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O resto do sertão: história e modernidade em grande sertão veredas
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Ebook296 pages9 hours

O resto do sertão: história e modernidade em grande sertão veredas

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A obra de Guimarães Rosa tem sido alvo de intensa investigação há pelo menos cinco décadas no Brasil, trabalho crítico que, de alguma forma, definiu alguns vetores básicos da crítica brasileira. De maneira geral Rosa foi sempre encarado como um escritor extraordinário e que devia ser tratado em seus próprios termos. Este livro, no entanto, tem como objetivo trazer Grande sertão: veredas para o chão da história e, com isso, discutir de que maneira a obra rosiana se abre para a modernidade, sendo profundamente afetada pelo moderno na política, no direito e na ética. Trata-se também de um diálogo com a própria crítica, sobretudo no tocante à questão arcaico versus moderno ao qual se tenta construir uma nova visada.
LanguagePortuguês
Release dateJan 1, 2015
ISBN9788581928265
O resto do sertão: história e modernidade em grande sertão veredas

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    O resto do sertão - Felipe Bier

    2006a.

    Em uma das passagens mais comentadas em toda crítica rosiana que se debruça sobre Grande Sertão: veredas – decerto por sua concentração de temas de real importância para a sustentação do romance – Riobaldo suspende sua narrativa labiríntica e, partindo deste evento, inicia o relato cronologicamente organizado de sua vida. Trata-se do encontro com o Menino, no porto do rio de-Janeiro, acontecimento que significou um despertar na vida do jovem Riobaldo: fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro.¹⁴. Com efeito, neste episódio encontram-se os elementos que, posteriormente, encontrarão desdobramentos, ramificações e até mesmo importante inversões¹⁵, o que faz dessa travessia não só importante marco alegórico, mas, sobretudo sustentáculo de linhas de força que atravessam a narração de Riobaldo. Como porta de entrada para a temática do poder patriarcal no romance, sugere-se, portanto, que se detenha sobre um ponto extraído do evento que, quando explorado, revela sua conexão com outras camadas em que essa questão atua.

    Riobaldo afirma que tinha por volta de quatorze anos e havia viajado algo em torno de cinco léguas com sua mãe para, no porto, pagar uma promessa feita por ela visando a cura de uma doença que acometera o narrador quando jovem: ele pediria esmola até acumular o suficiente para, com metade da quantia arrecadada, pagar-se uma missa, e, com a outra, botar o dinheiro numa cabaça que flutuaria no São Francisco até chegar ao Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa, na Bahia. No terceiro ou quarto dia em que lá estava, Riobaldo nota a chegada de dois ou três homens de fora, comprando alqueires de arroz¹⁶: eles atravessavam as sacas do cereal para o outro lado do rio, onde esperava um carro de boi que as transportaria (o que, aos olhos do observador Riobaldo, denotava a vinda de grandes distâncias). Logo em seguida, Riobaldo afirma avistar um menino, encostado em uma árvore, pitando um cigarro. Ao dele se aproximar, o menino lhe diz que aquele comprador era seu tio e que eles moravam num lugar chamado Os-Porcos. À pergunta se o lugar era bom, o menino responde afirmativamente, e continua: ‘Meu tio planta de tudo. Mas arroz este ano não plantou, porque enviuvou da morte de minha tia...’¹⁷. Nesse momento, Riobaldo percebe então, um tanto quanto espantado, que o menino parecia ter vergonha de estarem lá, tendo de comprar a guarnição para completar o suprimento alimentar da fazenda.

    À essa altura, o narrador já envolve suas palavras com o teor da admiração que passa a nutrir pelo garoto bonito, de feições claras, testa alta e grandes olhos verdes, de tom de conversa ‘adulta e antiga’. Contudo, ao lado da fruição advinda da contemplação do menino e de seus atributos, Riobaldo sente em si despontar um sentimento análogo ao apresentado logo antes pelo Menino: quase como fruto da profunda identificação que sentira com o rapaz, dá-se o afloramento do mesmo sentimento de vergonha, que notara anteriormente no jovem Diadorim; todavia, este mesmo vetor apresenta-se, em Riobaldo, com seu sinal invertido:

    Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeiras – só meu companheiro amigo desconhecido. Escondido enrolei minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de promessa, tive vergonha de estar esmolando¹⁸.

    À primeira vista, as condições materiais de vida que despertam ambas as manifestações de vergonha parecem condicionar o enraizamento heterogêneo de um mesmo sentimento.

    Com efeito, parece haver um grande desnível entre a vergonha pela insuficiência de um grande latifúndio, motivado pelo trabalho de luto sobre a morte de sua matriarca, e a vergonha pela posição de pedinte. No entanto, a curiosa conexão de um mesmo afeto nascido de lugares sociais aparentemente tão diversos chama a atenção para a necessidade de se investir contra a construção de um fácil antagonismo entre as condições dos jovens Riobaldo e Diadorim.

    O episódio à beira do rio de Janeiro serve como importante ponto de curvatura na obra e, sem dúvida, um dos elementos que ele inflexiona são os diferentes arranjos do poder patriarcal dispostos em diversas camadas do romance, expostos na curiosa identificação entre Riobaldo e o Menino. Neste sentido, o episódio serve como base para um procedimento que servirá à construção de outras personagens e situações narrativas: a saber, a identificação entre dependente e proprietário através da fissura de uma situação social estável. O pobre Riobaldo e sua mãe são empurrados para as franjas do mundo patriarcal, mesmo movimento que impele o dono de terras a abrir mão da autarquia da fazenda e colocar-se no mercado. Note-se que a identificação entre dependente e proprietário surge quase como sintoma de algo que ocorre no subterrâneo do mundo social; sintoma que encontra expressão enquanto vergonha. Cabe à crítica desenredar essa urdidura e evidenciar como sua disposição – e suas torções, inversões e pontos de concentração – revela verdades que, na grande maioria das ocasiões, ultrapassam aquelas obtidas pelo intento meramente fotográfico de um arranjo social.

    Neste sentido, buscar-se-á, neste primeiro momento do texto, delinear de que maneira se deu a tradução em forma literária das principais engrenagens do poder patriarcal que atuavam no sertão do Brasil: assim, sobretudo através das arestas e frestas que marcam esse deslocamento – como a já observada vergonha – é que se evidenciarão as peculiaridades da fundação do edifício estético erguido por Guimarães Rosa.

    1.1 O Escuro Nascimento

    Riobaldo, mesmo antes de mencionar o episódio da travessia do rio de-Janeiro, ao trazer à tona suas mais distantes memórias de infância, alude à condição material que marcava sua vida e de sua mãe:

    O senhor sabe: a coisa mais alonjada de minha primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem chamado Gramacêdo... Gente melhor do lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes; quando saíram de lá, nos trouxeram junto, minha mãe e eu. Ficamos existindo em território baixio da Sirga, da outra banda, ali onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe. Eu estava com uns treze ou quatorze anos...

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