A Pedagogia Waldorf: Cultura, Organização e Dinâmica Social – Volume 1
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A Pedagogia Waldorf - Rosely Aparecida Romanelli
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO EDUCAÇÃO, TECNOLOGIAS E TRANSDISCIPLINARIDADE
Esta pesquisa foi realizada
com bolsa concedida pela
Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –,
durante o período de junho de 1997
a novembro de 1999.
Aos meus filhos,
San, Flora, Tauana,
Rafael e Clara.
E a todas as crianças
e jovens
do Brasil e do mundo.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Profª Cecília, por seu apoio tão precioso.
Aos professores Plínio e Felícia, por seu incentivo.
Aos amigos, antropósofos ou acadêmicos, ou não, que acreditaram que eu concluiria o trabalho.
Se tu queres pôr tua própria vivência interior do mundo espiritual em harmonia com a consciência intelectual de teu meio ambiente, de forma a possibilitar uma dominação eficaz do materialismo, cada vez mais expressivo como cosmovisão e forma de vida, forçosamente deves adotar primeiro a atitude de consciência intelectual do homem do século XIX. Deves te enfiar na pele do dragão. Somente se dominares os métodos do pensar científico-natural e discernires perfeitamente o teor de verdade limitado da cosmovisão científico-natural, tu poderás te tornar eficaz, no Ocidente, uma cosmovisão espiritual.
R. STEINER
PREFÁCIO
O livro que ora se apresenta reúne contribuições importantes para a área da Educação. Traz os fundamentos da Antroposofia e da Pedagogia Waldorf de Rudolf Steiner. O especial, nesta obra, é a discussão aprofundada considerando autores que se ocupam do imaginário e da complexidade, como Durand e Morin. Iniciando pelo cuidadoso exame da biografia de Rudolf Steiner e de como a sua obra é expressão de um processo de autoconhecimento e de autodesenvolvimento, a autora percorre o idealismo alemão, em busca dos fundamentos do pensamento steineriano em Goethe. A teoria do conhecimento de Rudolf Steiner é então apresentada e a proposta da Pedagogia Waldorf, baseada em sua compreensão do desenvolvimento humano. Esta obra conta, ainda, com um panorama do movimento Waldorf no Brasil e no mundo.
Seguindo percurso iniciado em outras obras (Veiga; Stoltz, 2014; Stoltz; Veiga; Romanelli, 2015) e pelo grupo de pesquisa do CNPq Pedagogia Waldorf, busca-se dar continuidade ao debate científico qualificado do pensamento de Rudolf Steiner, entendendo-se este como possibilidade em direção a uma formação mais humana e promotora de saúde.
É cada vez mais premente a busca por alternativas no processo educativo. Isto também em virtude da falência de modelos tradicionais enciclopédicos e conteudistas, que, na educação, investem no acúmulo de informações. A Pedagogia Waldorf é expressão de um movimento contrário a essa vertente conteudista. Sua proposta orienta-se na direção de um pensar vivenciado em todos os níveis de ensino¹. É a proposta de prática pedagógica mais original de que dispomos. Com quase cem anos de atuação, pode-se dizer que nunca se evidenciou como tão atual.
O aumento da procura de escolas Waldorf no mundo está relacionado à necessidade de resposta a desafios contemporâneos, como desigualdades econômica e social, violência, exploração inconsequente da natureza, individualismo, busca de qualidade de vida e de bem-estar. A Pedagogia Waldorf apresenta a proposta de envolvimento com o mundo, mas o faz a partir do desenvolvimento de uma individualidade ética. Nessa proposta, sentidos, intelecto, emoções e consciência são chamados de forma integrada a religar-nos com o que é fundamental.
O sentido, na Pedagogia Waldorf, é de reencantamento
com a vida e com o mundo. Implica em conhecimento e ação enquanto unidade indissociável. Uma introdução aprofundada a essa forma de ver e fazer educação encontra-se neste livro e é um convite à inspiração de muitos outros que busquem uma educação mais adequada às necessidades do ser humano.
Profª Drª Tania Stoltz
Professora permanente no mestrado e doutorado no PPGE-UFPR
APRESENTAÇÃO
A Antroposofia e a Pedagogia Waldorf têm como meta a educação para a ação social, priorizando o relacionamento do Homem com o Homem, considerado na sua essência divina e espiritual. Neste livro apresento seus fundamentos que podem enriquecer a atuação docente mesmo em instituições não ligadas à Antroposofia. Parto do pressuposto de que uma ação docente que utilize os seus princípios pode promover a formação de um ser humano harmoniosamente desenvolvido em seus vários aspectos, considerando-o como ser multifacetado. Ao despertar todas as qualidades e disposições inatas como inteligência, conhecimento, vontade, sociabilidade, consciência crítica, religiosidade etc., o indivíduo assim formado poderá estabelecer um relacionamento sadio com o meio sociocultural e com o meio ambiente.
Assim, discuto sobre o cerne da ação docente na Escola Waldorf, buscando um entendimento da mesma, verificando as possibilidades de aplicação em outras instituições, outros espaços, por qualquer pedagogo, cuja vontade seja enriquecer sua atuação.
A Antroposofia traz respostas para questões que me incomodam e me estimulam a buscar o elo entre ciência e religião e posicionamento político-social. Por ser uma cosmovisão que une a visão científica à espiritual, abrange os mais diversos campos de atuação humana e proporciona um desenvolvimento integral da individualidade humana. Consequentemente, ao tornar a sociedade um lugar em que os indivíduos podem se desenvolver integralmente surge espaço para o exercício de um profundo respeito do homem por si mesmo, que se enxerga como um ser digno de respeito e vê o outro como merecedor da mesma regalia.
Ser professor Waldorf exige a própria autoeducação para se tornar um ser humano livre de preconceitos, capaz de exercer liberdade e respeitar a liberdade alheia, por meio de um conhecimento profundo da natureza humana, num permanente diálogo do interior desse ser humano com seu exterior, rumo à amplidão do espírito, a uma visão clara e ao desenvolvimento da imaginação e da criatividade. O educador que galga esses patamares é capaz, dentro do prisma antroposófico, de exercer a compreensão necessária para a formação de crianças e jovens.
A Pedagogia Waldorf, de acordo com essa cosmovisão, está baseada no conhecimento de cada fase do desenvolvimento infanto-juvenil e procura trabalhar não só as dificuldades que surgem no momento vivido, mas aquilo que delas poderia repercutir num futuro próximo ou distante. A meta é um desenvolvimento sadio do pensar, sentir e querer. Essa visão integral do desenvolvimento cognitivo aparece como uma versão ampliada da imagem cristã da bondade que conduziria o homem aos céus. Seria uma forma de unir o conhecimento do homem ao conhecimento espiritual.
E então, por meio desse conhecimento, oportunizar a construção da democracia, da paz e da prevenção contra a perda da capacidade de se indignar diante da ausência de uma ética e de uma compaixão no atual estágio de progresso da civilização e da ciência. Dessa forma, o indivíduo considera-se intelectualmente rico quando seu conhecimento se transforma em sabedoria. O homem culto é disciplinado sem deixar de ser livre. E, sendo livre, não necessita ser um individualista, podendo ser agente de construção de uma democracia e de uma cidadania que conduzem à felicidade.
A ponte entre o conhecimento antroposófico e o conhecimento acadêmico necessita de um alicerce teórico consistente que situe paradigmaticamente a cosmovisão antroposófica de Rudolf Steiner, identificando as influências que o pensamento alemão, de modo especial o de Goethe, exerceu sobre ela. A Antroposofia se alicerça sobre uma Teoria do Conhecimento, que fundamenta todo o pensamento e a ação do homem e sua evolução. Segundo Steiner (1951), para entender essa teoria torna-se necessário percorrer a trajetória evolutiva pela qual o ser humano passou até os dias de hoje buscando um entendimento dessa trajetória pela superação do materialismo.
Aprofundar-se no ideário alemão situa Rudolf Steiner e a Antroposofia, tornando-a muito mais compreensível, deixando de ter ares visionários e místicos, explica-se por suas próprias origens, mais próximas da visão cristã ocidental. Num momento em que há fortes tendências para uma transformação, é pertinente analisar a teoria antroposófica por intermédio de Gilbert Durand e Edgar Morin que discutem campos de conhecimento e as rupturas que ocorrem em virtude da separação aleatória entre imagem, símbolo e razão, situando Steiner dentro de um paradigma.
A noção chave da trimembração é aplicada por Steiner em sua elaboração teórico-prática. O homem possui corpo, alma e espírito e pertence aos mundos físico e espiritual, permeados pela influência de um mundo astral. Ao nascer no mundo físico, desenvolve seus corpos sutis durante três septênios, para poder atuar no mundo como um indivíduo, com habilidades específicas, cultivadas pela bondade, pela beleza e pela verdade, trabalhadas por procedimentos pedagógicos adequados.
SUMÁRIO
capítulo 1
RUDOLF STEINER COMO AUTOR DE UMA VISÃO TEÓRICA DIFERENCIADA
1.1 Aspectos biográficos
1.2 O imaginário alemão e a influência de Goethe na cosmovisão steineriana
capítulo 2
A ANTROPOSOFIA E SEUS PILARES TEÓRICOS
2.1 A cosmovisão antroposófica
2.2 A questão da autonomia do ser humano: uma teoria do conhecimento
2.3 A questão social e a trimembração
CAPÍTULO 3
A PEDAGOGIA WALDORF
3.1 A arte de educar e suas características
3.2 As propostas de atuação cotidiana
3.3 Os septênios e a metodologia que se aplica a cada um deles
3.3.1 O primeiro septênio: o mundo é bom
3.3.2 O segundo septênio: o mundo é belo
3.3.3 O terceiro septênio: o mundo é verdadeiro
3.4 A prática diária na sala de aula
CAPÍTULO 4
A ANTROPOSOFIA E AS ESCOLAS WALDORF NO BRASIL E NO MUNDO
4.1 A relevância da Escola Waldorf nos dias de hoje – sua estrutura e sua dinâmica social
4.2 Sua atuação no Brasil e no mundo
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA
capítulo 1
RUDOLF STEINER COMO AUTOR DE UMA VISÃO TEÓRICA DIFERENCIADA
1.1 ASPECTOS BIOGRÁFICOS
Não importa que eu tenha
Uma opinião diferente da do outro,
E sim que o outro venha a encontrar
O certo a partir de si próprio,
Se eu contribuir um pouco para tal
Rudolf Steiner
A biografia de Rudolf Steiner (1861-1925) pode ser apresentada sob diferentes aspectos. Neste livro, considerei relevantes as correntes opostas que Steiner lutou por harmonizar durante toda a sua vida, desde a infância. Polaridades como Oriente-Ocidente, interior-exterior, natureza-técnica, escola-igreja, mundo espiritual-mundo sensorial, ciência-religião, sensível-suprassensível, razão-intuição fazem parte de seu arcabouço conceitual tanto quanto de sua vida pessoal, pois Steiner construiu sua Teoria do Conhecimento como consequência de uma vivência de suas próprias ideias. Sua cosmovisão desenvolveu-se pela necessidade de demonstrar exteriormente, ou seja, para o mundo, tudo aquilo que ele dizia vivenciar interiormente.
Sua narrativa autobiográfica começa descrevendo as belíssimas paisagens naturais onde nasceu e viveu durante a infância. No início da descrição ele chama a atenção para o fato de seu lugar de nascimento, Kraljevec, (na época Hungria, hoje Donji Kraljevec, município em Medimurje, Croácia, mas que já foi também Yugoslávia), ter uma localização entre Leste e Oeste europeus. Steiner viveu sua infância entre a Hungria e a Baixa Áustria, imerso na natureza exuberante da região e, no entanto, vivendo também a presença da tecnologia da época, pois seu pai era telegrafista da South Austrian Railway. Steiner afirmava que sua existência interior sempre apresentou ricas experiências imaginativas e espirituais, paralelamente às percepções sensoriais e experiências do relacionamento humano cotidiano. A religiosidade desenvolveu-se na percepção adquirida nos cultos religiosos, quando menino ainda, podia vislumbrar a mediação entre os mundos sensorial e suprassensorial que era exercida pelo padre da aldeia.
Steiner começa muito cedo a preocupar-se com o caminho que ele deve tomar para justificar sua vivência interna – a qual ele classifica como um conhecimento dos mundos espirituais – de uma maneira aceitável perante o mundo científico de sua época. O contato com a realidade espiritual e o conhecimento científico e tecnológico de sua época desde a infância lhe fazem acreditar na necessidade e na possibilidade de um entendimento lógico do que ocorre ao nível espiritual. É uma grande alegria quando pode tomar contato com a Geometria, a qual ele considera situada puramente no plano espiritual. O mito pessoal de Steiner se resume na sua própria indagação: "Como se pode abrir para o pensar o mundo do espírito?"².
Paralelamente às vivências com a Geometria, Steiner pode conviver com pessoas que frequentam a estação na qual seu pai trabalha e que com ele discutem política e religião, isso tudo propiciado pela atmosfera de catolicismo liberal³ em vigor na Áustria de sua época. Seu pai era um livre pensador e a família não pertencia a nenhuma religião. A curiosidade de menino lhe vale algumas amizades no meio desses frequentadores da estação, como o médico de Wiener-Neustadt, que lhe fala sobre Literatura Alemã pela primeira vez, discorrendo-lhe sobre Lessing, Goethe e Schiller⁴. Nessas conversas, Steiner recebe as primeiras noções sobre o que é belo e o que não é, em questões literárias, pela opinião do médico.
Aos dez anos, Rudolf Steiner inicia seus estudos no Liceu em Wiener-Neustadt. Seu pai sonha com sua formação em engenharia para a obtenção de um cargo futuro na South Austrian Railway. A vida urbana não se mostra tão simples como a do campo, pois sua absorção pela vida de pensamentos o deixa alheio ao mundo externo. O excesso de experiências e informações do espaço urbano, com suas casas comprimidas umas às outras o confunde. Para compensar, o Liceu lhe traz oportunidade de desenvolver o conhecimento necessário para entender e responder suas questões sobre a vida e as vivências anímicas.
A oportunidade de encaminhar seus questionamentos surge por volta de seus onze anos, quando o reitor do Liceu, Heinrich Schramm, publica um artigo intitulado A força de gravitação vista como um efeito do movimento
. Para entendê-lo, Steiner recorre ao livro escrito pelo reitor chamado O movimento geral da matéria como causa geradora de fenômenos naturais. Menino ainda, ele não consegue compreender todo o conteúdo do livro, mas com o auxílio das aulas ministradas por outros dois professores, Laurenz Jelinek, físico e matemático e Georg Kosak, que leciona Geometria, consegue entender o suficiente para acreditar ser possível explicar os processos que para ele se tornam claros pela sua vivência interior ao entender a natureza. Ele anseia por explicar aquilo que intui como um ser dos fenômenos naturais⁵.
Assim, à medida que cresce e adquire conhecimento, Steiner busca no estudo da filosofia a fundamentação para obter a harmonização que, em seu entendimento, deve ocorrer entre o ensinamento religioso e o pensamento humano. Durante seus estudos no Liceu, em Wiener-Neustadt, ele lê, em edições de bolso, obras dos filósofos eruditos. Aos 14 anos ele lê a Crítica da Razão Pura, de Emanuel Kant. O anseio pelo Ser, regente dos fenômenos naturais, está ligado à vontade de entender como o pensar humano se relaciona ao entendimento da natureza. Intriga-o também qual a forma de aliar essas conclusões aos ensinamentos religiosos que para ele fazem parte do caminho humano ao suprassensível. Por isso, ele devota tempo de seu estudo aos livros de Dogmática, Simbolística e História Eclesiástica. Steiner entende o pensar como uma atividade desenvolvida da mesma fonte de força que contém em si as coisas e os processos do mundo. Nessa época, ele retoma contato com o médico com quem por vezes conversava na estação ferroviária em Neudörfl, cujo nome Steiner não chega a citar⁶. Frequentando sua casa, tem oportunidade de estreitar amizade e dele obter emprestadas algumas obras de Lessing⁷. Além de seu interesse por obras literárias e filosóficas, o interesse autodidata de Steiner o faz adquirir a História Universal de Rotteck, e mais tarde estuda também a obra de Johannes von Müller⁸ e a de Tácito. Esses estudos autônomos ajudam-no, segundo ele próprio, a vivificar o que ele aprende na escola. Ele estuda o grego e o latim e com todo o conhecimento adquirido é então capaz de ministrar aulas de reforço aos seus colegas de classe e aos mais jovens, de outras turmas. Isso o ajuda a aumentar seus rendimentos, aliviando um pouco as despesas que os pais têm com ele.
Quando inicia seus estudos na Politécnica de Viena, um dos livros que primeiro adquire é a Doutrina da Ciência, de Fichte. Apesar do sonho paterno, a tendência interior de Steiner leva-o a concluir estudos filosóficos e literários