Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

O corpo descoberto: Contos eróticos brasileiros (1852-1922)
O corpo descoberto: Contos eróticos brasileiros (1852-1922)
O corpo descoberto: Contos eróticos brasileiros (1852-1922)
Ebook465 pages9 hours

O corpo descoberto: Contos eróticos brasileiros (1852-1922)

Rating: 0 out of 5 stars

()

Read preview

About this ebook

A pesquisadora Eliane Robert Moraes, professora de Literatura Brasileira na USP, selecionou 53 contos brasileiros eróticos publicados entre 1852 e 1922, muitos dos quais escritos por autores já consagrados, que usavam pseudônimo como forma de burlar a conservadora moral social da época, para falar de corpo, desejo e sexo.. Entre eles, desde autores canônicos – como Machado de Assis ou Olavo Bilac – aos esquecidos (a exemplo de Valentim Magalhães ou Júlia Lopes de Almeida), Os contos também revelam, de forma discreta, as reviravoltas sensíveis do País em meio à crise do Império e o limiar da República. A edição inclui prefácio contextualizador da própria Eliane Robert Moraes e posfácio da pesquisadora Aline Novais de Almeida, doutoranda em Teoria Literária (USP).
LanguagePortuguês
PublisherCepe editora
Release dateJul 17, 2018
ISBN9788578586478
O corpo descoberto: Contos eróticos brasileiros (1852-1922)

Read more from Eliane Robert Moraes

Related to O corpo descoberto

Related ebooks

General Fiction For You

View More

Related articles

Reviews for O corpo descoberto

Rating: 0 out of 5 stars
0 ratings

0 ratings0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    O corpo descoberto - Eliane Robert Moraes

    p6.jpg

    O império da alusão

    Eliane Robert Moraes

    No conto Terpsícore, incluído neste livro, Machado de Assis propõe uma chave instigante para quem deseja interrogar a particularidade da erótica literária brasileira produzida no período que vai da segunda metade do século XIX às vésperas do Modernismo. A narrativa se inicia flagrando Glória e Porfírio na cama, em meio a uma conversa que leva a moça a pular do colchão: arredou de cima de si a colcha de retalhos, procurou com os pés as chinelas, calçou-as e levantou-se. O diálogo se concentra nas dificuldades financeiras do par e nas malogradas tentativas de superá-las. Estas, tão escassas quanto o dinheiro, desenham um horizonte de parcas perspectivas aos cônjuges.

    O narrador, porém, logo deixa de lado os aborrecimentos do casal e, num salto semelhante ao da personagem, passa das misérias cotidianas para as fantasias do amor, contando como os dois se conheceram. Recorda que Glória tinha as feições irregulares e comuns; mas o riso dava-lhe certa graça. Nem foi pela cara que ele se enamorou dela; foi pelo corpo, quando a viu polcar, uma noite, na Rua da Imperatriz. Ali, Porfírio estacionou e, seduzido pelo tremor cadenciado dos quadris e pela troca rápida dos giros, abandonou-se por inteiro à contemplação da bailarina: cravou nela uns olhos de sátiro, acompanhou-a em seus movimentos lépidos, graciosos, sensuais, mistura de cisne e de cabrita. Não demorou muito para que se casassem.

    Mistura de cisne e de cabrita: a combinação dos dois animais é inusitada e curiosa, não só por se tratar de uma ave e de um mamífero, mas também — e sobretudo — pela simbólica que recobre cada um deles, ambos passíveis de expressivas leituras no capítulo do erotismo¹. Cabe lembrar que, desde o início, o conto machadiano gira em torno das reverberações de um corpo erótico, que se apresenta no mais das vezes potencializado pelo sensualismo da dança. E não foi precisamente pelo corpo de Glória que Porfírio apaixonou-se?

    Corpo como não há de haver muitos no mundo — devaneia o moço já depois de casado, apesar do abatimento causado pelas reiteradas preocupações monetárias. Escusado dizer que corpo e dinheiro se opõem aqui em grau e gênero, delimitando territórios próprios que só se harmonizam quando o segundo está a serviço do primeiro. Não há qualquer erotização do dinheiro em Terpsícore, o que concorre para fazer do conto um franco elogio aos poderes de Eros, em especial aqueles relacionados à arte da dança, como confirma o seu título. Resta saber, portanto, o que o cisne e a cabrita têm a ver com tudo isso.

    Imagem recorrente em diversas mitologias, a metamorfose da mulher em cisne simboliza em muitas delas a beleza e a sedução. Talvez venha daí o sentido que a ave ganha no Romantismo, servindo como emblema ou alegoria em várias literaturas, ora associado ao ideal da feminilidade, ora ao mito do poeta que, em busca da beleza, é capturado pela sensualidade². A imagem foi particularmente visitada pela poesia brasileira oitocentista e, embora inspirada em fontes europeias, desenvolveu contornos próprios. Fausto Cunha inventariou sua aparição ao longo do período, lembrando que, até meados do século XIX, o tema se acomodava a uma concepção de vida corrente no país: numa sociedade sedentária, que marchava e valsava lentamente, nada como a dignidade aristocrática do cisne, seu ar de placidez e, sobretudo, a sua beleza serena³. Segundo o crítico, o cisne romântico gozou longa vida na imaginação dos nossos poetas, flutuando inclusive nos lagos parnasianos e simbolistas antes de ganhar silhuetas mais realistas. Transformação que ocorreu aos poucos e só se evidenciou no fim do século, quando conheceu uma renovação de seu imaginário, em sintonia com as mudanças do modus vivendi.

    Ora, a inesperada aproximação proposta por Machado — com cara de brincadeira — pode ser lida à luz de tais mudanças no Brasil que, por certo, também repercutiram fortemente nas maneiras de dançar. Tudo leva a crer que, quando Terpsícore foi publicado, no ano de 1886, o velho hábito de valsar lentamente já estivesse bastante abalado pelas tentações da vigorosa polca que, introduzida no país em meados daquele século, se tornou um fenômeno urbano de grande repercussão nas décadas seguintes⁴.

    Cabe lembrar que, já nessa década, a polca começava a se transformar no que mais tarde ficaria conhecido pelo nome de maxixe, por obra dos deslocamentos rítmicos que acompanham a africanização abrasileirada dessa dança europeia. Referida originariamente ao legume barato, ao resto e ao lixo, a palavra adquiria então frequentes conotações rebaixadas. Como esclarece José Miguel Wisnik, tratava-se de uma denominação ligada aos ambientes populares da Cidade Nova, inseparáveis dos contingentes de escravos e das músicas tocadas e dançadas por negros, e propagados inicialmente nos ambientes boêmios contíguos à vida noturna, ao teatro de revista e à prostituição⁵. Não surpreende que, aos olhos da elite branca, tais ligações tornassem passíveis de sanção moral todas as manifestações assim designadas, entre as quais se destacava em especial a dança, por seu inequívoco apelo luxurioso. Ou, se preferirmos, por seu inequívoco cabritismo⁶.

    No vocabulário popular brasileiro, cabrita quer dizer mestiça ainda nova ou mulher no começo da adolescência. Derivada de cabra, que popularmente designa a mulher devassa, o termo se associa também à cabrocha, designação do mulato ou de qualquer mestiço escuro, de lábios grossos e cabelo pixaim, sendo mais comumente empregado para a mulata jovem. A palavra pode ainda se avizinhar de cabritinho, indivíduo muito moreno ou mulato, ou a cabrochão que significa mulato corpulento. Trata-se, pois, de uma série lexical que constitui uma numerosa e viva família, comportando diversas variações que, não raro, associam a mestiçagem à lascívia, no mais das vezes referidas ao sexo feminino.

    É o que se comprova em vários dicionários de termos eróticos da língua portuguesa, sejam brasileiros ou lusitanos, que chegam inclusive a ampliar o significado de cabra para o de prostituta; mulher de comportamento sexualmente repreensível, aproximando-o igualmente de cabrona, mulher que gosta muito de copular. Embora normalmente fique preservada dessas atribuições de sentido mais fortemente sexual, a cabrita não deixa de evocá-los na sua acepção mais comum que é, repetidamente, a de mestiça jovem e sensual⁷.

    Diante de tal cadeia semântica, não deixa de surpreender que o autor de Dom Casmurro vá aproximar a cabrita do cisne, ainda que ambos sejam passíveis de conotações erotizadas. Afinal, uma primeira leitura desse estranho par tende a opor a poética elegante do cisne à vulgaridade lúbrica da cabrita, dando margem a desdobramentos que incluem pares de opostos como erudito e popular, espírito e corpo, sensualidade e lascívia, sem falar que tais qualidades não raro reverberam nas recorrentes oposições ideológicas entre brancos e negros.

    Recorde-se, porém, que estamos aqui diante de atributos que se misturam, a começar pelo fato de que cabrita denomina uma mestiça, somado à constante associação entre mestiçagem e cabritismo. Não se deve esquecer que o elemento motivador do inusitado encontro entre o cisne e a cabrita é a polca, ela também já tornada um objeto sincrético, quando Machado publica Terpsícore: trata-se de uma dança europeia que, naquele momento, está se transformando em dança brasileira, num processo que supõe a mistura da música de escravos com dança de salão.

    Como, então, dizer tudo isso?

    Tal como se verá adiante, a questão que parece inquietar o escritor fluminense está longe de se limitar à sua pessoa, estendendo-se a outros autores da época, muitos dos quais apoquentados com as formas de dizer o erotismo. A esse dilema, Machado responderá à sua maneira, ou seja, obedecendo à exigência tácita do decoro. Eis sua estratégia também no caso da polca, cuja denominação ele prefere manter intocada, evitando o emprego da palavra maxixe em sua obra. Apesar disso, como observa Wisnik, ele dá sinais tão sutis quanto decisivos, de que uma outra coisa está acontecendo, e exigindo uma perspectiva diferente, desde os bastidores. Ou seja, parece chancelar-se o recalque das implicações socioculturais e raciais da polca-maxixe, ele também as desvela, valendo-se da dicção sutil e incisiva que o caracteriza⁸. Dela resulta uma potente ambiguidade, que trafega entre o dito e o não dito para indicar uma forte afinidade entre o tratamento dado à polca-maxixe e a proposição do inusitado par cisne-cabrita.

    Não estranha que, no capítulo do erotismo, Machado venha a responder com sua habitual aposta no decoro da representação, como que tomando partido do recato, da compostura e da conveniência. Basta recordar suas palavras numa crônica de 1863, em que se encontram repetidas críticas ao sucesso do amor como glorificação dos instintos, o qual, a despeito da vitória que lhe dê o favor público, nada tem com a arte elevada e delicada. É inteiramente uma aberração, que, como tal, não merece os cuidados do poeta e as tintas da poesia⁹. Palavras possivelmente escritas em reação ao sucesso de Madame Bovary e do romance realista, que ele por vezes chamava de literatura de escândalo, como reiteraria 10 anos depois em Instinto de nacionalidade: Hoje, que o gosto público tocou o último grau da decadência e perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras severas de arte. Quem lhas receberia, se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?¹⁰

    As palavras acima talvez sejam suficientes para se compreender a presença de um alvo e sereno cisne em meio ao burburinho de um baile popular onde cabras, cabrochas e cabritas requebram numa sedutora expansão das saias que se segue a cada troca rápida de giros, para a direita e para a esquerda. Difícil escapar da tentação de afirmar que a aristocrática ave, colocada e deslocada naquele ambiente lascivo, serve para atenuar um pouco o escandaloso espetáculo das dançarinas, moralizando a cena que é descrita ao leitor. Nada fácil, pois, a tarefa desse narrador que testemunha uma obscena glorificação dos instintos, confirmada no momento em que uma jovem cabrita se vê devassada pela luxúria de uns olhos de sátiro.

    Essas considerações ganham sentido quando se recorda que a moralidade do fim do Oitocentos ainda era um tanto austera, em especial nos circuitos da elite brasileira. Mesmo assim, é possível ultrapassar a leitura moralizante para se perceber mais um daqueles sinais sutis que caracterizam a ficção machadiana. Cabe insistir que a figura do cisne representa um atestado de beleza, e é bem possível que, diante do notável espetáculo que lhe oferece a dança de Glória, o narrador se veja obrigado a evocar o símbolo, devolvendo-o àquele mito do poeta que, em busca da beleza, se deixa capturar pela sensualidade. Afinal, o narrador não é o escritor: enquanto este se via obrigado a acatar a moral corrente, sobretudo nos textos assinados em primeira pessoa, aquele podia se permitir a contemplação do belo, mesmo estando em meio a tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores. Para tanto, bastava deslocar o cisne dos límpidos lagos europeus para uma prosaica calçada do centro do Rio. Para tanto, bastava uma simples alusão.

    .......................................................................

    É sob o império da alusão que o conto brasileiro produzido antes do Modernismo se arrisca a interrogar o corpo erótico. Produção tímida, mas expressiva, sobretudo se recordarmos que o gênero é pouco praticado durante nosso romantismo, cuja longa vida se prolonga até 1881. Ademais, embora ganhe maior número de adeptos nas duas últimas décadas do século XIX, em que pese a exceção machadiana, ele só passa a desfrutar um lugar de destaque no conjunto da prosa de ficção do país depois do advento da República. A história do conto no Brasil está, portanto, intimamente ligada à chegada da modernidade nos nossos centros urbanos e isso tem implicações decisivas no domínio do erotismo.

    O livro que o leitor tem em mãos pretende contribuir para com essa história, propondo uma seleta de contos criados entre 1852 e 1922, que se acomoda bem à designação de erótica¹¹. As datas aqui são particularmente relevantes, já que a primeira delas demarca o ano da morte de Álvares de Azevedo e a segunda, como se sabe, inaugura oficialmente o modernismo brasileiro. Daí que, embora a seleção não seja organizada segundo o critério cronológico, este se faça presente nas suas duas pontas: se o primeiro exemplar do conjunto, Bertram, foi escrito pelo autor de Noite na taverna, o último deles, intitulado O besouro e a rosa, traz a assinatura de Mário de Andrade. Não escapará ao leitor atento que o conto do criador de Macunaíma excede em um ano a data da semana modernista, a sugerir a virada definitiva para uma nova sensibilidade. Por tal razão, em matéria de erotismo, os 70 anos que separam um conto do outro compõem um só capítulo da nossa história literária, desenhando os movimentos de uma descoberta do corpo que, apesar de comportar mudanças, se organiza segundo o princípio da alusão.

    Tal princípio, supondo referências vagas ou indiretas ao sexo, parece ser não só operante como também específico ao conto brasileiro produzido ao longo dessas sete décadas, marcando sua singularidade. Note-se brevemente que, se os demais gêneros narrativos e a poesia do período também dele se alimentam, não o fazem com a mesma exclusividade, empregando outros expedientes da erótica literária, inclusive o mais escandaloso que consiste em expor a coisa em si¹². Seja como for, a estratégia alusiva ou sugestiva tende realmente a ser a mais frequente na nossa ficção oitocentista, por certo em função de sua adequação aos padrões morais da época.

    Em uma das raras páginas da crítica que se ocupa da questão, Lucia Miguel-Pereira observa que, até 1880, os enredos da literatura brasileira tendiam a ser pudicos e moralizantes, e os raros escritores que ousavam fugir à regra só o faziam com muita cautela. No caso da prosa, diz a autora, o fio que ligava as diferentes cenas naturais ou de costumes era quase sempre, senão sempre, o amor, o amor-sentimento, tão assexuado, que causa espanto que fora violada uma donzela. A honra feminina, consistindo exclusivamente na virgindade das mulheres solteiras ou na fidelidade das casadas, constituía um dos assuntos preferidos. Entende-se por que, completa a crítica ao abordar a evolução do romance, "um conflito como o de Inocência, legítimo em 1872, seria incompreensível em 1920"¹³.

    Importa aqui sublinhar que a transformação moral e estética em curso no fim do Oitocentos, para a qual corroboram os movimentos literários que se seguem ao Romantismo como o Realismo, o Naturalismo e o Simbolismo, só se efetiva às vésperas do Modernismo. Transformação que, ainda no dizer de Lucia Miguel-Pereira, refletia

    as alterações de uma sociedade que, de semipatriarcal e pacata, em suas linhas mais características, se tornou, com a verdadeira revolução de costumes iniciada ou apressada pela guerra de 1914, individualista, instável, e sob muitos aspectos libertária; de um regime político que passou do Império, tão circunspecto, às agitações da década de 1920"¹⁴.

    Enfim, para colocarmos nos termos sugeridos acima, era toda uma sociedade que deixava de valsar lentamente para se movimentar em ritmos mais agitados.

    Cabe repetir que, se os contos deste volume flagram tais transformações, tudo leva a crer que ainda o fazem de forma bastante tímida no que diz respeito ao universo sexual, valendo-se reiteradamente de muita cautela. Embora a maior parte dos textos seja referida a um Brasil urbano, onde a moralidade moderna também está batendo à porta, seus artífices continuam preferindo a expressão oblíqua e recatada que se dobra ao tradicional decoro da representação. Nada mais distinto, pois, da literatura pornográfica estrangeira que já circula nas grandes cidades brasileiras, por graça e obra dos livreiros europeus aqui instalados, que vendem a rodo as traduções e adaptações dos textos obscenos de origem francesa, ou simplesmente as edições nacionais dos livros fesceninos portugueses.¹⁵

    Em suma, seja para marcar a diferença com tais escritos, seja para não ferir a moral vigente, nossa produção contística anterior ao Modernismo vai quase sempre preferir a sugestão à exibição do sexo. Trata-se por vezes de fazer uso da elipse, buscando encobrir, esconder, deixar de fora qualquer detalhe que poderia ferir a moral, como se pode ler nos contos reunidos na chave intitulada Dos objetos do desejo: da cadeirinha de Afonso Arinos ao leque de Júlia Lopes de Almeida, passando pela colcha nupcial de Valentim Magalhães, a descrição desses objetos representaria um voto de castidade, não fossem eles tão intimamente ligados aos corpos que evocam. O mesmo se poderia afirmar sobre O grande vaso chinês de Flávio d’Aguiar que compõe a série, não fosse o vaso uma das metáforas mais tradicionais dos erotica verba no Ocidente, como sugere o malicioso conto de Olavo Bilac.

    Do mesmo modo, parte significativa do conjunto aqui apresentado opta pela referência geral, sem detalhes, daquilo que está sujeito aos tabus de caráter moral e que afeta o corpo, como se percebe nos textos de sugestão homoerótica que participam da seção De homem para homem, notadamente aqueles assinados por Machado de Assis e Afonso Arinos, cujas entrelinhas falam mais alto sobre o que não pode ser dito. Vale o mesmo para os contos mais trágicos, que constituem o núcleo temático em torno Das virgens profanadas. De fato, alguns deles dão franco testemunho daquela tendência literária do período que, segundo Lucia Miguel-Pereira, mostra-se tão assexuada, que causa espanto que fora violada uma donzela. Contudo, uma leitura atenta revela que aqui e acolá eles não deixam igualmente de esconjurar a expressão indizível da amante que quase se oculta no notável e melancólico perfil da menina Carlotinha esboçado por Flávio Reimar.

    Assim, se a estratégia alusiva parece seguir pari passu as exigências da moral vigente em alguns contos desta seleção, em outros ela assume configurações bem menos previsíveis. Chamam a atenção, antes de tudo, aqueles agrupados em Dos excessos da noite e De assombros e assombrações. Como tangenciam de alguma forma o fantástico e o macabro, muitos deles se deixam contaminar pelo excesso que é próprio desses gêneros, levando seus criadores a devassar com inesperado vigor as alcovas, as tavernas e as alamedas noturnas que comumente lhes servem de cenário. Escusado dizer que, se em alguns momentos o excesso se desdobra em exagero, em outros ele ganha os mais finos tratamentos, como comprova a leitura de O cemitério de Lima Barreto. Não é muito diferente o que acontece na singular chave intitulada Da sensualidade dos tísicos que, embora se renda a certas imagens de morbidez, também alcança um momento de elevado lirismo na prosa poética de Cruz e Sousa.

    Outro aspecto digno de nota nesta seleta é que a variedade de tratamentos literários contrasta com a constância das protagonistas femininas que são, de longe, as mais recorrentes. Embora a seleção conte com apenas uma autora, a relação se inverte no caso das personagens, como confirmam os contos reunidos em De fetiches e feitiços e em Das mulheres da vida. Nestes, elas tendem a ser objeto de ambíguas considerações por parte dos homens com que contracenam, sendo por vezes investidas de singulares poderes. Não seria exagero associá-las às femmes fatales que proliferam nas páginas dos romances e contos europeus da mesma época, aqui evocadas por meio da jettatura, palavra italiana que Coelho Neto pede emprestado a Théophile Gautier para designar os obscuros sortilégios femininos. Apesar disso, quando associadas à cor local pelos escritores do regionalismo oitocentista, como Inglês de Souza ou José Veríssimo, seus destinos não raro se cruzam com as tristes sinas das donzelas profanadas.

    Nesse quadro, assumem um contorno muito particular as figuras das viúvas, que aqui aparecem inesperadamente ao lado de seus pares. De fato, a seção De viúvas e viúvos é uma das mais originais da seleta, uma vez que nela se encena uma notável troca de sinais sobre as expectativas eróticas mais correntes da época no que diz respeito a homens e mulheres. Difícil dizer qual das quatro viúvas do conjunto mostra maior disposição sensual, posto que nenhuma delas abre mão de se exercitar, de corpo ou de alma, nos domínios de Eros. A rigor, cada qual à sua maneira, todas poderiam ser signatárias das luxuriosas Notas de uma viúva tão bem-esboçadas por Aluísio Azevedo. Ao invés, os dois melancólicos viúvos que complementam o grupo se dispõem a uma castidade sem par, ambos encontrando suas razões de viver nos estranhíssimos cultos que rendem à memória das falecidas.

    Talvez bastem essas breves notas para que se possa intuir a riqueza temática e formal que estes contos encerram. Colocados lado a lado, eles realmente narram muito mais do que as histórias particulares de suas narrativas, para revelar também a história da imaginação erótica da época em que foram criados, marcada pelo inusitado intento de descobrir um corpo que, no mais das vezes, se apresentava encoberto. Daí que a última seção do conjunto dialogue de perto com o título do livro, no empenho de devolver ao corpo dos textos a ideia norteadora de todo o volume, que gira em torno dessa descoberta. Daí também que a seção se inicie com a Terpsícore de Machado e revisite alguns dos textos mais interessantes do período para desembocar no conto seminal de Mário de Andrade, que já anuncia os fundamentos de outra sensibilidade. Esta criará suas próprias fantasias, não mais acomodadas às demandas exclusivas da alusão.

    Por certo, as estratégias alusivas continuaram operantes nas escritas do sexo, como o são ainda hoje. Todavia, o extraordinário vigor com que foram praticadas ao longo do século XIX é realmente único e, como tal, tem o mérito de nos fazer recordar o potencial que não só a erótica, mas toda literatura, tem de criar artifícios que permitam dizer de outro modo. Potencial de que se alimenta o erotismo literário desde sempre, razão pela qual a alusão segue sendo um de seus expedientes mais correntes.

    Não se trata apenas de driblar as proibições. Ainda que provocada pelas interdições morais, a descoberta de que o sexo pode ser dito das mais diversas formas, para além ou mesmo aquém de qualquer literalidade, termina por exceder o próprio intento original de burlar a censura. A bem da verdade, essa possibilidade traduz a incrível aptidão que a literatura tem de criar duplos das nossas fantasias e, por isso, de instaurar um jogo sem fim que só faz prolongar o desejo humano. Reconhece-se aí o tempo forte da alusão.

    Em tempo: a alusão é, por convenção, uma prática literária que supõe a referência vaga ou indireta a qualquer elemento do próprio mundo da literatura, no mais das vezes resultando em uma citação sutil ou mesmo uma leve menção. Ou seja, o elemento aludido sempre aparece com discrição, sendo sugerido por meio de suas características secundárias ou metafóricas. O vocábulo vem do latim alludere, que quer dizer aludir, mencionar, ou referir-se a, mas, segundo certos dicionários, por vezes ele ganha igualmente o curioso significado de para brincar, a reforçar uma possível etimologia do substantivo latino allusione, que designa a alusão como ação de brincar com¹⁶.

    Ao leitor, fica o convite para que este livro possa ser lido também sob essas poderosas lentes.

    1 Agradeço a Cilaine Alves Cunha não só a sugestão de Terpsícore para integrar a seleção de contos deste livro, mas também a lembrança dessa notável imagem criada por Machado de Assis para referir-se ao erotismo.

    2 A fortuna literária do cisne é vastíssima e não cabe, no espaço deste texto, rastreá-

    -la. Nunca é demais lembrar, porém, que, a partir de Baudelaire — e em particular de seu poema Le cigne incluído nos Tableaux parisiens —, o símbolo passa a abarcar o tema do exílio do artista e da criação poética ameaçada pela esterilidade do mundo moderno. Ave domesticada e não raro cativa, o cisne é envolto então por uma aura de melancolia até que Mallarmé resgate sua polivalência simbólica, precipitando, inclusive, sua devolução aos domínios do erotismo.

    3 CUNHA, Fausto. O cisne como emblema e como alegoria na poesia do romantismo In: O romantismo no Brasil — de Castro Alves a Sousândrade, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971, pp. 161 e 162.

    4 A polca constituiu-se num verdadeiro protótipo das formas dançantes da música de massas, acuando e estreitando o respeitável espaço que a música de concerto e a ópera chegaram a ter na Europa ao longo do século XIX. Não terá sido muito diferente seu destino no Brasil que, a partir da década de 1870, vai testemunhar a linguagem da polca plenamente implantada como moeda musical corrente, fluente e intercambiável, Cf. WISNIK, José Miguel. Machado maxixe: o caso Pestana In: Teresa — revista de literatura brasileira, n. 4/5, São Paulo: Editora 34 / FFLCHUSP, 2004, pp. 25-27.

    5 Idem, Ibidem, p. 26.

    6 A palavra cabritismo figura como sinônimo de sensualidade ou lubricidade em diversos dicionários, entre os quais cito a 15ª. Edição do Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Rio de Janeiro: Nova Fronteira), que também é a fonte das palavras referidas no próximo parágrafo.

    7 Conforme o verbete cabra do Dicionário Obsceno da Língua Portuguesa, compilado por Carlos Pinto Santos e Orlando Neves (Lisboa: Bicho da noite, 1997).

    8 WISNIK, José Miguel. Op. cit., p. 27.

    9 ASSIS, Machado de. Diário do Rio de Janeiro, ano XLIII, n. 231, Folhetim, Conversas Hebdomadárias, 24 ago. 1863, p. 1; p. 147–148.

    10 ASSIS, Machado de. Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade. In: Obra completa. 3. ed. Rio de Janeiro: Aguilar, 1973. v. 3, p. 801–809.

    11 A definição de literatura erótica que orientou esta seleção toma emprestada aquela cunhada por José Paulo Paes que, ao se referir a textos sexuais explícitos, esclarece que o grau dessa explicitação pode variar do fescenino ao alusivo, mas nunca a ponto de este fazer perder de vista o que o outro nomeia sem mais aquela. PAES, José Paulo (org.). Nota liminar. In: Poesia Erótica em tradução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 12.

    12 O tema é vasto e não cabe, no breve espaço desta apresentação, desenvolvê-lo. Mas talvez valha a pena indicar ao menos duas evidências que sugerem a exclusividade da estratégia alusiva no conto. A primeira diz respeito à ausência de contos eróticos do século XIX brasileiro no volume As 100 melhores histórias eróticas (Rio de Janeiro: Ediouro, 2003) que, organizado por Flávio Moreira da Costa, se vê obrigado a lançar mão de poemas para compor seu conjunto. A segunda está na Antologia da poesia erótica brasileira, por mim organizada (São Paulo: Ateliê, 2015), a dar testemunho de que a lírica do mesmo período é bem mais permissiva que o conto tanto nos temas sexuais quanto nos modos de tratá-los.

    13 MIGUEL-PEREIRA, Lucia. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1950, v. 12 p. 21.

    14 Idem, Ibidem, p. 20.

    15 Ver, nesse sentido, o posfácio de Aline Novais de Almeida ao fim deste volume, intitulado O despertar de Eros na literatura brasileira.

    16 Cf. MACHADO, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa, Lisboa: Livros Horizonte, 1990, p. 218.

    Nota da organizadora

    Este livro não se pretende uma antologia, adequando-se melhor à ideia de seleção. Embora apresente uma amostra da escrita erótica produzida no Brasil entre 1852 e 1922, ele se restringe exclusivamente ao conto, não se aventurando em outros gêneros da prosa de ficção. Além disso, cabe dizer que o volume tampouco esgota a lista de contos eróticos do período pesquisado, uma vez que se limita a obras de domínio público, ou seja, aquelas criadas por autores que faleceram até o ano de 1948.

    Os contos aqui presentes foram organizados segundo um princípio temático, que se introduz por meio de 10 eixos, os quais se revelaram os mais constantes do conjunto. Tal critério tomou por modelo a Anthologie de la poésie érotique française (Paris: Fayard, 2004) que o adotou com sucesso. Organizada por Jean-Paul Goujon, essa antologia dá testemunho de que, no caso da erótica, os temas transversais não raro se constituem como estruturas internalizadas que aquilatam o plano formal. Assim, em vez de ignorar as singularidades formais, tal princípio expõe precisamente a qualidade das respostas literárias a determinados acontecimentos objetivos e subjetivos da vida sexual, evidenciando o processo de transfiguração dos acontecimentos que é próprio da literatura.

    No nosso caso, a seleção temática foi considerada mais produtiva do que a cronológica também pelo fato de que o conjunto abrange apenas 70 anos da história literária brasileira. Por tal razão, considerou-se interessante a perspectiva de reunir um grupo de contos que dialogassem entre si, independentemente de sua vinculação aos diversos movimentos literários que se sucederam no período. Pretendeu-se com isso iluminar importantes questões de fundo que dizem respeito ao imaginário erótico em questão, abrindo ao leitor a fértil possibilidade de que um conto possa explicar o outro.

    No decorrer da pesquisa, tentou-se sempre buscar a fonte escrita mais antiga, mas a prudência obriga a não tomar por originais as referências aqui apresentadas, o que de certa forma vale para todo o conjunto. No intento de tornar a leitura mais fluente, a grafia de algumas palavras foi atualizada. Afora isso, os contos foram reproduzidos tal qual aparecem nas fontes elencadas na bibliografia, à qual remetemos também o leitor que pretende aprofundar o assunto. Em boa parte desses livros encontram-se introduções, prólogos, glossários, notas explicativas e outras informações que podem ser de interesse.

    E. R. M

    p33.jpg

    Bertram

    Álvares de Azevedo

    But why should I for others groan,

    When none will sigh for me!

    Childe Harold, I. Byron

    Um outro conviva se levantou.

    Era uma cabeça ruiva, uma tez branca, uma daquelas criaturas fleumáticas que não hesitarão ao tropeçar num cadáver para ter mão de um fim.

    Esvaziou o copo cheio de vinho e, com a barba nas mãos alvas, com os olhos de verde-mar fixos, falou:

    — Sabeis, uma mulher levou-me à perdição. Foi ela quem me queimou a fronte nas orgias, e desbotou-me os lábios no ardor dos vinhos e na moleza de seus beijos: quem me fez devassar pálido as longas noites de insônia nas mesas do jogo, e na doidice dos abraços convulsos com que ela me apertava o seio! Foi ela, vós o sabeis, quem me fez num dia ter três duelos com meus três melhores amigos, abrir três túmulos àqueles que mais me amavam na vida — e depois, depois sentir-me só e abandonado no mundo, como a infanticida que matou o seu filho, ou aquele Mouro infeliz junto à sua Desdêmona pálida!

    Pois bem, vou contar-vos uma história que começa pela lembrança desta mulher...

    Havia em Cadiz uma donzela... linda daquele moreno das Andaluzas que não há de vê-las sob as franjas da mantilha acetinada, com as plantas mimosas, as mãos de alabastro, os olhos que brilham e os lábios de rosa d’Alexandria sem delirar sonhos delas por longas noites ardentes!

    Andaluzas! Sois muito belas! Se o vinho, se as noites de vossa terra, o luar de vossas noites, vossas flores, vossos perfumes são doces, são puros, são embriagadores, vós ainda o sois mais! Oh! Por esse eivar a eito de gozos de uma existência fogosa nunca pude esquecer-vos!

    Senhores! Aí temos vinho de Espanha, enchei os copos: — à saúde das espanholas!...

    .......................................................................

    Amei muito essa moça, chamava-se Ângela. Quando eu estava decidido a casar-me com ela, quando após as longas noites perdidas ao relento a espreitar-lhe da sombra um aceno, um adeus, uma flor, quando após tanto desejo e tanta esperança eu sorvi-lhe o primeiro beijo, tive de partir da Espanha para a Dinamarca onde me chamava meu pai.

    Foi uma noite de soluços e lágrimas, de choros e de esperanças, de beijos e promessas, de amor, de voluptuosidade no presente e de sonhos no futuro... Parti. Dois anos depois foi que voltei. Quando entrei na casa de meu pai, ele estava moribundo; ajoelhou-se no seu leito e agradeceu a Deus ainda ver-me, pôs as mãos na minha cabeça, banhou-me a fronte de lágrimas — eram as últimas —, depois deixou-se cair, pôs as mãos no peito, e com os olhos em mim murmurou: Deus!

    A voz sufocou-se-lhe na garganta: todos choravam.

    Eu também chorava, mas era de saudades de Ângela...

    Logo que pude reduzir minha fortuna a dinheiro, pu-la no banco de Hamburgo, e parti para a Espanha.

    Quando voltei, Ângela estava casada e tinha um filho...

    Contudo meu amor não morreu! Nem o dela!

    Muito ardentes foram aquelas horas de amor e de lágrimas, de saudades e beijos, de sonhos e maldições para nos esquecermos um do outro.

    .......................................................................

    Uma noite, dois vultos alvejavam nas sombras de um jardim, as folhas tremiam ao ondear de um vestido, as brisas soluçavam aos soluços de dois amantes, e o perfume das violetas que eles pisavam, das rosas e madressilvas que abriam em torno deles era ainda mais doce, perdido no perfume dos cabelos soltos de uma mulher...

    Essa noite — foi uma loucura! Foram poucas horas de sonhos de fogo! E quão breve passaram! Depois dessa noite seguiu-se outra, outra... e muitas

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1