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O Moinho à Beira do Rio Floss
O Moinho à Beira do Rio Floss
O Moinho à Beira do Rio Floss
Ebook717 pages11 hours

O Moinho à Beira do Rio Floss

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About this ebook

Em “O Moinho à Beira do Rio Floss” Eliot recria um singelo mundo campestre, habitado por personagens imperfeitas que tentam viver num mundo cheio de expectativas. Entre estas personagens, constrangidas pelo socialmente aceite, surge a figura da impulsiva e arrebatada Maggie Tulliver, que aos olhos da nossa época é uma simples moça romântica, mas que, no pacato mundo banhado pelo rio Floss, é uma rebelde que ousa juntar aos quatro verbos que eram destinados às mulheres do século XIX (nascer, casar, parir, morrer) um quinto: amar...
LanguagePortuguês
PublisherKTTK
Release dateAug 2, 2018
ISBN9789897786754
O Moinho à Beira do Rio Floss
Author

George Eliot

George Eliot was the pseudonym for Mary Anne Evans, one of the leading writers of the Victorian era, who published seven major novels and several translations during her career. She started her career as a sub-editor for the left-wing journal The Westminster Review, contributing politically charged essays and reviews before turning her attention to novels. Among Eliot’s best-known works are Adam Bede, The Mill on the Floss, Silas Marner, Middlemarch and Daniel Deronda, in which she explores aspects of human psychology, focusing on the rural outsider and the politics of small-town life. Eliot died in 1880.

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    Book preview

    O Moinho à Beira do Rio Floss - George Eliot

    Conclusão

    Livro 1 — O Rapaz e a Moça

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 1

    Era ali, na vasta planura, que o Floss se alargava para o mar entre as encostas verdes, e o amoroso fluxo, lançando-se ao seu encontro, lhe refreava a correria num impetuoso abraço. Os barcos negros, cheios de pranchas de pinheiros odorosos, de bojudas sacas de sementes de óleo ou de carvão luzidio, são levados na corrente para St. Ogg, cidade que mostra os seus telhados canelados e vermelhos e as largas plataformas dos seus cais entre o monte arborizado e a beira do rio, matizando as águas de suaves tons de violeta sob a furtiva mirada deste sol de fevereiro. Ao longe, de cada lado, estendem-se pastagens férteis e nesgas de terra escura, abrindo-se às sementes de pujantes colheitas, ou coloridas pela tonalidade suave do trigo já ceifado. Restos de cortiços dourados surgem de espaço a espaço por detrás das sebes, todas enfeitadas de vegetação. Os barcos distantes parecem erguer os mastros e içar as velas vermelho-pardas, por entre os ramos dos freixos hospitaleiros. Rente à cidade de telhados rubros, o azougado Ripple corre em direção ao Floss. Como é encantador, o riozito de ondas escuras e variáveis! Sinto-o como um amigo, quando sigo pelas margens fora, escutando-lhe a voz grave e pausada, como a de quem nos ama e não nos ouve... Lembro-me dos grandes salgueiros gotejantes e da ponte de pedra...

    E aquele é o moinho de Dorlcote. Apetece-me ficar a olhá-lo, aqui da ponte, por uns minutos, apesar de ser já tarde e as nuvens se mostrarem ameaçadoras. Até neste terminar de fevereiro desfolhado tem encantos! Talvez a enregelada e húmida estação dê mais beleza à casa bem cuidada e hospitaleira, velha como os castanheiros e os olmos que a protegem das nortadas. O regato está na cheia; estende-se sobre a plantação esbranquiçada e quase submerge a franja arrelvada do pasto fronteiro à casa. Olhando a corrente, a erva berrante, o pó de um verde delicado a esbater o contorno dos grandes troncos e dos ramos que resplandecem sob os violáceos galhos nus, enamoro-me do que é humidade e invejo os patos brancos que mergulham as cabeças, fundo, na água, entre os juncos, indiferentes ao que podem parecer ao mundo árido.

    O ímpeto da água e o ressoar do moinho provocam uma surdez de sonho que parece aumentar a quietude da paisagem. São como uma espessa cortina de som separando-nos do mundo. Agora ouve-se o trovejar da carroça que chega a casa carregada com sacos de trigo. O bom do carroceiro pensa no jantar que está ressequido no forno, a estas horas; mas não lhe tocará sem tratar primeiro dos cavalos, bichos submissos e fortes que parecem deitar, sob a viseira, olhares de censura aos estalidos do chicote que têm a consciência de não merecer. Vejam como retesam o dorso na subida para a ponte, com toda a energia que lhes vem da proximidade da casa! Observem as patas grandes e felpudas que parecem agarrar-se ao chão firme, os pescoços de força paciente, curvados ao peso da coleira, os músculos grossos das esforçadas ancas! Gostaria de os ouvir relinchar, satisfeitos com a bem merecida ração de trigo, e de os ver, libertos os pescoços dos arreios, mergulhar as ávidas narinas no tanque lamacento. Chegaram à ponte, agora descem apressados e o arco da cobertura do carro desaparece por detrás das árvores.

    Agora posso voltar novamente os olhos para o moinho, e observar a incansável roda a espalhar jatos brilhantes de água a jorros. Aquela garota também está a vê-la; tem estado sempre no mesmo sítio à beira da água, desde que parei na ponte. E aquele cãozito de orelhas acastanhadas parece saltar e ladrar em baldado protesto contra a roda, talvez ciumento da atenção com que a companheira do gorro de castor lhe observa o movimento. Parecem-me horas de ela voltar para casa, mas esta luz está a tentá-la — a luz vermelha que resplandece no céu cada vez mais carregado. Talvez também sejam horas de eu desencostar os cotovelos da pedra fria da ponte...

    Tenho os braços dormentes de apoiar os cotovelos nos braços da cadeira; sonhei que estava sobre a ponte, em frente ao moinho de Dorlcote, tal como estivera numa manhã de fevereiro, já lá vão alguns anos. Antes de adormecer tencionava contar-lhe a conversa que o senhor e a senhora Tulliver tiveram na sala de visitas da esquerda, nessa mesma tarde de fevereiro com que acabo de sonhar.

    Capítulo 2

    — Sabes o que eu quero — disse o senhor Tulliver —, o que eu quero é dar ao Tom uma boa educação... uma educação que lhe dê o sustento. Por isso é que o tirei do liceu pelas festas da Virgem. Quero metê-lo num colégio bom pelo S. João. Dois anos de liceu já lhe chegavam, se eu o quisesse para moleiro ou para lavrador; tem mais estudos do que eu: os estudos que o meu pai me deu tinham a cana numa ponta e o alfabeto na outra. Mas gostava que o Tom tivesse mais educação para conhecer as manhas desses senhores que falam bem e que escrevem bonito. Era uma ajuda para mim nas demandas e no resto. Não quero que vá para advogado; sim, não o quero para malandro, mas engenheiro ou inspetor, ou leiloeiro, ou talvez avaliador como o Riley, ou então meto-o num daqueles negócios em que se ganha e não se tem quase despesas a não ser a corrente do relógio e um banco. É tudo o mesmo e tudo segundo a lei, pelo que me parece. Veja lá se o Riley não olha de frente para o Wakem, o advogado, como um gato olha para o outro. Ele não lhe tem medo.

    O senhor Tulliver falava com a senhora Tulliver, mulher loura e simpática que usava touca em forma de leque. (Nem me quero lembrar de há quanto tempo se usaram estas toucas — há tanto que devem estar a usar-se outra vez. Naquele tempo, quando a senhora Tulliver ia nos quarenta, eram moda em St. Ogg e faziam sucesso.)

    — Olhe, senhor Tulliver, o senhor é que sabe; não digo que não. Mas talvez fosse melhor matar umas galinhas e convidar os tios para jantar na semana que vem, e saberíamos então o que a mana Glegg e a mana Pullet pensam. Há para aí umas galinhas que precisam de ir à degola!

    — Podes matar as galinhas todas que estão na capoeira, se quiseres, Bessy, mas eu cá não preciso de que tios nem tias me digam o que hei de fazer com o meu filho — respondeu o senhor Tulliver em ar de desafio.

    — Credo, meu bem! — disse a senhora Tulliver, escandalizada com este sanguinário discurso —, que termos, senhor Tulliver! Mas já é costume falar assim da minha família; e ainda por cima a mana Glegg deita-me as culpas todas, e eu inocente como um anjo! Porque a mim ninguém ouve dizer que era infelicidade para os meus filhos ter tios e tias a viver dos rendimentos. Mas olhe, se o Tom vai para uma escola nova, ele que vá para onde eu possa lavar-lhe e remendar-lhe a roupa, senão, tanto faz ter roupa de pano-cru como de linho, tanto vem amarela uma como a outra depois de meia dúzia de lavagens. E assim, quando a diligência for e vier, posso mandar ao rapaz um bolo, uma tarte de porco, ou de maçã; ele está sempre pronto para mais um migalho, o meu filho, quer lhe deem muito, quer lhe deem pouco. Os meus filhos comem como os outros, graças ao Senhor.

    — Bem, bem, arranja-se que fique no caminho do carro, se puder ser, mas não me inventes sarilhos por causa da roupa, se não pudermos arranjar escola perto. É o teu defeito, Bessy: quando vês um pau no meio da estrada julgas logo que não podes passar por cima dele. Não me deixares aceitar um bom carroceiro, lá porque tinha uma verruga na cara!

    — Credo! — exclamou a senhora Tulliver, surpreendida. — Quando foi que eu me opus a aceitar um homem por causa de uma verruga? Eu até gosto de verrugas, porque o meu irmão que morreu tinha uma na testa. Mas não me lembro de o senhor querer tomar ao serviço um homem com uma verruga. O Gibbs tinha verrugas tanto como eu ou você, e insisti sempre para que o tomasse, e tinha-o aceitado se ele não tivesse morrido com a infeção; que até nós é que pagámos ao Dr. Turnbull para o tratar; e estaria a guiar a carroça a estas horas. Pode ser que tivesse uma verruga num sítio escondido, mas eu ia lá adivinhar!

    — Não, Bessy, não era bem a verruga que eu queria dizer, era outra coisa. Mas deixa lá; isto de palavras é uma confusão. O que é preciso é arranjar uma escola que seja boa para o Tom; porque posso ser intrujado como o fui com o liceu, não quero mais nada com liceus. Seja que colégio for que eu escolha para o Tom, não há de ser um liceu, um lugar onde os rapazes não passem o tempo só a engraxar o calçado ou a descascar batatas. É uma coisa complicada esta de escolher um colégio.

    O senhor Tulliver fez uma pausa e enfiou as mãos nos bolsos como se esperasse encontrar dentro deles qualquer sugestão. E não estava visivelmente desapontado porque disse: — Já sei o que tenho a fazer. Vou falar ao Riley. Ele vem cá amanhã para resolver a questão do dique.

    — Olhe, senhor Tulliver, já tirei os lençóis para a cama grande, a Kezia já os tem pendurados na lareira. Não são os melhores, mas são bons seja para quem for, porque os de linho só não me arrependo de os ter comprado porque hão de servir para quando formos a enterrar; e se morresse amanhã, senhor Tulliver, estariam perfeitamente lavados e prontos, e a cheirar a lavanda, que até seria um prazer estendê-los. Estão guardados na gaveta da esquerda da cómoda grande de carvalho, da parte de trás, que eu não me fio em quem quer que seja para tomar conta deles, a não ser em mim própria.

    Dizendo isto, a senhora Tulliver tomou um molho de chaves da algibeira, e escolhendo uma passava-a para baixo e para cima entre os dedos, fixando o fogo com um sorriso ameno. Se o senhor Tulliver fosse um marido desconfiado, poderia supor que ela tirava a chave para favorecer a imaginação na expectativa do momento em que o seu estado de saúde justificasse a aparição dos seus melhores lençóis de linho. Felizmente não era; só se mostrava suscetível em se tratando dos seus direitos sobre questões de propriedade de águas; além disso, tinha o hábito conjugal de não ouvir muito bem, e depois da sua referência a Riley ficara aparentemente absorto, a apalpar e a examinar as suas peúgas de lã.

    — Parece-me que já sei, Bessy — disse depois de curto silêncio. — Riley é homem para saber de alguma coisa; ele também teve estudos, e anda por toda a parte a resolver demandas e a fazer avaliações, e tudo. Temos tempo de falar disso amanhã à noite depois do trabalho. Gostava que o Tom fosse como o Riley, falando tão bem como se tivesse ali tudo escrito e conhecendo muitas palavras que não significam nada, mas por onde a lei não pode pegar, e sabendo bem de negócios...

    — Pois — disse a senhora Tulliver —, não se me dava que o rapaz andasse por aí curvado e com os cabelos empastados a falar bem e a saber tudo. Mas esses sábios da cidade usam os peitos da camisa postiços; usam os bofes até estarem nojentos e depois escondem-nos com uma espécie de babeiro; pelo menos é o que o Riley faz. E depois, se o Tom for viver para Mudport, como o Riley, vai ter uma casa com uma cozinha onde a gente mal cabe dentro, e nunca mais tem um ovo fresco para o almoço, e para ir dormir tem de subir três andares, quem sabe mesmo se quatro, e fica um dia em torresmos antes de poder chegar cá abaixo.

    — Não, não — disse Tulliver. — Não tenho tenções de o mandar para Mudport: quero que ele abra escritório em St. Ogg, perto de nós, e viva connosco. Mas — continuou depois de breve pausa — o que causa medo é que o Tom não tenha os miolos que um rapaz esperto deve ter. Parece-me um bocado tapado. Sai à tua família, Bessy.

    — Isso é verdade — disse a senhora Tulliver, aceitando o comentário pelo que valia —, está sempre pronto a deitar sal no caldo... O meu irmão já assim fazia, e o meu pai antes dele.

    — Sim, mas é pena que seja o rapaz a sair à família da mãe e não a garota. É o que dá a mistura das raças; nunca se pode calcular o que vai sair. Já a pequena sai ao meu lado; é duas vezes mais ladina que o Tom. Esperta de mais para mulher — continuou o senhor Tulliver, inclinando irresolutamente a cabeça ora para um lado ora para o outro. Não tem importância enquanto for miúda, mas a mulher esperta de mais é como o carneiro de rabo comprido: nem por isso se vende melhor.

    — Não tem importância enquanto for miúda? Tem, senhor Tulliver, porque é dali que vêm sempre as maldades. Já nem sei o que hei de fazer para conseguir que um bibe lhe dure duas horas lavado! E agora reparo — continuou, levantando-se e dirigindo-se para a janela —, não sei onde ela pára, e já são quase horas do chá. Ah, lá está, logo vi, sempre a vadiar perto da água. Qualquer dia cai ao rio.

    E a senhora Tulliver tamborilou com força nos vidros, fez um aceno e sacudiu cabeça — gestos estes que repetiu várias vezes antes de voltar a sentar-se.

    — Quanto a esperteza, senhor Tulliver — observou —, parece mas é que a pequena é um tanto parva nalgumas coisas; porque se a mando buscar qualquer coisa lá acima, esquece-se do que foi buscar e é capaz de se sentar no chão, ao sol, a entrançar o cabelo e a cantar como uma criatura do Demo; e eu cá em baixo à espera. Isto não acontece na nossa família, graças a Deus, nem tão-pouco ter aquela cor de pele, escura, que até parece mulata. Eu não quero insultar a Providência, mas custa-me muito ter só uma moça e ela ser tão ridícula.

    — Ora, tretas! — respondeu o senhor Tulliver. — Ela é uma moça desempenada e tem cada olho preto como não há para aí outra. Não sei em que é que fica atrás dos filhos dos outros; e olha, lê tão bem como o padre.

    — Sim, mas tem um cabelo que não encaracola por mais que se lhe faça, e para lhe pôr papelotes é uma cena; e para o frisar com o ferro tenho um trabalhão para fazer com que esteja quieta.

    — Olha, corta-o, corta-o curto — disse o pai precipitadamente.

    — Que ideia, senhor Tulliver! Já está muito crescida, tem nove anos e está alta para a idade. Cortar-lhe o cabelo! E a prima, a Lucy, com uma carreira de caracóis à roda da cabeça e sem um cabelo fora do lugar. E injusto que a minha irmã Deane tenha uma filha tão bonita. A Lucy ainda é mais parecida comigo do que a minha própria filha. Maggie, Maggie — continuou a mãe num tom meio agastado, meio carinhoso, vendo entrar o erro da natureza em questão —, quantas vezes te tenho dito que não vás para junto da água? Um dia cais ao rio, morres afogada e depois tens pena de não ter feito o que a mãe te dizia.

    O cabelo de Maggie confirmava aflitivamente as acusações da mãe. A senhora Tulliver, desejosa de ver a filha com o cabelo aos caracóis, «como as filhas dos outros», cortara-o de mais na frente, de maneira a poder puxá-lo para trás das orelhas; mas como, em geral, uma hora depois de tirados os papelotes já estava escorrido outra vez, Maggie sacudia constantemente a cabeça para afastar as pesadas madeixas negras dos seus lindos olhos pretos, num gesto que se assemelhava muito ao de um potro Shetland.

    — Ai, meu Deus! Oh, Maggie! Que ideia foi essa de atirar o gorro para aí? Vá, sê boazinha, leva-o lá para cima, deixa escovar o cabelo e põe outro bibe e muda de sapatos; vá, anda; e depois vem continuar o teu trabalho como uma boa menina.

    — Oh, mãezinha — disse Maggie, irritada —, eu não quero fazer o meu trabalho.

    — O quê? Um trabalho tão bonito para a colcha da tia Glegg?!

    — É um trabalho estúpido! — disse Maggie com uma sacudidela à trunfa. — Rasgar coisas aos bocados e depois cosê-los, outra vez. E não quero fazer nada para a tia Glegg; não gosto dela.

    E Maggie saiu arrastando o gorro pela fita, enquanto o senhor Tulliver ria gostosamente.

    — Admiro-me muito de que se ria, senhor Tulliver — disse a mãe com um ligeiro tremor na voz. — Acha graça às maldades dela e depois as tias ainda dizem que sou eu que a estrago.

    A senhora Tulliver era o que se chama uma pessoa bem-humorada. Nunca chorara em pequena, a não ser que a razão fosse forte como a fome ou uma picada, e fora desde o berço sempre saudável, rechonchuda e apagada; em conclusão: a flor amável e formosa da família. Mas o leite e a brandura não ganham em ser guardados, e quando se tornam, um pouco que seja, azedos, não assentam lá muito bem no estômago das crianças. Penso muitas vezes se aquelas Madonnas de Rafael, louras e de expressão quase sempre insípida, teriam mantido imperturbável a sua placidez quando os filhos, de membros fortes e fortes vontades, cresciam demasiadamente para poderem dispensar as roupas. Penso se fariam protestos débeis, e se se tornavam irritáveis à medida que eram mais inúteis.

    Capítulo 3

    Aquele senhor da gravata longa e camisa de bofes, que toma deliciado o seu conhaque com água na companhia do seu amigo Tulliver, é o senhor Riley, homem de tez de cera e mãos papudas, educado de mais para avaliador e leiloeiro; mas de ideias bastantes largas para mostrar interesse pelos seus amigos provincianos de hábitos hospitaleiros. O senhor Riley, sempre que falava deles, chamava-lhes benevolentemente «gente da velha escola».

    Houve uma pausa na conversa. O senhor Tulliver, por muitas razões, absteve-se de referir pela sétima vez a maneira desprendida como Riley dera troco ao próprio Dix e de como empatara as vazas ao Wakem, como o negócio fora resolvido por arbítrio e como nunca teria havido disputa se todos fossem como deviam e os advogados não fossem obra do Demo. O senhor Tulliver era, por via de regra, homem de seguras e tradicionais opiniões, mas num ou dois pontos fiara-se no próprio raciocínio e chegara a duvidosas conclusões, entre estas a de que os ratos, o gorgulho e os advogados eram criações do Diabo. Infelizmente, não tinha quem lhe mostrasse que isto era um desenfreado maniqueísmo, apontando-lhe o seu erro. Hoje, pelo menos, triunfava este princípio. Esta história das águas tinha sido um caso complicado, apesar de, vista por um lado, ser clara como água. Mas, encrencada ou não, não levara a melhor sobre Riley. O senhor Tulliver tomou o seu conhaque mais forte do que o costume, e, para homem com fama de ter algumas centenas de libras ociosas no banco, foi demasiado incauto ao exprimir o grande apreço em que tinha o talento comercial do seu amigo.

    O dique era assunto de conversa para outro dia: podia pegar-lhe sempre no mesmo ponto, e sob o mesmo aspeto; havia outro, como sabem, sobre o qual o senhor Tulliver desejava obter com urgência o conselho do senhor Riley. Foi por esta razão que, depois do último trago, ficou calado por algum tempo, esfregando os joelhos com ar meditativo. Não era homem para transições rápidas. Este mundo era uma coisa intrincada, dizia muita vez; e se levássemos o carro depressa de mais poderíamos ir parar a um beco sem saída. Mas o senhor Riley não tinha pressa. Porque havia de a ter? Até Hotspur devia gostar de sentar-se às vezes junto do lume, em chinelos, com a sua caixa de rapé e o seu conhaque.

    — Ando cá a magicar uma coisa — disse o senhor Tulliver, por fim, em tom mais baixo do que era costume, e voltando a cabeça para olhar fixamente o amigo.

    — Oh! — disse o outro com relativo interesse. O senhor Riley tinha as pálpebras pesadas e da cor da cera e sobrancelhas arqueadas que permaneciam imóveis em todas as circunstâncias. Esta imobilidade e o hábito de tomar uma pitada de rapé antes de qualquer resposta davam-lhe três vezes mais importância, como oráculo, aos olhos do senhor Tulliver.

    — É um caso muito especial — continuou —, trata-se do meu Tom.

    Ao ouvir este nome, Maggie, que estava sentada num banquinho perto do lume, com um grande livro aberto sobre os joelhos, afastou as pesadas madeixas e olhou-os avidamente. Poucos ruídos despertavam Maggie quando absorta na leitura, mas o nome de Tom tinha o efeito do mais estridente apito. Pôs-se logo atenta, com os olhos brilhantes, como um Skye terrier, farejando desgraça, e, em todo o caso, resolvida a lançar-se sobre quem ameaçasse Tom.

    — Sabe, é que eu queria metê-lo noutro colégio — disse o senhor Tulliver. — Ele vai deixar o liceu pelas festas da Senhora e deixo-o um tempo à solta, mas depois quero metê-lo num bom colégio para fazer dele alguém.

    — Não há coisa mais vantajosa do que uma boa educação — respondeu o senhor Riley. — Isto não quer dizer — acrescentou com delicada intenção — que não se possa ser um excelente moleiro ou lavrador, e ao mesmo tempo homem esperto e sensato, sem a ajuda de professores.

    — Também me parece — respondeu o senhor Tulliver, inclinando a cabeça e piscando o olho. — Mas é isto: prefiro que o Tom não seja moleiro nem lavrador. Não tinha graça nenhuma: se fizesse dele moleiro e lavrador, era capaz de querer tomar logo conta do moinho e das terras, dando-me a entender que já era tempo de me pôr de parte e ir pensando no último descanso. Ná, ná, já vi bastante disso. Eu não sou pessoa que tire o casaco antes de me ir deitar. Hei de dar uma educação a Tom que o ajude a montar um negócio com que possa construir o seu ninho, sem ter de me empurrar para fora do meu. Já não será mau se vier a apanhar-me quando eu me for. Eu não como papas enquanto não perder os dentes.

    Era este um assunto em que o senhor Tulliver era muito sensível, e o ímpeto que emprestava desusada fluência e ênfase ao seu discurso parecia perdurar ainda momentos depois no movimento de desafio que deu à cabeça, sacudindo-a de um lado para o outro, e na repetição do «Ná, Ná».

    Estes sintomas de irritação foram observados por Maggie, e feriram-na verdadeiramente. Parecia que julgavam Tom capaz de pôr o pai fora de casa e de causar tropelias com a sua maldade. Ela não podia consentir semelhante coisa; e, levantando-se do banco, esquecendo o pesado livro, que caiu com estrondo para dentro do guarda-fogo, chegou-se junto ao pai e disse numa voz meio chorosa, meio indignada:

    — Pai, o Tom nunca lhe faria mal, eu sei que não faria.

    A senhora Tulliver saíra para vigiar qualquer cozinhado especial, e o senhor Tulliver enterneceu-se com as palavras de Maggie; por isso o trambolhão do livro ficou sem castigo. O senhor Riley levantou-o apressado, ficando-se a olhá-lo, enquanto o pai, com um sorriso de ternura que lhe suavizava as feições, dava pancadinhas nas costas da garota e, tomando-lhe as mãozitas, aconchegou-a entre os joelhos.

    — O quê, não se pode dizer mal do Tom, hein? — perguntou o senhor Tulliver, olhando para Maggie com garotice. Depois em tom mais baixo, voltando-se para o senhor Riley, como se Maggie não pudesse ouvir: — Ela percebe tudo o que se diz, como ninguém. E devia ouvir como lê. Logo à primeira, como se já soubesse tudo de cor! E está sempre metida na leitura! Mas é mau, é mau — ajuntou pensativo, atalhando a condenável admiração —, a mulher não deve ser tão instruída; é capaz de dar mau resultado. Mas, santo Deus — e aqui o entusiasmo tomou a dianteira —, ela lê os livros e entende-os melhor que muitas pessoas crescidas.

    Maggie corou de exultante triunfo. O senhor Riley teria agora por ela mais respeito, pois era evidente que até aí a considerara sem importância.

    O senhor Riley continuava a folhear o livro e nada transparecia na sua cara de sobrancelhas arqueadas, até que, olhando para ela, disse:

    — Vem cá, conta-me coisas aqui do livro. Estas gravuras, por exemplo, quero que me digas o que representam.

    Maggie, ainda mais corada, aproximou-se sem hesitação, espreitou o livro, pegou-lhe por uma ponta, e, sacudindo a guedelha, disse:

    — Ah! Já lhe digo, mete medo, não mete? Mas não posso deixar de olhar para ela. A velha que está dentro de água é uma bruxa, puseram-na lá para saber se era bruxa ou não; se ela nadar é porque é bruxa, e se se afogar e morrer, sabe?, é porque está inocente e não é bruxa, mas uma pobre velha tonta. Mas de que lhe servia isso se já estava morta? O que é, é que suponho que ia para o céu e Deus lhe dava uma recompensa. E este ferreiro com as mãos nas ancas e que está a rir, é feio, não é? Sabe quem é? É o Diabo em pessoa — e Maggie falou mais alto e firme — e não um ferreiro verdadeiro, porque o Diabo toma a figura de homem mau e anda para aí a induzir as pessoas a fazerem maldades e finge que é um homem mau porque sabe que, se as pessoas vissem que ele era o Diabo, a dar rugidos e tudo, fugiam e ele já não podia obrigá-las a fazer o que ele quer.

    O senhor Tulliver ouvira esta descrição com petrificado espanto.

    — Mas que livro é esse que tem a garota? — explodiu por fim.

    A História do Diabo, de Daniel Defoe, um livro pouco próprio para miúdos — disse o senhor Riley. — Como é que isto veio parar aqui?

    Maggie mostrou-se desconsolada e ofendida, enquanto o pai dizia:

    — Foi um dos livros que comprei no leilão do Partridge. Estavam todos encadernados de forma igual, é boa a encadernação, como vê, e pensei que fossem todos livros bons. Há entre eles o livro de Jeremy Taylor, Vida e Morte Santificada, que leio muitas vezes aos domingos. — O senhor Tulliver julgava ter afinidades com o grande escritor por o seu nome ser Jeremy. — E a maior parte creio que são sermões, mas têm todos capas iguais e pensei que fossem todos da mesma amostra, se assim se pode dizer. Mas parece que não devemos julgar pelo lado de fora. Que mundo complicado!

    — Bem — disse o senhor Riley em tom repreensivo e protetor, afagando a cabeça de Maggie —, aconselho-te a pôr de parte A História do Diabo e a ler outro livro bonito. Não tens livros mais bonitos?

    — Tenho, tenho — disse Maggie, recuperando um pouco da sua vivacidade, no desejo de provar a extensão das suas leituras —, já sei que este livro não é bonito, mas gosto dos bonecos e faço com eles histórias da minha cabeça. Mas tenho as Fábulas de Esopo, um livro sobre cangurus e outras coisas, e A Viagem do Peregrino.

    — Sim, senhora, esse é que é um bom livro, não podes ler outro melhor.

    — Sim, mas também fala muito do Diabo — disse Maggie triunfante —, e vou mostrar-lhe a gravura em que ele está tal qual como é, a lutar com um cristão.

    Maggie correu apressada para um canto da sala, saltou para cima de um banco e tirou da pequena estante uma velha cópia gasta do livro de Bunyan, que se abriu sem ajuda na página da gravura que ela queria.

    — Cá está ele — disse ela correndo para Riley —, Tom coloriu-mo, quando esteve cá nas férias, o corpo todo preto, sabe, e os olhos vermelhos como fogo; porque ele é todo de fogo por dentro e sai-lhe pelos olhos.

    — Vai-te, vai-te! — ordenou o senhor Tulliver, perentório, incomodado com os atrevidos comentários acerca do ente tão poderoso que criava advogados. — Fecha o livro e acaba com essa linguagem. É como eu pensava: ela vai buscar mais mal que bem a estes livros. Vai, vai para o pé da tua mãe!

    Maggie fechou logo o livro, envergonhada mas pouco resolvida a ir ter com a mãe; e ainda se comprometeu mais indo para um canto, atrás da cadeira do pai, e pondo-se a acalentar a boneca com a qual tinha ataques de ternura na ausência de Tom, desleixando-lhe o vestuário, mas cobrindo-a de tão violentos beijos que as suas bochechas de cera tinham acabado por ganhar um aspeto doentio.

    — Já viram coisa assim? — disse o senhor Tulliver quando Maggie se escondeu. — Foi uma pena não ter saído rapaz: metia os advogados todos num chinelo, não haja dúvida. É extraordinário! — e baixou a voz. — Escolhi a mãe dela por não ser esperta de mais, embora fosse bonita e de gente bem governada; mas escolhi-a de entre as irmãs, de propósito, porque era um pouco simplória; não gosto de quem dê sentenças em minha casa. Mas quando um homem tem cabeça, nunca se sabe para onde é que ela o leva; e uma mulher agradável e obediente pode ir-nos dando rapazes estúpidos e moças espertas, até o mundo parecer que está às avessas. É uma coisa muito complicada. — A gravidade do senhor Riley cedeu, e teve um impercetível tremor ao servir-se do rapé antes de dizer: — Mas o rapaz não é tolo, pois não? Vi-o da última vez que cá estive; estava entretido a fazer uma fisga de pesca e parecia saber o que fazia.

    — Bem, ele não é parvo, sabe tudo a respeito das coisas do campo, tem bom senso e, quando faz qualquer coisa, sabe que o faz. Mas é atado na fala, sabe? E lê pouco, embirra com os livros, dizem-me que lê mal; é envergonhado com estranhos, e nunca tem saídas como as da garota. Ora o que eu quero é mandá-lo para um colégio onde aprenda a ter a língua e a pena menos presas, a ser mais desembaraçado. Quero que o meu filho esteja à altura dos que me passam a frente só porque têm mais estudos. Claro que se o mundo continuasse como Deus o fez, eu não perdia e fazia frente a qualquer um; mas as coisas estão tão complicadas e embrulhadas em palavras tão esquisitas que nem se parecem com elas próprias, e eu atrapalho-me sempre. Tudo se embaraça e, quanto mais direito se é, mais confusão se faz.

    O senhor Tulliver tomou uma golada, engoliu-a lentamente e abanou a cabeça com tristeza, consciente de ter mostrado que um cérebro completamente são só com dificuldade se acomoda neste mundo de doidos.

    — Tem toda a razão, Tulliver — observou o senhor Riley. — É preferível gastar umas duzentas ou trezentas libras com a educação do rapaz do que deixar-lhas em testamento. Era o que eu fazia se tivesse filhos, apesar de não ter o dinheiro que você tem e de ter uma ninhada de moças.

    — Talvez você saiba de algum colégio bom para o Tom — disse o senhor Tulliver, pouco disposto a desviar o rumo à conversa com palavras de simpatia sobre a falta de dinheiro do senhor Riley.

    O senhor Riley tomou uma pitada de rapé e deixou o senhor Tulliver na expectativa, com um silêncio que parecia propositado, antes de dizer:

    — Sei de uma oportunidade magnífica para quem tenha dinheiro como você, Tulliver. Eu nunca aconselharia um amigo meu a mandar um filho para um colégio qualquer, se ele pudesse mandá-lo para outro melhor. Mas querendo dar ao rapaz instrução superior, onde ele fosse ao mesmo tempo discípulo e companheiro do professor, e sendo esse professor um homem às direitas, posso indicar-lhe o homem. É coisa que eu não diria a toda a gente porque creio que nem todos conseguiriam apanhá-lo, mesmo que tentassem, mas a si digo-lhe. Fica entre nós.

    O olhar interrogativo com que o senhor Tulliver observava a cara eloquente do amigo tornou-se ansioso.

    — Então vamos lá a ouvir isso — disse, ajeitando-se na cadeira, com a condescendência da pessoa que se julga no direito de ouvir comunicações importantes.

    — É um homem de Oxford — disse o senhor Riley, sentencioso, premindo os lábios e olhando para o senhor Tulliver para ver o efeito da informação.

    — O quê? Um padre? — perguntou o senhor Tulliver desconfiado.

    — Sim, e M. A. Parece que o bispo o tem em muito apreço; foi mesmo ele quem lhe arranjou o lugar nesta paróquia.

    — Ah! — exclamou o senhor Tulliver, para quem os fenómenos desconhecidos eram tão espantosos uns como os outros. — Mas que tem ele que ver com o Tom?

    — Bem, o facto é que ele gosta muito de ensinar e quer continuar os seus estudos, mas as obrigações de pároco pouca oportunidade lhe dão para isso. Assim, está disposto a ter dois ou três discípulos. Os rapazes fariam parte da família; o que é esplêndido para eles, e estariam sempre sob a vigilância de Stelling.

    — Mas acha que o deixariam repetir o pudim? — interrompeu a senhora Tulliver, que voltara a ocupar o seu lugar. — Ele é tão amigo de pudim (como todos os rapazes); não me conformo com a ideia de que possa passar fome.

    — E que dinheiro era preciso para isso? — perguntou o senhor Tulliver, cujo instinto lhe dizia que os honorários de tão admirável M. A. deviam ser elevados.

    — Deixe ver; eu conheço um padre que leva cento e cinquenta libras pelos discípulos mais novos, mas não se compara com Stelling, o homem de quem falo. Sei de fonte segura que uma pessoa eminente de Oxford disse: «O Stelling, se quisesse, podia obter quantas honrarias ambicionasse.» Mas ele não se importa com os títulos universitários; é um homem discreto, não gosta de alarde.

    — Tanto melhor, tanto melhor — disse o senhor Tulliver —, mas olhe que cento e cinquenta libras é puxado. Nunca pensei pagar tanto.

    — Deixe-me dizer-lhe, Tulliver, que uma boa educação vale dinheiro. E olhe que Stelling não pede de mais, não é ganancioso. É possível que ele aceite o seu rapaz pelas cem libras e tenho a certeza de que nenhum outro o faria. Posso escrever-lhe nesse sentido, se quiser.

    O senhor Tulliver esfregava os joelhos e olhava para o tapete com ar meditativo.

    — Se calhar é solteiro — observou a senhora Tulliver neste intervalo — e eu não tenho boa impressão das governantas. O meu irmão que Deus haja teve uma vez uma governanta que roubou metade dos ferros da cama dos hóspedes. E quanto à roupa de linho, isso nem se fala; chamava-se Stott. Corta-me o coração de pensar que o Tom vai para uma casa onde há governanta, e espero que não o mande para lá, senhor Tulliver.

    — Pode estar descansada a esse respeito, senhora Tulliver — disse o senhor Riley —, porque Stelling é casado com a mulher mais encantadora que é possível ter-se. Não há coração melhor do que o seu; e tem a sua cor e o cabelo louro ondeado como o seu. Conheço bem a família dela; pertence a uma gente de Mudport a quem nem todos agradam. Mas Stelling não é homem vulgar, e também é cuidadoso com as pessoas que escolhe para o seu convívio. Contudo, não creio que fizesse objeção quanto ao seu filho; decerto não o faria, sendo apresentado por mim.

    — Também não sei o que é que ele poderia ter contra o rapaz — disse a senhora Tulliver com um pouco de indignação maternal —, um rapaz com um ar tão agradável.

    — Mas estou a pensar numa coisa — disse o senhor Tulliver —, não será um sacerdote instruído de mais para ensinar o rapaz a ser um homem de negócios? A ideia que eu fazia dos padres era que a sua ciência consistia apenas em coisas ocultas. Ora não é isso que eu quero para o rapaz. Quero que ele aprenda contas, e a escrever como nos jornais e a dar fé de tudo; e a perceber o que as pessoas dizem, e a embrulhar as coisas em palavras que não servem para nada. É bem bom, lá isso é — concluiu o senhor Tulliver, abanando a cabeça —, poder dizer-se a alguém o que pensamos dele sem termos de pagar nada.

    — Oh! Meu caro Tulliver — disse Riley —, está completamente iludido acerca do clero, os melhores professores são sacerdotes. Os que não o são pertencem a uma camada inferior, geralmente.

    — Como o Jacobs do liceu — interrompeu o senhor Tulliver.

    — Sim, são homens que falharam noutros ofícios, possivelmente. Ora um sacerdote é uma pessoa elevada, por educação e por profissão; além disso, tem conhecimentos necessários para estimular os rapazes e os preparar convenientemente para qualquer carreira. É possível que muitos sejam só homens de letras, mas pode estar descansado quanto ao Stelling. É homem ladino, qualquer sugestão lhe chega. Falando de contas, por exemplo, basta dizer-lhe: «quero que o meu filho seja bom matemático» e pode deixar o caso por conta dele.

    O senhor Riley fez uma pausa, enquanto o senhor Tulliver, mais conformado com o aspeto clerical do preceptor, recitava mentalmente a um Stelling imaginário este discurso: «Quero que o meu filho aprenda aritmética.»

    — Olhe, meu caro Tulliver — continuou o senhor Riley —, a um homem com a educação do Stelling, qualquer ramo de instrução é familiar. Quando um marceneiro sabe manejar os seus instrumentos, tanto pode fazer uma porta como uma janela.

    — Ah! Lá isso é verdade — disse o senhor Tulliver, já quase convencido de que os padres eram ótimos professores.

    — Bem, já sei o que vou fazer — disse o senhor Riley —, e olhe que não o faria a toda a gente. Vou ter com o sogro do Stelling ou escrevo-lhe quando voltar para Mudport, e digo-lhe que você desejaria que o genro tomasse conta da educação do seu filho. É natural que o Stelling lhe escreva a apresentar-lhe as condições.

    — Mas não há pressa, pois não? — disse a senhora Tulliver. — Pois, espero, senhor Tulliver, que não vá mandar o Tom para a nova escola antes do Verão. Ele entrou para o liceu na Páscoa e veja lá o resultado que deu.

    — Sim, sim, Bessy; não prepares malte no dia de S. Miguel, que a cerveja torna-se em fel — disse o senhor Tulliver, piscando o olho e sorrindo ao senhor Riley com o natural orgulho do homem cuja mulher lhe é intelectualmente inferior. — Mas tens razão, não há pressa, desta vez acertaste, Bessy.

    — Talvez fosse bom não adiar muito — disse o senhor Riley tranquilamente. — O Stelling pode ter outras propostas e sei que ele não aceita mais de dois ou três pensionistas, se tanto. Não será preciso mandar o rapaz antes do S. Miguel, mas eu ia pela certa e assegurava-me de que ninguém mais se anteciparia.

    — Sim, não deixa de ter razão — disse o senhor Tulliver.

    — Pai — disse Maggie, que se aproximara despercebidamente e escutava de lábios entreabertos, enquanto segurava a boneca de pernas para o ar e lhe esborrachava o nariz com o braço da cadeira —, pai, é muito longe o sítio para onde vai o Tom? Nunca o iremos ver?

    — Não sei, minha joia — disse o pai com ternura. — Pergunta ao senhor Riley, ele é que sabe.

    Maggie dirigiu-se logo ao senhor Riley, perguntando: — A que distância é? Diz-me?

    — Oh, é longe, longe! — disse o homem, cuja opinião era que, às crianças, quando não fazem maldades, se deve falar só em ar de brincadeira. — Precisas de pedir emprestadas as botas de sete léguas.

    — Isso é um disparate! — respondeu Maggie, sacudindo a cabeça com altivez e voltando-se com lágrimas nos olhos. Começava a embirrar com o senhor Riley. Era evidente que ele a julgava uma pateta indigna de atenção.

    — Ah, Maggie, tem vergonha e não faças perguntas nem metas o nariz onde não és chamada — disse a mãe. — Vem cá, senta-te aqui no banquinho e cala-te. Mas — continuou a senhora Tulliver também sobressaltada —, é assim tão longe que eu não possa lavar-lhe e remendar-lhe a roupa?

    — Fica só a umas quinze milhas — disse o senhor Riley. — Pode ir lá e voltar no mesmo dia. Ou então... O Stelling é muito amigo de receber: certamente terá prazer em a convidar...

    — Mas naturalmente é longe de mais para eu tratar da roupa.

    A aproximação do jantar adiou oportunamente esta dificuldade e livrou o senhor Riley do trabalho de sugerir qualquer solução ou tomar qualquer compromisso — trabalho este a que não se furtaria, pois era muito amável, como se viu. Na verdade, dera-se ao trabalho de recomendar o senhor Stelling ao amigo Tulliver sem a menor esperança de proveito positivo ou sólido, como qualquer pessoa demasiadamente perspicaz podia supor. Porque não há nada como a perspicácia para levar a uma interpretação errada quando se segue uma pista falsa, e a pessoa, uma vez persuadida de que os atos e palavras têm determinado objetivo, distende invariavelmente a sua energia em imaginárias pesquisas. As tramas da cobiça, as traças deliberadas para um resultado proveitoso, só existem no mundo do dramaturgo e requerem demasiado esforço mental para que neles se comprometam os membros de uma paróquia. É fácil atrapalhar a vida dos vizinhos sem grande trabalho! Basta a demora numa palavra ou num silêncio, ou umas pequenas intrujices, para as quais não há justificação; basta um engano insignificante destruído por pequenas fantasias, ou um elogio desastrado ou mal engendradas insinuações. Vivemos o dia-a-dia, todos nós, com toda uma família de apetites urgentes, e o mais que fazemos é enganar com uma bucha a fome da ninhada, sem nos lembrarmos da semente ou da próxima colheita.

    O senhor Riley era homem de negócios e zeloso dos seus interesses, mas até ele era mais sujeito a repentes do que a estudadas resoluções. Não havia nenhum entendimento entre ele e o reverendo Walter Stelling. Pelo contrário, sabia muito pouco acerca daquele M. A. e das suas aptidões, talvez nem soubesse o bastante para se permitir dar tão boas referências ao seu amigo Tulliver. Mas estava convencido da competência de Stelling, porque lho dissera Gadsby, e Gadsby era primo direito de um professor de Oxford, o que era base mais segura para a sua convicção do que a observação direta; porque, embora Riley tivesse recebido algumas noções dos clássicos na Escola Normal de Mudport, e conservasse do Latim umas noções gerais, dificilmente compreendia qualquer coisa dele quando se entrava em minudências. Restavam-lhe, é claro, vagas reminiscências do seu juvenil contacto com o Sobre a Velhice e o quarto tomo da Eneida, mas eram dificilmente reconhecíveis como clássicas, e só se distinguiam pelo floreado e ênfase que apregoava na sua oratória de leiloeiro. Ora Stelling era de Oxford e os homens de Oxford eram sempre... — não, não, os de Cambridge é que eram bons matemáticos. Mas um homem educado na universidade podia ensinar o que quisesse, sobretudo um homem como Stelling, que discursara num jantar público em Mudport e se saiu tão bem que se fez opinião geral que o genro de Timpson era um rapaz esperto. Em Mudport não podiam deixar de fazer justiça ao genro de Timpson, pois era um dos mais úteis e influentes homens da paróquia, e tinha importantes negócios que só ele sabia manejar. O senhor Riley gostava de homens assim, e isto independentemente de qualquer lucro que pudesse ser desviado de outros bolsos para os seus através da indicação desses homens; e seria uma satisfação poder dizer a Timpson, quando voltasse: «Tenho um bom discípulo para o seu genro.» Timpson tinha uma data de filhas e o senhor Riley lamentava-o. Além disso, há quinze anos que se habituara a ver contra o apainelamento da igreja a cara e os caracóis louros de Louisa Timpson: era natural, portanto, que o marido fosse um preceptor recomendável. Além disso, o senhor Riley não conhecia outro professor com motivos que o fizessem recomendar de preferência. Porque não havia, então, de recomendar Stelling? O seu amigo pedira-lhe uma opinião e é sempre uma causa de resfriamento, entre amigos, não dar a nossa opinião. E, uma vez que a damos, é estúpido não o fazer com convicção e com bem fundadas razões. Apresentando-a, damos a convicção como nossa e, é claro, entusiasmamo-nos com ela. Por isso, o senhor Riley, não sabendo de nada que condenasse Stelling, já tinha semelhante admiração, mal acabara de o recomendar, por um homem tão altamente recomendado, e tomava tal calor pelo assunto que, se o senhor Tulliver tivesse recusado mandar Tom para a casa de Stelling, ele teria qualificado o seu velho condiscípulo de grandíssimo asno.

    Se o leitor condenar o senhor Riley por ter dado uma recomendação sobre bases tão pouco sólidas, será severo de mais com ele. Por que motivo um leiloeiro e avaliador de há trinta anos que esquecera quase por completo o latim da sua escola normal seria forçado a mostrar escrúpulos que nem sempre encontramos em pessoas de elevada cultura no presente estado do nível moral?

    E, depois, alguém com um pouco de simpatia humana dificilmente pode deixar de fazer uma boa ação; e não se pode ser bom de todo. A natureza é a primeira a submeter-se ao ataque de um parasita nocivo, um pobre animal de quem não tem razão alguma de queixa. E admirável a sua proteção ao parasita! Se o senhor Riley se tivesse retraído ao dar a recomendação baseada na evidência, não teria arranjado um bom discípulo a Stelling, o que seria um prejuízo para este senhor. E preciso considerar também que as pequenas ideias agradáveis como o prazer de estar nas boas graças de Timpson, a satisfação de dar a sua opinião e de causar admiração ao seu amigo Tulliver, de dizer as coisas com autoridade e outros pequenos prazeres que, de mãos dadas com a lareira, o conhaque e água, dispunham bem nesse momento o espírito do senhor Riley deixariam totalmente de existir.

    Capítulo 4

    Foi grande o desgosto de Maggie por não a terem deixado ir com o pai buscar Tom, que voltava do liceu; mas estava uma manhã húmida de mais, dizia a mãe, para a menina pôr o chapéu novo. O ponto de vista de Maggie era contrário, e foi em consequência direta desta divergência que Maggie, quando a mãe lhe escovava a pesada trunfa, se lhe escapou subitamente das mãos e meteu a cabeça numa bacia de água que estava perto, na vingativa resolução de acabar com os caracóis, pelo menos naquele dia.

    — Maggie, Maggie! — exclamou a mãe, sentando-se, flácida e desconsolada. — Que vai ser de ti se continuas assim tão má? Faço queixa à tia Glegg e à tia Pullet quando cá vierem para a semana, e elas não gostarão mais de ti. Ai, meu Deus, meu Deus! Olha para o teu bibe todo molhado. Devem pensar que é castigo eu ter uma filha assim. Vão pensar que cometi algum crime.

    Antes do final deste protesto, já Maggie ia longe, a correr para o grande sótão, sob o telhado alto, sacudindo a água do cabelo como um Skye terrier que fugiu do banho. Este sótão era o refúgio predileto de Maggie, quando chovia e não estava muito frio. Era ali que ela desabafava os seus maus génios, falava alto com as prateleiras carunchosas, o carunchoso soalho e as vigas cobertas de teias de aranha, e tinha um feitiço a quem castigava pelas suas desditas. Este era o corpo de uma grande boneca de madeira, que em tempos possuíra olhos redondos e bochechas rosadas, mas que, ao cabo de uma longa carreira de sofrimento, estava agora completamente desfigurada. Três pregos cravados na cabeça comemoravam igual número de crises nos nove anos de luta terrena de Maggie. Aquela vingança magnífica fora-lhe sugerida pela estampa que representa Jael aniquilando Sisera, que vinha na velha Bíblia. O último prego fora cravado com mais força, porque dessa vez o feitiço representava a tia Glegg. Logo depois disso refletiu que, se cravasse assim muitos pregos, não poderia imaginar tão facilmente que magoava a cabeça quando batia com ela nas paredes ou a confortava ao pôr-lhe os emplastros, uma vez passada a ânsia. Porque até a tia Glegg meteria dó se a magoassem muito, e se tornaria humilde e lhe pediria perdão. Desde então não lhe espetou mais pregos, e desabafava batendo e esfregando a cabeça de pau contra os tijolos ásperos da enorme chaminé, cujos pilares sustentavam o telhado. Foi o que ela fez nessa manhã quando ali chegou, soluçando com uma veemência que lhe tirava toda a consciência das coisas, até a lembrança do agravo que as causara. Quando, por fim, os soluços diminuíram e a fúria das pancadas abrandou, um raio de Sol caindo sobre as prateleiras carcomidas, através das persianas de metal, fê-la atirar com o feitiço e correr para a janela. O sol voltava, o som do moinho era outra vez alegre, as portas do celeiro estavam abertas de par em par, e lá estava Yap, o estranho terrier branco e pardo, com uma orelha revirada, aos saltinhos e a farejar como se procurasse alguma companhia. Maggie não podia resistir! Sacudiu o cabelo e galgou as escadas, pegou no gorro, espreitou e deitou a correr pelo corredor fora, temendo encontrar a mãe; e sempre a correr chegou ao pátio, a rodopiar como uma Pitonisa e cantarolando ao mesmo tempo: — Yap, Yap! Hoje vem o Tom! — enquanto Yap saltava e ladrava à roda dela como a provar-lhe que, se era preciso barulho, ele era o cão mais indicado para o fazer.

    — Eh, eh, menina, olhe que fica tonta e cai na lama! — disse Luke, o primeiro moleiro, homem alto e espadaúdo, de quarenta anos, de cabelos e olhos de um preto enfarinhado.

    Maggie cessou de rodopiar e disse: — Eu não fico tonta, Luke! Posso entrar consigo no moinho?

    Maggie adorava andar pelo moinho, e muitas vezes saía de lá com o cabelo empoado de uma suave brancura que mais lhe acentuava o brilho do olhar. O barulho persistente, o movimento incessante das grandes mós, produziam-lhe um delicioso temor, como o da presença de uma força irresistível; e o cair lento e continuado do trigo, o pó fino e branco a esbater todas as superfícies, e a transformar até as teias de aranha em rendas feitas por fadas, o cheiro puro e bom do trigo, tudo se ligava para fazer Maggie sentir que o moinho era um mundo à parte da sua vida cá de fora. As aranhas mereciam especial atenção, perguntava a si própria se teriam conhecimentos fora do moinho, porque nesse caso deviam ter mais dificuldades em manter as suas relações; uma aranha gorda e empoada, por exemplo, acostumada à sua mosca bem coberta de farinha, deve estranhar quando lhe servem, à mesa de um primo, a mosca ao natural, e as senhoras aranhas devem escandalizar-se com o aspeto umas das outras. Mas a parte do moinho de que Maggie gostava mais era do andar lá de cima, onde se guardava o trigo e havia grandes montes de grãos em que podia sentar-se deixando-se escorregar muitas vezes sem parar. Tinha por costume fazer isto enquanto conversava com o Luke, com quem era muito comunicativa, no desejo de que ele também pensasse bem dela, como o pai.

    Talvez sentisse a necessidade de ser apoiada por ele nesta ocasião, porque, ao escorregar pelo monte de grão, perto do qual ele se ocupava, lhe gritou, na voz estridente que o ambiente requeria:

    — Você nunca leu senão a Bíblia, pois não, Luke?

    — Não, menina, e mesmo assim muito pouco — disse Luke com franca simplicidade. — Nunca fui grande leitor, lá isso é verdade!

    — E se eu lhe emprestasse um dos meus livros? Não tenho livros bonitos que sejam muito fáceis para você ler, mas tenho a Viagem à Europa de Pug, que conta tudo a respeito dos diferentes povos do mundo. E se não percebesse o que lá está escrito, via as estampas, que o ajudavam a perceber, porque se vê nelas o feitio e as maneiras dos povos, e o que fazem... Há os holandeses, sabe?, muito gordos e a fumar, sabe?, sentados num barril.

    — Não, menina, eu não quero saber dos holandeses. Não ganho nada em saber como são.

    — Mas, Luke, são nossos semelhantes, devemos interessar-nos pelos nossos semelhantes.

    — Não me parece que eles sejam nossos semelhantes, menina. O que eu sei é que o meu patrão velho, que sabia muitas coisas, costumava dizer: «Se algum dia deito a semente à terra e não me sai boa a colheita, sou um holandês», e isto era o mesmo que dizer que os holandeses eram parvos ou quase. Ná, ná, não quero maçar-me com holandeses; há tantos malucos, tantos malandros, que não é preciso ir procurá-los aos livros.

    — Bom, está bem — disse Maggie, sentindo-se derrotada pelas inesperadas opiniões de Luke acerca dos holandeses —, talvez gostasse mais da Natureza Animada; não trata de holandeses, sabe?, trata de elefantes, cangurus, dos gatos-de-algália, do peixe-lua e de um pássaro que se senta sobre a cauda e que não sei como se chama. Há países que, em vez de vacas e de cavalos, estão cheios destes bichos, sabe? Não gostava de os conhecer, Luke?

    — Não, menina, eu tenho de tomar conta do trigo e da farinha, não tenho tempo para outras coisas a não ser para o meu trabalho. É isso que leva muita gente à forca, saber tudo menos com que há de ganhar o pão. E depois o que vem nos livros é quase tudo mentira, pelo menos nas folhas que os homens vendem pelas ruas.

    — Você é como o Tom, Luke — disse Maggie, desejosa de mudar de conversa para uma direção mais agradável —; o Tom também não gosta de ler. Gosto tanto, tanto do Tom, Luke, mais do que de todos no mundo. Quando ele for homem, viveremos sempre juntos e eu hei de governar a casa dele. Eu é que lhe digo tudo o que ele não sabe. Mas o Tom, apesar de não gostar dos livros, é muito habilidoso, sabe fazer chicotes e capoeiras para os coelhos.

    — Ai — disse Luke —, ele vai ficar muito triste porque os coelhos morreram todos!

    — Morreram! — gritou Maggie, levantando-se de repelão do seu assento sobre o trigo. — Oh! Meu Deus! Luke! Todos? Até o de orelhas caídas, e a coelha às pintas que custou o dinheiro todo do Tom?

    — Mortos como as toupeiras — disse Luke, servindo-se, para a sua comparação, dos bichos que tinha pregados na parede da cavalariça.

    — Ai, meu Deus, Luke! — disse Maggie em voz chorosa, enquanto grandes lágrimas lhe corriam pela cara. — O Tom mandou-me tomar conta deles, e eu esqueci-me. Que hei de fazer agora?

    — Olhe, menina, eles estavam na última casa das ferramentas, e ninguém tinha obrigação de tratar deles. O senhor Tom, naturalmente, disse ao Harry que olhasse por eles, mas não se pode contar com o Harry; é a criatura mais desastrada que aqui tem entrado. Não se lembra de nada a não ser da barriga. Não lhe dar uma cólica...

    — Oh, Luke, o Tom pediu-me que me lembrasse dos coelhos todos os dias; mas que culpa tenho de que eles me não viessem à cabeça? Ai, ele vai zangar-se tanto comigo, e vai ter tanta pena, sabe? Que hei de fazer, meu Deus?

    — Não se apoquente, menina — disse Luke para a sossegar —, os coelhos de orelhas caídas não prestam; naturalmente, se lhes desse de comer, morriam à mesma. As coisas fora do natural nunca medram; nosso Senhor não gosta delas. Ele fez os coelhos com as orelhas deitadas para trás, e é pura teimosia trazê-las assim penduradas como um cão de guarda. Para a outra vez o senhor Tom já sabe que não deve comprar coisas assim. Não chore, menina... Olhe, venha a minha casa visitar a minha mulher. Eu vou para lá agora.

    O convite era uma oportuna distração para o desgosto de Maggie, e as lágrimas cessaram gradualmente, à medida que Maggie se encaminhava, ao lado de Luke, para a casa dele, que era mesmo à beirinha do Ripple. Ficava no meio de muitas pereiras e macieiras e com um bom chiqueiro a dar-lhe importância. A senhora Moggs era realmente uma mulher simpática. A sua hospitalidade traduzia-se em pão com melaço, e tinha, além disso, várias obras artísticas. Maggie esqueceu por completo o seu desgosto ao examinar, de cima de uma cadeira, para onde subiu, uma série de gravuras representando o Filho Pródigo vestido como Sir Charles Grandison, mas, como era de esperar em carácter tão imperfeito, não tinha, como aquele herói, o bom gosto e a força de vontade para dispensar a cabeleira. Mas o peso indefinível que a morte dos coelhos lhe causara fez sentir a Maggie mais pena deste rapaz do que de costume, sobretudo quando olhava para a gravura em que ele estava encostado a uma árvore com um ar amolentado, com as polainas

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