A formação de jovens violentos
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A formação de jovens violentos - Marcos Flávio Rolim
Editora Appris Ltda.
1ª Edição – Copyright© 2016 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.
Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.
Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIA E TRANSDISCIPLINARIEDADE
À memória de meu avô Léo Schneider, pelas lições de humanidade.
Para Jussara, Maíra e Sofia, que me mostraram tudo o que mais importa.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho teria sido impossível sem a orientação de Juan Mario Fandino Marino. Se há alguma virtude nesse esforço, ela se deve à paciência e à determinação com que ele esclareceu minhas dúvidas, indicou textos, estimulou o adequado delineamento da pesquisa e me conduziu nos labirintos do processamento estatístico. Ao professor Fandino, então, registro meu reconhecimento e minha admiração, escusando-o dos limites da pesquisa que, por certo, não superei.
Várias outras pessoas foram também importantes, de diferentes maneiras. Daiana Hermann me auxiliou sobremaneira na formação do banco de dados, nos cruzamentos e regressões. Sua disposição e tranquilidade, para além da colaboração acadêmica, foram decisivas. Eu não teria o acesso que necessitava à Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), para passar tantas horas com os internos, sem a compreensão da então gestora da instituição, Joelza Mesquita Andrade Pires. Ainda na Fase, devo agradecimentos aos técnicos e aos monitores que me receberam nas unidades visitadas, em diferentes cidades do RS. Tâmara Biolo Soares auxiliou em vários momentos e a juíza Vera Deboni assegurou que eu tivesse acesso aos prontuários dos internos. Cristiano Rodrigues, cujo sonho é ser policial civil, me ajudou muito na difícil tarefa de encontrar os amigos e colegas de infância, não envolvidos com o crime, indicados pelos internos da Fase que entrevistei. Devo agradecer ao tenente-coronel Osvaldo Machado da Silva, cuja postura viabilizou importante parte do campo no Presídio Central de Porto Alegre. A ele e aos demais integrantes da Brigada Militar, como os Majores Albuquerque e Guatemi e o Capitão Famoso, que se interessaram por este trabalho, meu muito obrigado. Meus agradecimentos, também, ao professor Egídio Fagundes, diretor do Colégio Estadual Ildo Meneghetti, na Restinga, que mobilizou os alunos para a aplicação dos questionários em outra parte do campo.
Muitos amigos e amigas me ajudaram ao longo da minha formação na área e seria impossível nomeá-los todos. Entre eles, Luiz Eduardo Soares tem sido, ao longo de tantos anos, mais que um parceiro genial, uma referência moral e um exemplo em muitas dimensões. Agradeço à generosidade de Oscar Vilhena Vieira, que prefacia este trabalho e que, há muitos anos, foi à Oxford para a mesa de debates de meu paper. Denise Dora, que carrega uma palavra de solidariedade e um plano ousado, normalmente vocacionado ao sucesso, foi e segue sendo sempre muito importante, assim como Marco Azevedo, com quem aprendo em qualquer conversa, por mais simples que seja. Meu agradecimento especial pelo conjunto da obra
a Ozeas Duarte, Maurício Faria, Carlos Alberto Grassi, Maura Basso, Marlova Jovchelovich Noleto, Esther Grossi, Sandra Vial, Yvone Duarte, Carmem Oliveira, Renato Zamora Flores, Glória Diógenes, Suzana Lisboa, Fiona McCauley e Miguel Carter, interlocutores privilegiados e amigos de todas as horas. Pelo apoio constante e pela determinação de inovar em políticas de segurança, agradeço a Renato Sérgio Lima e a Alberto Kopittke e, em seus nomes, a todos os integrantes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pesquisadores e policiais. Entre aqueles que nos deixaram tão cedo e de quem sinto tanta falta, homenageio a memória de meu amigo Marco Antônio Bandeira Scapini, por tudo o que aprendi com ele e por todas as vezes em que me fez rir sem parar.
Os jovens que entrevistei, os que estavam cumprindo medida de privação de liberdade e os que nunca se envolveram com o crime, os que estavam presos e os que estavam estudando ou trabalhando, atenderam ao convite para as entrevistas e para as respostas aos questionários sem esperar qualquer benefício ou vantagem. Devo agradecer a eles por essa disposição. Um dos guris, após algumas horas de entrevista na Fase, disse: Dói falar isso tudo, mas foi bom
. Falar é bom e ser escutado é melhor ainda. Seria preciso pensar, sempre, sobre o quanto estamos dispostos a escutar, porque, talvez, este seja um tempo em que a escuta se tornou improvável.
Espero que este trabalho ofereça alguma contribuição, por modesta que seja, para identificar com mais clareza, por sobre o que restar de nebuloso e triste, as dinâmicas da violência extrema e, assim, avançar em iniciativas capazes de reduzi-la.
O sentido de uma história depende do ponto a partir do qual começamos a contá-la.
(Luiz Eduardo Soares)
[...] ao contrário da comida, o respeito nada custa. Por que, então, haveria uma crise de oferta?
(Richard Sennet)
PREFÁCIO
Uma contribuição de rara profundidade
O Brasil não é apenas um país desigual e injusto. É também extremamente violento. Nas últimas duas décadas foram mais de 50 mil homicídios por ano, ou seja, mais de um milhão de pessoas foram vítimas de homicídios. Embora a violência e a banalização da vida provoquem uma profunda erosão de todo nosso tecido social, afetam de maneira profundamente desproporcional os jovens negros e com baixa escolaridade, que habitam nossas periferias sociais. As perdas humanas e sociais decorrentes da violência endêmica são enormes. O sofrimento de mães, filhos, companheiras e amigos dessas vítimas, incomensuráveis. Essa a preocupação central deste livro, que se apresenta como um exercício de profundo compromisso do autor com a sociedade.
O Poder Público tem respondido, em regra, com pouca eficiência à crescente violência brasileira. Embora haja experiências importantes de contenção da violência em alguns estados e municípios, que deveriam ser mais bem estudadas, o quadro geral segue sendo o da repetição dos antigos paradigmas repressivos, muitas vezes disfuncionais. Examinando o debate público, a situação é devastadora, e o que temos presenciado é um tabuleiro onde a ausência de reflexão se encontra com preconceitos e ignorância: mais prisões, leis mais duras e mais policiais
formam a tríade do senso comum na área, como se os fenômenos da violência e do crime fossem simples.
Na vida real, tudo se passa muito longe das fórmulas ideológicas apresentadas tradicionalmente à direita e também à esquerda. Se a receita repressiva pode inclusive agravar o quadro da insegurança, por exemplo ao desconsiderar o papel criminogênico do encarceramento em massa ou da própria violência policial, também é verdade que crime e violência não podem ser explicados simplesmente por variáveis econômico-sociais. Para que possamos avaliar dinâmicas criminais, conhecê-las verdadeiramente, precisamos superar os velhos dogmas e nos debruçar com abertura e seriedade sobre esses fenômenos. Isto é o que Marcos Rolim faz neste trabalho de rara profundidade e inteligência.
A primeira parte de A Formação dos Jovens Violentos nos apresenta um mapa crítico da criminologia contemporânea em um diálogo que tem como pano de fundo caminhos instigantes propostos por Lonnie Athens e Travis Hirschi. Nessa parte se oferece aos leitores um panorama dos debates sobre crime e violência não apenas na criminologia, mas na Psicologia, na Biologia, na Genética Comportamental, entre outras disciplinas. Como se trata de um estudo etiológico, Rolim enfrenta a complexidade inerente à matéria com um texto claro e persuasivo de extraordinária força didática. No terceiro capítulo, nos apresenta os jovens serenos
(o motivo da expressão o leitor vai descobrir), traduzindo o que encontrou após entrevistar em profundidade um grupo de adolescentes e jovens adultos envolvidos em atos graves de violência, entre eles jovens com múltiplos homicídios, e compará-los com outro grupo de jovens, indicados pelos primeiros, como amigos de infância que nunca se envolveram com o crime. Se sua pesquisa tivesse terminado nesse ponto, já estaríamos diante de um trabalho excepcional, mas Rolim decidiu prosseguir a investigação em busca de evidências colhidas em um modelo causal. Os resultados a que chegou são surpreendentes e permitem que o tema da violência extrema seja pensado a partir de novas chaves.
Antes de terminar esta apresentação, penso que seja oportuno dizer algumas palavras sobre Marcos Rolim, afinal ele é um autor muito singular. O conheci nos inícios dos anos 90, quando muitos achavam que a democracia nos traria, por inércia, o respeito aos Direitos Humanos. Marcos Rolim foi dos poucos que percebeu que essa tarefa seria muito mais árdua. Desde muito jovem teve um papel destacado na defesa dos direitos humanos dentro e fora do parlamento. O que sempre distinguiu sua atuação como jornalista, militante, político e intelectual, além da persistência, consistência e refinamento de suas ideias, foi, sobretudo, a sua incansável busca por soluções. Com uma sólida formação intelectual, que não encontra barreiras em silos acadêmicos, Marcos Rolim tem sido capaz de trilhar caminhos novos e nos ajudar a compreender e agir sobre fenômenos tão complexos como a violência. Por intermédio de sua ubíqua atuação e profícua produção, Marcos Rolim consolidou-se como um dos mais destacados intelectuais do campo dos Direitos Humanos e da segurança pública em nosso país. Lembrando das suas iniciativas como parlamentar, da sua independência político-ideológica e da coragem com que sempre enfrentou os temas mais difíceis, lastimo profundamente que não o tenhamos mais desempenhando outros mandatos. Ao mesmo tempo, é forçoso reconhecer que, se ele tivesse continuado disputando eleições, não teria tido condições de nos brindar com trabalhos como A Formação de Jovens Violentos, que certamente se transformará numa referência para as Ciências Sociais brasileiras.
Pro. Dr. Oscar Vilhena Vieira
Pós-doutor pela Universidade de Oxford, doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito pela Universidade de Columbia, Nova York, e graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Sumário
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I
O PROJETO CRIMINOLÓGICO CONTEMPORÂNEO:
PRINCIPAIS HIPÓTESES ETIOLÓGICAS
Partindo de Dürkheim
A extensão do fenômeno criminal
A Criminologia e as Ciências Naturais: ou o debate nature versus nurture
Teoria da Desorganização Social
Teoria da Associação Diferencial
Teoria da Neutralização
Teoria da Rotulação
Violência, temperamento e impulsividade
O Código das Ruas: cultura e violência
O paradigma dos Fatores de Risco
CAPÍTULO II
DISPOSICIONALIDADE VIOLENTA, BRASILIDADE E CRIMINOLOGIA
A herança violenta
Os Glueks e os anjos de cara suja
Campos etiológicos fundamentais
Teoria da Violentização
Teoria do Autocontrole
CAPÍTULO III
DIANTE DA VIOLÊNCIA EXTREMA:
OUVINDO OS JOVENS SERENOS
Breve nota metodológica
3.2 Arquitetura do medo e linguagem
Iniciação criminal
A família como dor
A escola como distância
O tráfico como pertencimento
A polícia como sócia
A guerra como circunstância
A violência extrema como marca
A desistência como utopia
Principais contrastes no grupo de amigos
CAPÍTULO IV
DISPOSICIONALIDADE VIOLENTA:
FORMULAÇÃO DE UM MODELO CAUSAL E METODOLOGIA
4.1 Caráter quase-experimental do trabalho
4.2 População-alvo
4.3 Definições conceituais e operacionais das variáveis do modelo
4.3.1 Disposicionalidade Violenta
4.3.2 Brutalização na infância
4.3.3 Socialização familiar
4.3.4 Socialização escolar
4.3.5 Socialização comunitária
4.4 Construção das variáveis independentes
CAPÍTULO V
ANALISANDO A DISPOSICIONALIDADE VIOLENTA
5.1 Bateria inicial das variáveis independentes
5.2 Formulação e cálculo da regressão stepwise
5.3 Coeficientes de correlação bivariada
5.4 Cálculo de regressão
5.5 Distribuição dos escores da Escala de Socialização Violenta
5.6 Distribuição dos escores de disposicionalidade violenta
CAPÍTULO VI
CONCLUSÕES INICIAIS A PARTIR DO MODELO
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Do not go where the path may lead, go instead where there is no path and leave a trail.¹
Ralph Wando Emerson
Como os leitores perceberam pelo título, este é um trabalho que diz respeito à etiologia das condutas violentas. Isso significa que o esforço realizado integra o projeto mais amplo de identificar as causas dos comportamentos violentos que, como mostrarei, constitui parte do campo específico que chamamos de Criminologia.
Muitas disciplinas e campos do saber, da Medicina à Psicologia, da Criminologia à Biologia, lidam com investigações de natureza etiológica. Essa preocupação está vinculada, naturalmente, à importância da prevenção. Se abandonássemos os estudos etiológicos na área da Saúde Pública, por exemplo, várias das doenças que podem ser evitadas – já que sabemos suas causas e vetores – constituiriam ameaças muito mais sérias.
A lembrança da Saúde é particularmente importante quando pensamos em causas do crime ou em causas da violência, porque parte importante dos motivos do adoecimento estão, também, na origem de comportamentos antissociais e disruptivos. Há outros paralelos significativos entre a Saúde Pública e a Criminologia. Entre eles, o fato de que tanto o adoecimento quanto os comportamentos criminais e/ou violentos são fenômenos complexos que resultam de dinâmicas causais complexas. As relações de causa e efeito, assim, não se manifestam de forma direta como nos fenômenos físicos ou químicos elementares. Pelo contrário, elas operam por sucessivas mediações, agregando causas de diferente natureza que podem ser mais propriamente traduzidas como fatores de risco
.
Não por acaso, na área da saúde pública, lidamos comumente com perspectivas integradas e o próprio raciocínio etiológico incorpora o que se convencionou identificar como modelo biopsicossocial. O adoecimento, nessa ótica, é pensado a partir de características biológicas (como a propensão genética), psicológicas (como os comportamentos de risco e o estresse) e sociais (como ausência de saneamento básico ou o estímulo ao consumo de bebidas alcoólicas).
O projeto moderno da Criminologia resulta da consciência dessa complexidade. As mais importantes linhas de pesquisa em todo o mundo, assim como as Teorias Criminológicas mais potentes, lidam com a multicausalidade e buscam, por diferentes caminhos, um modelo capaz de integrar perspectivas diversas e mesmo de produzir sínteses entre visões aparentemente contrastantes. O trabalho que o leitor tem em mãos se filia a essa tradição. Minha abordagem se fundamenta em um modelo teórico integrado e em uma perspectiva de curso de vida² (ELDER et al., 2003), o que estimula análises dinâmicas e multidimensionais. O projeto de pesquisa mesmo, como se verá, foi influenciado pelas criminologias britânica e norte-americana o que significa, basicamente, compartilhar de um paradigma onde as evidências constituem o centro. Trata-se, em síntese, de procurar compreender melhor as dinâmicas que conduzem as pessoas ao crime e à violência. Dito de outra forma: este é um trabalho científico de sentido pragmático que não deseja propagar doutrinas e que não está alinhado às concepções político-ideológicas tradicionais (no sentido marxiano) sustentadas comumente à direita e à esquerda. No que diz respeito aos temas da violência e da criminalidade, aliás, aquelas visões são parte do problema a ser resolvido para que o Brasil possa ter uma política de segurança pública efetiva. O discurso do tipo lei e ordem
– que sintetiza as posições à direita – e o discurso do tipo crime e violência como subproduto de uma ordem injusta
– que demarca a gramática comum da esquerda – são ideológicos no sentido de que oferecem perspectivas ilusórias. Eles não dão conta das dinâmicas reais de violência e criminalidade que assolam o País. Tendem, pelo contrário, a agravá-las pelo encarceramento massivo e pela violência policial, por um lado e pela enrolação e pela impotência por outro.
Trato aqui do processo de formação de jovens violentos e mostrarei os resultados a que chegamos depois de uma pesquisa que teve um momento qualitativo e outro quantitativo. Para compreender o percurso realizado assinalo que parti de uma primeira pergunta: por que apenas um grupo relativamente pequeno de jovens – mesmo entre o grupo maior daqueles que transformaram as opções ilegais em um meio de vida – desenvolve comportamentos particularmente violentos?³
Assim, quando trato da formação de jovens violentos me refiro não a toda e qualquer prática violenta, mas ao que chamo de violência extrema
. Aqui, é importante introduzir uma primeira definição. Violência extrema não é, propriamente, um conceito em Criminologia. Entendo, entretanto, que deveria ser uma de suas noções centrais. As razões me parecem evidentes: se as práticas de violência extrema dizem respeito a um tipo particular de conduta que resulta muito frequentemente em homicídios⁴, então é a natureza do bem tutelado – no caso a vida – que deve promover a categoria e estimular estudos específicos. Nesse particular, a contribuição de Lonnie Athens é seminal. Foi ele quem, originalmente, se dispôs a pesquisar o que chamou de criminosos violentos e perigosos
(dangerous violent criminals), chamando atenção para o que, presumidamente, havia de diferente na formação daqueles sujeitos, como veremos mais adiante. Tomo emprestado, assim, a definição oferecida por Athens para crimes hediondos
⁵, dizendo que atos de violência extrema são aqueles que produzem lesões graves ou mesmo a morte, tendo sido praticados mediante relativa ausência de motivos, por exemplo, uma verdadeira provocação por parte da vítima.
A primeira parte da pesquisa, de natureza qualitativa, permitiu conhecer um tanto das histórias de vida de jovens internos da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), do Rio Grande do Sul, cumprindo medidas de privação de liberdade em diferentes cidades por conta de atos infracionais especialmente violentos. O grupo de adolescentes e jovens adultos que entrevistei na Fase foi, assim, selecionado de acordo com a natureza particularmente violenta dos atos infracionais a eles atribuídos. Quase todos os que integraram esse grupo foram autores de homicídios e, entre eles, há responsáveis por múltiplos homicídios (os extratos mais significativos da fala dos jovens entrevistados estão dispostos no terceiro capítulo). Ainda nessa etapa, foi possível comparar os relatos dos internos, tanto quanto suas respostas aos questionários, com as informações colhidas com um grupo pareado de jovens, de mesma faixa etária e sexo, indicados pelos próprios internos da Fase na condição de amigos ou colegas de infância não envolvidos em atos infracionais. Assim, lidamos, inicialmente, com dois grupos: um formado por jovens que se associaram ao crime e que foram responsáveis por atos especialmente violentos e outro formado por jovens oriundos das mesmas realidades de exclusão social, que não se envolveram com o crime e a violência, que seguiram seus estudos e/ou que se tornaram trabalhadores.
Ao compararmos os dois grupos, ficou evidente que eles possuíam características até certo ponto antípodas, o que exigiria ampliar a abordagem para outros grupos de adolescentes e jovens adultos de comunidades pobres para uma investigação de causalidades agregadas, a partir de técnicas quantitativas.
Assim começou a segunda etapa da pesquisa. Nela, apliquei os mesmos questionários a outros três grupos: um deles formado por jovens estudantes (de mesmo sexo e faixa etária), regularmente matriculados em escola pública estadual da periferia de Porto Alegre, e os outros dois formados por sentenciados internos no Presídio Central de Porto Alegre (de mesmo sexo e faixa etária um pouco superior), um deles com condenados por homicídio; outro com condenados por receptação.
Formulei e estimei, então, um modelo causal de fatores relativos ao desenvolvimento de condutas infracionais⁶ violentas⁷ de adolescentes e jovens adultos. Essas condutas infracionais constituem o campo onde situo o fenômeno social específico a ser explicado e que denomino disposicionalidade violenta
, na linha sugerida por Fandino Marino (2004)⁸. Aqui, uma segunda definição se faz necessária: o que chamamos de disposicionalidade violenta é uma propensão determinada, legitimada socialmente por uma matriz valorativa assentada como cultura. O conceito de disposicionalidade violenta, assim, não se reduz aos traços psicológicos perceptíveis nos indivíduos singulares sendo, antes disso, um fato social com as características alinhadas por Dürkheim de exterioridade, generalidade e coercitividade.⁹ Esta foi a razão, aliás, pela qual não empreguei a expressão disposição violenta
que está, como se sabe, muito entranhada no domínio da Psicologia. A disposicionalidade violenta, por suposto, está também no interior dos indivíduos, mas sua realidade é claramente social.
O fenômeno diz respeito ao que Gerald Allan Cohen chamou de fato disposicional
(dispositional fact). Em seu trabalho, Cohen empregou o conceito para descrever as condições sociais objetivas que aumentam a probabilidade de ocorrência de fenômenos que produzem consequências de algum modo funcionais. O exemplo oferecido