Quem é essa mulher?: A alteridade do feminino na obra musical de Chico Buarque de Holanda
By Alberto Lima
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Quem é essa mulher? - Alberto Lima
Epígrafe
A Carolina, que Chico descobriu antes de mim.
A João e Pedro, para que o exercício de outrar-se lhes traga o deslumbramento pelo outro e, com ele, um futuro de respeito e tolerância.
À memória de Zuzu Angel, para que o passado jamais vire esquecimento.
Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio (...) Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim (...)
Livro do Desassossego, por Bernardo Soares.
Fernando Pessoa.
E Chico criou a Mulher
Do entusiasmo ao encantamento. Da revelação à euforia. A leitura de Quem é essa mulher? A alteridade do feminino na obra musical de Chico Buarque de Holanda inspira um jorrar de sentimentos intensos e múltiplos, o que não seria de se esperar de um texto acadêmico, mesmo sendo ele merecedor de honrosa menção na conclusão do mestrado do autor na Universidade Paris III – Sorbonne Nouvelle.
Imagino que o très bien da menção concedida tenha sido com o mesmo ânimo com que agora me debruço para escrever a respeito. Inicialmente, o autor Alberto Lima, cuidadosamente e por várias fontes e caminhos, nos insere nos diversos cenários que levaram a mulher até onde hoje ela está. Acompanhamos, no anoitecer de 13 Brumário Ano II, Olympe de Gouges em seu cárcere, na Conciergerie, precursora dos sonhos igualitários femininos, ouvir a sentença de pena de morte pelo Tribunal Revolucionário, e depois seguir engaiolada pelas ruas escuras de Paris até o cadafalso, onde entregou sua cabeça brilhante, corajosa, especial, à guilhotina, cumprindo ironicamente o Artigo X de sua própria Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã: Uma mulher tem o direito de subir ao cadafalso. Ela deve, igualmente, ter o direito de subir numa tribuna
. Seus textos libertários desagradaram aos jacobinos, naquele momento dando as cartas revolucionárias. O ruído do baque da guilhotina abafou suas últimas palavras: Filhos da Pátria, vocês vingarão minha morte!
.
Olympe mereceu lâmina afiada porque abandonou os cuidados do lar, quis fazer política, instituiu sociedades de mulheres
. Foi por isso chamada, na sentença, de virago
, impudente
e mulher-homem
. Foi em 1793.
O autor nos leva mais longe, aos anos 300 a.C., na Grécia de Aristóteles, quando cidadão
era palavra sem feminino, a honra da mulher era um modesto silêncio e a força da mulher consistia em vencer a dificuldade de obedecer. Apresenta a mulher do período greco-romano mais senhora de si, coproprietária dos bens do marido, dirigindo a educação dos filhos, comandando escravos, indo às festas e ao teatro, alegria que durou pouco, até a reação masculina, com a criação de uma lei em que a mulher passou a ser disposta como um bem, pelo marido e o pai, e o Estado a privá-la de quase toda a capacidade civil.
A popularização da Bíblia, com a invenção de Gutenberg, trata de jogar por terra qualquer bom conceito que se pudesse ter sobre a mulher, essa melíflua, que induz Adão a comer o fruto proibido. Com isso, Eva tem como castigo as dores do parto e a sina de sempre desejar o marido e ser sempre dominada por ele. E segue a mulher eternamente maldita, até nos vocábulos que exprimem sua fisiologia, com os franceses chamando gravidez, parto, aleitamento e menopausa de malédiction.
Com a Inquisição, bruxas são as mulheres, personificação de Satanás. Período de trevas em que mulheres sequer tinham instrução, e só em 1592, enfim, fiat lux, abre-se nesga clara para elas, com o registro da primeira aparição de uma mulher num palco. No Renascimento, nasce a mulher influente na corte francesa, para incômodo de Montesquieu expresso em palavras. No século 17, a ascensão da burguesia revela mulheres na literatura. Vem a Revolução Industrial e o uso da força masculina perde lugar para a máquina, sendo requisitada também a habilidade manual feminina. As mulheres são submetidas à opressão daquele capitalismo emergente, trabalhando em locais insalubres, sem hora para começar, terminar ou descansar, subnutridas, sub-remuneradas, em condições de miserabilidade e ainda com casa e filhos para cuidar. Essa panela cheia de revoltas e reivindicações negadas alcança o ponto de fervura máxima em 1857, num oito de março, quando 129 operárias são carbonizadas dentro de uma fábrica em Nova York, numa ação de retaliação dos patrões e da polícia, por realizarem uma greve. Data jamais esquecida, é o Dia Internacional da Mulher, motivador de infindáveis ações e movimentos pelos direitos das mulheres, desde sempre e para sempre.
Bem, vieram as conquistas, ralas, mas reais, vieram as sufragistas, veio o voto, veio Simone de Beauvoir, num alvorecer de ideias, sacolejando as mentes femininas em luminoso despertar. Veio o conceito de gênero construído por mulheres, uma antropóloga e uma historiadora, e nos anos 90 detonado por outra mulher, filósofa – todas elas ilustres. Reanálises, reavaliações, reopiniões, entre barrancos e trancos, a mulher desembarca no século XXI ainda por se resolver, por se situar, por se fazer perdoada pelos estigmas que milenarmente lhe pesam, de leviana, infiel, mistificadora, traiçoeira, interesseira, devassa, pecadora, insubordinada, inconfiável, desde Eva, desde Aristóteles, desde a Inquisição, desde Montesquieu, desde os Jacobinos, desde as sufragistas, permanece ao deus-dará.
E onde entra nisso tudo o Chico? É aquele que não se basta a cumprir, junto à sociedade, seu papel de artista de difundir valores, vai muito além. Como seu personagem em Teresinha, chegou sorrateiro, avassalador, e antes que percebêssemos instalou-se, posseiro, em nossas mentes, vidas, reuniões, fossas (ele é desse tempo), retomadas, decisões. Reinventou-nos mulheres. Ligou a luz. Alimentou a fogueira. Acendeu o lampião. Acalentou fantasias, despertou tesões, aliviou tensões. Compôs 190 canções tendo a mulher como inspiração. Foi menino filho da gente, frágil como nós, outrou-se em nós (e aprendi que outrar é invenção de Pessoa, o Único), e nós nos outramos nele.
Também outra-se Alberto Lima. O escritor se outra em Chico Buarque de Holanda e nas mulheres brasileiras, que, a partir dessa obra, têm a oportunidade de se verem inteiras, pelos olhos verdes do Chico, pelos olhos da perversidade dos conquistadores salteadores, que se apossaram do Brasil, pelos ingênuos olhos das índias, possuídas e violentadas, pelos tristes olhos das africanas, sacrificadas e coisificadas, pelos olhos mortiços das brancas despersonalizadas.
Conhecer as mulheres de Chico através do olhar analítico de Alberto é redescobri-las. Despidas da melodia, nuas da voz do artista ou das vozes de outros artistas, elas nos aparecem em sua inteireza, com seus petits signes de beauté mais recônditos, as estrias mais discretas, os pneuzinhos disfarçáveis. Tudo à mostra. Perfeições e imperfeições. Ler esse livro é sair dele certa de que separar o artista da obra é uma tremenda tolice.
O livro de Alberto Lima não deverá esquentar prateleira.
E minha alma lavada por perceber que entre essas 190, há duas canções dedicadas a Zuzu Angel, que outrou-se mãe de todas as outras, não só de mim.
Hildegard Angel
Jornalista
Palavra de mulher
As questões atinentes ao papel da mulher no mundo contemporâneo, bem como as referentes à alteridade, têm experimentado maior relevância nos últimos anos, tanto no mundo acadêmico quanto em discussões e abordagens que chegam à sociedade por outros caminhos. Nesse cenário, a literatura configura-se como um forte indutor do debate, uma vez que, historicamente, sempre foi um campo fértil à presença feminina, que nele conseguiu sobreviver – e com que qualidade – a despeito de todo o sistema social machista de cerceamento e repressão.
Por outro lado, o terreno literário propicia, talvez como poucas áreas do conhecimento, uma oportunidade ímpar de trabalhar a descoisificação do Outro, ao, numa visão ética, respeitá-lo como sujeito que tem o inviolável direito de ser si mesmo. Essa noção está calcada, sem dúvida, em uma compreensão de tratamento recíproco, a partir da qual se entende que também eu sou o Outro do Outro. Dentro desse contexto, inserem-se as discussões sobre direitos da mulher, que, por muito tempo, foi determinada e diferenciada "em relação ao homem e não ele em relação a ela", como definiu Simone de Beauvoir.
O novo redimensionamento dos estudos literários mostra que é imperioso expandir o campo de pesquisa a outras áreas, como a música, que muitos ainda insistem em classificar, como será abordado adiante, de paraliteratura ou presença de crise da literatura. Contudo, não é possível fechar os olhos a esse tipo de manifestação das letras. O modelo, dadas as suas particularidades e o seu poder de penetração social, merece muito mais ser acolhido e estudado do que rejeitado e ignorado.
No mundo lusófono, onde a oralidade sempre foi e continua sendo uma das marcas mais características da transmissão de conhecimento, a música, a popular em especial, cumpre um papel crucial na difusão de ideias e valores na sociedade. No Brasil, um dos seus mais brilhantes e reconhecidos artífices é Francisco Buarque de Holanda ou, simplesmente, Chico Buarque.
Sua contribuição à língua portuguesa permeia o teatro (quatro peças) e, também, a literatura propriamente dita. Seus cinco romances foram publicados em mais de 20 países. Mas é a música o terreno que ainda concentra a parte mais expressiva da obra buarquiana, onde se localizam mais de 300 composições, algumas delas compartilhadas com outros músicos.
Muitas das suas músicas viraram hinos na luta contra a ditadura militar brasileira, sob a qual o país viveu duas décadas sombrias (1964–1985) entre torturados, mortos e desaparecidos políticos. O seu cancioneiro é repleto de personagens vítimas da marginalização social, como malandros, sem-terra, meninos de rua e, especialmente, mulheres. Ao feminino, Chico Buarque dedicou quase dois terços de toda a sua produção musical (cerca de 190 canções), cujo sucesso consagrou-o como, numa expressão que virou lugar–comum no Brasil, o grande intérprete da alma feminina, título que ele recusa por se considerar um desconhecedor do tema, por não saber o que quer a mulher
, para usar aqui uma conhecida fórmula freudiana (Was will das Weib).
Este trabalho – honrado com a menção très bien na conclusão de um mestrado na Universidade Paris III – Sorbonne Nouvelle – pretende, então, analisar de que forma a mulher é observada por Chico Buarque de Holanda e de que maneira ele a representa na sua obra musical. Assim, o objetivo geral é identificar as personagens dessas canções, também chamadas poesias sonoras ou poemas-canções, e agrupar as composições a partir de características comuns dos eus líricos. Os objetivos específicos do estudo são abordar o discurso dos e sobre os sujeitos poéticos; conhecer os valores sociais nele apresentados; e, a partir de uma leitura intertextual, proceder à análise da condição da mulher naquelas letras. Para chegar a esses objetivos traçados, foi necessário avaliar todo o conjunto de canções, observando-as do seu ponto de vista de conteúdo puro, decompondo seus elementos formais, contextualizando-as para, finalmente, buscar a difícil tarefa de interpretá-las.
Estruturalmente, o estudo está dividido em três partes. Na primeira delas, os dois primeiros capítulos são dedicados à trajetória da mulher no mundo ocidental e, mais especificamente, no Brasil, realidade que pauta a obra buarquiana. Toda a abordagem dessa natureza fez-se absolutamente necessária como forma de caracterizar o sistema de opressão, violência e repressão secular a que foi submetido o elemento feminino ao longo da História. Foi, afinal, a partir dessa rede masculina organizada e coordenada que nasceram e se sedimentaram conceitos e valores que estigmatizaram e condenaram a mulher à condição de inferioridade social. Sem a pesquisa desse processo e a exposição dos elementos dele decorrentes seria prejudicado o desenvolvimento do trabalho. Já o terceiro capítulo da primeira parte trata da formação do poeta e da maneira como o feminino teve interferência direta na sua obra.
Na segunda parte, são analisadas as poesias sonoras em que um eu lírico masculino fala da mulher. Aqui, o elemento feminino não tem voz, ele é abordado por um sujeito poético homem que o vê sob vários aspectos e em diferentes situações. Assim, as canções estão agrupadas, a partir de suas características comuns, em quatro seções poéticas (Malandro-Boêmio, Idílico, Lírico-Relacional e Percepções da Mulher), em que são devidamente estudadas dentro das suas especificidades.
Na terceira e última parte, é a voz feminina nas poesias sonoras o objeto do estudo. Pela similaridade de características, a mesma divisão adotada para a segunda parte é mantida nesta, à exceção do grupo Malandro-Boêmio. Como está esclarecido naquele trecho do trabalho, não são encontradas personagens femininas que estejam identificadas com o perfil daquele grupo.
É importante ressaltar que nem todos os poemas-canções estudados estão citados no corpus do presente trabalho. Em que pese o fato de todas as cerca de 190 poesias sonoras buarquianas versando sobre o elemento feminino terem sido analisadas, como citado anteriormente, apenas as mais literariamente expressivas são examinadas no estudo, dada a impossibilidade de contemplar todas elas aqui.
Esta pesquisa não tem senão a pretensão de se inserir no amplo campo das discussões sobre alteridade e política de gênero aberto tardiamente na sociedade. Ela visa, ainda, dar uma contribuição a um importante viés moderno de fomento desses debates, que é a literatura emanada da música popular. O exame da larga parte da obra de Chico Buarque que versa sobre as mulheres propõe-se, assim, a demonstrar em que medida ele contribuiu, por meio da poesia lírica moderna, para o adensamento dessas questões.
Os estudos sobre a música popular ainda são muito escassos. Quando se trata da análise do seu valor literário, rareiam mais ainda. E praticamente inexistem, quando se fala em abordagens