O David ficou à porta a falar com os colegas. Viu o Jorge do outro lado da rua e fez-lhe sinal com a mão para ele esperar. Quando os colegas do ano dele entraram, virou costas e foi ter com o amigo.

    Fizeram ambos gazeta à catequese. Como os familiares do David andavam na feira de antiguidades, para evitarem maus encontros, seguiram na direção oposta à avenida dos Plátanos. Depois de passarem a capela de São João, desataram a correr pela margem do rio Lima, satisfeitos por se sentirem em liberdade.

    Encontraram o sr. Amaro de câmara fotográfica profissional ao tiracolo e um saco ao ombro. O David cumprimentou-o:

    – Bom dia, sr. Amaro!

    – Bom dia, rapazes.

    – Anda a caçar de câmara fotográfica? – gracejou o Jorge.

    – Mais ou menos... Há dias vi por aqui uns passarinhos muito bonitos, mas na altura não trazia câmara. Agora, que vim preparado, não vejo nenhum.

    – Como se chamam os pássaros? – inquiriu o David.

    – Não me lembro do nome. São azuis e têm o peito amarelo.

    – Devem ser os guarda-rios – arriscou o Jorge.

    – Acho que sim – concordou o Amaro.

    – Onde os poderá encontrar com mais facilidade, é na outra margem do rio. Ali!

    E o Jorge apontou para o local onde desagua o rio Labruja.

    – Porquê ali?

    – Os guarda-rios alimentam-se de peixes pequenos e naquela zona há muitos cardumes a passar.

    – Faz sentido o que dizes. Como é que descobriste?

    – Foi o meu pai que me contou. Ele sabia muitas coisas sobre o rio e a pesca.

    – Pois devia saber – admitiu o Amaro, com pena do rapaz.

    – Se quiser, nós podemos acompanhá-lo – ofereceu-se o David.

    – E não vos vou atrapalhar?

    – Não, nós andávamos à procura de tesouros. Mas na vila nunca houve piratas nem navios naufragados...

    – Piratas, não! Mas há um tesouro perdido...

    – Ah, sim? – disse o Jorge interessado.

    – Vocês não conhecem a lenda?

    – Qual lenda? A do pote de ouro no final de um arco-íris? – perguntou o David pouco convicto.

    – Não. Essa não passa de um conto infantil. Eu refiro-me a um facto histórico.

    – Conte, sr. Amaro – pediu o Jorge.

    – É assim: Em 1808, o nosso país foi invadido pelas tropas de Napoleão. O Alto Minho já estava praticamente todo tomado pelos franceses, mas faltava um pequeno reduto, fiel ao nosso rei: Ponte de Lima. Duas divisões, comandadas pelos generais Hendelet e Lorges, avançaram sobre a vila, mas encontraram resistência. As pessoas armaram-se, barricaram-se e defenderam o nosso pequeno burgo da forma como podiam. A ponte foi cortada entre os dois primeiros arcos largos da margem direita, para impedir que as tropas entrassem por ali, notando-se ainda hoje, por defeito de reconstrução, a falta de um pequeno arco ogival intermédio entre aqueles dois arcos.

    E apontou para a ponte do outro lado do rio.

    – Que engraçado! – disse o Jorge a olhar para a ponte com admiração. – Já vi tantas vezes a ponte e nunca tinha reparado nesse pormenor.

    – Nem eu – concordou o David. – Se o sr. Amaro não nos chamasse à atenção, eu nunca iria reparar.

    – É normal.

    – E o que aconteceu durante as invasões francesas? – quis saber o Jorge, para não fugirem ao assunto do tesouro.

    – Como a população suspeitava que iriam ser atacados, reuniram as peças mais valiosas de ouro e joalharia da vila na igreja matriz, para as pôr a salvo. Sabiam muito bem que os soldados franceses e os espanhóis que vinham com eles, por onde passavam, saqueavam as casas e roubavam tudo o que tinha valor. O padre Hilário e o sacristão daquela época trataram de arranjar um local bem seguro para as esconder. Na altura só eles os dois é que sabiam onde era o esconderijo. Mas tiveram azar. Os soldados napoleónicos e os espanhóis rapidamente anularam a resistência e tomaram a vila de assalto.

    – Já estou a ver – deduziu o David. – Correu mal e os invasores roubaram o tesouro.

    – Não se sabe ao certo o que aconteceu. Há registos que relatam que os franceses e espanhóis saquearam a vila e levaram as riquezas para Espanha. Mas eu ouvi o meu avô já falecido contar que o padre e o sacristão conseguiram esconder o tesouro a tempo. Mas depois foram apanhados pelos franceses e executados em praça pública. E assim perdeu-se o segredo do local onde o tesouro ficou escondido.

    – Então deve estar por aí – atirou o Jorge a abrir os braços.

    – Provavelmente.

    – Acha que isso foi mesmo verdade? – inquiriu o David desconfiado.

    – Não sei. Eu pesquisei na Biblioteca Municipal e no museu da vila documentos sobre as invasões napoleónicas.

    – E descobriu alguma coisa sobre o tesouro? – quis saber o Jorge.

    – Não! Mas encontrei um livro ilustrado, com retratos pintados a óleo dos famosos da época. E reparei que nas pinturas usavam peças de joalharia muito valiosas e que ninguém sabe o paradeiro delas. Portanto as riquezas existiram. Falta saber onde estão.

    Os rapazes fervilhavam de curiosidade e quiseram acompanhar o Amaro para ficarem a saber mais pormenores sobre o tesouro.

    Quando chegaram à vila, ao verem que havia muitas pessoas por perto, mudaram de assunto. Atravessaram a ponte romana a apreciar a paisagem e foram para o Arnado. Andaram a observar a copa das árvores daquela margem com muita atenção.

    O Amaro trocou a objetiva da câmara fotográfica por uma com maior alcance e entregou outra câmara aos rapazes, para eles fotografarem o que quisessem. Percorreram aquela área com muita atenção, mas estavam com azar. Como andavam muitas pessoas a passear por ali e os guarda-rios são pássaros tímidos, não viram nenhum. Concluíram que não adiantava andarem de um lado para o outro e decidiram parar à frente da ilha de areia, onde o rio Labruja desagua no rio Lima. Nesse local havia um cardume de peixinhos a saltar na água. Esconderam-se entre os amieiros e esperaram. Praticamente não se falavam, para não fazerem barulho. O David tirou algumas fotografias à vila daquele local e entregou a câmara ao Jorge para ele experimentar. Depois de algum tempo à espreita, o Amaro olhou para o relógio de pulso impaciente, viu que já era quase meio-dia e murmurou:

    – Bem, vou ter de vir cá noutro dia.

    – Que chatice! – lamentou o David.

    O Jorge olhava através da objetiva. Nisto virou-se para os amigos, colocou um dedo à frente do nariz e disse baixinho:

    – Olhem!

    E apontou para a copa de um salgueiro, mesmo à frente deles.

    Viram um bonito guarda-rios. O Amaro, como caçador experiente, apontou a câmara e tirou várias fotografias à ave. Entretanto pousou outro guarda-rios no mesmo ramo. Pareciam observar o cardume que fervilhava na água. Levantaram voo em simultâneo, fizeram voo raso sobre a água, cada um pescou o seu peixe e voaram para longe.

    Eles tiraram o máximo de fotografias que conseguiram. Satisfeitos com a caçada, voltaram para a vila. No caminho, o Amaro observou as fotografias que os rapazes tiraram e disse admirado:

    – As que o Jorge tirou aos guarda-rios estão muito boas.

    – Acha? – perguntou ele satisfeito.

    – Sim. As que o David tirou da vila também são, mas destas tenho eu muitas.

    – O que vai fazer com as fotografias dos guarda-rios? – perguntou o David.

    – Vou escolher a melhor, para ilustrar um livro sobre a nossa terra.

    – Foi o sr. Amaro que o escreveu? – quis saber o Jorge.

    – Fui. E conto publicá-lo antes das Feiras Novas do próximo ano.

    – Uiii!... Ainda falta tanto tempo – queixou-se o David.

    – Parece. Daqui até lá, ainda tenho muito que fazer.

    – O quê por exemplo? – inquiriu o Jorge.

    – Tenho de rever o texto várias vezes para alterar o que não gosto e depois mandá-lo para um especialista, a fim de o corrigir. Quando o receber, tenho de o reler pelo menos mais três vezes, a ver se não escapou nenhuma gralha. Só depois é que irá para a tipografia.

    – Fogo! – proferiu o Jorge. – Não sabia que os livros davam tanto trabalho.

    – Dão.

    Para compensar os rapazes pela ajuda, o Amaro levou-os à Confeitaria Bijou e ofereceu um bolo a cada um. O David quis um bolo de coco e, mal o empregado lho entregou, começou logo a comê-lo. O Jorge quis um bolo de chocolate, mas pediu para o embrulhar. O Amaro estranhou o pedido do miúdo e perguntou:

    – Não vais comer o teu bolo?

    – Agora não. Vou levá-lo para casa, para repartir com a minha irmã.

    O fotógrafo ficou sensibilizado com a atitude do rapaz e pediu ao empregado da confeitaria para embalar outro bolo.

    Despediu-se dos miúdos na rua Inácio Perestrelo.

    O David estava preocupado. Os irmãos já deviam ter saído da catequese e, se não o vissem, iriam descobrir que faltou. Por isso despediu-se do amigo e correu para a casa paroquial. Por sorte os colegas do ano dele estavam a sair. Juntou-se a eles e ficou a aguardar o Eugénio e a Camila. O irmão estranhou vê-lo ali e perguntou:

    – Onde é que te meteste até agora?

    – Estava à vossa espera.

    – Porque é que faltaste à catequese?

    – Eu não faltei...

    A Camila olhou para o irmão com ar de reprovação, por saber que estava a mentir.

    – Como é que descobriram? – inquiriu o David.

    – A Dona Teresa veio à nossa sala perguntar por ti – explicou a Camila.

    – Pronto. Eu confesso: faltei à catequese.

    – Quando contarmos lá em casa, vai haver bronca – avisou-o o Eugénio.

    – Não precisais de dizer nada.

    – Temos de contar. Se os pais descobrirem, ainda sobra para nós os dois, por te andarmos a encobrir.

    – Já sei! – disse a Camila com ideias. – Nós só contamos se eles nos perguntarem.

    – Boa, mana! – agradeceu o David.

    – Pode ser – concluiu o Eugénio a matutar no problema moral.

    Os três manos chegaram juntos a casa e ninguém suspeitou de nada.

    Durante o almoço, a Camila e o Eugénio contavam as peripécias que ocorreram na catequese. O David remeteu-se ao silêncio. A avó Clarisse estranhou-o e perguntou:

    – E tu, David? Como é que correu o teu primeiro dia de catequese?

    – Foi normal.

    – Normal? – admirou-se a mãe – O que aprendeste de novo?

    – Nada!

    – Não aprendeste nada?! – exclamou o pai. – Que estranho!

    – Aquilo é sempre a mesma coisa – declarou ele.

    – Os teus irmãos vêm eufóricos e tu não tens nada para contar? – duvidou a mãe.

    – Parece que o David não gosta de ir à catequese – murmurou o avô.

    – Pois não – admitiu ele.

    – David! Tu não faltaste à catequese, pois não? – Inquiriu o pai.

    Fez-se silêncio e o Eugénio respondeu pelo irmão:

    – Faltou...

    – Grrrr! Tinhas logo de contar! – replicou o David irritado.

    – E fez muito bem – concordou a mãe. – Não se deve proteger malandros.

    – Quando fomos com eles ao centro paroquial e não esperámos que entrassem, eu suspeitei logo que este figurão iria fazer gazeta – lembrou-se o pai.

    – Por que fugiste? – perguntou o avô João.

    – Vocês sabem muito bem que eu não gosto de ir à missa nem à catequese. Porque é que me obrigam?

    – Porque eu não quero aqui maçónicos – respondeu o pai zangado.

    – O que são maçónicos? – quis saber o David.

    – É uma espécie de seita – explicou o Eugénio.

    – Não entendi.

    – Ora, como é que eu te vou explicar? É parecido com o comunismo na Rússia.

    – Já estou a perceber.

    O Avô João interveio:

    – David, tu ainda és muito novo para fazeres o que queres. Tens de obedecer aos teus pais, gostes ou não. E os teus pais têm o dever de te educar, segundo as regras da boa educação, dos bons costumes e da nossa religião. Por isso tens de ir à missa e à catequese. Percebeste?

    – Mais ou menos.

    – Já agora, com quem estiveste durante esse tempo todo? – quis saber o pai.

    – Andei com o sr. Amaro a tirar fotografias.

    – Só andaram vocês os dois? – estranhou a mãe.

    – Não. O meu amigo Jorge também veio...

    – Vi logo! – alvitrou a mãe. – É esse rapaz que te anda a desencaminhar.

    – Mesmo assim eu não iria na mesma à catequese.

    – Porque é que o teu amigo não vai à catequese? – perguntou o avô.

    – Porque a Dona Olívia não o obriga a fazer o que ele não quer.

    – Pois – concordou a mãe. – Ele não tem pai.

    – O teu amigo não tem pai? – interpelou-o a avó Clarisse.

    – Não, morreu num acidente de carro.

    – Ah! Então é por isso que ele tem tanta liberdade.

    – Não, a mãe dele é que é muito boa pessoa.

    – Pois é – disse a Magda. – E como a tua é mazinha, hoje de tarde ficas de castigo em casa.

    – Mas, mãe!... Eu combinei que iria ter com os meus amigos ao centro às três horas!

    – Nem, mas, nem meio mas! Ficas em casa de castigo e acabou-se. Entendido?

    – Entendido...

    O Eugénio dirigiu um sorriso maléfico ao irmão. O David fez-lhe uma careta feia.

    Continuaram a almoçar e a falar sobre as obrigações dos pais e dos filhos. O David olhou para o prato do avô muito sério e perguntou com maldade:

    – Avô, porque é que não come a cenoura?

    – Eu não gosto de cenoura.

    – Mas a cenoura faz bem.

    – Pois faz! – concordou a Camila. – Faz bem à pele e aos olhos.

    – Eu sei.

    – E então porque é que não a come?

    – Eu não gosto de cenoura. Portanto não a como.

    – E eu não gosto de ir à missa e vocês obrigam-me a ir! – atalhou o David vendo ali um bom argumento.

    – E o que é que uma coisa tem a ver com a outra? – inquiriu a mãe.

    – Nada – replicou o pai.

    Mesmo assim, a Camila ficou a olhar para o avô com ar recriminatório. A avó Clarisse apercebeu-se e proferiu:

    – João, se queres fazer valer o que defendeste até agora, tens de comer a cenoura, gostes ou não.

    O avô João olhou para a neta e, um pouco contrariado, picou a cenoura que tinha no prato com o garfo e comeu-a.

    Capítulo III – Curiosidade

    No domingo seguinte, a família Vilas Boas deslocou-se à igreja matriz para assistir à missa. Encontraram-se com os avós, os tios e os primos no átrio da igreja.

    Os tios e os primos vivem em Braga. O Aristides Seabra, um homem baixo, forte e de rosto alegre, é professor de Matemática na Escola Secundária Sá de Miranda. A Cândida, a esposa, é veterinária de profissão e trabalha numa clinica para animais. Têm dois filhos: o Pedro, de catorze anos, e a Luísa, de doze.

    Depois de se cumprimentarem, entraram na igreja e ocuparam um banco corrido na nave lateral direita, perto da porta. O Eugénio ficou à beira do primo Pedro; o David ficou no meio da Camila e da Luísa. Enquanto esperavam pelo início da missa, falavam a meia voz entre eles. Quando o padre Zacarias e o sacristão entraram, fez-se silêncio na igreja e a cerimónia religiosa começou.

    Para o David, a missa era uma grande seca. Não conseguia estar atento ao que o padre dizia. Para passar o tempo, falava baixinho com a irmã e a prima. Elas a cada passo soltavam risinhos contidos, por causa das piadas que ele contava. O Aristides tossiu a olhar para a Luísa em sinal de reprovação. A miúda compreendeu a mensagem do pai e tentou controlar-se. Mas o David continuou a importuná-la. Durante o evangelho, as pessoas levantaram-se para ouvir a palavra do Senhor. Como a irmã e a prima não lhe ligavam nenhuma, sentou-se no banco baixo, que serve para as pessoas se ajoelharem. Voltou-se para as duas raparigas e tentou jogar ao sério com elas. A Camila conteve o riso e a disfarçar passou-lhe a mão carinhosamente pelo cabelo. A mãe não gostou de o ver naqueles arranjos e repreendeu-o com voz abafada:

    – David!

    – Sim?

    – Põem-te em posição de gente.

    – Estou cansado de estar de pé.

    – Então senta-te no banco.

    – Estou bem aqui.

    – Faz o que a tua mãe manda – ordenou o pai.

    Ele levantou-se contrariado e sentou-se no banco. Entretanto começou a brincar com os dedos. As pessoas que estavam por trás dele divertiam-se com as macacadas que ele fazia.

    Numa altura em que o padre mandou sentar para a homilia, a mãe aproveitou a altura de mais agitação, agarrou-o por um braço e obrigou-o a sentar-se ao pé dos avós. O rapaz não teve outro remédio e obedeceu sem reclamar. Sentou-se na ponta do banco amuado. À medida que a cerimónia religiosa decorria, deixou de ligar ao que se passava à sua volta e, em vez de cumprir o ritual de se levantar e sentar, como os outros faziam, ficou sempre sentado e calado. Deu asas à sua imaginação e viajou pelo seu mundo imaginário.

    Lá, estava no futuro e, nesse momento, combatia máquinas extraterrestres que invadiram o nosso planeta e aprisionaram seres humanos para os escravizar. Estava tão abstraído em salvar o mundo, que se desligou completamente da missa. Passado algum tempo, foi interrompido pelo Eugénio com um abanão:

    – David, Acorda!

    – O que foi? – indagou ele a abrir os olhos, desorientado.

    – A missa já acabou.

    – Ai já?

    – Vamos embora – disse o pai a chamar por ele.

    O rapazinho levantou-se e seguiu lá para fora. No átrio da igreja o primo Pedro gozou-o:

    – O David estava a dormir na missa!

    – Não estava nada! – protestou ele.

    – Então, o que é que estavas a fazer de olhos fechados? – perguntou o pai.

    – Estava a pensar.

    – E pode-se saber em quê? – quis saber a mãe.

    – É segredo.

    – Então guarda-o bem guardado – proferiu o pai na brincadeira.

    – Vocês ainda vão à catequese, não é? – perguntou a tia Cândida aos sobrinhos.

    – Não – respondeu a Camila. – Fomos ontem à tarde.

    – Muito bem. E o David?

    – Ele não foi – disse o Eugénio.

    – Mas vai para a semana – concluiu o pai. – Não é, Dom David?

    – Sim, senhor.

    – Então vamos andando – sugeriu o avô João. – Começa a fazer-se tarde para tratar do almoço.

    – Não se preocupem, que eu tenho tudo orientado – avisou-os a avó Clarisse.

    – Ide indo, que eu ainda vou comprar pão e o jornal – disse o Edgar. – Encontramo-nos daqui a dez minutos no areal.

    – Está certo – concordou a esposa.

    – Podemos ir com os avós? – pediu a Camila.

    – Se o avô deixar... – respondeu a Magda.

    – Claro que deixo!

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