Olhos de Raposa
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Este livro faz parte da coleção Vida em pedaços, em que Carpinejar narra os melhores e piores momentos da infância e da adolescência. São lembranças dispersas que, aos poucos, vão ganhando unidade com a leitura e construindo a autobiografia do autor. Na orelha, texto de Zeca Baleiro.
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Olhos de Raposa - Fabrício Carpinejar
AMOR
DISCRETO
Conheço bem o amor discreto entre pais e filhos adolescentes. O amor fica escandaloso só depois.
É um amor tênue, quase invisível. Um pouco complicado de se detectar em espaços públicos.
Descubro agora o que meus pais enfrentaram comigo. O que sofreram. Como eu humilhava os dois sem perceber.
A mãe me levava de carro para festas e eu a obrigava parar duas quadras antes, para que ninguém me visse com ela.
– Aqui tá bom!
– Não, eu levo até ali, onde é? Não custa nada.
– Mãe, me deixa aqui. Por favor…
– Não, levo no endereço certo. Qual é?
– Chega mãe, você não me entende.
– Não quer me dizer onde vai?
– Mãe, é que gosto de caminhar.
Batia a porta e não me despedia, levava qualquer discordância como ofensa pessoal. A mãe fazia um favor e eu ainda a xingava como um taxista que não me dava troco.
Não vendi minha mãe, mas a escondia no estoque. Temia ser vítima das piadas dos amigos, e virar o filho queridinho
. Isso poderia custar a reputação de malandro, a noite com uma menina e meses de gozação entre os colegas. Como explicar que tinha vergonha de me mostrar dependente? Os filhos adolescentes acreditam na telepatia. Nada precisa ser dito, tem de ser entendido.
Receber beijo e abraço dos pais na escola era uma agressão. No máximo, um cumprimento de mão e um sinal com o rosto.
Fui buscar minha filha adolescente em seu colégio. Estou na entrada, eufórico, conversando com os seguranças do prédio e aguardando o sinal. Centenas de alunos correm, desesperados pela luz, e pulam a escada de dois em dois degraus. Eu me esforço em emoldurar seu jeito, sua mochila e seus cabelos diante do tumulto. Quero ser o primeiro a descobri-la. Vejo ela vindo, encabulada, com o uniforme branco e azul. Ponho os braços para cima, e ela passa pela lateral. Ela me dribla sem pudor. Finjo, mudo o destino do corpo, mexo na cabeça para justificar os braços erguidos.
Resmunga vamos!
, como se estivéssemos sendo seguidos. Caminho lado a lado com ela, um traficante buscando ser o mais natural possível. Tento repassar sigilosamente minha mão. Passar a cápsula de minha mão. A droga de minha mão. Ela espana os movimentos insistentes.
Andamos três quadras. As árvores cansavam suas sombras. Já havia perdido a esperança de aproximação. Nenhum assunto suspendia o mal-estar do encontro. Até que, ao virar a esquina, longe de todos, ela me abraça furiosamente:
– Paizinho, paizinho, que bom que você veio!
LINDA MULHER ESTRÁBICA:
MÃE DE MEU FILHO
Menina vesga. Menina bonita. Menina zarolha. Ana ficou olhando para dentro, devido a uma febre assustadora na infância. Um mormaço que deslocou suas órbitas. Nem o nariz dividia seus olhos. Olhos que não regressavam para jantar com o grito da mãe. Olhos de rua puxando corda. Olho esquerdo apaixonado pelo direito. Ambos conversando na hora de piscar.
Ana sofreu por ser estrábica. Sofreu pelos seus irmãos, que explicavam o que havia acontecido. Ela não se explicava. Ela conservava um olho como um brinco de pérola. O segundo olho era o estojo. Ela dizia que só usaria os dois olhos quando casasse. Menina vesga. Menina romântica. Menina zarolha.
Quando dormia, um olho permanecia acordado, coçando as costas das pálpebras. Queria ter mais cílios para se cobrir. O que pensava o olho na insônia de olho? Que não tinha vivido o suficiente para voltar ao seu lugar. Olho teimoso, birrento.
Ana nunca pediu para que tirassem o cisco do seu olho. O cisco era o próprio olho. Bem que desejava receber o sopro quente de uma boca para alinhar o firmamento. Para acalmar, com a mesma doçura cálida dos panos na febre.
Ela se enroscava nos joelhos de sua mãe. Para que um olho não fosse reparado. Com exceção da carteira de identidade, suas imagens são de lado. Ela viveu de lado.
Um de seus olhos não tirava fotografia. Não gostava de aparecer. Corria sem olhar para trás.
Ana foi julgada pelo olho. Foi constrangida pelo olho. Colegas olhavam seu olho e não a convidavam para dançar. O olho ansiava o fim da festa para voltar a ser olho, e não buraco do olho, ausência do olho, um copo na mesa. Os cabelos pretos daquele olho não conheciam o pescoço do olho.
Repare, o olho era uma sobrancelha. Uma terceira sobrancelha. Uma segunda sombra.
O olho abraçava sem mostrar o rosto.
O olho tremia, encerava o piso da pupila, para receber visita. Ninguém vinha, a casa limpa