O leitor e o texto: a função terapêutica da literatura
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Para ilustrar o tema da leitura, é fácil trazer a representação de uma poltrona confortável, compor a sugestão de um livro aberto, em algum cenário tranquilo, onde um leitor desfrutará de suas páginas. A literatura é prazer. No entanto, sem deixar de sê-lo, a experiência da leitura nem sempre se dá em lugares previsíveis. Antropólogos, sociólogos, bibliotecários, pedagogos, psicopedagogos, professores e psicanalistas, e até um economista, reunidos neste livro, mostram-nos a função dos textos, lidos ou ouvidos, em suas respectivas práticas. Lemos, então, as histórias, que não são ficções, que eles nos contam a respeito daquilo que a leitura traz de essencial para seus ofícios."
Camila Salles Gonçalves
"Resumindo em poucas palavras, o progresso da racionalidade e da cientificidade e seus frutos tecnológicos pouco contribuíram para a humanização entre os homens. Resta a pergunta: temos saída? Como educar a criança para a vida? Como humanizar a cria humana transmitindo o patrimônio cultural?
A sugestão é que pais e professores possam ler para seus filhos/alunos textos de literatura pelo prazer de ler e de intercambiar experiências. Pois, ao nos duplicarmos, por meio da ficção, desse fingimento que é a literatura, estamos desfazendo a nós mesmos para escapar da prisão em que nos confinam as determinações históricas, culturais ou psicológicas. Cura-se o homem de sua insuficiência de ser mortal e desejante ao mesmo tempo."
Leda Maria Codeço Barone
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O leitor e o texto - Leda Maria Codeço Barone
Editora Appris Ltda.
1ª Edição – Copyright© 2016 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.
Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.
Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI
"A verdadeira vida, a vida por fim esclarecida e descoberta,
a única vida, portanto, plenamente vivida, é a Literatura."
Marcel Proust
APRESENTAÇÃO
"A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem
a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos."
Manoel de Barros (O livro sobre o nada)
Os textos aqui coletados são, em sua maioria, frutos do trabalho de alunos e orientandos que cursaram a disciplina "Literatura em espaços em crise: a função terapêutica da literatura" ministrada no programa de Pós-Graduação em Psicologia Educacional do Centro Universitário FIEO. Alguns desses são excertos de dissertações de mestrado; outros serviram de base para nossas discussões durante o curso ou ainda foram inspirados a partir das questões surgidas ao longo do trabalho. Dois se juntaram, posteriormente, à organização inicial por tratar de assunto capaz de enriquecer a coletânea.
A organização dos textos seguiu o seguinte critério: aproximar textos cujo cerne pudesse sustentar um eixo de discussão. Assim, na Parte I – Literatura: algumas considerações teóricas, encontram-se artigos sob a insígnia da teoria, nos quais os fundamentos que serão apresentados servem como esteio para o estudo e experiência com a literatura. É o momento de construir embasamentos para uma nova prática que se descortina na atualidade. Os momentos de crise podem ser instantes de criação e ficção. Relatar uma história que padece na garganta, poder se identificar com personagens, saber que sua dor é de algum modo compartilhada, permitir que a função terapêutica da literatura produza novas significações são pontos para se sublinhar na leitura dessa parte do livro. Esses capítulos, portanto, promovem uma discussão teórica diante da questão dessa função em nossa civilização e como de algum modo ela responde ao mal-estar.
Existe um lugar apropriado para se ler uma história, um texto literário ou um livro? Entendemos que cada leitor tem seu estilo literário como também o local preferido para ler, que podem ser públicos ou privados e que variam de acordo com a necessidade ou simplesmente, com o gosto de cada um.
Na Parte II – Lugares de Leitura apresentamos relatos de trabalhos realizados a partir do oferecimento de leitura em diferentes lugares. Neles, os animadores/leitores do A.C.C.E.S (Actions Culturelles Contre les Exclusions et les Ségrégations) em Paris, nos contam um pouco de suas vivências e experiências a partir das leituras realizadas na biblioteca, no hospital, na escola maternal, na rua e até mesmo na prisão.
Apesar de públicos distintos, em todos eles, sobressalta-se o admirável valor e potência da literatura quando revela situações humanas que refletem a nossa própria condição de vida. A narrativa dessa condição monta um enredo, dá forma aos sentimentos e quando isso ocorre, à visão do mundo, a literatura nos organiza, nos liberta do caos e nos humaniza.
A última parte do livro, Parte III – Experiências com a Literatura se configura como o lugar e tempo das práticas em seu modus operandi. Aqui encontraremos trabalhos que versam sobre oficinas de leitura e escrita, situações em que a leitura de uma obra literária serviu para novas compreensões sobre a vida, e até mesmo para esclarecer a teoria psicanalítica. São relatos vivos que experimentam diferentes caminhos por onde a literatura pode fluir, construir novos significados e relançar nosso olhar para o impensável. Momento de vivenciar o desarrumar da linguagem, que, como afirma Manoel de Barros, expressa nossos mais fundos desejos.
Leda Maria Codeço Barone
Beethoven Hortencio Rodrigues da Costa
Sonia Saj Porcacchia
PREFÁCIO
A literatura é encantamento. Histórias contadas, narrativas, evocam o poder da imaginação, que torna presentes outros mundos, outros tempos. O leitor e o ouvinte são seduzidos pelo escritor e pelo contador de histórias, que os transportam para outras dimensões da existência e da convivência. Trata-se de viagens que têm retorno e que permanecem, transformando o dia a dia e a relação com outrem.
Para ilustrar o tema da leitura, é fácil trazer a representação de uma poltrona confortável, compor a sugestão de um livro aberto, em algum cenário tranquilo, onde um leitor desfrutará de suas páginas. A literatura é prazer. No entanto, sem deixar de sê-lo, a experiência da leitura nem sempre se dá em lugares previsíveis. Antropólogos, sociólogos, bibliotecários, pedagogos, psicopedagogos, professores e psicanalistas e até um economista, reunidos neste livro, mostram-nos a função dos textos, lidos ou ouvidos, em suas respectivas práticas. Lemos, então, as histórias, que não são ficções, que eles nos contam a respeito daquilo que a leitura traz de essencial para seus ofícios.
Aprendemos sobre os efeitos do texto no ouvinte ou no leitor, desde a catarse, isto é, desde a liberação de emoções desencadeadas e liberadas, de que já falava Aristóteles, até vivências reparadoras. Somos lembrados de que o caráter liberador da literatura tem sido sobejamente reconhecido ao longo do tempo e basta pensar no papel que a literatura desempenhou nos campos nazistas, no genocídio armênio e no exílio stalinista
. Leitores de Walter Benjamin, autores apresentam-nos um momento de Narrativa e Cura
(2002), em que o filósofo, após testemunhar a cena em que a mãe conta histórias, ao pé de sua cama, a um filho doente, pergunta: a narração não criaria, muitas vezes, o clima apropriado e a condição mais favorável de uma cura?
.
Vários pensadores, dentre eles Freud, dedicaram-se a investigar os inegáveis efeitos terapêuticos da literatura e a refletir a respeito. A nós, leitores deste livro, é dado acompanhar um percurso traçado com clareza, por meio de uma brilhante abordagem de teorias. Assim, entramos, por exemplo, no campo em que a psicanálise reconhece a literatura como a mestra que nos faz conceber a transitoriedade da existência, a morte e, às vezes, a encontrar modos de suportar ausências temporárias ou definitivas.
Ao longo deste livro, deparamo-nos com questões a respeito dos traumas na infância, do luto e até da loucura. Autoras perguntam: Mas a literatura teria mesmo este poder de cura? Poderia ela resgatar as forças de vida nos momentos de crise? E por que a literatura teria este poder?
.
Somos levados, por meio de teorias corroboradas por estudos de caso e oficinas, a constatar que as histórias contadas contam também as nossas histórias. Elas as despertam e nos fazem rever seus sentidos. Por outro lado, já na infância, quando são imodificáveis, as histórias educam-nos para conviver com o inevitável e com o fato da morte. Ainda, elas têm o papel de estabelecer nossa entrada na ordem simbólica e participam de nossa construção de identidade, ou seja, desempenham papel estruturante.
Os autores não nos dispensam de entrar em contato com ansiedades e com as adversidades da infância, com os ambientes carentes ou hostis e o desamparo e a fragilidade vividos. Relacionando-se com crianças de diferentes idades, em alguns casos, junto com suas famílias, eles criam oficinas de leitura e de contação de histórias, integradas no processo de alfabetização. Além do puro prazer, de por a imaginação para brincar, oferecem aos participantes oportunidades para encontrar tanto formas de expressão, quanto um espaço de intimidade e de visualização de si. As concepções de métodos de alfabetização, aqui expostas junto com descrições da prática, refletem os fundamentos do pensamento de Diatkine, segundo o qual a criança muito pequena distingue a informação da ficção, embora as duas funções se desenvolvam conjuntamente e utilizem formas linguageiras vizinhas
.
Aprendemos também, por meio do trabalho que utiliza a literatura em um grupo de alfabetização de idosos, considerando que estes não deixam de ser indivíduos em desenvolvimento, que as oportunidades trazidas pelas narrativas não cessam na infância nem nas demais etapas da vida. Durante oficinas nas quais são ouvintes de histórias, algumas, contos de fadas, os participantes falam de suas memórias, das identificações com emoções protagonizadas por personagens, expressam os sentidos que vêm dando a suas histórias de vida.
No conjunto de estudos que percorremos, nem mesmo os pontos de vista de educadores que integram a leitura em suas classes de alfabetização deixam de ser abordados. Investiga-se o quanto a literatura é utilizada de modo pragmático, a serviço da educação formal, que mantém o status quo, e o quanto ela é posta para funcionar em prol do livre pensar, que é o único capaz de possibilitar o tornar-se sujeito não assujeitado.
Vale destacar a diferença entre uma existência adaptada, em que a criança é afastada de sua singularidade e aquela em que ela encontra um meio propício para se tornar capaz de autoconceito, isto, de uma atitude valorativa sobre si mesma. Essa possibilidade é relacionada, por outros autores, com efeitos da leitura de histórias, em classes de alfabetização.
No final do livro, encontramos a homenagem à professora que, por meio da literatura de ficção, mostrou, para alunos sem experiência em clínica psicanalítica, o que é a loucura. A partir de um conto de Marguerite Duras, ela introduziu a teoria da psicose segundo Lacan. Esta, sustentada pela leitura singular da obra de James Joyce, feita pelo psicanalista, que nos é apresentada. Temos o prazer de encontrar, até mesmo nesse caso, uma escrita capaz de transmitir com clareza um pensamento complexo. O destaque deve ser feito porque Lacan tem sido pretexto para textos ou palestras que utilizam jargão indecifrável e pretensioso.
Leda Maria Codeço Barone, psicanalista e professora universitária, ministrou o curso Literatura em espaços em crise: a função terapêutica da literatura
, em programa de pós-graduação. O curso deu origem a esta obra, cujos textos, além dos seus, foram compostos por alunos e orientandos, na maioria. Outros, como o de Diatkine, foram acrescentados devido a sua compatibilidade com o temário e à acuidade de suas abordagens. O principal critério de organização foi aproximar escritos que ensejassem o surgimento de eixos de discussão. Entretecidos com livros e artigos, elaborados com perspectivas formadas por diversos campos do conhecimento, que inspiraram a todos, como os de Diatkine, Antonio Candido, Michèle Pétit, Fabio Herrmann, cada um dos textos produz a reverberação em um outro, movida por uma fina costura estética.
Camila Salles Gonçalves
SUMÁRIO
PARTE I
LITERATURA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
CAPÍTULO 1
ENTRE O PRAZER E A REALIDADE: A LITERATURA
LEDA MARIA CODEÇO BARONE
CAPÍTULO 2
LEITURAS E DESENVOLVIMENTO PSÍQUICO
RENÉ DIATKINE
CAPÍTULO 3
O LEITOR E O TEXTO: FUNÇÃO TERAPÊUTICA DA LITERATURA
LEDA MARIA CODEÇO BARONE, MARIA DE LOURDES MANZINI COVRE & CLEOMAR AZEVEDO
CAPÍTULO 4
TALKING CURE. READING RELIEF?
HUGO JULIANO DUARTE MATIAS
CAPÍTULO 5
UMA LEITURA DO CONTO DE ESCOLA
, DE MACHADO DE ASSIS
MARIANA PEREIRA DOS REIS & VERA HELENA PERES JAFFERIAN
PARTE II
LUGARES DE LEITURA
CAPÍTULO 6
NA BIBLIOTECA
JOËLLE TURIN
CAPÍTULO 7
NO HOSPITAL
CLAUDE GUÉRIN
CAPÍTULO 8
NA ESCOLA MATERNAL
MARIE-CLAIRE BRULEY
CAPÍTULO 9
NA RUA
FRANÇOISE FONTAINE
CAPÍTULO 10
NA PRISÃO
JOËLLE TURIN
PARTE III
EXPERIÊNCIAS COM A LITERATURA
CAPÍTULO 11
BRINCAR PARA LER E LER PARA BRINCAR
PATRÍCIA BOHRER PEREIRA LEITE
CAPÍTULO 12
A LITERATURA COMO PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO
SONIA SAJ PORCACCHIA & LEDA MARIA CODEÇO BARONE
CAPÍTULO 13
OFICINA DE LITERATURA E O AUTOCONCEITO
ENEIDA PENA PEREIRA TORRES
CAPÍTULO 14
REPRESENTAÇÃO SOCIAL SOBRE OUVIR HISTÓRIA COM CRIANÇAS COM DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM
MARINA MALTA FARINA & MARIA LAURA PUGLISI BARBOSA FRANCO
CAPÍTULO 15
REFLEXÕES SOBRE EXPERIÊNCIAS DE OFICINA DE LEITURA EM UMA TURMA DE ALFABETIZAÇÃO ELAINE DA S. FERRETTI BARBIÉRI, MICHELE BARROS & SILVIA MARIA PEREIRA
CAPÍTULO 16
OFICINAS DE LEITURA COM IDOSOS COMO RESSIGNIFICAÇÃO DAS PERDAS
JANAÍNA DA SILVA GONÇALVES FERNANDES & LEDA MARIA CODEÇO BARONE
CAPÍTULO 17
LEITURA DE LITERATURA: O QUE PENSAM OS PROFESSORES?
VALDEMIR BEZERRA DA SILVA & LEDA MARIA CODEÇO BARONE
CAPÍTULO 18
CONTRIBUIÇÕES DAS OFICINAS DE LEITURA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES/LEITORES DE LITERATURA
JOSE GERALDO GUIDOTI
CAPÍTULO 19
UMA LEITURA DE LE RAVISSEMENT DE LOL V. STEIN: HOMENAGEM A MARIA LÚCIA DE ARAÚJO ANDRADE
BEETHOVEN HORTENCIO RODRIGUES DA COSTA
AUTORES
PARTE I
LITERATURA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
CAPÍTULO 1
ENTRE O PRAZER E A REALIDADE: A LITERATURA
Leda Maria Codeço Barone
I – O pano de fundo
Vivemos um momento de contrastes marcantes. O desenvolvimento da ciência permite, nos dias atuais, o máximo de progresso tecnológico sem o correspondente desenvolvimento das relações entre os homens. Um momento de máxima racionalidade na produção de novas tecnologias e bens de consumo e ainda uma irracionalidade na distribuição desses mesmos bens. A respeito dessa constatação, comenta Antonio Candido (2004) em seu sóbrio artigo "O direito à literatura":
Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização. [...] somos a primeira era da história em que teoricamente é possível entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a injustiça contra a qual lutam os homens de boa vontade à busca, não mais do estado ideal sonhado pelos utopistas racionais que nos antecederam, mas do máximo viável de igualdade e justiça, em correlação a cada momento da história. (CANDIDO, 2004, p. 170)
Na mesma linha de argumentação observou Zueig (1999) na comovente introdução a seu livro "O mundo que eu vi":
[...] no mesmo tempo em que nosso mundo recuou moralmente em um milênio, vi a mesma humanidade erguer-se a alturas insuspeitadas nos aspectos técnico e intelectual, superando num bater de asas tudo o que realizara em milhões de anos: a conquista dos ares pelo avião, a transmissão da palavra pelo globo terrestre num segundo e com isso a conquista do cosmo, a divisão do átomo, a derrota das mais ardilosas enfermidades, a possibilidade quase banal do que ontem ainda era impossível. Nunca, até a nossa hora, a humanidade como um todo se portou de maneira mais diabólica, nem realizou coisas tão divinas. (ZUEIG, 1999, p. 11)
Mais contundentes e ainda atuais foram as observações de Benjamin (1933/1996) no alvorecer do século passado: Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem
. (BENJAMIN, 1933/1996, p. 115) Em sua análise faz referência à perda da experiência e do consequente declínio das formas tradicionais de narrativa cujas fontes encontram-se na comunidade e na possibilidade de transmissão. E para esse autor esse duplo desaparecimento provém de fatores históricos – capitalismo, técnica – que culminaram com as atrocidades da Primeira Guerra Mundial: [...] os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos
. (BENJAMIN, 1933/1996, p. 114-115)
Conforme desenvolve sua crítica no clássico texto "O narrador, Benjamin (1936) observa que a experiência se tece no seio de uma comunidade de ouvintes que se dá o tempo necessário para escutar as histórias de seus ancestrais. Segundo o autor, as formas de produção e de transmissão da informação presentes na modernidade dificultam a produção da experiência. E em sua análise chama a atenção para a transformação da comunidade em massa sem rosto, sedenta de informação cujo sentido se perde rapidamente uma vez que o seu valor se assenta mais na novidade que na sua pertinência. Diante dessa constatação, pergunta-se Benjamin:
Qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o veicula a nós?" (BENJAMIN, 1933/1996, p. 115)
Resumindo em poucas palavras, o progresso da racionalidade e da cientificidade e seus frutos tecnológicos pouco contribuíram para a humanização entre os homens. Resta a pergunta: temos saída? Como educar a criança para a vida? Como humanizar a cria humana transmitindo o patrimônio cultural?
II – A colocação do problema
Para tratar da questão aqui proposta, recorro ao texto de Freud (1911/2010) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico
. Como é bem sabido de todos, nele, Freud discorre sobre as consequências do peso da realidade para a constituição do aparelho psíquico. Reconhece que as exigências da realidade tornaram imperativas várias adaptações do aparelho psíquico dando lugar ao surgimento da atenção, da memória, do juízo imparcial, da ação e finalmente do pensamento. Reconhece também que essa passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade é um processo que demanda tempo e que não significa a deposição do primeiro, mas a sua salvaguarda. Abdica-se de um prazer imediato e incerto com vistas a um prazer seguro, mas postergado.
Freud (1911/2010), no entanto, ainda no mesmo texto, reconhece uma possibilidade de reconciliação entre esses dois princípios. Conforme nos ensina: A arte efetua, por via peculiar, uma reconciliação dos dois princípios
. Para Freud, o artista afasta-se da realidade por achá-la incompatível com seus desejos. No entanto, dando asas à imaginação e por meio de dons especiais, transforma sua fantasia carregada de desejo em realidade de um novo tipo – o objeto de arte – valorizado por outros homens. Continuando o argumento, reconhece o autor:
De certa maneira, ele [o artista] se torna assim o herói, o rei, o criador, o favorito que deseja ser, sem tomar o longo rodeio da efetiva mudança do mundo exterior. Mas o consegue somente porque as outras pessoas partilham a sua insatisfação com a renúncia real exigida, e porque tal insatisfação, que resulta da substituição do princípio do prazer pelo da realidade, é ela mesma parte da realidade. (FREUD, 1911/2010 , p. 117-118).
Em outro texto anterior, em Escritores criativos e devaneios
, Freud (1908/1985) faz uma equação importante para nosso argumento. Ele equipara a brincadeira da criança àquilo que faz o escritor criativo. O escritor criativo cria um mundo de fantasia no qual investe grande quantidade de emoção sem, contudo, confundi-lo com a realidade. No mesmo texto observa que a linguagem, referindo-se à língua alemã, preserva a relação entre o brincar infantil e a criação poética. A linguagem se utiliza de termos que tanto nomeiam a brincadeira como o produto do escritor. Como exemplo, observa a utilização da palavra Spiel [peça] para nomear as formas literárias ligadas a objetos tangíveis e que podem ser representadas. Utiliza os vocábulos Lustspiel ou Trauerspiel – comédia e tragédia – e que, literalmente, querem dizer: brincadeira prazerosa e brincadeira lutuosa. E utiliza, ainda, para nomear os que realizam a representação, o termo Schauspieler – atores – que, literalmente, significa jogadores de espetáculo. E prosseguindo, propõe Freud no mesmo texto:
A irrealidade do mundo imaginativo do escritor tem, porém, conseqüências importantes para a técnica de sua arte, pois muita coisa que, se fosse real, não causaria prazer, pode proporcioná-lo como jogo de fantasia, e muitos excitamentos que em si são realmente penosos, podem tornar-se uma fonte de prazer para os ouvintes e espectadores na representação da obra de um escritor. (FREUD, 1908/1985 , p. 150).
Hoje, cem anos após a escrita desses textos, que lições poderemos tirar deles que sejam úteis ao nosso trabalho com crianças? Como, pais, professores e psicanalistas poderão enriquecer suas respectivas tarefas valendo-se dessas lições?
Para tentar esboçar uma resposta, tomarei estas duas ideias – a possibilidade de conciliação entre o princípio do prazer e o da realidade facultada pela arte bem