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Caminho calçado de pedras e memória
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Caminho calçado de pedras e memória

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Dos muitos livros sobre tempo e memória que a academia produz hoje, poucos serão tão belos quanto este ensaio de estreia de Adriana Jordão. Em Caminho calçado de pedras e memória: a casa da infância, a autora trata a memória como tema, mas também como exercício poético que esgarça o tecido curto do tempo para o ser humano. Suas memórias de infância, da casa vivida em um passado presente, misturam-se com suas análises literárias, o que nos dá um texto multivocal, quebrado por interferências de uma autora que se divide entre poeta e crítica literária. Ao leitor, fica o convite para um passeio que partirá da obra de autores como Ann-Marie MacDonald, Mia Couto e Milton Hatoum e levará memória adentro, chamando à casa de outrora e à infância que está sempre em um espaço paralelo à vida adulta. Isso porque Jordão não se dá apenas um lugar, o de pesquisadora. Ao pensar literatura, ela faz literatura: dupla empreitada em um texto que nos toca por sua fluência e beleza; por sua arte.



Prof. Dr. Davi Pinho

Instituto de Letras UERJ
LanguagePortuguês
Release dateJan 1, 2016
ISBN9788547301002
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    Caminho calçado de pedras e memória - Adriana Jordão

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição – Copyright© 2016 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM

    Para Julia,

    porque cada conquista é sempre por ela.

    AGRADECIMENTOS

    Caminho calçado de pedras e memória: a casa da infância é, para mim, mais que o resultado final de um trabalho formal de pesquisa. Ele é o transbordar daquilo que carrego comigo, pois, enquanto me debruçava sobre sua matéria em leituras e escritas, muitas vozes e rostos amados me vinham, minha própria duração acumulada se revolvia, memória em ebulição. Hoje, ao parar para escrever estes agradecimentos, alguns desses rostos que são parte de mim surgem ressaltados, sobressaem na minha memória como portadores eternos da minha gratidão.

    Minha avó, Virgínia Jordão, dona da casa da infância, do quintal e da mangueira. Minha mãe, Vania Jordão, apoio incondicional e eterno, seja lá para o que for, fé em mim e na vida. Maria Conceição Monteiro, mestra e amiga, orientadora incansável durante o mestrado e o doutorado, minha bússola permanente no apontar de ideias, caminhos e livros, estímulo e exemplo que vão além do intelectual. As tias-avós Eurydice e Rosa, mecenas desde a infância, crença no valor da educação, dois rostos que me sorriem na fotografia que fecha este livro e que sorririam com tanto orgulho ao tê-lo em mãos se aqui ainda estivessem. Meu marido, Rodrigo Rassier, encorajamento e incentivo de todas as formas, compreensão nas muitas ausências necessárias para que este livro existisse, confiança e torcida, para sempre.

    A vocês, meu reconhecimento e meu amor.

    APRESENTAÇÃO

    Quanto mais longe vou, mais perto fico

    de ti, berço infeliz onde nasci.

    Tudo o que tenho, o tenho aqui

    plantado.

    O coração e os pés, e as horas que vivi,

    ainda não sei se livre ou condenado.

    Miguel Torga

    Miguel Torga, poeta português nascido Adolfo Correia da Rocha, em São Martinho de Anta, pequena aldeia da província de Trás-os-Montes, explicava desta forma sua escolha do pseudônimo:

    eu sou quem sou. Torga é uma planta transmontana, urze campestre, cor de vinho, com as raízes muito agarradas e duras, metidas entre as rochas. Assim como eu sou duro e tenho raízes em rochas duras, rígidas.¹

    Divido com Torga o aniversário – ele, nascido em 12 de agosto de 1907; eu, em 12 de agosto de 1970 – e a impossibilidade do apartar-se do berço, da casa, das vozes, dos cheiros e sabores, dos pés descalços das tardes no quintal. Minhas rochas duras, rígidas. Não importam as distâncias espacial ou temporal, eu também sou quem sou, livre ou condenada.

    Aos 8 anos descobri os encantos do acumular. O cordão de contas arrebentado de minha mãe tornou-se meu primeiro tesouro, guardado na caixa de madeira feita por mim na aula de artes da escola, caixa que hoje, à espera da nova dona, mora no armário de minha filha. Novos companheiros para as bolinhas coloridas que corriam em liberdade na caixa foram chegando de mansinho. Salva de prata, caixinha de música, alfinete de gravata, retrato do avô, óculos com aro de tartaruga, sem lentes: objetos recolhidos junto com suas histórias, algumas vezes contadas pela avó ou por uma tia, outras vezes simplesmente transbordadas para a invenção infantil, extrapolações que se confundiam nas memórias. Os objetos tornavam-se emanações daqueles que os haviam usado e guiavam as raízes que ora se formavam para as rochas duras que eu buscava. Eu acumulava histórias.

    As gavetas e portinhas de uma penteadeira são um mundo. Caixinhas de papelão recheadas de tesouros embrulhados em papel de seda azul – o cheiro de naftalina ainda me diz que a vida pode ser boa – eram vasculhados à procura de novos objetos e novos narrares biográficos que cruzavam o umbral do passado para compor meu baú de relíquias enquanto compunham também a mim mesma.

    Estes prolegômenos intentam apenas mostrar que a escolha do tema de estudo que deu origem a este livro foi inevitável, inescapável: a memória e a casa formam uma díade que me é orgânica e a pesquisa tornou-se um mergulho em almas-personagens que me são conhecidas. Não sei distinguir as impressões de fato vividas por mim daquelas causadas pelas histórias entreouvidas nos encontros de família, as lembranças puras do vivido daquelas nascidas da imaginação (estrutura tão íntima da memória) – todos os fragmentos me pertencem. A infância flutua em mim como pedaços rasgados de fotografias que o vento espalha: o chão encerado da sala da casa, quintal sob a chuva de verão, a tia e o terço das seis da tarde, manga espada descascada com os dentes, colhida com o bambu e a caneca de alumínio amarrada na ponta, o fio doce e melado da fruta descendo das mãos até os cotovelos.

    A casa da infância é uma entidade bipartida: uma, a casa vivida na experiência indiferenciada de ser, um lugar-tempo do inaugural, do espanto, do afeto; outra, aquela que esse lugar-tempo produz no imaginário daquele que dela se afastou, geográfica e temporalmente: a casa onírica. No sujeito, memória e imaginação não se dissociam, e somente assim é possível retornar ao lugar-tempo mítico dessa casa primeva; a memória é então fonte (ou ponte) para essa celebração da ausência retornada viva por meio da transmutação da lembrança em narrativa – processo constante nos indivíduos que as obras ficcionais buscam reproduzir. Caminho calçado de pedras e memória: a casa da infância pretende explorar a memória da casa e a ficção indissociável a esta na incessante construção de um pré-texto gerador de narrativa no sujeito e a forma como esse processo é ficcionalizado em produções literárias contemporâneas que recorrem a ela como temática e estrutura. Investigo aqui a representação desse retorno a um tempo-lugar fixado no imaginário por meio da memória, um caminho que sempre leva o sujeito de volta a esse cenário de afetividade, ainda que corrompido pelos desvios do amor, por segredos e interditos.

    Este livro apresenta dois pilares de pensamento, a memória e a casa: como funciona essa memória, acesso ao passado, e de que casa falamos quando a vemos como ferida aberta no imaginário. Embora tenha me concentrado nas fontes teóricas acerca dos dois temas e tenha priorizado pensamentos não ficcionais que discutem o assunto, diversos romances são utilizados na ilustração da matéria. Dentre eles, Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, e Fall on your Knees, romance da canadense Ann-Marie MacDonald, obras de estruturas narratológica e imagética bastante análogas e que suscitaram as primeiras perguntas da pesquisa. Os romances citados retratam a busca pela memória individual em recompor a história dos personagens dentro da família e com isso a de si próprio, em um costurar dos laços perdidos. As vozes da memória retomam a casa e, com ela, o amor, mesmo que enviesado e expresso nas difíceis relações entre os participantes, temática que encontrei nas páginas de vários outros livros, de autores de muitas nacionalidades. Nas palavras da pesquisadora Maria Salete Daros de Souza, as personagens revelam seus abismos e sangram suas feridas justamente por não se darem por vencidas. Clamam por amor e evidenciam o desejo do sentimento amoroso no universo familiar². Dessa forma, os romances mencionados ao longo do texto demonstram a teoria aplicada nas letras poéticas, buscam exemplificar a matéria proposta.

    Este é um livro de reflexões acerca da memória e da casa de infância inevitavelmente carregado das marcas na alma da autora que animou a pena. Escrever é deixar rastro por onde se passa, como as lesmas nos muros do quintal da minha casa faziam.

    PREFÁCIO

    Peças queridas, sentimentos escondidos, vozes em alarido, silêncios revelados, cantos vividos, lugares desvelados, rangidos de portas e de janelas, corredores. Tudo isso (e ainda mais), junto ou/e separado, pode estar dentro da casa da infância, mas às vezes, sem querermos ou sabermos, encontra-se definitivamente inscrito ou escrito dentro de nós.

    As fotografias expostas ou guardadas, emolduradas ou em meio a tantas outras, em caixas ou latas, presas em painéis de cortiça ou soltas em gavetas, revelam outros sentidos para além do vivível e do visível. Exploram não só o presente arrebatado, mas o mais adiante, o que ficou para trás, os arredores fora daquilo que tem na fotografia contornos definíveis. Carregam histórias. Histórias de nós que muitas vezes ainda não conhecemos, mas pelas narrativas de alguém que as conhece, quando nos são contadas, nos preenchem de várias maneiras surpreendentes. Fazem-nos encontrar o outro que habita em nós, outros que são amados em rostos parentes. Outras possibilidades de (nos) ver. Memórias de nós e de outros.

    Há também nas memórias muito frequentemente livros especiais. Livros com dedicatórias, pétalas de rosas marcando páginas, letras de alguém que não conhecemos escritas em comentários nas margens das folhas, recortes de jornal, pedaço de notícia escolhido por alguém queridíssimo, encadernações e ilustrações que marcam os leitores fazendo-os apegar-se àquela edição precisa e preciosa. Livros que trazem histórias e dentro deles outras histórias vão se escrevendo para além das que contam.

    Ainda sem sabermos estamos lendo o livro Caminho calçado de pedras e memória: a casa de infância, de Adriana Jordão. É essa a temática que a autora, lendo a ficção de O Relato de um certo Oriente (Milton Hatoum), Lavoura Arcaica (Raduan Nassar), Um Rio chamado tempo, uma casa chamada terra (Mia Couto) e Fall on your Knees (Ann-Marie Macdonald), usa para construir a sua escrita sensível sobre casa da infância, memória, literatura. A própria Adriana revela que é sobre memória da casa da infância e a ficção indissociável a esta na construção de um pre-texto gerador da narrativa no sujeito e a forma como este processo é ficcionalizado, nas produções literárias contemporâneas (especialmente nas narrativas dos autores citados), a sua direção na escritura do livro Caminho calçado de pedras e memória: a casa de infância.

    Em cada um dos capítulos escritos por Adriana vamos conhecendo/ou re-vi-vendo as histórias dos personagens das várias narrativas que tratam de memórias, especialmente as da casa como matéria prima dos seus enredos. Também de cada um deles se torna difícil elegermos as passagens mais significativas no caminho da escritura para acompanharmos as ideias de Adriana sobre o assunto. A cada trecho lido do texto do livro parece que somos incitados a outros pensamentos, a desdobrarmos sentimentos, a buscarmos em nossas memórias histórias de personagens de ficção e de nossas próprias subjetividades.  Mas há um trecho do livro em que Adriana agrupa todos os seus objetos (os romances citados) sob esse olhar que nos serve aqui de exemplo para a modalidade de leitura elevada ao quadrado, ou labiríntica, ou desdobrável (o sentido que não se completa nunca) e que é uma das chaves para adentrar a leitura do seu texto. Trata-se das reflexões teóricas de Edward Casey sobre o sentido dos lugares. Diz o teórico que os lugares reúnem

    os seres animados e inanimados que ali se encontram em um conjunto palpável, e também reúnem experiências, histórias, pensamentos, afetos; reúnem objetos e pessoas, assim como reúnem entidades etéreas, virtuais, como lembranças e sentimentos. [...] [E que] A casa se mostra, desta forma, como um lugar por excelência, [...] Ela é um ponto de convergência para pessoas do presente e do passado, para objetos que testemunham a biografia de seus habitantes, para as memórias, histórias, lembranças, amores e sonhos.

    Nessa trilha, Adriana Jordão lendo o Relato nos coloca no Natal narrado por Hakim, um Natal específico. Mas ao mesmo tempo em muitos outros Natais, por atos que se repetiam e por tudo que aquela congregação de pessoas representava. Diz Adriana:

    A casa da infância que Hakim recupera na memória é um lugar agregador de muitas pessoas de muitas origens e línguas, de muitos objetos significativos, de muitas histórias, muitos cheiros e sabores, muitas lembranças, e acima de tudo, muitos sentimentos.

    Assim também em Fall on your Knees desfilam pela narrativa, os amores enviesados e as relações rotas que o fio da memória busca costurar neste tecido esgarçado da casa desfeita no tempo; em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, os familiares de longe e de perto também se reúnem para aguardar o enterro – [...] – na casa, chamada de Nyumba-Kaya. "Não por acaso, a memória do narrador de Lavoura Arcaica se manifesta em longa lista de utensílios do cotidiano da casa".

    As citações que retiro do texto do livro (Caminho calçado de pedras e memória: a casa de infância) podem ser lidas como a própria autora faz nas aberturas de seus capítulos para onde traz trechos de livros de outros escritores (Miguel Torga, Clarice Lispector, José Eduardo Agualusa, Mário Quintana, Ferreira Gullar (e outros mais), epígrafes que remetem a leituras que Adriana relaciona ao que está lendo no momento que escreve, vozes que também ouvimos sussurrando em nossos ouvidos trechos inspiradores para leituras que vão se recompondo em outros lugares, afirmando espaços importantes para quem as leu, relações com as obras em mosaico, de composição de encaixes vazados. Obras que permitem também interseções, paradas, complementos e relações multívocas com as narrativas dos romances, objetos do livro de Adriana. Walter Benjamin elogiava as citações, as cópias, as epígrafes, os desvios na/da linguagem, as anotações em cadernos e diários que nos obrigam de certo modo nas narrativas a parar, a não seguir como uma flecha o faz rapidamente, retilineamente, para chegar a um alvo. Porque só assim nos momentos de retenção se pode movimentar para frente e/ou para trás. Ficamos mais afeitos às reflexões, a nos abrir a mais pensamentos e sentimentos. Adriana percebe aí o tempo da memória que mistura eventos do tempo passado e do tempo presente, fim e início em uma duração concêntrica. É o que diz a epígrafe destacada por Benjamin em uma das suas teses sobre a filosofia da história: a origem é o alvo. Ou o que dizem os versos do poeta Manoel de Barros: Eis a ciência da poesia:/Amarrar o tempo no poste.

    Neste folheado de significâncias (expressão usada por Roland Barthes, em O Prazer do texto) estão os leitores saboreando a escrita de Adriana (e as que ela elege para ler) que vem sempre no plural. Tal como mágica das palavras, Adriana vai desatando (como o mágico faz com uma só cartola) dos espaços físicos, sentimentos, sensações, pensamentos, cheiros, histórias, memórias. Da casa da avó vem o cheiro do bolo de milho no café da manhã; o banho de mangueira em dias quentes de verão no quintal; da fotografia, a figura do sino da igreja cujo som é o [seu] terceiro sentido.

    Ainda há mais outros segredos de cofres que se abrem com tesouros incalculáveis no livro de Adriana Jordão. Sob a colcha de relatos (das narrativas literárias) se encontra algo que falta. Escreve-se sobre o que não se sabe, sobre o que nunca existiu (Clarice Lispector). Essa fantasmagoria da narrativa atrai os leitores porque estão sempre sendo

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