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O Alerta dos Corvos
O Alerta dos Corvos
O Alerta dos Corvos
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O Alerta dos Corvos

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About this ebook

Brigit retorna à sua cidade natal em busca da única família que possui: sua avó. Das poucas lembranças que lhe restam, pouca coisa permanece na cidade quase abandonada de Ballymote. Suas ruas, casas e florestas escondem mistérios que parecem voltar no tempo quando, a partir das lendas, surge algo bastante real e monstruoso. Confrontos ancestrais, rivalidades amargas e um futuro incerto, onde Brigit deve encontrar todas as respostas, investigar seus pesadelos e descobrir a verdade em um mundo sombrio que não mais lhe pertence e que é revelado nas sombras quando os corvos alertam. 

"Raquel Villaamil é capaz de atualizar as lendas mitológicas da Irlanda em O Alerta dos Corvos. Os seres e as raças formidáveis dos manuscritos do século XI, O Livro das Invasões, possuem um paralelo entre os personagens do século XXI que habitam nestas páginas. Um livro de mistério, fantasia e ação, no qual os segredos mergulham em lendas milenares e agora se aproximam do desfecho, onde o amor e sua busca atravessam transversalmente o raciocínio, para terminar em uma conclusão inesperada". 

“Um livro com matizes góticas e um toque de romantismo, que o captura desde a primeira página graças à sua originalidade, à boa narrativa, pois Brigit é uma heroína bastante peculiar e o ritmo é frenético desde o princípio. O Alerta dos Corvos é um dos melhores romances de fantasia espanhóis que eu já li recentemente. Se gosta deste gênero, você não pode perder!". 

LanguagePortuguês
PublisherBadPress
Release dateApr 14, 2018
ISBN9781547525911
O Alerta dos Corvos

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    O Alerta dos Corvos - Raquel Villaamil

    O Alerta dos Corvos

    Raquel Villaamil

    Copyright © 2017 by Raquel Villaamil

    All rights reserved.

    No part of this book may be reproduced in any form without permission in writing from the author.

    The characters, places, incidents, and situations in this book are imaginary and have no relation to any person, place, or actual happening.

    ISBN: 9781549809392

    "Profeta, ou o que quer que sejas!

    Ave ou demônio que negrejas!

    Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno

    Onde reside o mal eterno,

    Ou simplesmente náufrago escapado

    Venhas do temporal que te há lançado

    Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo

    Tem os seus lares triunfais".

    Edgar Allan Poe, O Corvo[1]

    Minhas lembranças mais antigas desta casa não são muito confiáveis.

    Eu me lembro de fragmentos soltos e absurdos com campos verdes, talvez alguns unicórnios, flores minúsculas e livros cristalinos, além de um castelo de pedra, da minha avó parada na frente do fogo e do cheiro de pão escapando do forno.

    Como em um sonho, luz e sombras se revezam em minha mente. Eu não revivo somente as cenas cheias de cores, mas também as imagens cheias de escuridão e borrões, com corredores estreitos, uma fina camada de poeira cobrindo a mobília, árvores com galhos assustadores e pupilas brilhantes e misteriosas.

    Eu me lembro de cheiros, gostos e cores, mas de nem um único som.

    Pode parecer um detalhe trivial das lembranças de uma criança, mas dezesseis anos depois eu revivo as mesmas sensações ao pisar naquela casa de campo. Ainda sou incapaz de ouvir os sons.

    É impressionante o quanto esse fato pode ser perturbador. Perturbador e angustiante.

    O início

    Nova York pode ser a cidade mais solitária do mundo, apesar das multidões de pessoas que invadem constantemente a megalópole.

    Foi naquela hora do dia, quando o sol começava a desaparecer por trás do horizonte e a Big Apple fugia através das pontes e dos túneis que a conectavam ao restante do universo; quando as buzinas dos carros se misturavam à sirene estridente de uma ambulância apressada e as luzes da rua começavam a contornar as janelas e postes de luz, que o sentimento de solidão se tornou ainda mais opressor.

    Agarrei-me com força à cerca que circundava o lago no Central Park, com os meus olhos fixados na superfície da água, meus ouvidos saturados com o barulho e meu coração partido de tanta dor.

    Minha angústia diminuía conforme a noite começava a se instalar e a temperatura caía até se tornar agradável. O ar tornou-se respirável, apesar da intensa humidade que ainda fazia minhas roupas grudarem ao meu corpo.

    Alguns patos interromperam a quietude da água, deixando rastros de ondas para trás e, finalmente, eu pisquei. A vida continua, eu não podia ser a única em conflito. Eu me isolara do mundo por quase um ano, cuidando da minha mãe. Agora que ela não estava mais comigo, eu era uma estranha em um mundo hostil.

    Larguei a cerca e inspirei fundo até meus pulmões se encherem com o ar poluído da cidade. Um mês perambulando sem rumo como um zumbi era tempo demais. Eu iria começar de novo, como eu fazia desde a infância. Cada jornada era um novo começo.

    Mesmo assim, este parecia ser o mais difícil e solitário de todos.

    ––––––––

    O pequeno apartamento na Pleasant Avenue se parecia com uma caixa de fósforos. A mobília aparentava ser mais antiga, as janelas menores e o ar mais viciado. Mal se podia ouvir o barulho da rua, pois o apartamento levava a um pátio interno que capturava somente trechos soltos das conversas. O tempo parecia ter parado quando minha mãe deixou de existir. Em um momento ela estava viva; no outro, não estava mais. Mas, de certa forma, aquilo fora libertador. A pobre mulher lutava contra sua estranha doença há tanto tempo que precisava de um descanso, mesmo que definitivo.

    Meu telefone vibrou, interrompendo o fluxo das minhas lembranças. Confusa, eu olhei para a tela. Era um número grande, que eu não reconheci. Provavelmente, alguém havia discado o número errado.

    Eu atendi, antecipando o desapontamento.

    -  Brigit Dawn? – alguém perguntou do outro lado da linha, me deixando totalmente perplexa.

    -  Sim - respondi com hesitação. – Sim, sou eu.

    -  Estou ligando por causa do obituário publicado há algumas semanas no The New York Times. Primeiramente, gostaria de oferecer minhas condolências pela perda da sua mãe.

    -  Obrigada – eu disse automaticamente, ansiosa para saber do que se tratava aquela ligação.

    -  Sou enfermeira no Hospital Ballymote, em Vermont. Temos uma paciente que alega ser a sua avó.

    -  O quê? – meu coração parou por um instante, antes de começar a palpitar acelerado.

    -  Ela estava lendo o jornal, ainda lúcida, quando viu o obituário e afirmou ser a sogra da falecida. O nome dela é Michelle Harris.

    -  Eu nunca soube o sobrenome do meu pai. Não posso confirmar isso.

    -  Ela diz que sua mãe fugiu de Ballymote quando você era muito pequena e que nunca mais viu nenhuma de vocês desde então.

    Era verdade. Aquilo era verdade.

    -  Você deveria vir vê-la – prosseguiu a enfermeira – Michelle não está se sentindo muito bem.

    -  Qual é o problema? – perguntei, preocupada.

    -  Ela sofre de demência senil, além da saúde precária em geral. Honestamente, ela está morrendo e não sabemos o motivo.

    -  Mas... - comecei. O que eu tinha a perder? O que me prendia ao apartamento minúsculo ou àquela cidade opressora? – Estarei aí o mais cedo possível –  respondi com a maior determinação dos últimos anos.

    -  Excelente. Vamos ficar esperando.

    O som no outro lado da linha se transformou em um pio contínuo antes de ficar em silêncio. Fiquei parada, com o telefone grudado à minha orelha, até perceber que a conversa havia terminado.

    Eu queria recomeçar e agora tinha um motivo de verdade. Enchi minha mala com roupas e algumas lembranças que eu queria manter. Não tinha muito dinheiro na minha conta bancária depois de ser demitida do meu ultimo emprego há um ano, mas seria o suficiente para chegar à Ballymote. Mas onde ficava Ballymote? Nunca ouvira falar naquele lugar antes.

    Atravessei o apartamento a passos largos, mas meus pés pararam no quarto da minha mãe. Deslizei a porta para fechá-la, despedindo-me dele. Todas as coisas dela estavam lá, intocadas desde o momento em que eu a perdera para todo o sempre. Caí de joelhos, exausta com as emoções misturadas, e uma trovoada de vozes distintas invadiram minha cabeça, tal como um coro violento: minha mãe gritando em seus pesadelos com o meu pai, meu pranto devido às nossas fugas constantes e o grasnar perturbador de um corvo durante a noite.

    ––––––––

    Meu carro ligou sem dificuldades, apesar de ter ficado parado por quase cinco meses. Ele estava tão velho e sujo que ninguém nunca havia pensado em roubar uma parte sequer dele e, por isso, permaneceu intacto entre um Bentley desmembrado e um Ford com quatro tijolos no lugar dos pneus.

    Naquela noite, meu carro retornou para o costumeiro trânsito urbano, até alcarçarmos a rodovia 95. Foi muito bom conseguir dirigir fora da ilha com a janela aberta, sentindo o ar fresco nas minhas bochechas.

    Minha mãe me deu o carro de presente quando completei dezesseis anos, além das aulas de direção nas avenidas cheias de palmeiras de Los Angeles, nossa terceira residência depois do Alasca e de Washington. Eu sentia falta da temperatura amena que fazia na Califórnia o ano inteiro, bem como dos meus últimos anos no ensino médio e dos meus amigos na época. Amizades estas tão efêmeras quanto nossas partidas inesperadas. Depois de tantas mudanças, eu não tinha um contato em lugar nenhum, não tinha família e nenhum lugar para chamar de meu. Quase vinte e um anos e eu era uma órfã, em todos os sentidos.

    Logo, os carros começaram a esvaziar a autoestrada. Relaxei na frente do volante e comecei a ficar cansada de dirigir. Liguei o rádio e naveguei pelas várias estações, até encontrar uma com músicas que me manteriam acordada, desafiando a tentação de Morfeu. Cantarolei as músicas que eu conhecia enquanto me aproximava da fronteira estadual.

    O cenário noturno passava velozmente nos dois lados da rodovia. Eu podia perceber as árvores e florestas, assim como uma cidade antiga à distância, iluminada por alguns postes. Postos de gasolina com luzes oscilantes me cegavam por um segundo, pois eu já havia me acostumado à escuridão parcial da autoestrada. Parei em um deles para esticar as pernas e comprar uma Coca-Cola. Eram quase duas da manhã e os únicos veículos que podiam ser vistos eram caminhões enromes, que quebravam o silêncio por alguns segundos antes de desaparecerem outra vez na escuridão da noite. O chiado de uma das lâmpadas acima de mim me fez lembrar de uma visita ao médico dois anos atrás, quando a saúde da minha mãe começara a deteriorar.

    -  Sinceramente, não sei o que tem de errado com ela – confessou o médico sussurrando, enquanto minha mãe se vestia atrás de uma cortina.

    -  Mas ela tem alguma coisa. Ela está fraca, às vezes não consegue distinguir entre sonho e realidade, esquece das coisas... - respondi, tentando listar os sintomas dos quais eu conseguia me lembrar.

    -  Eu sei. As análises e os exames apontam resultados contraditórios. Para ser franco com você, o organismo da sua mãe parece indicar que ela é mais velha do que realmente é.

    -  Ela acabou de fazer quarenta e dois, doutor.

    -  Sim, e este é o corpo de alguém com mais de noventa anos de idade.

    Outro caminhão interrompeu minha memória. A lâmpada ainda chiava acima da minha cabeça. O relógio havia avançado meia hora.

    Sacudi a cabeça, tentando afastar as imagens, e entrei no carro. Após verificar o mapa, calculei que estava na metade do caminho. A cafeína começara a fazer efeito e, por algum tempo, a sonolência deu um descanso às minhas pálpebras.

    A rodovia 95 se transformou na 91 e o estado de Connecticut deu lugar a New Hampshire, enquanto a quilometragem se acumulava lentamente. Há pouco mais de dois centrímetros de distância de Vermont, parei em outro posto de gasolina. Reclinei o assento para fechar os olhos por alguns minutos, que se transformaram em várias horas.

    Ballymote

    E u acordei com alguns raios fracos de sol que passavam pela minha janela. Um relógio grande no posto indicava sete horas da manhã e meu carro já estava rodeado de alguns caminhões e pelo menos dez outros veículos. Senti-me um pouco envergonhada com o que os outros motoristas deviam ter pensado de mim, dormindo sozinha no solitário estacionamento. 

    Saí do carro e alonguei o corpo. A temperatura estava bastante agradável naquela hora da manhã. Uma suave brisa com cheiro de floresta rodopiava pelo ar, bagunçando uma mecha solta dos meus cabelos ruivos. Eu a penteei com os meus dedos, alisei minhas roupas e entrei na lanchonete enquanto meu estômago rugia como um leão.

    Todo mundo dentro da lanchonete se virou para olhar enquanto a porta de vidro se fechava atrás de mim. Apressei-me e me sentei em uma das mesas de costas para todos os outros que estavam ali.

    Uma garçonete com uma expressão gentil no rosto veio em minha direção:

    -  Gostaria de um café?

    -  Sim, por favor. E torrada.

    -  Claro.

    Ela se afastou sem apagar o sorriso do rosto. Por detrás dos meus ombros, eu podia ouvir dois homens sentados no bar, conversando. Estariam eles procurando por mim? Seria um deles o homem de quem minha mãe estivera fugindo?

    Respirei fundo. Eu precisava dar um fim à paranóia com que eu havia crescido. Em algum momento, durante os últimos meses, eu chegara à conclusão de que aquelas ameaças existiam apenas na cabeça da minha mãe. Ninguém estava atrás de nós. Ninguém queria nos matar. Agora, naquela lanchonete, eu podia ver isso com clareza, tal como uma revelação. Minha mãe estivera doente por muito tempo, talvez até mesmo antes de eu nascer e, dentre os seus transtornos, ela tinha mania de perseguição. Admito que o último médico dela tentara explicar isso para mim, mas eu não quis ouvir.

    Cresci convencida de que havíamos precisado fugir de casa por causa do meu pai. Nos anos seguintes, nós havíamos mudado de residência tantas vezes que eu me esqueci de muitos de seus nomes. Passamos mais tempo em Bethel, Alasca, e minha mãe parecia mais tranquila. Ela até tinha um grupo de amigas; ela parecia esplêndida, mais linda do que nunca, feliz. Mas de um dia para o outro, eu me encontrei novamente com a mala em mãos, em um ônibus com destino a Washington.

    Como eu pude acreditar nessa história sem nunca questioná-la? Por que nunca resisti a nenhuma dessas mudanças? Porque eu acreditava nela. Eu me lembro de seus olhos fora de controle, seu rosto perturbado cada vez que ela pensava no meu pai. Ela não o considerava um homem, mas o diabo em pessoa.

    ––––––––

    Retomei minha jornada, livre dos fantasmas que perteciam ao passado. A estrada mudou de nome em duas ocasiões e, depois de uma hora dirigindo, encontrei um atalho para Graniteville. Cruzei a pequena cidade, deixando para trás suas lindas casas de madeira branca com telhados de ardósia inclinados e suas fazendas isoladas em amplos pedaços de terra.

    Ao chegar em um cruzamento, encontrei a primeira placa escrito Ballymote. Era velha e parecia que as letras tinham sido apagadas pelo sol, mas sem dúvida indicava que o meu destino estava à esquerda. Eu me voltei naquela direção. A estrada, pavimentada até aquele ponto, ficou arenosa e era muito difícil dirigir ali. Após alguns quilômetros, a terra ficou mais grossa, até virar cascalho com pedrinhas soltas e pontiagudas.

    Levei duas horas para cobrir uma distância que duraria meia hora em uma autoestrada e, quando eu supostamente cheguei ao meu destino, de acordo com o mapa, encontrei outra placa desgastada informando que eu deveria prosseguir para a direita, onde as árvores cobriam a estrada e quase faziam-na sumir nas sombras.

    Volte.

    Um pequeno sussurro no meu ouvido, tão suave que foi como se eu nem tivesse escutado, vindo de dentro da minha cabeça. No entanto, quando comecei a girar o volante naquela direção, não parecia mais um mero produto da minha imaginação.

    Volte!

    Pisei no freio com força e os pneus derraparam no cascalho. Quem havia dito aquilo? Virei a cabeça, olhando em todas as direções, procurei embaixo dos assentos, examinei o lado de fora pelas janelas, só para me dar conta de que estava sozinha. Terrivelmente sozinha.

    Enquanto eu me convencia de que minha cabeça estava jogando sujo comigo, meu coração começou a acelerar e minha respiração fez o contrário. Eu sofrera tanto nos últimos meses que ter minha mente me dando ordens absurdas não parecia ser a pior coisa que poderia acontecer comigo. Aquele era o resultado lógico de uma experiência de aflição prolongada.

    Ou pelo menos era nisso que eu me forçava a acreditar.

    Acelerei sob os ramos grossos que emolduravam a estrada ao mesmo tempo em que roçavam em meu carro. O mato crescia das fendas na estrada, dando a impressão de que meu carro era o único que passava por ela há muito tempo.

    Ballymote surgiu no final da floresta, quando eu já estava preparada para voltar, convencida de que havia cometido um erro. Á primeira vista, parecia uma cidade fantasma. Conforme eu me aproximava, essa impressão aumentou.

    Esta pequena cidade já fora um lugar muito bonito. As fachadas de suas construções já foram pintadas de cores pastel, a fonte de sua praça principal já exibiu enormes jatos de água, o relógio da prefeitura já mostrou a hora certa e os porticos já protegeram os habitantes da chuva enquanto eles contemplavam as vitrines das lojas que exibiam as mercadorias. Mas agora isso só podia ser visto em uma fotografia amarelada, um traço vago de sua antiga glória.

    A brisa fresca carregava os fragmentos secos das folhas até o parabrisa e os levantava alto no ar, levando-os para o outro lado da praça, onde havia uma imponente estátua de um indivíduo cinzento em um grande pedestal de mármore.

    Á frente, eu podia ver uma série de ruas paralelas, cruzadas por outras ruas perpendiculares, criando o formato perfeito de uma rede. Perambulei sem destino, espiando dentro dos halls de entrada e procurando alguma forma de vida ou os vestígios de civilização por trás de alguma janela.

    Várias persianas se fecharam enquanto eu passava, e pensei ter discernido o movimento de uma mão ou cabeça. Eu não estava sozinha.

    Dirigi até a interseção seguinte, onde um semáforo torto piscava com uma cor âmbar. A alguns metros à minha direta, notei um posto de gasolina e, bem na minha frente, uma placa de madeira indicando com uma seta negra para a esquerda, com um toque de humor, o sentido para o BallyMote-L.

    Imaginei que seria uma boa ideia descansar em uma cama de verdade. E se eu tivesse de ficar lá por vários dias? E se eu encontrasse minha família? Segui a seta até a última casa desaparecer. O motel estava logo à frente, escondido em meio a árvores centenárias. Fiquei surpresa por ele ser pequeno, ter apenas um andar e pouquíssimas portas para os quartos, que podiam ser contadas nos dedos de uma mão.

    Deixei o carro no estacionamento vazio e peguei minha mala. Inspirei profundamente o aroma da floresta para expulsar qualquer resquício de poluição dos meus pulmões e abri a porta da recepção.

    Fiquei mais surpresa pela presença de um homem atrás do balcão do que se não tivesse visto ninguém ali. Ele era a primeira pessoa que eu via nas últimas horas.

    -  Cem dólares por noite, moça – disse ele, mascando algo que parecia ser tabaco.

    -  Cem? Quantas estrelas tem este hotel? Cinco?

    -  Esse é o único hotel em trezentos e vinte quilômetros. Você pode tentar a sorte em outro lugar.

    Seu maxilar se movia como um ruminante. Seus cabelos eram brilhantes e oleosos e sua pele revelava as cicatrizes de uma devastadora acne juvenil.

    -  Talvez eu fique por vários dias. Há algum preço especial?

    Seus olhos brilharam.

    -  Se ficar mais de uma semana, posso fazer por setenta. Mais de um mês, cinquenta.

    -  Continua caro.

    -  Continua sendo o único hotel – ele frisou.

    -  Motel.

    Ele riu alto.

    -  E daí?

    -  Ok – desisti, – cadê o meu quarto?

    -  Qualquer um que você quiser – e ele me deu uma chave maior do que a minha mão. – Todos abrem com a mesma chave.

    Eu queria reclamar da falta de privacidade, mas aquilo teria sido perda de tempo. Arrastei minha mala para fora da recepção e passei por todas as portas, em busca da que ficava mais longe do homem. Todas elas possuíam números ímpares, ele provavelmente não gostava de números pares. Estava passando pela porta de número 7, quase chegando à porta 9, que era a que eu havia escolhido, quando aquela voz reapareceu.

    Aqui.

    Dessa vez, soou mais como um pedido. Olhei para os dois lados, no caso de haver alguém ali que poderia ter falado comigo, mas não havia ninguém. Mais uma vez, as palavras haviam ecoado dentro da minha cabeça exausta.

    Mesmo que ouvir aqui na frente de uma porta fosse um bom motivo para não obedecer, eu me vi colocando a chave dentro da fechadura. Pelo som, suas dobradiças pareciam estar enferrujadas. Encontrei um quarto amplo com móveis antigos. O cheiro de poeira no ar me fez espirrar, e então escancarei a janela.

    Deixei minha mala no chão e comecei a examinar o banheiro que, à primeira vista, parecia limpo. Voltei para o quarto. Eu sentia falta de ter uma televisão, um telefone ou algo que fizesse barulho além do vento passando pela janela. Não conseguia nem ouvir o som de um motor de carro vindo da estrada mais próxima. Mas eu podia me acostumar a isso.

    Deitei-me na cama, que rangeu terrivelmente. Apesar das molas que espetavam os meus rins, senti que podia finalmente começar a relaxar. A ideia de conhecer minha avó me assustava; afinal de contas, ela era a mãe do meu pai. O recepcionista e o quarto no meio do nada também me assustavam. Comecei a questionar por que eu abandonara  minha caixa de fósforos em Nova York por essa cidade fantasma. O que eu achava interessante era que Ballymote era um reflexo exato do meu espírito: solitário, cinzento e muito triste.

    Caí em um sono leve, sombrio, embora fosse incapaz de determinar o que estava acontecendo.

    Abri os olhos com o que, na hora, achei ser um som estranho: o motor rouco de uma van. Pulei da cama e corri até a janela a tempo de ver a minúscula encomenda que o carro de entregas deixara. Certo, existia alguma forma de vida em Ballymote, no fim das contas.

    Olhei para a moldura de madeira desgastada da janela e notei um detalhe que chamou a minha atenção: havia duas iniciais entalhadas. Uma letra B e uma letra E, ambas dentro de um coração.

    Poderia ser apenas uma coincidência, mas eu comecei a tremer enquanto minhas unhas roçavam nas letras. B de Brigit e E de Emma. Minha mãe.

    Por que viríamos para este motel? Parecia um absurdo, visto que morávamos perto. Será que já estávamos tentando fugir?

    Fiz uma careta. Era mais provável que fosse um casal apaixonado, por exemplo, Bruce e Elizabeth, que passara uma noite naquele quarto de hotel. Nada mais.

    Abaixo do coração, havia uma data. Estava tão apagada que mal se podia ler. A data era de dezesseis anos atrás, quando havíamos deixado Ballymote.

    Afastei-me da janela e me sentei na ponta da cama. Lentamente, estiquei o braço na direção do criado-mudo e abri a sua única gaveta. Dentro, havia uma Bíblia com as páginas amareladas. Eu a peguei e olhei para o fundo da gaveta. Como eu esperava, encontrei as mesmas iniciais, só que dessa vez com os nomes completos: Brigit e Emma

    Respirei fundo. Durante muitos anos, minha mãe e eu criamos uma espécie de tradição: escrever nos criados-mudos de todas as casas nas quais dormíamos. Costumávamos gravar nossos nomes na parte de trás, mas às vezes, quando o senhorio não era bondoso conosco, nós o fazíamos dentro da gaveta.

    E ali estavam eles. Aquela fora nossa primeira residência. Nosso primeiro lar como fugitivas.

    Retornei a Bíblia para o seu lugar, mas uma das páginas caiu no carpete. Observei o texto que narrava a fuga para o Egito; abaixo, em tinta negra, eu li: Não importa o que aconteça, nunca se esqueça de que eu amo você do fundo do meu coração. Emma

    Aquelas palavras ecoaram na minha cabeça, como a voz que vinha falando comigo. Dobrei a página e coloquei-a na minha bolsa. Sem consegui me conter, sem querer me conter, eu comecei a chorar.

    O hospital

    O hospital ocupava um antigo prédio de tijolos, desgastados pela passagem do tempo, dividido em três andares. As venezianas pareciam ter sofrido os efeitos de um forte vendaval, muitas estavam tortas e penduradas nas dobradiças. Notei que havia barras nas janelas. Quem iria querer fugir de um hospital? Ou seria esse o resquício de uma cadeia ou clínica psiquiátrica?

    A porta de entrada parecia ser a única coisa nova naquele lugar: uma porta giratória de vidro. Porém, ela não funcionava. Eu a empurrei com força e ela girou com dificuldade. Eu me vi num saguão espaçoso com ladrilhos gastos no chão, onde o verniz há muito havia desaparecido. Uma simples mesa de recepção, feita em madeira de cor escura e sóbria, com uma mulher de jaleco branco parada atrás dela, era a única mobília no recinto.

    Aproximei-me dela enquanto meus sapatos ecoavam ruidosamente no chão. A mulher não tirou os olhos da pilha de papéis que lia com atenção.

    -  Vim ver uma pessoa – eu disse, achando minha voz alta demais em meio ao silêncio do prédio.

    Ela permaneceu estática na mesma posição e, quando eu estava prestes a repetir o que havia acabado de dizer, ela falou, quase sussurrando:

    -  Só temos pessoas aqui, seria difícil se você viesse visitar um cachorro.

    -  Michelle Harris – continuei, ignorando o sarcasmo dela.

    -  Segundo andar, quarto 37 – ela respondeu, ainda sem olhar para mim. – No corredor à direita.

    Não procurei pelo provável elevador inexistente. Havia uma escadaria com corrimão de pedra onde a mulher indicara; era enorme como a de uma mansão, embora seus degraus estivessem rachados e, em várias ocasiões, quebrados. Eu me sentia como se tivesse subido três vezes, e a escada se abria para um corredor que circundava um pátio. Inclinei-me acima do balaústre para ver melhor. Um jardim já existira lá embaixo, os arbustos secos e os caminhos de pedra cobertos de ervas daninhas eram a prova disso. Sem dúvida alguma, o prédio já havia sido um monastério.

    ––––––––

    Procurei pelo quarto 37. Minha única companhia era minha sombra na parede, graças aos raios de sol que entravam pelo pátio. Fiquei feliz por ser de dia, não me atrevia a imaginar como seria caminhar por aqueles corredores imersa na escuridão da noite.

    Um número 37 estava torto em uma porta fechada. Até eu segurar a maçaneta, não havia parado para imaginar o que encontraria no outro lado. Como uma mulher idosa reagiria ao ver sua neta há muito perdida, que desaparecera por culpa de sua nora? Dezesseis anos haviam se passado, talvez ela nem ao menos a reconhecesse. Sentiria ódio?

    Vá em frente.

    A voz imaginária era tão nítida que me assustou em meio ao silêncio do corredor. Eu larguei a maçaneta com um solavanco.

    Ela pode não querer me ver, pensei, respondendo à voz, pode ter sido uma viagem inútil.

    Imagens distorcidas cruzaram minha mente, mais rápidas do que um furação e igualmente destrutíveis. Minha mãe deitada na cama, os braços finos, o rosto pálido, imóvel e trêmula de pânico devido aos pesadelos sobre a pessoa que um dia já fora o seu marido. O pânico que ela conseguira mitigar com o passar dos anos dobrou-se durante os seus últimos instantes de vida, tornando impossível ter algum descanso. Quem sou eu para tentar revirar um passado do qual minha mãe havia fugido, tão aterrorizada? A mulher que esperava lá dentro não era a mãe de tal homem?

    Entra.

    Cobri minhas orelhas com as mãos em um gesto fútil e absurdo, apesar de saber que aquelas palavras vinham de dentro da minha cabeça exausta.

    Ela é a sua avó.

    Eu sabia disso. Mas será que

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