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Gordos, magros e guenzos: crônicas
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Gordos, magros e guenzos: crônicas

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A miscelânea criativa de Gordos, magros e guenzos é composta não apenas por crônicas em si, mas também por reflexões literárias, pequenas narrativas, relatos históricos e rememorações do poeta e observador/cronista José Almino de Alencar, que foge a classificações. Como uma variação do brilho que possui sua obra poética, a crônica de Almino parece transitar entre poesia e prosa sem que haja o risco na mudança de gênero, com refinada sensibilidade aos vários tipos de imaginários, populares ou elitistas, que permeiam sua imaginação.
LanguagePortuguês
PublisherCepe editora
Release dateNov 20, 2017
ISBN9788578585570
Gordos, magros e guenzos: crônicas

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    Gordos, magros e guenzos - José Almino de Alencar

    Uma bricolagem de artista

    Este volume de crônicas, reflexões literárias, pequenas narrativas, relatos históricos e rememorações é, sem sombra de dúvida, uma miscelânea. Esta é geralmente a palavra para um emaranhado de coisas, mas veja só, às vezes também para um tipo de coisa que escapa à tipologia. Embora a outro respeito, é bem este o caso, conforme uma frase da própria miscelânea: Aqui, coube um pouco de tudo: as boas lembranças (...) e a bricolagem. E muito mais caberia, porque, como bricoleur, José Almino de Alencar escapa às classificações.

    Mas há principalmente o poeta José Almino. Do que leio, do que sei, é um dos melhores. É outro jeito de afirmá-lo como um criador que produz, em língua brasileira, objetos autossustentáveis. Isso me parece uma razoável definição para as criações estéticas que surgem como um clarão, mas imunes à erosão do tempo, identificadas como poemas.

    Só que Almino é também alguém que respira uma particular atmosfera de pretérito e presente, de modo tal que se institui como observador/cronista: um sobrenome a mais, Alencar, na assinatura de poeta. Como ele próprio verseja, De longe,/ a infância queima:/ ela é a luz de uma estrela fria.

    Na tomada de contato com esta miscelânea do observador/cronista, acorre-me uma tirada do extraordinário cronista Rubem Braga sobre a influência de Manuel Bandeira em seu estilo: Acho que nenhum prosador teve influência maior em minha escrita do que o poeta Manuel. E ocorre porque o poeta José Almino parece ter grande influência sobre a prosa de José Almino de Alencar, que ele implicitamente admite ser uma variação poética: O poema é tão somente certo tipo de poesia, uma poesia feita com palavras. Com elas, o poeta quando tece as suas frases procura alcançar um brilho especial que lhe seja tão próprio como um documento de identidade: pessoal e intransferível.

    Mas esse brilho especial repercute tanto na prosa de Almino que às vezes se pode passar de um plano literário a outro sem o risco em que incorre toda mudança de gênero. Assim, o verso comemos pelas beiradas um passado luminoso e táctil corresponde na crônica a "querer fazer parte deste mundo adulto do passado, é um impulso de nostalgia de coisas que nunca fui. Simone de Signoret, a atriz de cinema, tem um livro de memória com um belo título: A nostalgia não é mais o que ela era. Ela é sempre o inalcançável e ela se transforma".

    Essa coisa que muda e dá saudade é uma espécie de vetor em toda a miscelânea oferecida pelo observador/cronista ao leitor. Ostenta o ar culto de uma elite literária que se deixa ver nos círculos vividos por Almino dentro e fora do país. Um saber elitista que não tolda o sabor da leitura, porque é movido pela referência ou pelo contato com coisas simples e cotidianas – coisas que, aliás, até hoje fazem ponte e nos encantam em Braga e em Bandeira.

    É que esse não-ser-mais-o-que-era nostálgico (ou melancólico) carrega a permanência de algo muito sedutor de consciência, o terreno imaginário onde se constroem as utopias. Sim, utopia significa outro lugar, mas também outro tempo. Ela comparece no mundo da escrita e da oralidade. No Nordeste brasileiro, era muito conhecida a utopia de São Saruê, um país imaginário com abundância e felicidade para todos. O manuscrito deixado por Antônio Conselheiro – intitulado Tempestades que se alevantam n’alma por ocasião do mistério da Anunciação – prometia aos fiéis, como em São Saruê, rios de mel e ribanceiras de cuscuz. A Pasárgada do pernambucano Manuel Bandeira é uma versão erótica de São Saruê para letrados.

    Seja como poeta ou como prosador, Almino é sensível aos vários tipos de imaginários, presentes nas utopias populares e, mesmo, elitistas. Assim como a narrativa utópica explora ideias-imagens, em que o lugar é outro e sem opacidade, o observador/cronista, impulsionado por nostalgia e por imagens poéticas, desvela a memória de um micro-sociedade culta, que certamente não é mais o que era. Desvela em prosa, certo, mas com o toque guenzo, digamos, do brilho poético. Pois toda poesia é, no fundo, guenza por carregar em si algo troncho na estrutura como a nota blues no jazz ou o escândalo na linguagem.

    A isso nos convida José Almino, num texto refinado e saboroso, que deixa ver o menino capaz de distinguir um curió de um galo de campina.

    Muniz Sodré

    Uma mulher vestida de sol: Crônicas

    ¹

    Uma moça vestida de colégio

    para Juliana

    Eu conheci Nazarena em Exu, quando vim estudar. Ela muito simpática, eu me apaixonei. Nunca tinha visto uma moça vestida de colégio!

    É Luiz Gonzaga quem fala, em Vida de viajante, de Dominique Dreyfus. Não há como não sentir a força do depoimento. Mais do que um símbolo de modernidade, de urbanidade, de prosperidade relativa ou mesmo de juventude, a evocação do uniforme colegial para o pobre matuto traz consigo a surpresa diante do milagre de uma aparição, substantivação da boniteza que ia de par certinho com o seu alumbramento amoroso. Momentos como esses são únicos: a intromissão nas nossas vidas de uma imagem que revela algo pressentido e de certa maneira, esperado.

    Todo mundo no mundo adorou Buena Vista Social Clube. Alma Guillermoprieto, escritora mexicana, observou que esse grupo de velhos artistas, executando velhas músicas cubanas, seria uma demonstração de que parte do destino de Cuba é de existir na imaginação do mundo; de ser, sempre, um sonho e um desejo. E acrescenta: Sentimos uma nostalgia profunda por algo que nós mesmos não concebíamos ter perdido.

    Há muito tempo, quando ouvi pela primeira vez Festa, de Gonzaguinha, cantado por Bethânia, fiquei fascinado por aquela canção que tinha ritmo de baião e temática de baião, quase banal (falava de chuva, terra rachada amolecendo, feijão enramando), mas terminava em um verso surpreendente, como a alegria que se fixa por um instante no ar: Belo é o Recife pegando fogo, na pisada do maracatu.

    No filme Lisbela e o prisioneiro, quando Leléu e Citonho discutem sobre o curió de Citonho, um bicho de valia, que repete pra mais de quinze vezes vóvó-viviu, o diálogo entre dois pernambucanos loucos por passarinho nos traz a sensação perfeita de que esta é a maneira exata e mesmo elegante de tratar do assunto; até para os que mal distinguem um curió de um galo de campina. Além de dar uma vontade danada de ficar de cócoras, conversando besteira. Coisa de cinema.

    Se eu bem entendi Octavio Paz no seu O arco e a lira, poesia é uma imagem do instantâneo. Emerge de uma visada que constrói, por analogia, contiguidade ou contrastes palavras que reúnem imagens e sons na busca de um sentido que encontrará outro olhar, cúmplice e receptor. Seria, portanto, uma possibilidade permanente no mundo, alguma coisa que pode ser extraída ou suscitada a todo o momento.

    O poema é tão somente certo tipo de poesia, uma poesia feita com palavras. Com elas, o poeta quando tece as suas frases procura alcançar um brilho especial que lhe seja tão próprio como um documento de identidade: pessoal e intransferível. Dele, nem sempre fica muita coisa, como no poema Resíduo, de Carlos Drummond de Andrade: Às vezes um botão. Às vezes um rato.

    De um poeta, eu só conheço o nome – nome estranho, Tupan Sete – e um verso, que ainda agora encontrei na internet, glosado, com crédito ao autor, em um poema (Nascimento – O exílio) de Ariano Suassuna: Ali, onde mora a solidão e sonha a garça. De outro, Tomás Seixas, de quando em vez me vem à cabeça a única linha de O tratado: Como viver sob o impacto de uma dor permanente.


    1 A quase totalidade dessas crônicas foi publicada no Jornal do Commercio de Pernambuco, entre março de 2012 e julho de 2015. Eu devo a Marcos Arraes, meu irmão, o empurrão inicial e o permanente incentivo para que eu as escrevesse.

    O suicídio político, Gerações, analogias e golpes e Sobre a convivência democrática foram publicadas pela Revista Ciência Hoje durante o ano de 2016.

    Bom de lembrar

    -Até mais, vou chegando.

    – É cedo.

    Encontro esse diálogo em umas velhas anotações que datam provavelmente da minha volta ao Brasil, em meados dos anos 1980, depois de um período de dezoito anos fora do país. Não tenho a mais vaga lembrança das circunstâncias em que foram pronunciadas, mas acredito saber por que as guardei. Ao lado, está anotado: Agora, eu realmente cheguei, uma marca prazerosa do reencontro com os meus dialetos mais íntimos e familiares.

    Descubro que a primeira expressão é um contrônimo, palavra ou locução que engloba, em sua polissemia, sentidos antagônicos, segundo o contexto em que se encontra empregada. É o que encontro no Dicionário Houaiss, com a ajuda de uma colega ilustrada.

    Ao dizer, vou chegando – e para que a expressão adquira pleno sentido, há que se esboçar o gesto de que se está de saída – o primeiro interlocutor sublinha que não está abandonando ou dando as costas a quem fica. Como se ao ir embora, agrada e tranquiliza o amigo, assegurando-o que é como se continuassem juntos. E o seu interlocutor, quando responde É cedo, confirma que entendeu plenamente o propósito do outro e retribui de forma idêntica o afago. Combina-se aí uma sutileza da língua e a delicadeza de uma cerimônia social. Ambos têm perfeita consciência da gratuidade de toda encenação.

    No retorno à terra natal, o reencontro com a língua foi o acontecimento mais importante. Muitos dos que ficaram bem mais do que um rosto eram para mim uma prosódia e um sotaque.

    Reencontro, aliás, tão ou mais importante e interiormente celebrado do que o reencontro com a comida, embora, na verdade, ambas sejam fiéis servidoras da memória e, portanto, do afeto e das pessoas. Não é à toa que Marcel Proust, na sua tão decantada imagem, faz do gosto da madeleine molhada no chá o ponto de partida de sua busca do tempo perdido. Ou, a meu ver mais apropriado: em torno do tempo perdido.

    No seu O livro do riso e do esquecimento, Milan Kundera nos diz que o passado é cheio de vida, irritante, repelente e nos faz mal a ponto de querermos destruí-lo ou reinventá-lo. Por outro lado, o futuro é um vazio indiferente, que não fala nem nos comove e com o qual ninguém se importa. Nada, portanto, seria mais tangível e palpável do que o presente; e este nos é completamente elusivo. O presente é diferente da memória do presente. Lembrar não seria a forma negativa de esquecer. Lembrar seria uma forma de esquecimento.

    Depende, digo eu que persigo os contraexemplos e implico com generalizações sob qualquer forma, sobretudo as que se querem metafísicas; mormente (sempre quis usar essa palavra) neste exato momento em que me encontro no estado de espírito cantado pelo poeta Paulo Mendes Campos: Que bom ser mineiro e melancólico às 6 horas de tarde.

    A palavra e a memória não têm compromisso com uma verdade. Elas explicam, examinam, procuram reconstituir, mistificam, mas também exaltam, intuem, celebram e consolam. E sob diversas formas.

    Sobre a vida, o tempo e o registro, Susan Sontag inventou também uma fórmula geral: Life is a movie; death is a photograph, A vida é um filme; a morte é uma fotografia. Ora, para o poeta, a vida é a busca e a coletânea de fotografias, de instantâneos, diante dos quais, todos pudessem dizer, sem cerimônia: É assim mesmo.

    Certa vez no Recife durante uma festa familiar eu conversava com um homem velho, entrado nos oitenta anos, que me disse lidar com a morte lembrando-se diligente e longamente do passado: às vezes episódios inteiros, às vezes paisagens, detalhes das casas em que morou, das namoradas, dos amigos ou mesmo dessas faces sem nome que povoam nossas memórias por toda a vida. A certa altura da conversa, riu e me disse: Você sabe, Zé, eu não sou um rapaz de futuro.

    E que minha mãe me perdoe

    para Luisa

    Já quarentão Auguste Renoir teve três filhos com Aline Charigot, uma de suas modelos: Pierre, Jean e Claude. Os dois últimos foram frequentemente retratados pelo pai, uns meninos lourinhos e rosados, de cabelos compridos cujas imagens circulam em milhares de reproduções de telas do pintor pelo mundo afora. Desses três, o mais conhecido é Jean Renoir, autor de A grande ilusão (1937) e A regra do jogo (1939), dois clássicos da cinematografia mundial.

    No seu livro, Pierre-Auguste Renoir, meu pai, Jean nos diz que ele e seus irmãos nunca foram à escola, estudaram em casa com os pais. Como resultado, sem educação formal e influenciados pelo meio familiar, vieram quase fatalmente a ser artistas: Claude trabalhou com Jean em muitos de seus filmes; Pierre, o mais velho, foi um ator conhecido. Todos os dias, pela manhã, Renoir pai levava os filhos para passear. Vez por outra, apontava algo com o dedo e dizia: Isto é bonito; ou, então, Isto é feio. Jean descrevia esta cena com prazer, como se houvesse recebido a chave do mundo e um passaporte para a beleza, expedido por autoridade maior. E, no entanto, nem sempre as regras vêm certeiras e luminosas.

    Com pobre a gente tem de ser muito delicado meu filho. Minha mãe falava assim.

    Ser pobre já era desgraça suficiente e os pobres deviam, portanto, ter a sensibilidade respeitada. Os pobres viam em cada gesto do outro a possibilidade de uma humilhação e nós tínhamos a obrigação de poupá-los, mais do que aos outros. Lembrar ao pobre que ele era pobre, seja

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