A monadologia e outros textos
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A monadologia e outros textos - Gottfried Leibniz
[www.leibnizbrasil.pro.br].
Introdução, por Fernando Luiz Barreto Gallas e Souza
Todo aquele que se dispõe a estudar o pensamento de G. W. Leibniz depara-se com duas dificuldades.
A primeira delas decorre do fato de o filósofo não ter escrito um texto que contivesse o todo de seu rico e variado pensamento. Especificamente em filosofia, Leibniz publicou em vida um único livro: Ensaios de Teodiceia, em 1710. Até então, suas ideias foram publicadas apenas em artigos de revistas, tais como, Acta Eruditorum em língua latina; Journal des Savants (Paris); Nouvelles de la République des Lettres (Amsterdã), Histoire des Ouvrages des Savants (Roterdã) e Mémoires pour l’Histoire des Sciences et des Beaux Arts (Trévoux).
E nisso reside a segunda dificuldade de interpretação da obra do filósofo, pois os seus melhores textos – não apenas em filosofia como também nas matemáticas, lógica e em tantos outros ramos do conhecimento humano aos quais se dedicou – encontram-se dispersos em uma abundante quantidade de material: um sem-número de cartas, rascunhos, notas e outros textos menores. O próprio filósofo chegou a afirmar que conheceria mal sua filosofia aquele que se dedicasse tão-somente ao estudo de suas obras então publicadas.
Contudo, nesse conjunto, quatro marcos fundamentais podem ser estabelecidos na obra filosófica de Leibniz: o Discurso de Metafísica, de 1686; Sistema Novo da Natureza e da Comunicação das Substâncias
, artigo publicado no Journal des Savants em junho–julho de 1695; a Monadologia, de 1714, e os Princípios da Natureza e da Graça, também de 1714.
Esta edição apresenta o pensamento leibniziano amadurecido, fundamentado pela Monadologia.
0.1 Monadologia
Leibniz compôs a Monadologia em 1714, dois anos antes de sua morte, como um resumo de sua filosofia. Por suas noventa seções ou parágrafos, ele apresenta uma elaborada exposição do mundo por meio das lentes da razão pura. Esse mundo, criado por Deus, nada mais é que uma coleção de substâncias simples, um mundo de mônadas. Nós próprios somos um tipo particular de mônada: temos o poder de refletir sobre nós mesmos e de compreender a estrutura que necessariamente compõe este mundo e, assim, podemos apreciar a posição privilegiada que Deus nos reservou neste plano universal.
E a doutrina das mônadas, tal como se apresenta na Monadologia, é o ponto culminante do pensamento leibniziano sobre a substância. No parágrafo primeiro, Leibniz afirma: A mônada, da qual vamos falar aqui, não é senão uma substância simples, que entra nos compostos
(Monadologia §1). Por simples
entenda-se um
, sem partes
. Uma análise completa dos parágrafos iniciais da Monadologia e das suas implicações nos fornecerá praticamente uma visão total da filosofia leibniziana.
Mônada
Mônada é, portanto, o nome que Leibniz atribuiu àquilo que ele considerava átomos reais da natureza ou elementos das coisas. Este termo apresenta algumas vantagens, pois todos os outros que a ele estejam relacionados em significado (tais como alma, espírito, átomo, ponto) podem ser utilizados apenas com limitações.
E já que as mônadas não possuem partes, portanto, não ocupam lugar no espaço, não têm tamanho, forma ou tampouco são passíveis de divisibilidade. No senso comum, formar ou destruir algo envolve, respectivamente, juntar ou organizar as partes, ou separá-las. Como as mônadas não possuem partes, não podem ser formadas, tampouco destruídas. Podem tão-somente vir a existir por criação e deixar de existir por aniquilação. Pelas mesmas razões, disso decorre que as mônadas não podem causar mudanças entre si: não há nada que uma entidade não-espacial possa fazer a outra.
Todavia, as mônadas devem possuir qualidades, pois, do contrário, não seriam coisas. E já que existe uma variedade de coisas no mundo, elas devem diferir entre si exatamente em qualidade. As diferenças que constituem a variedade devem estar nas próprias substâncias simples, pois nenhuma associação de coisas exatamente similares poderia produzir qualquer diferença. Cada mônada muda continuamente e, já que a mudança não pode ser causada por uma fonte externa, deve ter origem em um princípio interno.
percepção
Mudanças envolvem multiplicidade, pois utilizamos a palavra mudança
apenas para um estado de coisas no qual um elemento é diferente e um outro permanece o mesmo. A substituição de um estado por outro que é totalmente diferente não é, justificadamente, denominada mudança, mas sucessão. Essa multiplicidade está na mônada, ou unidade simples, e, portanto, não pode ser uma multiplicidade de partes. Leibniz denomina essa multiplicidade percepção. Percepção é, em nosso sentido da palavra, um exemplo dos muitos estados mais gerais que Leibniz tem em mente ao usar o termo. Quando pensamos, afirma Leibniz, temos uma experiência da multiplicidade em uma substância simples, isto é, podemos analisar o ato de pensar como um sujeito (nós mesmos) pensando sobre um objeto; e o objeto em si pode ser analisado em partes, embora não-espaciais. Assim, se estou pensando em uma rosa vermelha com aroma agradável, estou distinguindo entre as várias qualidades da rosa, mas certamente não estou pensando nelas lado a lado no espaço.
apetição
Ao princípio de acordo com o qual cada mônada desenvolve suas séries de mudanças, Leibniz denomina apetição, ou seja, um ímpeto de autodesenvolvimento sempre em busca de novas percepções, quer mediante propósitos conscientes dos seres humanos, quer pelo movimento das pedras sob a força da gravidade. A percepção, e tudo o que dela depende, não pode ser descrita ou explicada em termos mecânicos, isto é, por figuras ou movimentos. Leibniz imagina uma máquina tão ampla cuja estrutura a fizesse pensar e sentir e na qual pudéssemos penetrar, tal qual um moinho, e observar as partes agindo umas sobre as outras. Poderíamos, de fato ver os distúrbios deste vasto cérebro, seguidos dos movimentos do nervo ótico, mas nunca seríamos capazes de ver a percepção. Assim, a percepção é muito mais como uma atividade da alma. Se estivéssemos considerando apenas a percepção, todas as mônadas seriam denominadas almas. Mas há outras distinções a ser feitas que tornam desejável reservar o termo alma
àquelas mônadas que possuem percepção distinta, acompanhada de memória.
alma
Todas as mônadas possuem percepção, mas em algumas essa percepção é mais distinta que em outras. As mônadas para as quais a denominação alma
é inadequada são chamadas mônadas nuas
e suas percepções são confusas e indistintas. Podemos imaginar em que consiste esse estado se considerarmos o que significa estar em um sono profundo, sem sonhos, ou em um desmaio. Nós nos diferenciamos das mônadas nuas, pois retornamos dos estados de desmaio e de sono profundo. Mas, mesmo nesses estados, a mônada não se encontra sem percepção. Se ela existe, deve ser afetada de algum modo, e tal afecção é sua percepção.
razão
Por este motivo, a inconsciência é, assim, apenas aparente, bem como nossa percepção de estado de vigília deve ter origem do nosso assim denominado estado inconsciente. Uma percepção origina-se apenas de uma outra percepção. Possuímos experiência de percepções confusas e indistintas quando estamos tontos ou atordoados. Então, possuímos uma variedade de pequenas percepções, nas quais nada há de distinto. Tanto homens como animais têm memória e formam associações entre percepções presentes e passadas. Isso conduz animais e homens na maioria das suas ações a formar expectativas e, por conseguinte, a ajustar suas ações, mas apenas os seres humanos podem ajustar seus comportamentos em bases racionais. Mas o conhecimento das verdades necessárias e eternas é o que nos distingue dos simples animais e nos faz possuidores da Razão e das ciências, nos elevando a um conhecimento de nós mesmos e de Deus. É isto que, em nós, denomina-se Alma Racional ou Espírito
(Monadologia §29).
Assim, há três tipos de mônadas criadas: mônadas nuas, almas e espíritos. Se