O gabinete do Doutor Blanc: Sobre jazz, literatura e outros improvisos
By Aldir Blanc
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Em "O gabinete do Doutor Blanc" o leitor terá contato com um Aldir amante de música e voraz leitor de livros policiais. Os textos, no entanto, não fogem das características mais marcantes de seu autor: são ácidos, repletos de ironias e trocadilhos no clássico estilo de Aldir.
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O gabinete do Doutor Blanc - Aldir Blanc
O gabinete do doutor Blanc
SOBRE JAZZ, LITERATURA E OUTROS IMPROVISOS
Aldir Blanc
ILUSTRAÇÃO [CAPA]
Allan Sieber
REVISÃO
Fal Vitiello de Azevedo
DESIGN E DESENVOLVIMENTO
Mórula Editorial
© 2016 MV Serviços e Editora
Todos os direitos reservados.
R. Teotonio Regadas, 26 – 904 – Lapa – Rio de Janeiro
www.morula.com.br • contato@morula.com.br
Pra minha Suburbana, filhas, netas e netos, bisneto e pros que vêm por aí.
IMPROVISO EM BLANC & PRETO
PAULO ROBERTO PIRES
NA PRIMEIRA VEZ EM QUE VI ALDIR BLANC LANÇAR UM LIVRO, ele arremessou em minha direção uma parruda edição das cartas de Philip Larkin. Lá por 1997, 98, não era incomum que uma noitada no escritório de seu apartamento na Muda terminasse assim: comovido como o diabo, sem precisar de lua ou conhaque, Aldir atirava amorosamente sobre convivas volumes de sua biblioteca, transformando-os em presentes, ainda que com risco de contusão. Ali na estante, o Selected Letters of Philip Larkin 1940-1985 não me deixa mentir: num desses dias nasceu a ideia desse livro, mesmo que ele sequer sonhasse em ser escrito.
Pois foi naquele gabinete, fuçando as estantes, ouvindo música e bebendo Jack Daniel’s, que descobri um pouco do que o doutor Blanc, médico e monstro, ouvia e lia quando não estava compondo ou escrevendo. E foi nisso que pensei quando, em 2000, na era da internet discada, imaginei que ele daria um ótimo colunista da revista virtual Notícia e Opinião, o No Ponto, onde eu era editor de cultura. Chefiados por Flávio Pinheiro e Marcos Sá Correa, tínhamos obsessão em surpreender o leitor. E, convenhamos, o que não faltou foi surpresa desde o anúncio de que Aldir Blanc escreveria não as conhecidas crônicas, mas resenhas (?) sobre os últimos lançamentos de jazz e romance policial, com eventuais incursões por outros gêneros tocados e escritos.
A interrogação entre parênteses continua valendo quando leio e releio tudo fora da ordem de publicação e, assim, constato a coerência que, em livros de crônicas ou antologias, só se percebe ao reler os textos tempos depois de serem publicados pela primeira vez. Mas, afinal, o que publicávamos semanalmente? Resenha certamente não era. Crônica? Um pouco, às vezes. Muito sofisticados para serem rotulados conversas
, demasiado informais para ganharem a etiqueta de ensaios
, esses textos são mesmo improvisos. Improvisos em Blanc & preto – blanc como dizem os franceses, que tanto fizeram para que se entendesse melhor o jazz e o policial como grande arte; preto como o romance noir, o rótulo do Jack e como a tarja preta, essa injustiçada.
* * *
Jazz é feito paquerar a cunhada, passar a mão na mulher do amigo, beijar no elevador a colega de trabalho: começa leve, mas deixa cicatrizes profundas
, escreve o Aldir. E ainda lembro quando chegou o e-mail com essa coluna, que li e reli, às gargalhadas e, logo depois, encafifado com o formato do texto, o raciocínio surpreendente. Encafifado com o jeito de Aldir, meio como quem não quer nada, escavar a memória musical da juventude e de lá voltar com uma imagem luminosa, assim como Keith Jarrett encontra, no meio daqueles longos improvisos sem rede, uma linha melódica, uma harmonia perfeita em que embarca, gemendo, num dos caminhos que se bifurcam à sua frente.
Querem ver? Eis aqui um desses achados, que começa no gênio do maior trompetista da História e leva para muito, muito longe dele: Ninguém ouve Louis Armstrong tocar impunemente. A gente leva a vida inteira procurando aquela dose. Buscamos essa medida nas mulheres, nos copos, nos livros, na música. Louis Armstrong nos dá isso. Momentos raros. A sensação de que valeu a pena. Não faz mal que passe depressa. É só repetir a faixa
.
Aldir sempre pode, no entanto, ir mais além. E continua encadeando ideias e imagens: "Um pistom diante da Esfinge, o rio de notas abrindo o cortejo fúnebre sob a chuva, o contraste entre os dentes brancos no rosto negro e o lenço manchado de sangue, tocar acima e além do cumprimento do dever, contrariar ordens médicas com olhar matreiro de avô (lembrai do vinho, não da lágrima), suor, drogas, comunhão: fazei isso em memória de mim – ou, segundo a fórmula ainda mais antiga, pra que eu esteja presente. Again. Forever".
Ao escrever sobre música, repete com virtuosismo uma de suas marcas de compositor, a habilidade em aproximar referências de mundos díspares, níveis diferentes de cultura, os chamados bom
e mau
gosto. É assim que imagina uma festa para o aniversário de John Coltrane num subúrbio carioca: Parabéns, Trane Train, com setenta velinhas em bolo confeitado, cascata de camarão, tio fanho contando piada de papagaio, desquitada que fuma recebendo santo quando passam a mão na bunda dela. Muitos anos de vida
.
Pode até mesmo inventar gêneros, como o jazz come-quieto, assim batizado em homenagem a um de seus expoentes, John Pizzarelli: Bonzinho significa o grumete, no alto da gávea, gritando: chifre à vista! O Pizzarelli é o cara. Minha mulher, as quatro filhas, a secretária, as amigas, as vizinhas, até minha cachorra Flecha – todas acham Pizzarelli ‘bonzinho’. Não é nenhum Joe Pass. Toca bem paca, dá o recado, e é cheio de sutilezas no que diz respeito à camuflagem das limitações. Tem um som despojado, tranquilão, e vai levando a coisa, como se dizia antigamente, na flauta, embora seja guitarrista. A fã pede um autógrafo e, quando volta a si do encantamento, está grávida
.
Aquele que, nas canções, pôs lado a lado torresmo e moela, castigo e perdão, modess e camisinha sabe muito bem os atalhos entre grotesco e sublime, dito e sugerido, imagem e palavra – essas duas sempre em tensão, jamais resolvidas. Ao comentar Jazz, o documentário hoje clássico de Ken Burns, monta
cenas em velocidade vertiginosa, sugerindo um épico de bolso filmado por Martin Scorsese com roteiro de Eric Hobsbawm: um sujeito, com um violão boca de tigre no colo faltando uma corda, sentado num balanço caindo aos pedaços na varanda – se é que se pode chamar aquela pocilga de varanda. Oito crianças com o nariz escorrendo em volta, campos de algodão, luz crepuscular. Nellie criando caso, o trem apita ao longe. O cara, disfarçadamente, entorna um grande gole da ‘boa’, aquela de alambique clandestino. Sentimos, por identificação, pena da figura, mas aí, ao invés de um suspiro de resignação, arma-se – aqui, sim, é mágica – o acorde menor: jazz
.
Aldir cita muito, mas cita como um solista em longo improviso – e não para mostrar que sabe ou para humilhar quem não sabe ou lembra. No fluxo de ideias do texto, enfia outras ideias, suas e dos outros, atordoando quem ouve – ou melhor, quem lê – com sugestões e provocações, levando o hipnotizado ouvinte – ops, leitor – para outras praias: "Há violões e guitarras em Lorca e em Drummond, em Neruda e em