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O Sal da Terra
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O Sal da Terra

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About this ebook

A nossa vida sobre a Terra é muito longa para o sofrimento, curta demais para a felicidade. Para muitos dos erros que cometemos não há, muitas vezes, tempo ou oportunidade para os corrigir, restando um desconforto interior e tristeza que não se apaga, sentimento de culpa que corrói a alma e adoece o corpo.
A felicidade e o sofrimento são relativos, dependentes de coisas tantas vezes simples. Vale para a felicidade a inocência e a pureza de coração, o não exigir nada de ninguém, ser-se tantas vezes ignorante do que o mundo pode oferecer, a vida simples dos simples que pouco têm e pouco querem . Vale para o sofrimento o apego desregrado às coisas, a perda não entendida de pessoas que nos foram queridas, o querer da vida mais do que ela nos pode dar ou Deus concede no tempo finito que nos é dado viver.
A miséria material não implica miséria moral e a felicidade não assenta em coisas materiais. O sofrimento deriva, tantas vezes, de um estado psicológico que nos arrebata para abismos dos quais às vezes é impossível sair, principalmente para corações mais sensíveis e mentes mais inocentes que, desnecessariamente, questionam acontecimentos passados, querendo revivê-los, não aceitando a perda.

LanguagePortuguês
Release dateFeb 25, 2017
ISBN9781370612765
O Sal da Terra

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    O Sal da Terra - Manuel Antonio Goncalves

    O Sal da Terra

    PREFÁCIO

    A nossa vida sobre a Terra é muito longa para a infelicidade, curta demais para sermos felizes.

    A felicidade e a infelicidade são relativas, dependentes de coisas normalmente simples. Vale para a felicidade a inocência e a pureza de coração, o não exigir nada de ninguém, ser-se tantas vezes ignorante do que o mundo pode oferecer, a vida simples dos simples que pouco têm e pouco querem . Vale para a infelicidade o apego desregrado às coisas, a perda não entendida de pessoas que nos foram queridas, o querer da vida mais do que ela nos pode dar ou Deus concede no tempo finito que nos é dado viver. Ela deriva, tantas vezes, de um estado psicológico que nos arrebata para abismos dos quais às vezes é quase impossível sair. É a noite escura e cheia de tormentas que cada um tem que enfrentar.

    Quem se abandona a Deus nunca será por Ele abandonado. Sentimos, muitas vezes, a Sua mão a agir na nossa vida e tantas vezes, também, que Ele está longe e nos abandonou, falso sentimento, pois Ele nunca nos abandona, simplesmente fica em silêncio à espera das nossas decisões de livre-arbítrio, a testar o nosso amor e a nossa fé.

    Não se existe por existir, há realidades para as quais é necessário abrir a mente e o coração. Deus olha por todos nós e nunca se esquece de nos suster, mesmo quando O julgamos longe e indiferente ao que nos acontece na curta vida que vivemos. Curta, sempre curta, por mais que vivamos, curta em relação a uma eternidade que se viverá em um tempo que não é tempo e num lugar que não é lugar, é Deus tão simplesmente, um Deus de Amor e Misericórdia, que exalta os humildes e detesta os soberbos, seja nesta vida, seja na que há-de vir.

    Como disse Santa Teresinha do Menino Jesus, A vida é um instante entre duas Eternidades!. Tenhamos em mente que somos eternos, que algo muito grandioso nos espera.

    CAPITULO I

    ATÉ ONDE A MEMÓRIA CHEGA

    Fomos dez ao todo, os filhos que a minha mãe teve. A Lurdes é a mais velha, depois vem a Kena, o Amadeu, o Toninho, eu, o Norberto, o Viriato e o Beto. Havia mais duas, a Filomena e a Felisbela, mas morreram muito novinhas, com meses de idade. Da Filomena mal me lembro, era eu criança ainda, tinha uma cruzinha vermelha na cara e era linda. Lembro-me da minha mãe desesperada a chorar, o corpo deitado na urninha branca, era loura e a minha mãe guardou dela uma madeixa de cabelo, que eu via às vezes, guardada numa caixinha de madeira. E lembro-me da minha mãe a chorar, muitas vezes, a olhar para a madeixa, lágrimas a cair em silêncio, suspiros vindos de tão fundo, que arrepiavam de resignação. A outra era a Felisbela e só há pouco tempo soube que existira. Morreu de tifo, ao que me disse a Kena, imagino que volta de 1953, muito nova, ao que soube, teria dois ou três anos. Contava a minha mãe que tinha uns olhos tão meigos, parecia saber que ia morrer, fazia tudo o que lhe pediam. Não consigo descrever o que senti com o relato da minha mãe, senti que a minha irmã era um anjo sobre a terra e que Deus a queria de volta para Si. Será possível ter uma dor tão grande de perder um filho entre muitos, como se fosse o único? Sim, a minha mãe sentiu essa dor, eu senti isso, e guardou-a no tempo inalterada até à sua morte. A saudade lia-se nos olhos e na voz, sentia-lhe o coração rasgado pela tristeza, a resignação à vida. Quando escrevo isto, choro pela irmã que só conheci pelas palavras simples, mas tocando as entranhas, que a minha mãe disse. Meu Deus, como permitistes a sua morte? Como anjos passaram ao nosso lado, vimos-lhes a face inocente, a mansidão do Criador, a bem-aventurança eterna, sem necessidade de provação no tempo em que vivemos.

    Em nossa casa morava também uma tia de meu pai, a tia Ana, era tia da Dª Iva, pessoa a quem o meu pai comprara a casa onde vivíamos, casa que ainda estava a ser paga, nunca cheguei a saber como, não sei se eram partes de sortes de heranças, de quem, e o que faltava pagar e a quem. Nunca percebi, quando me foi contado, teria eu já mais de vinte anos. Mas o facto de não estar toda paga, foi uma de várias razões que obrigou, mais tarde, a minha mãe a emigrar para França. Lembro-me da tia Ana muito idosa, vestida de preto, saia comprida, xaile ao ombro, sentada à braseira, no quarto logo à direita de quem entra, em frente à cozinha. Era uma braseira de cobre, cheia de brasas que aqueciam o quarto e ela sentada a fazer carinhos ao Norberto e a mim. Falava com uma voz tão meiga, tinha um semblante tão sereno, os cabelos já em grande parte brancos, sentia-me bem e encostava-me a ela, a braseira ao lado, não sei quantos anos eu teria, dois, três? Não sei. A ela, eu e todos os meus irmãos chamávamos mãe. À nossa mãe chamávamos nós Adelaide, deduzo agora que, talvez, por ela nunca nos ter dado os carinhos e afecto que a tia Ana nos dava, afirmando ao mesmo tempo que, certamente, por ela ter tanto trabalho a fazer – lavar a roupa, limpar a casa, fazer a comida, ajudar o meu pai no campo, a cozinhar para os fregueses nos dias de feira. Nessa altura, éramos sete, uns já fora de casa, a tratar da vida, outros na escola, outros bebés ainda. Para nós, era natural aquele tratamento e isso nunca se pôs em causa, nem mesmo pelo meu pai de quem tal tratamento, aliás, ouvíamos e tomáramos. Manteve-se até muito tarde e só a separação e a sua falta nos fez começarmos a tratá-la por mãe. Para mim, a primeira vez que o fiz, soou-me a algo forçado, soou-me a algo que o coração ainda não descobrira, um som não ouvido desde muito criança, a algo que nunca tivesse tido, uma mãe. Só já com mais de trinta anos eu interiorizara aquele sentimento de ter uma mãe viva, de ela ser a Adelaide dos tempos de criança, só então me senti bem a ouvir aquele som dirigido àquela pessoa, só então vi que a minha mãe estava ali. Era-o por direito natural e por tudo o que tinha feito pelos filhos – a mãe que nunca desistiu, a mãe que lutava contra a adversidade da vida, a mãe que não vergava à arrogância dos inimigos, que mantinha a cara erguida e olhava em frente, a mãe sem medo. A partir daí seria a mãe e não a Adelaide.

    As últimas recordações da tia Ana são de a ver deitada na cama, uma colcha vermelha sobre os cobertores e a minha mãe a entrar com sopa para lhe dar. Morreu de velhice, o corpo ficou em nossa casa, mas não me recordo do funeral. Fiquei com medo da colcha vermelha, que continuava sobre a cama onde ela dormira, o quarto vago onde a minha mãe não me deixava entrar.

    Devia ter eu quatro anos, naquela altura, estávamos todos na Torre.

    «»

    Pela estrada da ponte velha, seguia em direcção a casa, o nosso burro Chico carregado de pés de milho, um molho de cada lado, a ofegar ruidosamente. Seguia pela berma direita e a acompanhá-lo iam, pelo lado de dentro a minha mãe e salvo erro a Lurdes, à frente o meu pai com o burro pela rédea, pelo lado de fora a Kena e logo atrás dela, eu. Seria ao fim de manhã ou a meio da tarde, mas lembro-me que estava muito agradável, o dia claro, o céu azul sem nuvens. Falavam alegres, a minha mãe, a Lurdes e a Kena, o passo um pouco apertado, que teriam pressa em chegar a casa. Eu, com quatro ou cinco anos lá ia como podia, quando ficava um pouco para trás dava uma corridinha para os apanhar mas às tantas comecei a queixar-me: Ai as minhas pe’ninhas, ai as minhas pe’ninhas! A Kena ria-se e dizia para me animar, qualquer coisa como: Anda, anda, já falta pouco!… E eu voltava :Ai as minhas pe’ninhas, ai as minhas pe’ninhas!.

    Não tivesse aquilo acontecido e não teria eu agora uma das recordações que mostram como, em dada altura da vida da nossa família, nós éramos felizes. Com quatro ou cinco anos não percebemos o conteúdo das palavras, percebemos porém a sua forma, o timbre da voz que parece fazer-nos vibrar como que em ressonância, o modo como se dizem. Apercebemo-nos da felicidade ou infelicidade interior de quem as diz, do seu estado de espírito, de algo que paira no ar, que circunda as pessoas e que só as crianças vêm. Eu sentia, então, como havia felicidade naquele instante, como éramos felizes, como havia alegria nas palavras. Eu sentia-me bem ali, algo pairava no ar que nos unia e de que ainda não tínhamos consciência – era a alegria de estarmos juntos, mas não todos, que tal só aconteceu uma vez, aquando da morte da minha mãe. Todos nos juntámos nesse único dia de união entre irmãos, a chorar a morte de quem nos tinha trazido ao mundo. Oito irmãos juntos uma única vez na vida, em circunstância triste, o adeus final!

    «»

    Não havia luz eléctrica na aldeia. No inverno, chegada a noite, iam todos para casa. Na rua, ou para ir à loja, dar de comer ao burro, às galinhas e aos porcos, só de candeia. O frio era sempre tanto, que só à lareira da cozinha se estava bem, uma lareira grande, de facto. O meu pai comia sempre sentado no escano, malga de sopa colocada em equilíbrio no joelho direito, em silêncio, assoando-se de vez em quando a um lenço castanho de riscado. Eu sentava-me por vezes junto a ele, calado, pequenino, pés pendurados, a olhar para o fogo. Quando era já tarde, a minha mãe ou a Lourdes pegava na candeia de azeite que estava pendurada na parede oposta ao escano, acendia-a e acompanhava-me a mim e ao Norberto, à cama. Nunca queria ir, resmungava sempre, estava-se ali tão bem!

    Uma vez, numa noite de inverno, a minha mãe disse-me para ir à Pinheira buscar já não sei o quê, era qualquer coisa de mercearia. Meu Deus como era escuro, não via o chão que pisava, só o sentia debaixo dos pés, tentava lembrá-lo de memória, os ressaltos e buracos do chão de terra, as pedras do caminho de terra batida com regueiras cavadas pela água das chuvas. Meu Deus como eu tinha medo, sentia presenças à minha volta para me morder, para me comer, era uma escuridão espessa que pesava nos ombros, qualquer barulho dava força á minha imaginação. Finalmente cheguei ao cimo da ladeira, onde havia alguma luz vinda das janelas das casas vizinhas. Aliviado durante uns momentos, ganhei força para o regresso. Era mais fácil, a luz débil de casa, ao fundo, sentia o rabo apertado, como se alguém atrás de mim me quisesse agarrar, mas era a parte final, já só faltava um pouco, subi as escadas à pressa e estava de novo em casa.

    As noites de verão eram bem diferentes. Ficávamos todos fora de casa a brincar na rua até bem tarde, no calor da noite, à luz da lua e das estrelas. Nessas alturas, andar descalço, com pouca roupa, mal alimentado e sujo, pouco incomodava, pois o calor do sol dava-nos a energia que precisávamos. E quando não havia luar, era grandioso ver a Estrada de Santiago a atravessar o céu claro sem nuvens, milhões e milhões de estrelas num bordado incrível de formas e cor, olhava-se para cima e só se via céu, nem casas, nem árvores, nem luzes ou correntes de ar a distorcer, nada, só nós e a Estrada de Santiago. Então um dia veio a luz elétrica e a iluminação da rua e tudo se perdeu, só no campo, bem fora da aldeia, era possível ver assim a Via Láctea.

    Dormia sempre nu, pijama era coisa de que nunca ouvira falar, era à noite despir os calções e a blusa e deitar. Era simples, não havia sapatos nem meias para descalçar, nem dentes para escovar, nem pés para lavar, nem banho para tomar. De manhã era por vezes lavar a cara num lavatório de ferro que estava no corredor junto à cozinha, um jarro de ferro esmaltado por baixo e sabão azul, que também era usado para lavar a roupa. Deitava-me como me levantava, um pouco mais sujo somente. O colchão era de palha, um saco de pano às riscas com um corte longitudinal a meio para a mudança. Lembro-me ainda de ver a minha mãe a mudá-la, que a outra já cheirava mal e estava cheia de covas. Os cobertores eram pesados e quentes, de lã, com barras pretas em cima e em baixo. Era frio quando me deitava, tremia, mas o sono chegava sempre, os sonhos eram por vezes de me sentir a cair por um poço, em círculos cada vez mais velozes que me acordavam em pânico quando pressentia chegar ao fundo. Não dormi sempre no mesmo quarto. Isso dependia das idas e vindas dos meus irmãos. Um deles era ao fundo do corredor, à direita, e a cama estava mesmo junto à janela. Desse quarto, à janela, olhava muitas vezes para os montes ao longe, via-os com uma nitidez que me levava a imaginar mundos diferentes, um mundo mais largo que a rua em que vivia, o que estaria para lá? Acabaria o mundo ali? E o céu? Podia-se tocar? Se se tocasse nele podia talvez partir-se. O que estaria por cima? Anjos?

    Um inverno, teria eu quatro ou cinco anos, nevou muito, a neve atingia mais de meio metro de altura, tudo era branco, montes, casas, o prado, as árvores eram lindas. Era manhãzinha e a casa estava fria, eu tinha frio, o lume não estava ainda aceso, só na cama estava bem. Mas era impossível resistir a ir para a rua brincar. Fui, o Norberto também, ambos descalços. Lá andámos, a apanhar neve, a fazer bolas, a patinar, os pés nus, tomávamos um balanço de uns metros e lançávamo-nos em frente. Os pés ficavam vermelhos e inchados com o frio, as mãos insensíveis, mas quem podia resistir? Houve uns rapazes da aldeia que fizeram uma bola enorme, junto à escola. Durou vários dias, já a neve tinha desaparecido.

    «»

    Andava já na escola primária quando comecei a frequentar a catequese. Era no salão paroquial, ao lado da igreja. Seriam dez crianças à volta da catequista. Falava-se do Menino Jesus, do Anjo da Guarda, de quem é Deus, que estava no Céu, na Terra e em todo a parte. Do Inferno para onde iam os maus. Poucas vezes lá fui, e sentia-me um pouco deslocado no meio de crianças, com quem eu não brincava e que nem sequer conhecia.

    Rebuçados eram guloseimas que só muito raramente comíamos. Vendia-os a Pinheira, a Mariquinhas e a Dª Iva. Eram pequenos e brancos, enrolados em papel pobre sem chamarizes (o único chamariz era o nome!), guardados em receptáculos de vidro com uma tampa redonda, bem à vista, em cima do balcão para nós vermos. Custavam cada dois, se não me engano, um tostão. Chocolates e outro tipo de guloseimas não havia na aldeia, nem me lembro da primeira vez que vi um, isso era para os ricos, que os traziam de Lisboa ou do Porto.

    Numa tarde que terá sido de inverno, nem sei como, achei-me com uns tostões que alguém me deu, no bolso. Fui à Pinheira comprar rebuçados, um bolso cheio deles e levei-os para casa, sem sequer os provar, queria guardá-los, mas quem é que começou a pedir-me um? O Norberto! Acho que não havia mais ninguém em

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