O sorriso do caos
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O sorriso do caos guarda uma profunda inquietação, um assombro desmedido e uma curiosidade atormentada, de quem jamais conheceu a Biblioteca de Babel, e que imagina galerias hexagonais, escadas que se abismam, corredores tortuosos, infinitas prateleiras, e uma imponderável claridade, que ajudou Borges a vislumbrar o liber librorum, a soma infinita dos livros perdidos, sonhados, ou esquecidos. Todos, sem exceção, maiores ou menores, ínfimos ou prodigiosos, compõem a ideia platônica do Livro, nesse vasto labirinto de folhas e pedras, de que é feita a Biblioteca de Babel.
Essas páginas obedecem à lógica de qualquer livro que o toma um habitante daqueles corredores e daquelas prateleiras. Tal como Swedenborg pretendia que os pulmões se decompõem num certo número de pequenos pulmões, o fígado em pequenos fígados, e o baço em pequenos baços, um livro se compõe de pequenos livros, que por sua vez se compõem de outros pequenos livros, formando uma espécie de teia de aranha, uma rede fractal, descrição de descrições, pensamentos de pensamentos, e saudades de Babel.
Que essas paisagens derivadas – pedras, mapas, fractais, gentes, cidades – acabem desenhando em sua diversidade, o rosto inquieto de seu autor, aberto ao mundo cheio de esperança e perplexidade.
M.L.
Rio de Janeiro, 1997
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Book preview
O sorriso do caos - Marco Lucchesi
Marco Lucchesi
O SORRISO DO CAOS
1ª edição impressa: Rio de Janeiro, Editora Record, 1997
São Paulo | Brasil | Março 2019
2ª edição revista – Ebook
Sumário
Capa
Introdução
A PELE DE ONAGRO
Um bárbaro na Ásia
José Saramago passeia pelo mundo das trevas
Um homem dos tempos sombrios
Com as mãos sujas
No tempo de Salazar
Quadros milaneses
Um poeta e seus espelhos
Berlim Alexanderplatz
O dia da coruja
Pais e filhos
Tratado natural do absurdo
O pluralismo contemporâneo
O vigor ensolarado da literatura italiana
Poesias de Rimbaud
O arranha-céu
Curingas de uma tradução
Poesia e alquimia
Diário europeu
Acerto de contas com a literatura
AS MALHAS DA CRÍTICA
Pasolini: 20 anos depois
Harold Bloom faz afresco da literatura ocidental
Uma torre no centro do mundo
Teoria e história
Nos passos de Borges e Calvino
Perdidos na grande biblioteca
Aventuras da tradução
O ROSTO DE SOFIA
O princípio Esperança
O mundo de Sofia
Maria Jacintha e a liberdade
Alfa e ômega
Quasi arena maris
A unificação das forças fundamentais
O sorriso do caos
A nova música
O mundo segundo Luigi Pirandello
À SOMBRA DE DIONÍSIO
De Nise a Spinoza: uma cultura ética
O imenso hospital em que vivemos
Paixão da diferença
O TEMPO E A ESPERA
Todos amavam a revolução
Viagem ao Brasil
A história como representação
Os desafios de Toynbee
O ELOGIO DA DIFERENÇA
Projetos de utopia com Roger Garaudy
O relógio de Florença com Nise da Silveira
Este patético planeta com Rubens Corrêa
Minha irmã, a vida
com Antônio Carlos Villaça
BIBLIOGRAFIA
A pele de Onagro
As malhas da crítica
O rosto de Sofia
À sombra de Dionísio
O tempo e a espera
O elogio da diferença
SOBRE O AUTOR
Big Time Editora Ltda.
Rua Planta da Sorte, 68 – Itaquera
São Paulo – SP – CEP 08235-010
Fones: (11) 2286-0088 | (11) 2053-2578
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Blog: bigtimeeditora.blogspot.com
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Conselho Editorial:
Ana Maria Haddad Baptista
(Doutora em Comunicação e Semiótica/PUC-SP)
Catarina Justus Fischer
(Doutora em História da Ciência/PUC-SP)
Lucia Santaella
(Doutora em Teoria Literária/PUC-SP)
Marcela Millana
(Doutora em Educação/Universidade de Roma III/Itália)
Márcia Fusaro
(Doutora em Comunicação e Semiótica/PUC-SP)
Vanessa Beatriz Bortulucce
(Doutora em História Social/UNICAMP)
Ubiratan D’Ambrosio
(Doutor em Matemática/USP)
Ficha Catalográfica
LUCCHESI, Mar978-85-9485-077-5. O Sorriso do Caos. 100 pp. – São Paulo: BT Acadêmica, 2019.
ISBN | 1. Educação. 2. Cultura. 3. Estudos Literários. 4. Ensaios. I. Título
Produção Editorial
Editor Coordenador: Antonio Marcos Cavalheiro
Capa: Ninil Gonçalves
Diagramação: Pedro Monte Cavalheiro
Introdução
O sorriso do caos guarda uma profunda inquietação, um assombro desmedido e uma curiosidade atormentada, de quem jamais conheceu a Biblioteca de Babel, e que imagina galerias hexagonais, escadas que se abismam, corredores tortuosos, infinitas prateleiras, e uma imponderável claridade, que ajudou Borges a vislumbrar o liber librorum, a soma infinita dos livros perdidos, sonhados, ou esquecidos. Todos, sem exceção, maiores ou menores, ínfimos ou prodigiosos, compõem a ideia platônica do Livro, nesse vasto labirinto de folhas e pedras, de que é feita a Biblioteca de Babel.
Essas páginas obedecem à lógica de qualquer livro que o toma um habitante daqueles corredores e daquelas prateleiras. Tal como Swedenborg pretendia que os pulmões se decompõem num certo número de pequenos pulmões, o fígado em pequenos fígados, e o baço em pequenos baços, um livro se compõe de pequenos livros, que por sua vez se compõem de outros pequenos livros, formando uma espécie de teia de aranha, uma rede fractal, descrição de descrições, pensamentos de pensamentos, e saudades de Babel.
Que essas paisagens derivadas – pedras, mapas, fractais, gentes, cidades – acabem desenhando em sua diversidade, o rosto inquieto de seu autor, aberto ao mundo cheio de esperança e perplexidade.
M.L.
Rio de Janeiro, 1997
A PELE DE ONAGRO
Um bárbaro na Ásia
Henri Michaux, belga de nascimento, foi uma das vozes mais surpreendentes da literatura francesa deste século. Desde cedo sentiu a tristeza de não ser um santo, como disse Léon Bloy – a maior e a mais profunda de todas as tristezas. Quis tomar-se monge beneditino. Pascal e Lautréamont eram os seus dois polos. A religião e a literatura. Todavia, impedido pelo pai de entrar para o claustro, aos vinte e um anos, decide ser marinheiro, visitando a Inglaterra, a América e o Brasil. Passam-se meses. De volta de tanta solidão, encontra em Paris Jules Supervielle, habitado pela poesia, com quem estabelece fortes laços de amizade. E, se frequenta Max Ernst, Paul Klee, Breton, tudo isso é raro, porque Michaux passa sempre ao longo e ao largo das correntes literárias e artísticas. Um ser à parte, como reconheceriam Maurice Blanchot e André Gide. E, embora não conseguisse tomar-se monge ou marinheiro, Michaux sofreu o apelo de terras distantes e continentes desconhecidos.
A literatura será para ele a consolidação de tais atitudes, ao mesmo tempo tão semelhantes em suas dessemelhanças. Uma parte de sua obra será justamente o fruto de uma poesia itinerante: basta ler Labirintos, Minhas propriedades, Notas de zoologia. Ou, do mesmo modo, sua relação experimental com os alucinógenos, como fizeram escritores como Huxley, em As portas da percepção. Novos mares, portos, cidades. Por tudo isso, e em virtude de sua repulsa ao realismo pedestre, foi considerado por alguns críticos como um surrealista. Um erro crasso. Michaux era antes de tudo um solitário e um refratário. Seu humor, mal-humorado, como o de Swift. Seu olhar, universal, como o de Picasso. Sua percepção, sarcástica, como a de Rabelais. Não sabia suportar nenhum ismo. Como poeta e como pintor. Chego quase a pensar em Satie. Tirando-lhe, contudo, a celebração da diferença. Michaux era quieto, discreto. E não menos genial. Sofria como Satie o amor à síntese. Uma obra concisa e vasta.
De seus, livros de viagem, destacam-se dois: Ecuador e Um bárbaro na Ásia, que seria traduzido por Borges. Sim, diz Henri Michaux, os poetas viajam, mas a aventura da viagem não os domina. E o que se passa em Ecuador. A paisagem é secundária. Quase não existe. Quatro mil milhas sem ver coisa alguma. Os Andes, as florestas e os rios da Amazônia. Chega ao Pará em 15 de dezembro: Pará, Pará... Nada aparece. Mas onde está a Amazônia? Eu não a vi. Não direi nada a seu respeito.
Um desacordo entre o poeta e a natureza. Uma coleção de fragmentos desconcertantes. Um diário de rara beleza. Que bem poderia ter sido escrito em Paris, Buenos Aires ou São Paulo. E sempre alguns comentários mordazes, muito parecido – às vezes – com o Diário de viagem de Albert Camus, em sua visita ao Brasil: o poeta Augusto Frederico Schmidt chega para Camus e diz: Não se mexa. Vou mostrar-lhe uma personagem de um de seus romances.
E Camus anota em seu diário que Schmidt estava enganado: pois era ele próprio uma de suas personagens. Mas Camus estava desesperado. Planejara a própria morte. O mau humor terá salvado Michaux, que nada planejou. Ambos voltaram incólumes para a França. A aventura da viagem não chegou a dominá-los.
Já em Um bárbaro na Ásia, publicado em 1932, temos um observador no mundo. Atraído pelos sentidos. Nenhum poema, ao contrário de Ecuador. Mas a prosa poética é das mais firmes. Certamente um dos mais bem-sucedidos relatos de viagem. Michaux viaja, como fez na América do Sul, sem mapas, bagagens e sem conhecer a língua por onde passa. Segue pelas ruas sinuosas de Calcutá, pelos campos da China, pela Himalayan Railway. Busca o homem da rua. As gentes. Trabalhadores, malabaristas, mendigos, prostitutas e santos. Foi para conhecer a Ásia, e não para se conhecer na Ásia (se houver diferença entre as duas atitudes). Tal não foi o caso de um outro viajante, Ernest Psichari, que, na solidão do deserto saariano, converteu-se ao cristianismo, ele próprio neto de Renan. Não, este não é o caso de Michaux. A con-versão é sempre para a poesia. In-versão, talvez.
Um bárbaro na Ásia é um livro desafiador, eivado de ironia e de passagens saborosas: Há vacas em Calcutá por todos os lados. Atravessam as ruas, espraiam-se na calçada, que se toma impraticável, inspecionam as lojas, ameaçam o elevador, instalam-se no patamar da escada, e se o hindu fosse pastável sem dúvida seria pastado.
Ou quando fala a respeito dos elefantes: Naturalmente nunca se pode confiar num elefante. Ele é calmo. Mas não tem uma gota de sangue-frio. No fundo sofre dos nervos. Quando a coisa não está indo bem ele perde a cabeça, e neste caso é preciso no mínimo um prédio para detê-lo. E perde a cabeça mesmo quando está no cio. Fujam, fujam, vem vindo uma desgraça! O Senhor Elefante quer fazer amor.
Temos aqui um delicioso bestiário, herdeiro da melhor tradição, como o de Leonardo da Vinci ou como o zoológico de Khliébnikov. Não há distância entre os animais e os homens. Apenas misteriosas semelhanças.
Sem conhecer as línguas locais, traça-lhes um perfil intrigante. Curiosa a comparação entre o árabe e o tamil. O árabe é uma língua de arqueiros, porque sua escrita é uma flecha. Às vezes atravessada por um acento
, recende a cutilada e um sabre
. Por outro lado, a língua tamil é composta de palavras com seis sílabas em média. Muitas têm quatorze. Menos de quatro sílabas e já não é uma palavra, mas um detrito
. E arremata, ao dizer que o inglês é para eles uma língua em ruínas.
Mas como é difícil tratar do Oriente, essa etiqueta tão impregnada de ocidentalismo. Edward Said já demonstrou em bases bem documentadas a arqueologia do saber orientalista, como o resultado de um sonho e de uma invenção do Velho Mundo. E cita as observações de Gérard de Nerval a Gauthier: para alguém que nunca viu o Oriente, um lótus é sempre um lótus. Para mim
, afirma Nerval, "é apenas um tipo de cebola. Escrever sobre o Oriente moderno é ou revelar uma perturbadora desmistificação das imagens extraídas dos textos ou confinar-se ao Oriente de que falou Hugo, em seu prefácio a Les orientales, o Oriente como imagem ou pensamento." Por isso, talvez, Michaux se declara um bárbaro. Alguém que prefere certamente as cebolas. Um bárbaro que nada tem a ensinar. Mas tudo a aprender. Que não vai ao Oriente levando o Oriente. Ou isso, pelo menos, na medida do possível. Nerval tinha toda razão. Pierre Loti estava errado.
Era, porém, a década de 30. A independência da Índia aconteceria em 47. Dois anos depois, a Revolução na China. E o Japão, arrasado pela guerra, acabaria por tomar, se uma das grandes potências nas décadas de 60 e 70. Onde está a Ásia de Michaux? Ele mesmo responde que o maior defeito do Ocidente encontra, se no seu poder de atração. Todas aquelas datas representaram de alguma forma esse impacto brutal (e aqui passo por cima das questões ideológicas). Haverá outra guerra?, perguntava, se Michaux. Olhem, se, europeus, olhem, se. Nada em seu rosto é apaziguador. Tudo é luta, desejo, avidez. Até a paz vocês a querem violentamente.