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Aventura no Laos - Terra dos Mil Elefantes: none
Aventura no Laos - Terra dos Mil Elefantes: none
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Aventura no Laos - Terra dos Mil Elefantes: none

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Livro de viagem pelo Laos. Dois amigos aventuram-se pelas florestas e paisagens montanhosas. Dormem em casas nas árvores, descrevem-nos a vida dos habitantes, as suas casas , hábitos e desejos. Uma aventura para ler, pensar, divertir-se e sonhar viajar também até ao Laos.

LanguagePortuguês
PublisherErik
Release dateAug 22, 2018
ISBN9781386144748
Aventura no Laos - Terra dos Mil Elefantes: none

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    Aventura no Laos - Terra dos Mil Elefantes - Erik Lorenz

    Impressão

    Incluído:

    Imagem de Capa e de Autor: Falk Wernsdorf

    Ilustrações: Gabriele Pittelkow

    Conteúdo

    Prólogo         

    Capítulo 1: Dias em Oudomxai    

    Capítulo 2: Phongsali e o norte selvagem laosiano   

    Capítulo 3: Na lama de Luang Namtha   

    Capítulo 4: A grande espera em Houay Xai  

    Capítulo 5: Voo alto em Bokeo    

    Capítulo 6: O Mekong e o acabar das pressas   

    Capítulo 7: Acerca de Reis e rios de Turistas  

    _ Luang Prabang

    Capítulo 8: Detidos em Vang Vieng   

    Capítulo 9: O planalto Bolaven: Acerca de cascatas

    e cerejas de café      

    Capítulo 10: 4.000 Ilhas e muita erva   

    Epílogo       

    Nota do Autor      

    Literatura    

    Prólogo

    É com grande relutância que começo o relato da minha viagem com uma situação que me identifica plenamente como um imbecil, na verdade como me sentia: desorganizado e com muita falta de sorte. Sentia-me enervado, eletrizado, batia com os pés no chão, deslocava o peso de uma perna para a outra. As palmas das minhas mãos suavam. E, logo agora, recebia a minha primeira lição da serenidade laosiana.

    Mas vamos por partes.

    Já umas horas antes, olhara fixamente lá para fora sem uma ideia de como escapar à minha miséria. Deixara-me levar como que por um turbilhão, esperançado num milagre, enquanto nos aproximávamos inexoravelmente da fronteira. Pingos de chuva embatiam nas janelas do autocarro como se alguém atirasse milhares de pequenos seixos. De ambos os lados da estrada pendiam nuvens baixas nas árvores, empurrando-se em densos molhes sobre a paisagem de colinas. O ar puro da floresta fluía no meu nariz. O denso teto de folhas da floresta, seguindo o alinhamento das encostas, impossibilitava-me qualquer visão. Matagais cerrados de bambus, trepadeiras, plantas cujo nome desconhecia, intercaladas aqui e acolá por árvores gigantes, cobertas de cipós pendentes, esticando-se sobre o mar de verdura até à massa cinzenta das nuvens. A estrada contornava as colinas e continuava através de compridos túneis. De vez em quando plantações, campos e pequenos jardins com sóbrias cabanas de madeira, rompiam a floresta, deixando a colina para trás e libertando a vista a vales largos com prados, ainda mais plantações e estreitos vales cavados que os agricultores atravessavam por meio de pontes antiquíssimas. Em baixo, rios castanhos, neste tempo de seca não mais que adoráveis regatos, escorriam lama para o oceano.

    Parecendo em nenhures, o autocarro parou para levar passageiros carregando sacos e bagagem com as suas colheitas de milho, bananas, ananases e outros produtos alimentícios em direção à fronteira.

    A estrada alargou-se para uma via rápida de quatro faixas. Nas bermas cruzavam-se motorizadas e cães, desinteressados das regras de trânsito. Apesar de esta ser a única estrada de ligação da China ao Laos, havia pouco trânsito. Ainda há poucos anos existia aqui maior atividade do que se possa pensar, mesmo que um pouco escondida. Eu entrava no Laos por uma das principais rotas asiáticas antigas de droga.

    A província chinesa de Yunnan, onde eu caminhei no desfiladeiro Salto do Tigre, entre outros, e onde visitei a lendária Shangri-la perto do Tibete, fica situada na fronteira de Burma e Laos. Nesta região fronteiriça existem ainda muitos territórios de produção individual de ópio, cujo produto encontra o seu caminho através de Dali e Kunming até à Ásia inteira e depois para o ocidente. Além desta rota, prosseguem através de Yunnan, as históricas rotas do chá nas quais, até aos anos 1960, quando Tibete construiu uma autoestrada, e durante mais de mil anos foi transportado chá e sal para todo o mundo, e a rota da seda a sul – uma rede de estradas de caravanas conduzindo através de um dos lugares menos hospitaleiros do mundo, ligou Asia à Europa durante séculos, permitindo a troca de quase tudo: mercadorias tais como vidro, porcelana, especiarias, pedras preciosas, peles e sedas, conhecimentos técnicos e científicos como a impressão, produção de papel e a destilação, bens culturais como canções, histórias e conceitos filosóficos, assim como muitos outros objetos, costumes ou bens espirituais até às religiões. O Budismo chegou à China e Japão através da rota do norte vindo da India, o Cristianismo conseguiu atingir Xi’an, a capital da China nesse tempo, o Islão estendeu-se da península arábica até à Síria e Egipto e, finalmente, até a todo o norte de África.

    Hoje em dia a importância económica da rota é muito reduzida em comparação com a sua atração romântica. Multidões de turistas pretendem ir em busca de vestígios de Marco Polo e o governo chinês manda restaurar cidades históricas, sendo agora importantes e lucrativos lugares a visitar. A minha rota era a estrada de Kunming, capital de Yunnan, através de Mengla para Boten, o posto fronteiriço para o Laos.

    O Sol rompeu a camada de nuvens e secou aos poucos as vidraças – esperemos que também a bagagem empilhada e amarrada no tejadilho e que, entretanto, pingava. Os primeiros sinais de trânsito na elegante escrita Abugida laosiana davam a entender que a fronteira não poderia estar muito longe e faziam-me lembrar, mais uma vez, do meu pequeno problema.

    Tudo tinha começado nessa manhã em Mengla quando tentara, desesperadamente, aumentar a minha reserva de dinheiro e todas as caixas automáticas ou estavam avariadas ou não aceitavam o meu cartão de crédito. Nas filiais bancárias não conseguia fazer-me entender. Ao perguntar ao balcão por alguém que falasse inglês, o empregado do outro lado do vidro nem um olhar me dirigiu; apenas uma funcionária das limpezas, querendo ajudar, me fez um sinal para a caixa automática à entrada da porta. No ecrã um aviso em letras enormes brilhava – Out of Service. Agora, sentado no autocarro, quase sem dinheiro vivo e – como se não fosse já mau – de estômago vazio, dado a procura de dinheiro me ter tomado o tempo todo antes da partida, esperava ansiosamente a resposta à pergunta, se conseguiria arranjar dinheiro na fronteira. Como desconfiava de não ser possível ali obter dinheiro suficiente para um Visto, ia procurando nervosamente filiais bancárias em várias localidades durante a viagem. Numa estação de serviço, duas mulheres ofereceram-me molhos de Kip laosiano. Money change!, gritavam, sorrindo convidativamente. Como gostava de ter feito negócio com elas. Restava-me uma parca reserva em euros mas elas só trocavam Kip laosiano por Yuan chinês ou dólares americanos. Ao lado do estacionamento, descobri um banco como uma aparição, mas também esta caixa automática estava avariada.

    Continuámos. Desviei então a minha atenção para o meu vizinho do lado direito, cuja cabeça começou a balançar para cima e para baixo como se fosse um cãozinho de brincar cansado. Tinha uns vinte e cinco anos, de cabelo loiro a rarear e braços tão grossos como as minhas coxas. As suas garras repousavam no colo, gentilmente colocadas em cima de três ou quatro pacotes saqueados de barras de chocolate. Ele ressonava baixinho e a sua cabeça pendia sobre o peito como se um cordel tivesse sido cortado. A posição da cabeça parecia ter estimulado a produção de saliva e, rapidamente, se começaram a formar pequenas bolhas ao canto da boca. Eu observava, fascinado, como as bolhas cresciam como balões para crianças ao ritmo da pungente respiração para, finalmente, rebentarem, silenciosamente.

    Um pouco antes de um fio de saliva, pegajosa de chocolate e que se tornou admiravelmente comprida, atingir a T-shirt, o autocarro deu um salto sobre um buraco e o meu vizinho acordou com um ronco desarticulado. Levantou a cabeça, olhou rapidamente para a esquerda e para a direita, orientou-se e reclinou-se para trás. Mastigando baixinho e aclarando a garganta, passou as costas da mão pela cara. Reparando na porcaria, virou-se para a janela e limpou-se sem ser notado, pensava ele, às mangas da camisa.

    O nome do jovem era Falk Wernsdorf, como Werner e Dorf, como dizia muitas vezes. Era um bom e velho amigo alemão a quem eu gostava de chamar bloco de músculos e que me era imprescindível, pois que, quase diariamente, me ajudava com garrafas bem rolhadas, pacotes de bolachas, latas de sopa e todas as outras embalagens de bens alimentares que eu não conseguia abrir. Com ele estudara na Holanda, com ele vivera os últimos seis meses na Ásia e com ele iniciara também a viagem através do Laos. Era edificante de ver como ele se esforçava na resolução do nosso pequeno problema.

    Chegámos à fronteira chinesa. Falk agarrou-se ao seu saco com a máquina fotográfica, que tinha entre as pernas, e que era do tamanho de uma bolsa de cosméticos. Tinha comprado o equipamento há umas semanas e protegia-o como um lince. Os passageiros tinham de sair do autocarro e caminhar através de um edifício moderno para tratar das formalidades de saída do país. Falk e eu dirigimo-nos ao primeiro funcionário que avistámos.

    Há aqui uma caixa automática?, perguntou Falk, um pouco sem folgo, já que tinha tão pouco dinheiro quanto eu e se sentia igualmente desconfortável. O funcionário, aborrecido, fez um gesto no sentido do balcão da receção. Pensámos que não tinha entendido nada mas não tivemos outra escolha do que seguir o seu gesto e de esperar o melhor.

    Em vão. Não havia uma caixa automática nem balcão de câmbios. Nada. Claro que não, pois quem é que passava sem dinheiro chinês ou laosiano uma fronteira chino-laosiana? No mundo dos negócios, a expressão Stuck in the Middle, ou seja preso no meio, descreve uma marca que não se consegue estabelecer significativamente como líder de qualidade ou de preço. O resultado é um posicionamento indefinido, algures em lado nenhum, uma má colocação no mercado. Era mesmo assim que me sentia ao tratar das formalidades de saída: preso no meio, perdido, encalhado em terra de ninguém, o visto para a China já inválido e impossibilitado de regressar, sem dinheiro suficiente para entrar no país seguinte. O que fizemos, então? Deixámo-nos seguir e ter esperança na nossa sorte.

    O autocarro contornou uma cópia quase acabada do That Luang, o símbolo nacional dourado do Laos, através do qual, num futuro próximo, a estrada passaria, e parou junto à estação de fronteira laosiana.

    Assim que nos apeámos, tornou-se rapidamente claro que também aqui não havia nenhuma caixa automática. O edifício era muito diferente do chinês: sem vestígios de modernidade. Parecia mais uma cabana decadente. O caminho aqui não se dirigia ao interior mas era contornado pelo exterior. Fizemos uma fila e chegámos, finalmente, a uma janela através da qual a entrada no país era regulada. Ofereci ao funcionário o meu sorriso simpático de viagem e fiz-me de parvo: Bom dia, quanto custa um visto para o Laos?

    Aqui.

    O funcionário fronteiriço colocou um formulário A4 à minha frente com a lista dos preços em três moedas diferentes: Kip, Yuan, US-Dólar.

    Engoli em seco e mostrei-me surpreso. Trinta dólares – tão caro, não é?

    O funcionário acenou a cabeça indiferente.

    Receio que não temos tanto connosco. Há aqui perto alguma caixa automática?

    Sim.

    Sim? Abri muito os olhos. De repente havia esperança no vale do desespero.

    Sim.

    E...onde? Quase não conseguia esconder o tremido da minha voz.

    O funcionário apontou lá para baixo para a estrada na direção de Laos.

    Quinhentos metros, não muito longe.

    Saiu-me um peso do coração. Mas, depois, hesitei.

    "Quinhentos metros nesta direção... a caixa automática encontra-se no Laos, correto?

    Correto.

    Então não podemos ir lá sem um visto?

    Ele pensou um pouco e fez que sim com a cabeça. Correto."

    Fiquei sem respirar.

    E aqui mesmo na fronteira, não há nenhuma caixa automática?, perguntei, desnecessariamente.

    Não.

    E um balcão de câmbios?

    Esse está junto da caixa automática.

    Tentei manter a calma.

    Existe alguma possibilidade de um de nós ir ao balcão trocar dinheiro?

    Ele pensou um pouco, abanou os ombros e disse que sim com a cabeça. Mas só um.

    Não pensei duas vezes. Deixei Falk ali e apressei-me a passar a estação de fronteira até ao autocarro que esperava no pequeno parque de estacionamento. Através de gestos e palavras perguntava a direcção a tomar às pessoas paradas por ali no estacionamento e ao nosso condutor mas ninguém me podia ajudar. Andei para trás e para a frente, parei junto a uma bifurcação, optei pela esquerda já que via edifícios lá em baixo. Só que não encontrei nem balcão de câmbios nem caixa automática e regressei de mãos a abanar ao autocarro. Ali, pedi ao condutor para tirar a minha mochila do tejadilho do autocarro. O condutor subiu por uma pequena escada na traseira do autocarro, desfez os nós da rede e cordas que seguravam a bagagem e procurou, com afinco, no meio de dezenas de enormes mochilas, malas e trouxas até encontrar a minha.

    Despache-se, disse ele. A maior parte dos passageiros já tinham, entretanto, retomado os seus lugares.

    Retirei a minha reserva de emergência de notas de euro e corri para a estação fronteiriça, onde Falk e eu novamente nos apresentámos. Pedimos e suplicámos e o funcionário ponderava e abanava a cabeça, satisfeito consigo mesmo, até se decidir a aceitar os euros. A sua conversão não correspondia ao curso de câmbio atual mas nós concordámos com a sobretaxa sem protestar. O importante era termos, finalmente, conseguido.

    Ou não?

    Depois de ter recebido o dinheiro e de nós termos preenchido os formulários necessários, começou a controlar os nossos documentos com uma lentidão incrível. O meu coração batia desvairado de medo de nem poder entrar no Laos nem de voltar à China.

    E justamente agora, mostrava-nos o funcionário o que era a serenidade laosiana.

    Desapareceu por alguns minutos, regressou, esticou-se numa cadeira e folheou os nossos passaportes. Estava surpreendentemente interessado nas nossas viagens anteriores. Conversou com os colegas e recostou-se relaxado.

    Fui espreitar nervosamente à esquina do edifício para ter a certeza que o autocarro ainda esperava.

    Um pequeno pedaço de papel caiu de dentro do meu passaporte e poisou na mesa. O funcionário olhou, como em câmara lenta, para onde ele poisou, olhou, olhou ... olhou – e agarrou-o. Observou-o de frente e de trás, virou-o de um lado para o outro. Eu não percebia muito bem se a calma se devia à sua natureza ou se ele nos queria demonstrar o seu poder. Devia saber que estávamos cheios de pressa.

    Finalmente, lá nos devolveu os passaportes com o visto. Corremos para o autocarro e pedimos desculpa uma meia dúzia de vezes ao condutor que ria animadamente. Cinco quilómetros mais adiante, chegámos a uma alfândega. Aqui havia uma caixa automática, contudo – o que já não me surpreendeu- Out of Service. Ainda assim conseguimos trocar os nossos magros Yuan restantes em Kip ao balcão de um pequeno banco e comprar uma pequena merenda.

    Ao princípio a paisagem quase não mudou. Prosseguimos entre colinas em cujas encostas pitorescas se aninhavam quintas rodeadas de verdura. A vegetação era, contudo, mais danificada. Densas florestas formavam ilhas entre encostas semeadas, arbustos e ervas e mares de pedaços de troncos de árvores e campos chamuscados. Subia fumo: cheirava a madeira queimada. Numa encosta mais além, um grupo de homens, com facas de mato, completavam o derrubamento.

    Passámos por aldeias de cabanas, feitas de tábuas, com paredes de entrecasca, madeira ou -mais raro- de tijolo. Os telhados eram de palha ou chapa ondulada. Porcos rebolavam-se no pó vermelho, uma galinha esvoaçou de repente à frente do autocarro, atravessando a estrada e escapando à morte por um triz. Entretanto era meio-dia e as pessoas descansavam. Dormiam em terraços de madeira ou em grosseiros estrados de cama trazidos para a sombra à frente das cabanas para apanharem um pouco de ar tépido. A estrada, cada vez mais rude, serpenteava pela montanha acima e oferecia ainda vistas mais fantásticas das cambiantes da paisagem de colinas.

    Fui relaxando lentamente. Foi com dificuldade que consegui passar a fronteira – rotina, para a maioria dos viajantes. Mas agora estava no Laos e a verdadeira aventura podia começar.

    Capítulo 1

    Dias em Oudomxai

    Bem-vindo a um país onde tigres e leopardos vagueiam pelas florestas, onde as paisagens e estilos de vida Mekong mais se salientam do que qualquer outra influência, ao país das montanhas densamente arborizadas e extensos vales fluviais, do ópio e de antigos templos budistas, natureza intocada e clareiras de florestas em progressão, um país sem ligação com o mar e sem trânsito ferroviário. Bem-vindo a um país pobre, rico em seres humanos com um sorriso nos lábios a maior parte das vezes. Bem-vindo a um país cuja população duplicou nos últimos trinta anos e que, apesar dos seus sete milhões de habitantes, ainda é o menos povoado do sudoeste asiático.

    Bem-vindo à Republica Popular Democrática do Laos. Ou, na versão original crocante: bem-vindo a sathaalanalat pasaatipatai pasaason lao. Laos não tem nenhum Grand Canyon, nenhuma Ópera icónica em forma de concha e também nenhum Angkor Wat, aqui não existe nem a maior floresta tropical do mundo nem o mais seco deserto. Mas irradia uma imensa fascinação, difícil de entender. É um país multifacetado, o resultado de incontáveis componentes distintos, uma mistura incoerente de diferentes povos com diferentes línguas, costumes, crenças e correntes de crenças, impossíveis para mim de descrever concisamente – mesmo quando o governo o tenta fazer precisamente, dividindo grupos populacionais em Lao Soung, Lao Theung e Lao Loum. Esta divisão refere-se, principalmente, à altitude das povoações mas não faz justiça à complexa realidade.

    Que fique bem claro, aqui e agora: eu amo o Laos, admiro-o, deixei-o entrar em mim, avidamente, a cada inspiração durante a minha viagem – essa viagem principiou aqui quando o autocarro parou, finalmente, no destino, uma cidade cujo nome deduzimos de uma placa: Oudomxai – também muitas vezes escrito Udomxai. Para o Lao não existe nenhuma transcrição latina uniforme, assim, são usadas várias grafias diferentes para a maioria de nomes de lugares e expressões.

    Um ou dois passageiros desceram do autocarro. Eu acordava lentamente de um meio-sono, olhei para a direita e reparei que não tínhamos chegado à estação de autocarros mas que estávamos estacionados ao lado de uma estalagem, o edifício mais bonito ao alcance da vista. Num impulso, corremos para fora do autocarro – seis horas entalados entre sacos de viagem e carradas de frutas eram suficientes - deixámos que nos entregassem as mochilas do tejadilho e marchámos para a estalagem, uma antiga construção colonial de três andares, em discretos tons amarelados, cuja elegância, infelizmente, terminava logo à entrada. Informámos a jovem por de trás do balcão de receção que desejávamos um quarto com duas camas. Ela não falava inglês mas encontrou outra solução. Numa folha de papel desenhou um quarto com duas camas. Falk inclinou-se sobre o balcão, observou o desenho e acenou, satisfeito. A jovem terminou a obra de arte, adicionando uma porta e uma mesinha de cabeceira, depois riscou o desenho todo e desenhou um novo quarto com uma cama de casal. Falk apontou para a primeira imagem e disse: Queremos este. Mas ela abanou a cabeça.

    Falk olhou-me, interrogativamente. Suspirei, aceitando o incontornável – uma noite numa cama com o bloco de músculos. Sabia o que isso significava: uma amarga luta pelos cobertores, a sua temperatura corporal que me fazia correr gotas de suor pela face como se dormisse ao lado de um forno, concerto de roncos direto para dentro dos meus ouvidos e uma superfície para estar deitado cada vez mais reduzida, enquanto Falk se esticava, sorridente e satisfeito, até o meu espaço ficar reduzido apenas a deitar-me de lado no colchão.

    Após a minha hesitante aprovação, dei uma olhadela ao guia de viagens e não antevi nada de bom em um alojamento onde o maior (e único) elogio era aos excelentes lençóis brancos. Subimos duas escadas com encantadores corrimões antigos de madeira, pavimentadas, irregularmente, a pedra de calçada avermelhada, atravessámos um hall, passámos ao lado de paredes feitas de fino contraplacado, atrás das quais haviam quartos com televisões ligadas. O nosso espaço era pequeno e sem janelas onde só cabia a sólida cama de casal. Os lençóis eram realmente brancos – tirando pequenos pontos pretos: caganitas de rato. O único móvel era uma pequena cómoda mantida unida por uma mão cheia de pregos. Colocando a minha bolsa de higiene em cima, toda a construção abanava perigosamente. Até a tapeçaria dava o seu melhor para se desprender da parede e desaparecer do quarto. O quarto de banho motivava a não se ficar por lá muito tempo de manhã. A sanita, com os sítios para colocar os pés à esquerda e à direita, sobre a qual temos de nos agachar, já conhecíamos da China. Caso alguma vez se tenha perguntado por que razão os chineses acham tão confortável agachar-se quando têm que esperar por algo, o que, à maior parte dos europeus nesta posição traz cãibras nas pernas após alguns segundos, não quero deixar de lhe responder: são as sanitas em muitos países asiáticos mas também em certas regiões de França, que conferem esta capacidade às pessoas, tornando-os flexíveis até idades avançadas.

    A nossa sanita não dispunha de autoclismo. Ao seu lado havia um balde com uma concha para verter água, mais ao lado, outro balde para o papel higiénico usado, evitando o entupimento das estreitas canalizações. Não seria de sugerir a instalação de um novo sistema de canalização com tubagem maior, de maneira a que não entupisse devido a uma pequena bola de papel e com nojentos resultados? As pessoas da maior parte da Ásia não veem

    as coisas assim. Da minha parte não encontro nenhuma razão lógica mas isso não significa que ela não exista.

    E mais?

    O candeeiro da casa de banho não tinha lâmpada. Uma lâmpada fundida – isso até podia entender. Pelo menos, no sentido ótico, teria transmitido a impressão de um candeeiro antiquado, como eu os imaginava – com abat-jour e lâmpada. O que me irritava era saber que, algures no passado, alguém com uma certa ambição – e, pelo menos, uma porção mínima de sanidade – aplicara este candeeiro no teto e que, depois, um outro alguém lhe sucedera e retirara a velha e fundida lâmpada e pensara: Oh, meu Deus, para quê ter tanto trabalho de enroscar uma lâmpada nova? Só para os meus hóspedes terem um pouco de luz à noite e não terem de andar de gatas com medo de esbarrar em qualquer coisa ou cair no buraco de porcelana no chão?

    Falk reparou na expressão da minha cara e disse sorrindo: Bem-vindo ao Laos.

    Tive que rir pois ele tinha razão: Nós estávamos no Laos, precisamente ali onde queríamos estar, precisamente neste país, precisamente nesta cidade, precisamente neste quarto, com tudo o que isso incluía. Não havia razão para queixas. Tínhamos um tempo maravilhoso à nossa frente. Apenas tinha que me libertar do mau-humor resultante do cansaço, abrir os braços e deixar o Laos envolver-me.

    Atirámos com as mochilas para cima da cama e fomos para a varanda, no final do corredor, para dar uma vista de olhos sobre a cidade, através de um emaranhado de cabos mesmo à altura dos olhos. À nossa frente estendia-se a estrada principal, formando uma curva alargada onde a maior parte da vida pública decorria. Oudomxai, capital da província com o mesmo nome, é um dos mais importantes pontos de cruzamento de trânsito e de rotação de mercadorias no Laos do norte, tendo a fama de um dos lugares de passagem menos atraentes, pelo qual a maioria dos turistas apenas passam porque têm que passar. Cerca de 30.000 habitantes vivem e trabalham na cidade e nas cercanias.

    Deixámos o alojamento e virámos à esquerda. Eram quinze horas e, além do pequeno snack na fronteira, não tínhamos comido mais nada. No restaurante Sinpeth, na rua principal, sentámo-nos no terraço, a fim de matar a fome. Encomendei massa frita com frango, legumes e ovo, mais uma coca-cola e café, tão doce como açúcar puro – um terço era leite condensado flutuando no fundo do copo. Pequenos gatinhos, aos quais a alguns tinha sido cortado o rabo, roçavam as nossas pernas. Mais atrás, onde o restaurante se abria para a estrada viam-se camas, um sofá, uma televisão. A família vivia e trabalhava aqui. No teto estavam penduradas colmeias secas, de um modo pouco decorativo.

    Enquanto, na mesa ao nosso lado, se sentavam dois monges em hábito amarelo-açafrão e pediam uma sopa, nós observávamos o que se passava na rua. Crianças passavam a acelerar motorizadas só com uma mão – na outra seguravam chapéus-de-sol-, do outro lado da estrada um mecânico, que parecia ter-se especializado em correias de todos os tamanhos e em como as usar, aconselhava os seus clientes, uma mulher empurrava um pequeno carro onde vendia sandes. Tirando as casas em desagradável estilo chinês, a vista da cidade fazia-me lembrar Goulburn, a primeira cidade australiana de interior onde eu passara muitos meses em viagens anteriores. As ruas largas, as fachadas dos estabelecimentos comerciais e as placas publicitárias, os edifícios baixos com as suas varandas e parapeitos exteriores, em Goulburn remanescência dos britânicos, aqui de origem francesa, muitos Pick-ups – Toyota também extremamente apreciados pelos agricultores australianos.

    Não posso evitar de sentir, arrancou-me Falk dos meus pensamentos, que estou na América do Sul. As ruas largas, as pessoas com as suas peles bronzeadas que, depois de semanas na China, me parecem menos asiáticas do que mexicanas, as colinas circundantes elevando-se como plantações de café nas terras altas da Costa Rica.

    Desta maneira, cada um de nós interpretava algo de conhecido no nosso primeiro local de estadia no Laos. Isso podia significar que estas semelhanças realmente existiam mas, possivelmente, seríamos nós que ainda não chegáramos verdadeiramente ao Laos e buscávamos orientação.

    Saciados, vagueámos pela cidade. Um sinal de trânsito – Museu – despertou-nos a curiosidade. Virámos na bifurcação seguinte e contornámos um pavilhão desportivo com campos de futebol e voleibol e centro de treino para jovens. Através das portas abertas vimos jovens a jogar ténis de mesa e bilhar e, à frente do edifício, outros lançavam bolas prateadas jogando uma espécie de bowling. No campo de voleibol, alguns jovens jogavam Kataw, um jogo que consiste em manter no ar com ajuda de pés, cabeças e cotovelos, uma bola de junco entrelaçado e atirá-la por cima da rede. Crianças pequenas riam para nós e acenavam. De qualquer modo, víamos muitas crianças: não era surpresa, já que Laos é um jovem país. Em 2008 a média era dezanove anos de idade, dez anos abaixo do valor mundial.

    Brincámos com as crianças e divertimo-nos, mas não encontrámos nenhum museu. Falk considerou: Talvez a seta na placa indicasse o cruzamento anterior e não o posterior.

    Tentámos a estrada anterior à placa. Esta corria ao longo de conjuntos de uma espécie de cabanas de agricultores e banais vilas de betão que se pareciam entre si como se tivessem sido fundidas no mesmo molde. Muitas delas estavam ainda em construção, outras nunca foram terminadas e faziam lembrar esqueletos cinzentos à beira da estrada. Pela cidade inteira via-se publicidade à Beerlao, a cerveja nacional do Laos. A marca, com a cabeça de tigre dourada, estava de tal maneira presente que fazia a Coca-Cola parecer velha: painéis publicitários nas ruas, placas de alumínio luminosas à frente das lojas e alojamentos, em toalhas de lanolina que cobriam as mesas, frigoríficos e cinzeiros nos restaurantes. Até mesmo em edifícios privados e pequenas cabanas pendiam os painéis publicitários.

    Os membros de uma família, deitados à frente de uma casa e a quem perguntámos pelo museu, não falavam inglês e apenas nos sorriam como resposta. Já agora, dava para entender que os laosianos eram de mais fácil aproximação do que os chineses que, nesta situação, reagiriam com mais insegurança. Tentámos mais umas vezes até encontrarmos o museu, um edifício magnífico, branco, em estilo colonial, situado no monte Phou Sebey e o qual já nos tinha deslumbrado, de longe, sem saber o que continha. Pensáramos que era a residência do governador ou de outra alta figura pública. Aproximando-nos do museu pelas traseiras, notámos que todas as portas e portadas das janelas estavam fechadas. Cuidadosamente, investigando nas portadas, tentámos descortinar algo através das frestas, mas não vimos nada. Um residente explicou-nos, por gestos e sinais, que não precisávamos de vir amanhã outra vez. Dava a entender que o museu estaria fechado durante muito tempo, talvez devido à estação das chuvas e à falta de turistas. Não tivemos outra alternativa além de desfrutar da vista da cidade, lá em baixo, com as suas vilas e palmeiras e lojas de reparações. Estava à vista que Oudomxai, em termos de comparação laosiana, era uma cidade onde se vivia bastante bem. Nos anos 1970 a China apoiara, a partir daqui, o Pathet Lao, movimento comunista que dirigia a resistência contra o poder colonial francês, e construíra estradas na Mengla chinesa e outros locais. Em contrapartida, foi garantido aos chineses o direito do corte ilimitado de árvores. Ainda hoje a cidade tem muita influência chinesa, além de tudo por razões comerciais. É um ponto de cruzamento importante não só entre a China, a Tailândia e o Vietname mas também entre as estradas de todas as cinco províncias do noroeste laosiano. As exportações para todo o sudeste da Ásia e da China são transportadas através da cidade ou aqui carregadas.

    Na cidade existe ainda uma grande parte de habitantes chineses. Principalmente os muitos imigrantes, vindos de Yunnan que fica bem perto, trazem capital através da fronteira e contribuem para o desenvolvimento da região. Outros chineses investem na cidade e na província a partir da China, nem sempre para vantagem da população local. Exemplos negativos são empresários chineses que vendem rebentos da árvore-da-borracha a agricultores laosianos para que estes os plantem nas suas terras. Além disso, fica regulado por contrato que o investidor comprará as árvores, anos depois, por um preço já combinado. Passado este tempo e devido à inflação, o preço ajustado tem muito menos valor do que à altura da assinatura do contrato – o investidor obtém as suas árvores a baixo preço. A muitos agricultores laosianos falta a formação para compreenderem tais conceitos. Muitas vezes é mesmo o governo laosiano a pressioná-los a fazer negócios aos quais os vizinhos chineses – sendo os maiores investidores no país com incontáveis minas, plantações de borracha e projetos de construção – deem o seu voto favorável.

    Noutros casos, os chineses compraram terras aos laosianos pagando uns meros 10.000 euros por campos inteiros. Em princípio, estrangeiros não são autorizados a ser proprietários de terra no Laos mas, para os amigos vizinhos comunistas, abre-se uma exceção. Os agricultores laosianos, que nunca tinham visto tanto dinheiro de uma vez só, frequentemente aceitam estas propostas e vendem abaixo de preço. Em vez de investirem os ganhos a longo prazo, compram um carro, normalmente Pick-ups que provocam altos custos regularmente e que, após dez anos não valem nada, enquanto o valor da terra vendida sobe lentamente. O número de entradas de comerciantes e empresários chineses, com a sua relativa riqueza e influência politica, fez com que muitos laosianos, hoje em dia, não vejam de bom grado mais imigrantes chineses.

    Contornámos metade do museu, descemos o monte do outro lado por uma comprida escada de betão e fomos ter, de novo, à rua principal. Mesmo em frente, via-se um outro monte da mesma altura, com o nome Phou That, no qual descobrimos o telhado dourado de uma estupa, um edifício budista que serve, principalmente, como monumento religioso e relicário. Do outro lado da estrada, subimos uma escada rodeados de chilreios de pássaros, porém não vi nem um. Em troca fomos acompanhados por borboletas e libélulas.

    Lá em cima esperava-nos um pequeno convento. Hábitos amarelo-açafrão pendiam de cordas da roupa e ondulavam ao vento brando. Debaixo de um telheiro via-se um enorme tambor cerimonial, junto com uma substancial coleção de estátuas de Buda. De repente, ouvi ladrar. Virei-me e olhei nos olhos de um enorme cão que corria a passos largos na minha direcção, de boca aberta. O meu coração deixou de bater. Procurei, precipitadamente, algo com que me pudesse defender e, quando o cão me alcançou, estava mesmo para agarrar numa das figuras de Buda mais pequenas para lhe atirar. Mas o animal andou só uma vez à minha volta, de rabo a abanar, e desapareceu. Ainda sentia o susto nos meus ossos, quando Falk, que não tinha ligado ao cão e seguira em frente, chamou: Anda! Estão a tocar música, por aí!.

    Num caminho mesmo abaixo do cimo do monte, aproximámo-nos da música pensando tratar-se de cânticos dos monges. Fomos andando, lentamente, e o mais silenciosos possível pois não queríamos incomodar os monges. A música tornou-se mais alta. Deslizámos para mais perto mas ainda não conseguíamos ver nada. Então soou a voz distorcida de um mestre-de-cerimónias e, logo de seguida, uma melodia que soava como a introdução de uma cantiga popular alemã. Olhámos em redor, surpreendidos. Descobrimos um altifalante, parecido com um megafone, preso ao ramo de uma árvore. Lá foram os cânticos dos monges – era uma transmissão de rádio que ecoava do monte sobre a cidade.

    Deixando o ruído para trás, subimos até uma grande e dourada estátua de Buda, o Desperto, colocada numa base pintada de branco, a mão direita com a palma levantada para a frente. Quatro jovens em t-shirts desportivas e bonés de basebol tinham-se sentado em alguns degraus abaixo dos pés da estátua. Encostavam-se, conversando, a uma das figuras lascadas, de Naga com três cabeças, que rodeavam a estátua em quatro lados. Nagas são seres com forma de serpentes, originárias da mitologia indiana e, o mais tardar no século VI, teriam chegado ao sudeste asiático com a expansão do Induísmo. Quando Buda meditara durante mais de quatro semanas sem parar, segundo a mitologia budista, o céu escureceu por cima dele durante sete dias. Houve uma enorme tempestade e a chuva caía sem cessar. Então Mucalinda, o rei das Nagas apressou-se a prestar ajuda a Buda estendendo as suas muitas cabeças sobre ele como um chapéu, protegendo-o da chuva e da tempestade. Esta função de proteção é, ainda hoje, utilizada quando as Nagas são colocadas diante de escadas, portas, entradas e passagens, como guardas de segurança.

    A estátua de Buda estava virada na direcção da estupa, no ponto mais alto do monte, à qual se podia aceder através de uma escada curta e larga, também esta flanqueada de Nagas, desta vez de nove cabeças. A estupa, com uns vinte metros de altura, era branca com ornamentos dourados nos parapeitos e um ápice dourado que brilhava ao sol da tarde. Possivelmente existira uma estupa neste lugar, já no século XIV, mas, depois da tomada de poder dos senhores coloniais franceses, o monte fora transformado em depósito de guerra. A estupa só foi reconstruida entre 1994 e 1997.

    Ali ao lado, sentado num pequeno banco, um monge mantinha uma conversa interminável com o seu telemóvel, acompanhada de gestos enérgicos. Este monte pareceu-me deveras adequado a simbolizar duas diferentes facetas do Laos: a devoção piedosa da estátua de Buda e da estupa, ressoando uma estranha música; jovens modernos que, na sua ociosidade, não se juntam em centros comerciais, mas sim num centro espiritual da cidade; um monge com telemóvel. Religião e rotina diária não eram aqui coisas contraditórias ou mesmo opostas, rejeitando-se alternadamente, mas formavam uma unidade.

    Eu e o Falk sentámo-nos num banco do outro lado da estupa, para não incomodar o monge, e observávamos como o sol se punha e se aproximava das montanhas circundantes. Um grupo de sete citadinos chegou ao monte. As pessoas inclinaram-se perante a estátua de Buda, aproximaram-se de nós e saudaram-nos também com significativas vénias, as mãos cruzadas em frente ao peito. Foi estranhamente comovente ser assim incluído, de uma maneira tão natural, nos seus hábitos de vida.

    A luz foi-se tornando mais suave. A cidade, abaixo de nós, brilhava em serenas cintilações e o vento ganhou um pouco de força. Falk queria aproveitar a boa luz. Foi para uns arbustos, notou que tinha a objetiva falsa, mudou para macro objetiva e começou a fotografar uma libélula.

    Momentos depois de o sol ter enviado os últimos raios para o vale e desaparecido, veio o monge que eu tinha visto no banco, passou por mim dirigindo-se ao seu alojamento e cumprimentou-me. Era um homem magro e alto, de quarenta anos, talvez. Ficou parado e perguntou de onde vínhamos, para onde íamos ainda e quanto tempo iriamos ficar aqui. Depois de responder a todas as suas perguntas, foi a minha vez de perguntar.

    Vivo há três anos como monge no Phou That, disse ele, olhando à sua volta e prestando atenção ao que o cercava como se fosse a primeira vez que o via.

    E quanto tempo vai ficar por aqui?, perguntei eu. Tenciona ficar aqui para sempre?

    Isso, eu não sei. Não tenciono nada. Sou feliz aqui, e, enquanto cada dia me der alguma coisa que me deixe crescer, ficarei aqui. O que poderia desejar mais?

    Enquanto falava, olhava uma e outra vez, irritado, para Falk que se tinha enfiado pelos arbustos dentro, carregando no botão incessantemente.

    "Desde que vivo aqui sinto-me como uma planta regada todos os dias, com ideias e pensamentos sobre os quais sou eu próprio a decidir. Essa planta cresce lentamente e torna-se verde, ainda não floresceu, ganhou apenas pequenos botões e um dia, espero eu – desculpe, mas o que faz ele ali?"

    Apontou para Falk e olhou para mim, interrogativamente. Eu sorri, pedindo desculpa.

    Ah, disse eu, e acenei. Ele brinca com a sua macro objetiva, acho eu. O que ia a dizer? O monge levantou as sobrancelhas e continuou.

    Onde é que eu tinha ficado? Sim, correto. Espero um dia ser dono dos meus pensamentos e esquecer totalmente o que antes tanto me envolvera e preocupara. Quero deixar tudo isso para trás.

    Depois de termos conversado mais uns cinco minutos, Falk voltou, pôs a câmara à nossa frente e mostrou as fotos – dezenas de fotos tiradas de perto a libélulas, onde se podiam ver todos os detalhes: o sensor peludo, os olhos facetados, o complexo sistema das asas, o abdómen alongado.

    Seja, disse eu, ao vermos, numa página cheia, a centésima foto de uma libélula que não se diferenciava muito das restantes noventa e nove. Eu achava que o monge se aborrecia e queria dar-lhe a possibilidade de ele continuar o seu caminho, sem parecer mal-educado. Estava a matutar o que poderia dizer e olhei para o monge, esperando vê-lo bocejar ou coçar a cabeça enervado, mas ele fitava os olhos, fascinado, no écran e disse: "Isto é tão cool! Acho que também quero experimentar."

    Ah, sim?, perguntei, mas ele já tinha puxado do seu telemóvel e encaminhara-se para o arbusto. Olhei, admirado, para Falk que me atirou com um olhar O que foi? como se fosse óbvio que o monge partilhasse a sua paixão por fotografar insetos.

    Na manhã seguinte, a partir do terraço de um restaurante rápido, ao ver o Museu-Oudomxai, coroando, na sua elegância, o Phou Sebey, a minha curiosidade foi, novamente, atiçada. Certamente que algo tão belo só podia esconder algo fora de normal, algo que valia a pena ver. Decidi fazer mais uma tentativa. Falk reclamava que as doses laosianas eram pequenas demais, depois apareceu um gato a correr, levantou a perna e mijou na minha mochila, ao lado da mesa. A empregada de mesa encolheu os ombros e desapareceu. Limpei a mochila o melhor possível, com guardanapos e disse: Penso que é uma boa altura para irmos embora.

    Pagámos e seguimos a estrada principal em direcção à estação de autocarros, eu à frente, Falk resmungando atrás de mim, virámos para as escadas de betão e subimos até ao museu. Já da escada podíamos ver o segundo dos dois andares: as persianas estavam fechadas.

    Que pena, disse Falk. Vamos embora.

    Isso não quer dizer nada, disse eu. Se fosse eu, também não abria cinquenta persianas todos os dias. Vamos, segue!

    Um minuto mais tarde empurrava desanimado a porta fechada.

    De qualquer forma, acho que aqui são as traseiras, disse eu sem convicção.

    Andámos à volta do edifício mas, dos outros lados, as portas também estavam trancadas. Dois jovens apareceram de nenhures e explicaram que o museu já tinha fechado.

    "?", perguntei.

    Sim, disse o mais alto.

    Então esteve aberto?

    Ele acenou. Sim.

    São onze da manhã!

    O jovem olhou para o seu relógio e confirmou. Eu percebi que tinha de me explicar melhor.

    Como pode ser que o museu feche tão cedo?

    Hora de almoço, acho eu, disse ele e encolheu os ombros.

    Soube, então, que o museu reabriria das catorze às dezasseis horas e prometi a mim mesmo e ao museu de voltar. Até lá, queríamos continuar na descoberta da cidade. Atravessando o Nam Ko (Nam significa rio) fomos ter à parte norte da cidade e vagueámos pelo mercado chinês onde admirámos carteiras Nike e lingerie Dolce e Gabbana falsificadas. Falk tinha perdido os seus óculos de sol há muito tempo e perguntava-se se deveria comprar uns óculos de sol de mulher para os substituir.

    Assentam tão bem!, dizia ele, e tirava-os e punha-os pela décima vez em frente a um pequenino espelho. Ainda maior foi o meu conflito íntimo ao ficar parado diante de um helicóptero de brincar com controlo remoto e sugeri levá-lo como diversão de viagem.

    Também pensei o mesmo, disse Falk.

    Então vamos levá-lo!, gritei, entusiasmado. Em criança tinha desejado um helicóptero assim durante muitos anos pelo Natal, mas nunca o recebi pois os meus pais acreditavam fazer-me mais feliz com outros presentes. Falk sorriu e pôs-se a andar.

    Falk, onde vais?, perguntei, com a voz um pouco perturbada.

    Continuamos, claro.

    Então e o helicóptero?

    Ele sorriu novamente, mas agora só para ser simpático. A sua expressão facial dizia qualquer coisa como: Foram cinco segundos divertidos mas já passaram. Reconheci, desapontado, que ele estava a ser sensato de novo mas eu não desistia tão facilmente.

    Ainda ontem disseste que seria tão bom viajar com uma guitarra e, à noite, poder tocar qualquer coisa e eu concordei contigo.

    E?

    Com o helicóptero também podíamos divertir-nos e tão barato como aqui...

    Erik, esquece!

    Mas a guitarra...

    Isso foi só um pensamento falado alto e não uma intenção séria. Por isso mesmo não comprámos nenhuma: porque seria mesmo uma parvoíce andar de reboque com uma coisa assim.

    Tu e os teus argumentos.

    Esquece. Anda mas é.

    Eu lancei um último olhar ao objeto dos meus sonhos de criança e corri atrás dele. Deixámos o mercado chinês e reparámos num posto de turismo do outro lado da estrada. Era mesmo o que precisávamos agora. Folheámos alguns folhetos e prospetos e vimos algumas fotografias de minorias étnicas da província, por exemplo dos Yao e Khmu, afixadas às paredes junto de tabelas de horários de autocarros. Na parede ao fundo da sala estava pendurado um mapa, carinhosamente feito à mão, da província de Oudomxai com os locais dignos de visita, um poster sobre espécies animais em perigo, como a cobra-real que vivia no Laos, assim como uma representação exaustiva do sistema cavernoso de Chom Ong, a cinquenta quilómetros de distância de Oudomxai. Estas grutas não tinham sido descobertas há muito tempo e ainda se encontravam no seu estado natural. A caminhada de visita aos locais até aqui acessíveis durava entre cinco a oito horas mas eu não gosto muito de grutas e já tinha visto na minha vida muitas grutas e, na minha memória, quase todas idênticas.

    Posso ajudá-los?, ouvi uma voz atrás de mim perguntar e demorei vários segundos a perceber que a pergunta tinha sido feita em alemão. Voltei-me, surpreendido, e olhei para a cara de um jovem loiro com cabelo curto.

    Vêm da Alemanha, não é?

    Correto, disse Falk.

    Eu vi-os hoje de manhã a tomar o pequeno-almoço no terraço, afirmou ele, radiante. Sou o Mirko.

    Em vez de prestar o serviço civil, Mirko passava um ano em Oudomxai e ajudava no centro de turismo.

    Faço melhoramentos na página Web, com o meu inglês aprendido na escola ensino inglês aos funcionários e faço tudo o que posso para ajudar a impulsionar o turismo na cidade. Quem me precedeu aqui ajudou, por exemplo, a planear as caminhadas através das grutas Chom Ong. Mas também tenho tempo para vadiar por aí.

    Satisfeito por ter encontrado um especialista, apontei para um mapa indicando a nossa planeada volta pela cidade naquela tarde.

    O que é que achas?, perguntei. Tens mais alguma sugestão?.

    Ele observou o mapa e as minhas notas com ceticismo e disse: Penso que o Toung Dai, o monumento à Amizade laosiana-vietnamesa, não vale a pena. O memorial Kaisone Phomyhan também não é muito melhor, continuou ele. O centro de comercialização e produtividade de artesanato está agora fechado para almoço e só abre daqui a umas horas."

    Então o que podemos fazer?

    Bem, na estrada em direcção a Phongsali existem fontes quentes.

    Falk escutava interessado. Para tomar banho?

    Oficialmente, sim., disse Mirko.

    E não oficialmente?

    Na verdade são quentes demais para tomar banho, pode-se manter o pé lá dentro alguns segundos, no máximo.

    Soa muito bem, resmunguei.

    Infelizmente Oudomxai não tem muito para oferecer, disse Mirko, mas, muita gente aluga uma mota ou bicicleta e vai à descoberta da região. Há cascatas e...

    Motas?, interrompeu Falk. O velho motociclista era todo ouvidos. (Na Alemanha tivera uma motorizada até eu a pedir emprestada e conduzir até a transformar em ferro-velho; eu dizia sempre que a culpa não era minha mas dos travões que não reagiam.) Mirko mostrou-nos no mapa onde se podiam alugar. Já tínhamos um plano para amanhã.

    Ainda tenho uma pergunta, disse Falk. " Procurámos por todo o lado spray contra mosquitos e só nos responderam que isso é muito difícil e não acredito que tal coisa existe em Oudomxai."

    Verdade? Isso surpreende-me.

    Mirko levou-nos a um mercado coberto e perguntou por spray contra mosquitos, em Lao fluente. Três minutos depois eu e Falk tínhamos, cada um, uma lata na mão.

    Como é que aprendeste a língua tão depressa?, perguntei admirado.

    Aprendi sozinho. Ao princípio foi complicado por causa das tonalidades sonoras mas, depois, não foi assim tão difícil. Não há conjugações nem declinações, nenhum artigo nem género gramatical. Por outro lado, uns quantos dialetos com cinco ou seis variações tonais. Este é o grande desafio.

    No regresso, ao querermos atravessar a estrada, passou por nós um camião carregado de enormes e nodosos troncos de árvores.

    Isto vai tudo para a China, explicou Mirko. Na verdade, existe uma lei que diz que só podem ser exportados produtos de madeira trabalhados, com o intuito de proteger as florestas nativas, mas a lei revela lacunas. Se houver interesse da parte das autoridades, retirar a casca ou partir os ramos das árvores é já considerado madeira trabalhada. E, desde que nos finais dos anos 90 houve grandes inundações no Yangtze em Yunnan, o governo chinês impôs uma suspensão do corte de árvores por lá. Mas os chineses precisam de madeira e, então, vêm buscá-la ao pobre Laos. Na estrada 9, são transportados todos os dias camiões de troncos para o Vietname, apesar da proibição. É uma vergonha.

    De volta ao posto de turismo perguntei a Mirko, o qual já aqui tinha passado dez dos doze meses e que queria começar o seu curso de construção de máquinas após o regresso à Alemanha, se ele tinha gostado deste tempo em Oudomxai ou se estaria arrependido da decisão de ter vindo para aqui.

    Foi uma boa decisão, disse ele, " mas, da próxima vez escolheria um país de cuja língua pudesse fazer uso de volta à Alemanha. De qualquer modo: Eu gosto do

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