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Quero Cortejar o Sol
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Quero Cortejar o Sol

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É o diário de um jovem que frequentou o Seminário entre 1981 e 1986. Além de ser um testemunho pessoal e íntimo da sua própria vida, é também um retrato da época, do ponto de vista social, cultural, religioso e político. Nele perpassam, além do dia-a-dia do autor como estudante de Teologia, a sociedade portuguesa e muitas das personalidades públicas que a marcaram.

LanguagePortuguês
Release dateMay 12, 2010
ISBN9781452330075
Quero Cortejar o Sol
Author

José Leon Machado

José Leon Machado nasceu em Braga no dia 25 de Novembro de 1965. Estudou na Escola Secundária Sá de Miranda e licenciou-se em Humanidades pela Faculdade de Filosofia de Braga. Frequentou o mestrado na Universidade do Minho, tendo-o concluído com uma dissertação sobre literatura comparada. Actualmente, é Professor Auxiliar do Departamento de Letras da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde se doutorou em Linguística Portuguesa. Tem colaborado em vários jornais e revistas com crónicas, contos e artigos de crítica literária. A par do seu trabalho de investigação e ensino, tem-se dedicado à escrita literária, especialmente à ficção. Influenciado pelos autores clássicos greco-latinos e pelos autores anglo-saxónicos, a sua escrita é simples e concisa, afastando-se em larga medida da escrita de grande parte dos autores portugueses actuais, que considera, segundo uma entrevista recente, «na sua maioria ou barrocamente ilegíveis com um público constituído por meia dúzia de iluminados, ou bacocamente amorfos com um público mal formado por um analfabetismo de séculos.»

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    Quero Cortejar o Sol - José Leon Machado

    Diário I

    INTRODUÇÃO

    O Diário I é um conjunto de textos que vai de janeiro de 1981 a dezembro de 1982. Marcando os meses que antecederam a entrada do autor no Seminário Conciliar de Braga e os dois primeiros anos em que aí permaneceu como aluno interno, desvela os pensamentos, as ideias, os desejos e as inquietações de um rapaz que meteu na cabeça vir a ser padre. Nota-se uma contínua preocupação de sobressair para lá do vulgar. Há ainda resquícios de certa infantilidade na forma de narrar os factos, na descrição de certos pormenores, na opinião sobre determinados assuntos, aliados a uma crassa ignorância sobre a Igreja e o que é ser cristão. O importante nestes textos é o exterior, a pompa, as cerimónias na Sé e no Sameiro com o arcebispo ou o papa a presidir. Depois aquela imagem mentirosa do seminarista bem comportado frente às pessoas conhecidas e que se iam conhecendo, na linguagem velha um hipócrita, na linguagem nova um técnico de relações públicas.

    O Seminário foi a única forma encontrada no momento para o autor se esquivar à pressão familiar e à mediocridade do ambiente onde vivia. Aliado a isto, havia a desadaptação à escola e aos colegas. Pensando que o Seminário seria uma espécie de paraíso onde todos comungavam das mesmas ideias, das mesmas aspirações, apanhou uma grande deceção. No Seminário havia pessoas e, como tal, diferentes entre si. Foi um choque que levou o autor a refugiar-se na biblioteca, na obsessão pela história e a genealogia familiares e em tudo o que não interessava e era exterior ao Seminário. Parecia um velho com cara de rapazinho de dezasseis anos.

    Porém, as suas ideias, o seu comportamento iam mudando sem ele se aperceber. As bofetadas psicológicas e reais dos colegas e superiores, a leitura de livros de largos horizontes, o estudo de novas disciplinas e matérias, como a Filosofia e a Literatura, o conhecimento de opiniões diversas, foram minando aquilo que ele pensava ser definitivamente verdadeiro. Nada era definitivo, as coisas mudavam e, como elas, as pessoas.

    O Seminário abriu fronteiras, destruiu preconceitos infantis, revelou caminhos. As arestas foram limadas, o bom que existia foi posto fora, para que todos vissem que o autor não era um pateta convencido, cheio de manias e de bazófia. Houve mais três anos de Seminário e cada vez mais o autor se dava conta de que Deus não estava em corredores compridos e escuros, em capelas frias e silenciosas, em livros empoeirados e bolorentos, em palestras e preleções espirituais. Deus estava no coração das pessoas e era lá que se deveria procurá-lo.

    Horta, 7 de novembro de 1988.

    PARTE I

    1981

    1 de janeiro, quinta-feira, Semelhe – Apesar de me ter deitado tarde, levantei-me à hora do costume para ir à missa, que é às 7,30 na igreja de Semelhe. Quando o padre Manuel, no momento da consagração, elevou a hóstia e esta se transformou no corpo de Cristo, pedi a Deus para iluminar o meu caminho. No final da missa, fui à sacristia dar os meus votos de bom ano ao padre Manuel e voltei sozinho para casa. Grande parte das pessoas, por causa da passagem de ano, dormia ainda. Na missa esteve pouca gente, talvez por causa disso. Ao longo do caminho fui pensando no que Deus queria de mim. Eu olhava o caminho, as curvas e os buracos por onde teria de passar até chegar a casa, e pensei se aquele caminho, na manhã fria do primeiro dia do ano, não seria afinal a imagem do caminho da vida que Deus desejava que eu percorresse.

    16 de janeiro, sexta-feira, Semelhe – Desde 1978 que escrevo poemas. Os primeiros não têm pés nem cabeça. Conforme os anos passaram, foram melhorando. Mostrei alguns aos professores. Disseram-me que estavam bem feitos. Na escola, os colegas de turma chamam-me poeta.

    Ontem passei alguns dos meus poemas para um papel e entreguei à minha mãe. Ela levou-os para a fábrica a fim de os mostrar a uma amiga que gosta de poesia. À noite, quando chegou, deu-me umas quadras escritas pelo namorado da tal amiga para eu ler. Achei-as muito boas. Bem melhores do que as minhas. Resolvi copiá-las. São quadras de amor.

    Na minha turma tenho uma colega que se chama Mónica. Tem catorze anos, é simpática e boa aluna. Acho que comecei a gostar dela. Isto não é bem amor. Amada só foi a Rosa, que aliás já esqueci. Lembrei-me então de lhe oferecer as tais quadras. Para evitar que os da turma me andassem depois a gozar, tive de arranjar um meio de ela as ler sem descobrir quem lhas oferecera. Disfarcei a letra e no intervalo das aulas entrei na sala e meti-lhe o papel com as quadras no saco dos livros. Ninguém viu. Já na aula, ela descobriu o papel, leu-o, deu-o para ler e, claro, daí a pouco já todos sabiam que ela tinha recebido uns versos de amor e que o mais certo era ter sido eu o autor. Eu neguei. E não menti. Afinal não sou o autor. Quando muito, sou o autor da cópia.

    A Mónica agora anda a tentar descobrir o culpado. Mas parece-me que já sabe quem é.

    25 de janeiro, domingo, Semelhe – Há vários dias que a minha mãe tem andado a fazer os preparativos para um almoço importante. Convidou os chefes da fábrica onde trabalha: o sr. Castel e a madame Monique. Vieram com a filha de dois anos de idade. Eu fui esperá-los à estrada de Semelhe, pois não sabiam onde se situava a casa. Depois vim com eles no carro para cá. A minha prima Sameiro e o namorado também foram convidados. Isto porque os senhores são franceses e pouco falam a nossa língua. A Sameiro fala mais ou menos francês e eu também tive de pôr o meu em dia.

    No fim do almoço, tirámos fotografias. O sr. Castel achou a paisagem bonita e sentou-se no meio do Tojal, entre a erva, a apreciar as vistas. Eu sentei-me ao lado e conversámos sobre várias coisas.

    27 de janeiro, terça-feira, Semelhe – Todas as terças-feiras eu costumo vir a pé da escola até casa. Hoje, quando vinha pela estrada de Semelhe abaixo, parei a olhar para um enorme pinheiro bravo que está numa das bouças junto à estrada. Aparece entretanto um homem dos seus quarenta e poucos anos, de chapéu preto e roupa de trabalho. Vendo-me ali embasbacado a olhar para o pinheiro, diz:

    – Ó rapaz, queres comprar esse pinheiro?

    – Não, obrigado – respondi.

    – Dou-to pelo melhor preço.

    – Mas ele não lhe pertence.

    – Faz-se de conta. Eu digo-te o preço e tu decides. Cortamo-lo, vendemo-lo e partimos o dinheiro. Depois vai pró nosso bolso.

    – Eu acho que o pinheiro não estorva a ninguém.

    – Estorva e muito. Se o cortarmos...

    – Ele morre.

    – E então? Toda a árvore que não dá fruto vai ao fogo.

    – Sempre ouvi dizer que o fruto dos pinheiros são as pinhas.

    – As deste são bravas, não prestam.

    – Você é um assassino, é o que é.

    – Um assassino porquê, rapaz?

    – Porque quer destruir esta árvore.

    – E isso que tem de mal?

    – As árvores não vivem?

    – Dessas coisas não entendo. O que eu digo é que este pinheiro não dá fruto que se aproveite.

    – Dá lenha, por exemplo. E para isso nem precisa de ser cortado.

    – Oh!, isso não é nada. Dá mas é boa madeira.

    O homem ia para cima e eu para baixo. Continuou o seu caminho dizendo qualquer coisa que eu não percebi. Pareceu-me que levava alguns copos a mais.

    O diálogo com este homem simples fez-me ver que a gente do povo não é sensível aos problemas do meio ambiente.

    18 de fevereiro, quarta-feira, Semelhe – Ontem, na aula de Português, disse à professora umas palavras que não devia. Acabei por me arrepender e pensei em pedir-lhe desculpa. Hoje, no fim da aula, dirigi-me a ela nos seguintes termos:

    – Senhora professora, gostaria de lhe falar.

    – Estou à tua disposição – respondeu.

    – Queria pedir-lhe desculpas pelo que eu ontem disse na aula.

    – Ainda bem que reconheces teres sido inconveniente.

    – Sabe, eu por vezes descontrolo-me e digo o que não devo.

    – Mas deves estar mais atento ao que dizes.

    – Eu tento, mas não consigo. Digo as coisas sem pensar.

    – Aquilo não se dizia. E eu, que sou tão vossa amiga!

    Eu tinha as lágrimas a virem-me aos olhos. Ela deu-me alguns conselhos e eu, no meio da conversa, disse-lhe que estava a pensar ir para o Seminário. Ela disse-me que era um ato de cobardia da minha parte, que nós devemos encarar o mundo tal como ele é. Eu respondi-lhe que era diferente dos outros e que me sentia um estúpido. Ela não concordou e referiu que eu era um rapaz sensível e inteligente. Ninguém era igual e nem tinha que ser. Disse-me que, quando eu quisesse desabafar, para não ter vergonha de me dirigir a ela. Convidou-me também para ir ao cinema logo que houvesse um bom filme que pudéssemos ver juntos.

    29 de março, domingo, Semelhe – Faz hoje quinze dias que me entregaram o papel para a nova representação teatral, que será em maio. Tenho bastante texto para decorar. São cerca de oito páginas em folhas de 35 linhas. Encarno a personagem de um abade na peça A Sombra e a Luz. Nesta peça entram também o António Monteiro de 29 anos e a Ana Maria de 21. Entregaram-me outro papel, mas esse é muito pequeno. Faço de médico na peça O Senhor Cifrão. Ontem, sábado, começaram os ensaios.

    Eu, o Quim Monteiro e a Eliana temos andado desde janeiro a ensaiar uma peça inventada por mim. Tem por título Noite a Favor dos Ladrões. O Quim faz o papel de ladrão, eu o papel de marido e a Eliana o papel de esposa. Costumamos ensaiar no celeiro da casa do Quim aos domingos à tarde, com a intenção de a representarmos em maio, juntamente com as outras. Hoje íamos apresentá-la ao grupo para darem a opinião e dizerem se vale a pena. Aconteceu, porém, uma coisa estúpida que não vou relatar. Enfim, não será representada.

    4 de abril, sábado, Semelhe – Hoje à tarde celebrou-se a festa pascal da escola. Foi no Seminário Menor. Houve missa, lanche e espetáculo. Eu entrei no espetáculo. Acompanhado à viola, recitei um poema da minha autoria com o título «Monólogo de um vagabundo».

    Há várias semanas que na Escola Sá de Miranda se andavam a fazer os preparativos para a festa pascal. Os professores de Religião e Moral foram os organizadores. Eu tinha falado ao meu professor, o padre Azevedo, acerca da possibilidade de eu apresentar na festa o poema de que já falei. Dei-lhe uma cópia para ler e ele entregou-a ao padre Tinoco. O padre Tinoco terá gostado e disse-me para ir ao ensaio geral ontem, sexta-feira, no Seminário Menor. Encontrei na sala de espetáculos a Dra. Eulália, minha professora de Moral do ano passado, e falei-lhe no assunto. Ela mandou-me para o palco e arranjou um rapaz para me acompanhar à viola. Receitei a poesia com o outro a tocar uma música triste. Na sala estavam outros colegas que iriam ensaiar a seguir. Quando eu terminei, bateram palmas. Parece que gostaram. A Dra. Eulália pôs o meu nome no programa da festa e vim embora.

    Hoje saí de casa depois do almoço com o meu irmão e fomos a pé até ao Seminário, pensado que não havia autocarro. Pouco depois do Monte de São Gregório, vimos um a passar por nós. Levei um saco com umas calças e um casaco velhos. Quando chegámos ao Seminário, deixei o saco com as roupas nos bastidores do palco. Depois dirigi-me à igreja e sentei-me junto da Mónica, do Fernando e da Paula, meus colegas de turma. Houve missa e confissões. Eu fui-me confessar. Calhou-me o Padre Guimarães. Depois de eu lhe ter contado os muitos pecados que tenho cometido, ele disse-me que errar é humano e como penitência mandou-me rezar um pai-nosso. Achei pouco.

    A missa foi celebrada pelo arcebispo de Braga e a homilia ficou a cargo do padre Azevedo. Pareceu-me que ele não disse coisa com coisa. No fim da missa, fomos para a sala de espetáculos onde seria o lanche e o espetáculo. Comi pouco, pois estava bastante nervoso.

    O espetáculo entretanto começou e eu fui vestir-me. Deram-me uma fotocópia do programa para eu saber quando tinha de entrar. Eu era o oitavo da lista. O camarim era na sacristia, que tanto dava para o palco como para a igreja. Felizmente o arcebispo e os outros padres já tinham ido embora. A dada altura fui chamado e entrei no palco. Meteram-me um microfone na mão e o pano abriu. O da viola, que já estava sentado numa cadeira, começou a tocar. Quando o público me viu com aquela roupa, deu uma gargalhada. Talvez pensasse que eu iria contar algumas anedotas. O da viola parou de tocar, desviou o microfone para a boca e disse: «Atenção. Pede-se o máximo de silêncio. Isto é uma poesia, catano.» Houve nova gargalhada e ele teve de repetir o pedido. Quando a assistência se acalmou, ele recomeçou a tocar. Eu disse o primeiro verso e sou avisado dos bastidores de que o microfone não estava a funcionar. Bufei, carreguei no botão e nada. O padre Tinoco teve de ir ao palco verificar o microfone. Entretanto a malta mandava bocas e assobios. Tudo por fim se resolveu e fez-se silêncio. Houve um ou outro riso durante a recitação do poema, mas cheguei ao fim e os aplausos foram muitos. Já nos bastidores, o da viola elogiou a minha presença no palco e deu-me um conselho: «Continua. Não desistas.»

    Agora à noite, o meu pai resolveu fechar uma das janelas da sala e tombou uma jarra de flores artificiais com areia. A minha mãe obrigou-o a limpar o chão. Ele limpou, mas não ficou lá muito bem. Ela enervou-se e disse-lhe para limpar melhor. Como entretanto se tinha metido na cama, o meu pai disse que não ia. A minha mãe então pegou na vassoura e bateu-lhe com ela. Mesmo assim, o meu pai não se levantou da cama. Já desfeita em nervos e quase a chorar de raiva, a minha mãe tirou toda a roupa da cama e levou-a para a marquise, deixando-o ao frio. Depois desligou a televisão que eu e o meu irmão estávamos a ver e mandou-nos para a cama. Deitou-se no divã da marquise com a roupa da cama e apagou as luzes. O silêncio durou pouco. O meu pai acabou por se levantar, tirou-lhe a roupa e voltou para o quarto. Ela, irritadíssima, vestiu-se e saiu de casa.

    Neste momento estou na cama com o meu irmão e ouvimos passos no sótão da casa. Será ela? Decerto vai passar a noite aí. Há um divã no sótão com duas mantas. Não devemos preocupar-nos.

    5 de Abril, domingo, Semelhe – A minha mãe sempre dormiu no sótão. De manhã fui-lhe levar o pequeno-almoço e ela tomou-o a custo. À uma hora da noite, o meu pai foi ao sótão ver se ela estava bem. Ela mandou-o embora. Hoje fui eu a fazer o almoço. Levei-lhe a comida, mas recusou. Queria apenas um copo de leite e os seus comprimidos. Ficou toda a manhã e parte da tarde lá em cima. A Aurora, a mulher do Bigodes, esteve com ela algum tempo e aconselhou-a a descer. De tarde, quando cheguei do ensaio, estava já cá em baixo a apanhar erva para os coelhos e a conversar com a Aurora. Parecia mais calma. À noite comeu alguma coisa. Deitou-se no divã da marquise, onde deve passar a noite.

    Ela tem certa razão, mas não a tem toda. Por causa de uma jarra não era preciso tanta perrice.

    12 de abril, domingo, Semelhe – Hoje à tarde fui a um convívio de jovens no Seminário de Fraião convidado pela sr.ª Maria da Mata. Fomos nove pessoas de Semelhe. Eu era o único rapaz. No convívio foram apresentadas mímicas, sketchs e canções. Juntaram as caixas de dois camiões para fazer de palco. Já no final, o apresentador, que era o padre Esteves, perguntou se alguém do público desejava apresentar algum número. Apareceu um imitador, fizeram-se jogos e brincadeiras, contaram-se anedotas e propuseram-se adivinhas.

    Enquanto isso, aproximei-me do padre Esteves e perguntei-lhe se eu poderia recitar uma poesia. Ele disse que sim. Subi ao palco e pedi-lhe para tocar uma música triste no piano. Fiz uma pequena introdução e o padre Esteves começou a tocar. Recitei o «Monólogo de um vagabundo». Todos gostaram. As minhas acompanhantes ficaram admiradas. E ainda bem, pois algumas delas, que não dão um tostão furado por mim, não quiseram que a minha peça Noite a Favor dos Ladrões fosse representada em Semelhe.

    Gostaria de referir que a minha mãe na terça-feira começou a dormir no quarto com o meu pai. Ela disse que na segunda-feira, quando dormia na marquise, viu um vulto do lado de fora tentando meter as chaves na porta. O Lord ladrou e o vulto desapareceu. Com o medo, ela decidiu dormir no quarto. Não sei se isto foi uma desculpa esfarrapada, ou se viu realmente um vulto. O que é certo é que a minha mãe inventa muito, e principalmente quando lhe convém.

    14 de abril, terça-feira, Semelhe – No fim do almoço, subi ao telhado que cobre o tanque para colher algumas laranjas. Isto porque a laranjeira é alta e daí pode-se chegar à fruta. O telhado é feito de placas de lusalite. Já andei milhares de vezes por cima daquilo e nunca aconteceu nada. Hoje, encontrando-me no centro do telhado a tentar chegar a uma laranja, sinto as placas a ceder e a quebrar. Agarrei-me a um cano que desce do caleiro da casa. Este solta-se com o meu peso e eu caio ao lado do tanque sem um arranhão. E aí é que está o mistério. Ainda não consegui entender como não caí dentro do tanque. As placas quebradas caíram dentro e eu deveria também ter caído, pois estava em cima delas. Se tivesse caído dentro do tanque, que por acaso estava vazio, poderia ter ficado gravemente ferido. Limpei tudo, colocando as placas quebradas a um canto e varrendo a lixeira. À noite, quando os meus pais chegaram, contei-lhes o que se passou. O meu pai chamou-me menino e não sei que mais. A fúria não foi grande e ele tratou de arranjar o telhado. Embora as placas continuem partidas, o telhado está composto.

    Penso que foi bom isto ter acontecido. É um aviso de que temos a vida em perigo permanente. E também é para eu deixar de ser menino. Já sou demasiado crescido para andar em cima de telhados.

    8 de maio, sexta-feira, Semelhe – Sinto-me desprezado por todos. Os colegas de turma gozam-me. Talvez me detestem. E porquê? Por eu ser religioso? Alguns dizem que sou fanático. Será por eu não alinhar nas poucas-vergonhas que eles contam e dizem que fazem? Ou será por eu ser um solitário?

    Sinto-me como o patinho feio. Até pela família sou desprezado. Quando falo com alguém, parece que tudo o que digo são parvoíces sem sentido e as minhas opiniões não interessam a ninguém. Não sei o que fazer da minha vida. Se entro para o Seminário, chamar-me-ão cobarde, dizendo que tenho medo dos outros e que quero fugir do mundo. Convivo pouco e sinto-me bem quando estou só. Será que sou assim tão diferente dos jovens da minha idade?

    Não sei realmente o que fazer. A única solução talvez seja a morte. Penso que não tenho medo da morte. Deus lá sabe quando terei de prestar contas.

    Hoje almocei com a Mónica, o Fernando, a Fátima e a Céu, colegas de turma. Deram-me alguns conselhos. Sugeriram-me que eu me deixasse de tontices e que fosse um rapaz normal, como os outros.

    E como é ser-se um rapaz normal?

    10 de maio, domingo, Semelhe – Em março mandei para a revista Girassol um postal do correio onde apresentei um problema meu e uma sugestão ao problema saído no número de fevereiro. Os diretores da revista publicaram o meu problema no número de abril. Disse eu: «Sou um antipático, por isso não consigo arranjar amigos. Podem-me ajudar?» Alguns jovens mandaram algumas sugestões, que foram publicadas no número deste mês. Uma mocita, que se chama Susana, disse que teria todo o gosto em ser minha amiga. E pediu que eu lhe escrevesse. Mas eu não sei se tenho coragem.

    14 de maio, quinta-feira, Semelhe – O papa João Paulo II sofreu um atentado na Praça de São Pedro em Roma. Foi alvejado a tiro por um turco no meio da multidão. Os meios de comunicação social têm passado o tempo a falar sobre isso. Quando eu ontem ao fim da tarde soube da notícia, retirei-me para o meu quarto, ajoelhei e pedi a Deus que poupasse a vida do papa. Que ódios poderá aquele santo homem causar que possam levar alguém a desejar vê-lo morto? Eu sugeri ao meu pai, enquanto jantávamos, que foram certamente os comunistas a ordenar o atentado. Ele quase me bateu. Disse-me aos gritos que os comunistas não eram criminosos. Mas eu fico cá a pensar na minha que ali houve mão dos comunistas polacos e soviéticos. A voz do papa é incómoda e tem abalado as estruturas do Bloco de Leste. O que se está a passar na Polónia é suficientemente grave para alarmar o poder de Moscovo.

    23 de maio, sábado, Semelhe – Durante a manhã, os meus pais andaram a cortar tojo na Mata de Semelhe. Eu fui ajudar ontem e hoje. Além de ser divertido, respiramos o ar puro do monte. A única coisa que me preocupa é que, ao cortar o mato com a enxada, se não tivermos cuidado, cortamos também os pinheiros novos.

    Preparei uma espécie de discurso para ler amanhã, na abertura da festa do Dia da Mãe. Começa assim: «Hoje é um dia especial para a freguesia de Semelhe. Vamos tentar fazer tudo o que pudermos para que vos sintais alegres. Proporcionar-vos-emos algumas horas de boa disposição. O que verão aqui a seguir é o fruto de muito trabalho, de muito tempo perdido – andámos dois meses seguidos a ensaiar –, de horas e horas de irritações, de dinheiro gasto, etc., etc.

    24 de maio, domingo, Semelhe, pela manhã – Esta semana foi para mim muito desgastante. Além dos ensaios de teatro para a festa do Dia da Mãe, tive de ajudar a cortar mato, tive de estudar para os pontos do fim do período e de cozinhar.

    Os ensaios de teatro começaram no dia 28 de março, numa das salas contíguas à igreja. Foi encenadora e ponto ao mesmo tempo a sr.ª Maria da Mata, chefe das catequistas da paróquia, tendo como colaboradoras mais próximas a Ana Maria, de 21 anos, e a Luísa Monteiro, de 26. Hoje é o dia da representação do trabalho que viemos preparando. Eu faço três papéis: de abade, de médico e de doente. Convidei alguns colegas de turma para virem assistir. A Mónica, o Fernando e a Paula disseram que vinham. Chegarão no autocarro das 14,30.

    Ao fim da missa, tivemos o ensaio geral. Alguns colegas ainda estão verdes. O padre Manuel emprestou-me a batina preta e fiz o ensaio já com ela vestida. Os outros disseram-me que me ficava bem.

    À tarde – Saí de casa às 14,30 e fui para o salão paroquial onde ajudei a ultimar alguns pormenores que faltavam. O autocarro chegou às três menos pico e os meus colegas não vieram. Fiquei dececionado. Perguntei ao cobrador do autocarro se tinha visto uns jovens a sair ou a entrar e a resposta foi negativa.

    Quando a cerimónia do Mês de Maria terminou na igreja, preparámo-nos para o espetáculo. As portas foram abertas às 15,40 e as pessoas foram entrando e sentaram-se nos bancos e cadeiras disponíveis. O pano abriu passados alguns minutos. A entrada era livre, mas estiveram menos pessoas do que na festa de Natal. A sr.ª Maria da Mata leu o programa e pouco depois começava o espetáculo com música

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