Discover millions of ebooks, audiobooks, and so much more with a free trial

Only $11.99/month after trial. Cancel anytime.

Educação: um pensamento negro contemporâneo
Educação: um pensamento negro contemporâneo
Educação: um pensamento negro contemporâneo
Ebook392 pages6 hours

Educação: um pensamento negro contemporâneo

Rating: 5 out of 5 stars

5/5

()

Read preview

About this ebook

Este livro é uma referência indispensável na pesquisa sobre movimentos sociais negros, discriminação racial, desigualdades raciais, ações afirmativas e valorizativas. Apoia especialmente estudos e práticas em políticas de promoção da igualdade racial e Educação das Relações Étnico-Raciais. O livro demonstra mais de cem anos de luta de movimentos contra o racismo e por educação, algo formalmente constatado a partir de 1853, por meio da obstinação do professor Pretextato dos Passos e Silva. Luta que continua até os dias presentes.
LanguagePortuguês
Release dateJan 5, 2015
ISBN9788581487991
Educação: um pensamento negro contemporâneo

Related to Educação

Related ebooks

Politics For You

View More

Related articles

Reviews for Educação

Rating: 5 out of 5 stars
5/5

1 rating0 reviews

What did you think?

Tap to rate

Review must be at least 10 words

    Book preview

    Educação - Sales Augusto dos Santos

    Copyright © 2014 by Paco Editorial

    Direitos desta edição reservados à Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor.

    Coordenação Editorial: Kátia Ayache

    Revisão: Isabella Pacheco

    Capa: Márcio Santana

    Diagramação: Márcio Santana

    Edição em Versão Impressa: 2014

    Edição em Versão Digital: 2014

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    Conselho Editorial

    Profa. Dra. Andrea Domingues (UNIVAS/MG) (Lattes)

    Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi (FATEC-SP) (Lattes)

    Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna (UNESP/ASSIS/SP) (Lattes)

    Prof. Dr. Carlos Bauer (UNINOVE/SP) (Lattes)

    Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha (UFRGS/RS) (Lattes)

    Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa (FURG/RS) (Lattes)

    Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes (UNISO/SP) (Lattes)

    Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira (UNICAMP/SP) (Lattes)

    Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins (UNICENTRO-PR) (Lattes)

    Prof. Dr. Romualdo Dias (UNESP/RIO CLARO/SP) (Lattes)

    Profa. Dra. Thelma Lessa (UFSCAR/SP) (Lattes)

    Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt (UNIPAMPA/RS) (Lattes)

    Prof. Dr. Eraldo Leme Batista (UNIOESTE-PR) (Lattes)

    Prof. Dr. Antonio Carlos Giuliani (UNIMEP-Piracicaba-SP) (Lattes)

    Paco Editorial

    Av. Carlos Salles Block, 658

    Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21

    Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100

    Telefones: 55 11 4521.6315 | 2449-0740 (fax) | 3446-6516

    atendimento@editorialpaco.com.br

    www.pacoeditorial.com.br

    Sumário

    Folha de Rosto

    Página de Créditos

    Apresentação

    Prefácio

    Introdução

    1. CATEGORIAS NORTEADORAS

    2. FUNDAMENTOS HISTÓRICOS

    3. ARQUITETURA NARRATIVA DO LIVRO

    CAPÍTULO 1: COMBATE AO RACISMO - OBRIGAÇÃO ÉTICA E MORAL DOS AFRO-BRASILEIROS NO PÓS-ESCRAVISMO

    1. UMA INTRODUÇÃO À LUTA CONTRA O SISTEMA ESCRAVISTA

    1.1 A luta no centro do sistema escravista

    1.2 A luta à margem do sistema escravista

    2. MOVIMENTOS NEGROS NO PÓS-ESCRAVISMO: REORDENAMENTO DAS DEMANDAS HISTÓRICAS

    2.1 Os movimentos negros em São Paulo no início do século XX: a Imprensa Negra, a Frente Negra brasileira e a valorização da educação formal

    2.2 Publicizando a história, construindo memória

    2.3 Frente Negra Brasileira: um outro patamar de diálogo

    2.4 Teatro Experimental do Negro (TEN): o palco como lugar de formação da população negra

    CAPÍTULO 2: DÉCADAS DE 1970 E 1980 - REVIGORAMENTO E EXPANSÃO DOS MOVIMENTOS NEGROS BRASILEIROS

    1. ABDIAS NASCIMENTO: INTERLOCUÇÃO POLÍTICA NAS FRONTEIRAS INSTITUCIONAIS

    CAPÍTULO 3: MOVIMENTOS NEGROS BRASILEIROS NO CREPÚSCULO DO XX

    1. MARCHA ZUMBI DOS PALMARES: UM PONTO DE INFLEXÃO IMPORTANTE

    2. DESDOBRAMENTOS DA ATUAÇÃO DOS MOVIMENTOS NEGROS: RECONHECIMENTO DA LUTA HISTÓRICA

    3. AÇÕES AFIRMATIVAS: UMA INTRODUÇÃO AO CONCEITO

    4. POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL

    CAPÍTULO 4: INCLUSÃO DA QUESTÃO RACIAL NA AGENDA POLÍTICA BRASILEIRA E O SISTEMA DE COTAS PARA NEGROS NOS VESTIBULARES

    CAPÍTULO 5: NOVOS AGENTES E FORMAS DE LUTA CONTRA O RACISMO NO BRASIL

    1. UM LIGEIRO PREÂMBULO

    2. RAP E RAPPERS: NOVOS SUJEITOS DO DISCURSO ANTIRRACISMO

    3. AS ONGS DE CUNHO RACIAL: NOVOS TRAÇOS NA FISIONOMIA DOS MOVIMENTOS NEGROS

    4. DE MILITANTES E INTELECTUAIS NEGROS A NEGROS INTELECTUAIS: A INTERAÇÃO DA ÉTICA DA CONVICÇÃO ANTIRRACISMO COM O CONHECIMENTO ACADÊMICO-CIENTÍFICO

    4.1 Congressos brasileiros de pesquisadores negros: acolhimento da questão racial protagonizada por negros intelectuais

    Considerações Finais

    Referências

    Paco Editorial

    Apresentação

    Em Educação: um pensamento negro contemporâneo, o sociólogo Sales Augusto dos Santos, com muito fôlego, se propõe a fazer um mapeamento de demandas por educação, apresentadas por movimentos sociais negros brasileiros, nos séculos XX e XXI. Vai além, aponta manifestações contrárias às reivindicações e propostas dos negros, expressas por representantes de grupos privilegiados do ponto de vista econômico, de formação acadêmica, de ocupação de postos proeminentes.

    O autor se preocupa em fazer uma apresentação didática do percurso histórico dos movimentos dos negros brasileiros para enfrentar e combater o racismo, exigir exercício pleno da cidadania, reconhecimento e valorização da história e cultura dos africanos e dos afro-brasileiros. Igualmente atento expõe críticas de opositores, bem como discute as posições tanto daqueles como desses.

    Chamam a atenção longas e detalhadas citações transcritas da literatura e de outros documentos, o que demonstra cuidado para proporcionar, ao leitor, a possibilidade de apreciar o teor de proposições e argumentos, podendo, assim, confrontá-los com interpretações e julgamentos formulados por Sales.

    A problemática das ações afirmativas, em diferentes circunstâncias e dimensões, constitui o eixo político e teórico escolhido pelo autor para elaborar análises e considerações. Nessa perspectiva, segundo ele, a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, realizada em 20 de novembro de 1995, em Brasília, constitui um marco nas lutas dos movimentos negros e na condução de políticas públicas de combate ao racismo. Sua realização, pondera, Sales, e notadamente o documento entregue ao presidente da república naquela oportunidade, leva o Estado brasileiro a reconhecer que o racismo tem promovido e sustentado desigualdades. Mais do que isso, leva, ainda que lentamente, a medidas para corrigir tais desigualdades, até se chegar a políticas públicas. Tais são os casos da Lei Nº 10.639/2003 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana e da Lei Nº 12.288/2010 que institui o Estatuto da Igualdade Racial. O cientista social Sales Augusto dos Santos não analisou aqui a Lei Nº 12.711/2012, a chamada Lei das Cotas, que dispõe sobre o ingresso de estudantes de escolas públicas nas universidades federais e nos institutos federais de educação, ciência e tecnologia, assim como não analisou o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186¹, ajuizada no Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro de 2009, pelo Partido Democratas (DEM), contra o sistema de cotas da UnB. Apreciações que serão feitas no seu livro subsequente a ser publicado no próximo ano, 2015.

    A obra em tela é útil aos interessados em conhecer sobre ações dos negros, empreendidas com a finalidade de garantir seus direitos de cidadãos. É indispensável para estudantes e professores, uma vez que possibilita examinar excertos importantes de documentos, o que lhes dá oportunidade de formular, com independência, opiniões, avaliações, além de conhecer o pensamento de Sales. A organização dada ao livro revela postura de professor que visa proporcionar a leitura de realidades e incentivar autonomia no estudo da literatura.

    Em Educação: um pensamento negro contemporâneo, o professor, o pesquisador e o militante do Movimento Negro, Sales, conjuga as três condições de vida que escolheu, sem, entretanto, ferir o rigor de um texto acadêmico, tampouco esconder o ardor da defesa dos direitos da população negra, da qual ele é integrante, muito menos o cuidado didático em informar e explicar.

    Quem tem gosto pelo estudo, quer aprofundar conhecimentos sobre políticas públicas, ações afirmativas, metas dos movimentos negros e desafios por eles enfrentados, encontra nesta obra uma fonte importante para trabalhar.

    São Carlos, primavera de 2014

    Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva²

    Prefácio

    Em tempos como o nosso, onde certo escopo político-jurídico ganha adensamento com normativas e leis voltadas para a inclusão da História da África e afro-brasileira nos currículos escolares (a 10.639 é o principal dispositivo desse empreendimento), de construção de planos nacionais destinados à aplicação da jurisprudência em vigor, de consubstanciação das ações afirmativas – cuja fisionomia ganha traços mais delineados com as políticas de cotas para negros e carentes nas universidades públicas – o livro Educação: um pensamento negro contemporâneo sobressai-se como uma referência capital para quem se dedica, no território da educação prioritariamente, aos estudos das relações étnico-raciais no Brasil.

    Ao percorrer uma trajetória extensa e sinuosa, com o firme propósito de demonstrar que políticas de educação efetivamente inclusivas não são tópico recente da agenda das organizações negras contemporâneas, tampouco fruto de ação exclusiva do Estado (os marcos fundantes do percurso encontram-se no período do pós-escravismo no fim do século XIX), a obra, de autoria do sociólogo Sales Augusto dos Santos, ultrapassa o umbral do estado da arte dos decretos e disposições legais dos últimos anos. O espectro sobre o qual o autor se movimenta é, assim, vasto e tem como fio condutor um dado inescapável para as análises do tema: além de fornecer as ferramentas necessárias para ingresso no mercado de trabalho, constituir-se em portal de entrada para melhoria das condições materiais de vida das pessoas, de funcionar como um termômetro que mede o grau de desenvolvimento dos países, a educação é, antes, o passaporte de ingresso dos indivíduos à humanidade plena. Para um povo que teve sua humanidade subtraída por força da brutalidade da escravidão, o tema é irredutível à lógica de inserção no mercado de trabalho. É válido destacar que o livro não desconsidera esse aspecto, visto como um dos mais importantes para a participação equitativa da população negra na vida nacional; antes toma-o como decorrente de um orientação com raízes mais profundas, com estatuto ontológico.

    A educação como bem primordial, como valor, na letra de Sales Augusto dos Santos, nos leva, desse modo, a uma canônica operação que reforça a luta para suprimir o racismo, dotar a população negra de dignidade e, por decorrência, edificar, no Brasil, o ideal de nação desenvolvida. Tudo isso não é mera cláusula retórica e assume relevo notável quando presenciamos um conjunto multiforme de políticas, oficialmente em caráter improrrogável, empenhado em fazer da educação um nexo prioritário para a melhoria dos índices de desenvolvimento humano do país.

    Acompanhando o desenrolar dessas políticas, o livro Educação: um pensamento negro contemporâneo assinala, em termos mais refinados, que, sem considerar o racismo como fundamento das desigualdades sociais, as políticas educacionais bem intencionadas são um convite ao malogro. Disso dá testemunho a persistência histórica dos movimentos negros em apontar as arestas que aquelas políticas não conseguiram sanar e, em muitos casos, contribuíram para agravá-las. (seja do ponto de vista de uma estruturação epistemológica, dado que a educação formal brasileira desconsiderou a África e os afrodescendentes como portadores de cultura e civilização, seja do ponto de vista do acesso da população negra aos bancos escolares: da evasão escolar na educação básica à ausência ou presença mitigada de jovens negros no ensino superior, os princípios norteadores da educação no Brasil tradicionalmente atravessaram esses problemas como cortina de fumaça).

    Munido de pesquisas histórica e sociológica de fôlego, Sales Augusto dos Santos compõe um rico painel que nos ajuda a entender as injunções políticas de hoje, cumprindo as etapas de investigação que integram um trabalho desse teor. Tecido com os fios de uma narrativa fluida, o livro é vertebrado por cinco capítulos que compõem um leque em que suas partes estão irremediavelmente conectadas.

    Das insurreições já proverbiais contra a escravidão, passando por iniciativas inaugurais na aurora do século XX, percorrendo os trilhos das reivindicações dos movimentos negros ao longo dos anos, o livro vai acumulando referências indispensáveis e rastreando os vínculos existentes entre as aspirações da aurora do século passado com o momento atual. Sem se perder no longo caminho, chega no século XXI, etapa em que as reivindicações de outrora passam a integrar o escopo das políticas públicas. Tal ingresso, como se sabe, é fruto de embates políticos de diferentes tonalidades entre o Estado e o movimento negro organizado.

    Examinando a conjugação das políticas elaboradas por um sólido movimento histórico, os movimentos negros, Sales Augusto dos Santos nos fornece linhas de reflexão que subjazem não somente às reivindicações históricas das organizações orientadas pela superação do racismo, mas que atingem o coração mesmo da práxis educativa, obrigando-a a incorporar novas perspectivas para o enfrentamento das assimetrias e melhoria dos índices educacionais. Essa é uma configuração incontornável que o campo da educação deve assumir, num exercício nem sempre cômodo de repensar suas fronteiras e territórios, crenças e saberes. Com olhar de sociólogo, o autor nos mostra que é preciso estar atento ao fato de que a esfera da educação é um território social marcado por disputas políticas-ideológicas sobre o seu próprio destino.

    Palmilhar a trilha aberta por este livro possibilita-nos, assim, dimensionar o papel da educação, em sua feição formal-institucional, na transposição do racismo que tem nesse território implicações de múltiplas faces: silenciamentos sobre a produção científica dos negros e não só sobre os negros, a ausência da matriz africana e afro-brasileira nas concepções pedagógicas... Ao fazê-lo, convoca-nos a reposicionar o campo da educação em um patamar abrangente que não se restringe apenas a atender às reivindicações de setores dos movimentos negros ou a cumprir uma disposição legal do Estado, mas a repensar naquilo que diz respeito ao humano e ao ideal de humanidade que compactuamos. Esse papel é, antes tudo, um princípio ético-político, como evocado pelo próprio autor.

    Tal princípio resvala no próprio estilo de Sales Augusto dos Santos. Originário de stylus, o termo corresponde, etimologicamente, a um instrumento pontudo de metal, punção que serve para furar ou gravar. Esse aspecto presente nos indica sua característica de marca, corte, furo. Qual a marca do autor neste livro, pode-se inquirir?

    O semioticista Roland Barthes advertiu que, habitualmente, as apresentações e prefácios de livros têm uma clara função: enunciar aquilo que o autor não pode dizer, por pudor, modéstia, discrição etc. Desse modo, essa modalidade de texto carrega os traços de uma relação ternária, designando uma fala intermediária.

    Pelo compromisso em trazer à superfície a luta histórica de alguns sujeitos para o alcance do estágio atual do campo étnico-racial/educação, em escandir o protagonismo de homens e mulheres negros na criação de dispositivos legais na seara das políticas de educação e redesenho do Estado brasileiro (geralmente em condições adversas, à margem do foro político nacional, há que se dizer), Sales desenha o horizonte de sua reflexão e, consequentemente, de seu modo de escrita, da sua marca autoral. Essa fala intermediária, a da apresentação/prefácio, que não alcança nem de longe a complexidade da obra, não afigura-se apenas como o cumprimento de uma regra de etiqueta, de dizer o que o autor não poderia, como frisou Barthes, mas de tentar modestamente chamar atenção para a virtude do livro: poder-se-ia dizer que o estilo de Sales (o estilo é o próprio homem, disse Buffon. O estilo é o homem a quem me endereço, corrigiu Jacques Lacan), cristalino em suas argumentações, empreende um refinado gesto de tributo, com cuidado minucioso para produzir uma narrativa, um discurso que faz de cada vivência e experiência dos sujeitos históricos uma ocasião de escrita. Escrita que vai além de fronteiras disciplinares (educação, sociologia, entre outros) e se espraia em todos os setores da sociedade. Desse modo, além de servir de referência importante para educadores, gestores públicos, intelectuais, como anunciado no início desta apresentação, diria, ao final deste texto, que o livro Educação: um pensamento negro contemporâneo endereça-se para todos aqueles que acreditam ser a educação a chave para a emancipação do homem.

    Rosane da Silva Borges³

    Introdução

    Indisfarçavelmente, a diversidade é a tônica da formulação e execução de ações, da adoção de prismas políticos e ideológicos e de outros filigranas dos movimentos negros do Brasil. Mas, a despeito do caráter multifário de suas fisionomias, podemos assegurar que, quando o tema em relevo é a educação, esses movimentos percorrem o leito de uma mesma perspectiva e assentam sua base sobre um denominador comum. Qualquer que seja o viés adotado para ajuizar a respeito da atuação das organizações negras nesse expediente, duas demandas ou cláusulas pétreas afiguram-se no passado e no presente como luta histórica inegociável, com urgência política improrrogável: primeiro, a reivindicação por uma educação formal de qualidade, capaz de ultrapassar os parâmetros eurocêntricos e, em seguida, o desenho de políticas públicas que valorizem e promovam a inclusão da população negra no espaço escolar-acadêmico.

    Esse traço incontornável, que atravessa de ponta a ponta os anseios das inúmeras agremiações voltadas para a superação do racismo e seus derivados, não é de todo curioso: instituinte do humano e fornecedora da justa medida da nossa formação, a educação tem correspondência direta com o percurso da existência humana, fazendo ver, assim, o sentido ontológico da educabilidade. Desse modo, homens e mulheres negros, escravizados e livres, divisaram nas fronteiras da educação uma via de acesso fundamental para a afirmação de sua plena cidadania.

    Sem sombra de dúvida, um olhar retrospectivo em torno das proposições dos movimentos negros desde a aurora do século XX nos permite observar o lugar privilegiado que a educação ocupa no rol de reivindicações dessas instituições já no pós-abolição (Abdias Nascimento, expoente da intelectualidade e militância negras, asseverou que a educação se constitui em um bem primordial para a população negra, ideário que fornece o fundamento para a ação política das organizações negras e de intelectuais engajados na questão). Tal percepção ganha, no final do século XX e na primeira década do XXI, nova ênfase por força da adoção de políticas de ação afirmativa, como veremos linhas adiante.

    Levar em conta a perenidade dessa temática na agenda das organizações negras, nos conduz a avaliar o estado da arte das políticas educacionais voltadas para a inclusão da população negra na contemporaneidade, marcado que é por uma conflitividade inevitável, dada a recusa absoluta de diversos setores da sociedade em admitir a aviltante presença do racismo no Brasil. Torrenciais contra-argumentos às políticas de ações afirmativas, com foco no sistema de cotas, entraram na disputa discursiva tentando desautorizar a plausibilidade dessas medidas e alcançaram expressiva visibilidade nos mais variados fóruns de formação da opinião pública (órgãos de imprensa, seminários acadêmicos, reuniões políticas).

    Parcelas significativas da intelectualidade brasileira – entre elas cientistas sociais, articulistas de renome dos principais jornais impressos e pesquisadores da área de relações raciais – se posicionaram e vêm se posicionando contra tais políticas em nome de alguns frágeis argumentos. Entre os mais propalados, realçamos: 1) as políticas focalistas deformam e subvertem o princípio inarredável da luta por ensino público de qualidade para todos; 2) tais políticas são, pura e simplesmente, cópias de políticas públicas estadunidenses; 3) as políticas de ações afirmativas para a população negra provocarão conflitos raciais no futuro e dividirão o Brasil entre negros e brancos. Perceber-se-á que essas afirmações não se sustentam quando perscrutadas à luz de um percurso histórico mais acurado.

    Antecipando nosso parecer a respeito desses embates (discutiremos mais detalhadamente sobre isso nos capítulos subsequentes), podemos dizer, sem exagero, que os movimentos negros empenharam-se desde seus primórdios no reajustamento das políticas educacionais com vistas a realocar, com justiça e dignidade, um contingente que esteve desde sempre marginalizado da vida nacional, exceto como força de trabalho escravo. Ao contrário do que afirmam algumas posições, este livro mostrará que ao longo de mais de cem anos de atuação desses movimentos foram demandadas por eles, não só políticas repressivas contra o racismo brasileiro, mas também políticas universalistas, valorativas e de ações afirmativas em diversas áreas do desenvolvimento humano. Da forma como são construídos determinados contra-argumentos, os discursos contrários, em sua maioria, soam como triste eloquência.

    Faz-se assim necessário, a título de esclarecimento preliminar, arrolar algumas definições e diferenças entre as políticas de inclusão destinadas a grupos historicamente discriminados. Acorremos às pesquisadoras Luciana de Barros Jaccoud e Nathalie Beghin, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA):

    as ações afirmativas e as políticas repressivas são entendidas [...] como aquelas que se orientam contra comportamento e conduta. As políticas repressivas visam combater o ato discriminatório – a discriminação direta – usando a legislação criminal existente. Note-se que as ações afirmativas procuram combater a discriminação indireta, ou seja, aquela discriminação que não se manifesta explicitamente por atos discriminatórios, mas sim por meio de formas veladas de comportamento cujo resultado provoca a exclusão de caráter racial. As ações afirmativas têm como objetivo, assim, não o combate ao ato discriminatório – no caso da discriminação indireta dificilmente passível de punição pelos instrumentos legais existentes e as exigências de prova que lhe são inerentes –, mas sim o combate ao resultado da discriminação, ou seja, o combate ao processo de alijamento de grupos raciais dos espaços valorizados da vida social. As políticas de ações afirmativas são medidas que buscam garantir a oportunidade de acesso dos grupos discriminados, ampliando sua participação em diferentes setores da vida econômica, política, institucional, cultural e social. Elas se caracterizam por serem medidas temporárias e por serem focalizadas nos afro-brasileiros, ou seja, por dispensarem um tratamento diferenciado e favorável com vistas a reverter um quadro histórico de discriminação e exclusão. As ações valorizativas, por sua vez, são [...] entendidas como aquelas que têm por meta combater estereótipos negativos, historicamente construídos e consolidados na forma de preconceitos e racismo. Tais ações têm como objetivo reconhecer e valorizar a pluralidade étnica que marca a sociedade brasileira e valorizar a comunidade afro-brasileira, destacando tanto seu papel histórico como sua contribuição contemporânea à construção nacional. Nesse sentido, as políticas e as ações valorizativas possuem caráter permanente e não focalizado. Seu objetivo é atingir não somente a população racialmente discriminada – contribuindo para que ela possa reconhecer-se na história e na nação –, mas toda a população, permitindo-lhe identificar-se em sua diversidade étnica e cultural. (Jaccoud e Beghin, 2002, p. 55-56)

    As autoras partilham da ideia de que o combate às desigualdades raciais no país requer uma combinação entre políticas universalistas e focalistas, assim como políticas repressivas. Como se verá neste livro, as reivindicações ou propostas do Teatro Experimental do Negro (TEN) nas décadas de quarenta e cinquenta do século passado podem ser classificadas de acordo com os três tipos de políticas ou ações tipificadas por Jaccoud e Beghin. Além disso, perfilam-se às políticas universalistas, o que indica que o TEN era uma organização avant la lettre no que diz respeito à implementação de políticas públicas, visto que estabelecia uma temporalidade (uma das características que distinguem as políticas de ações afirmativas das universalistas) para essas ações, que deviam emanar tanto do setor privado quanto do público. Ainda que o Teatro Experimental não tenha posto em marcha propostas diretamente relacionadas com a ação repressiva contra o racismo, veremos que ação deste tipo estava prevista nas proposições da Convenção Nacional do Negro Brasileiro, realizada em 1945-1946, e na seção Nosso Programa da primeira edição do jornal Quilombo, de dezembro de 1948.

    A despeito da força explicativa do fragmento textual de Jaccoud e Beghin, não compartilhamos da compreensão de que as políticas de ações afirmativas devem ser endereçadas apenas aos afro-brasileiros. Os negros são um dos grupos que podem ser beneficiados pelas ações afirmativas, como as mulheres, as pessoas de baixa renda, os portadores de deficiência física, entre outros grupos sociais. Assentindo com o sociólogo Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, entendemos que uma política de ação afirmativa só tem sentido quando o grupo para o qual tal política se dirige vive, de fato, uma situação de inferiorização e privilegiamento negativo no âmbito social geral (Guimarães 1997, p. 240-241).

    1. CATEGORIAS NORTEADORAS

    Em consonância com uma certa tradição da pesquisa acadêmica e com institutos de pesquisa consagrados, partimos da compreensão de que não há diferença significativa entre a classificação preta ou parda no que diz respeito à mobilidade social, visto que não existem distâncias telescópicas entre as duas; as fronteiras que separam pretos e pardos tendem a se esfumar, posto que a discriminação sofrida por esses dois grupos alcança semelhante intensidade.

    Desse modo, é plausível agregar as categorias preto e pardo que, somadas, resultam na população negra, segundo os parâmetros estabelecidos pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Antes de ser uma estratégia política, a junção das duas categorias obedece aos operadores de critérios técnicos. Estatisticamente, só aparecem diferenças e desigualdades raciais significativas quando se compara esses dois grupos raciais com o grupo racial branco. Isto é, de um lado, pretos e pardos estão muito próximos em termos de obtenção ou exclusão de direitos legítimos e constitucionalmente garantidos e, de outro lado, estão bem distantes dos direitos e vantagens auferidos pelos brancos no Brasil⁴.

    Diante do exposto, a concepção de raça que norteia as reflexões deste livro não faz aliança com o conceito biológico, que designa tipos humanos distintos física e mentalmente; raça não é uma realidade natural, tampouco estabelece hierarquias naturais entre os seres humanos (como a ciência nos informa, as características biológicas não determinam o repertório cultural, social, político e psicológico-intelectual do ser humano).

    Embora a raça não exista cientificamente ou, caso se queira, biologicamente, ela existe socialmente. Os indivíduos fazem uso de classificações raciais no seu dia a dia, uma vez que a noção de raça transbordou os limites da ciência e ganhou abrigo no tecido social. Ela passou a ser uma ideia aceita e reproduzida pelo senso comum, tornando-se uma categoria de uso popular muito poderosa. Há uma crença ou uma consciência prática de que existem raças diferentes e até mesmo desiguais, baseada no uso descritivo da raça, que se vale, por sua vez, do fenótipo de grupos e pessoas.

    E aqui fazemos uma rápida digressão para esclarecimento com respeito à coleta de dados sobre a composição racial brasileira. No questionário dos censos demográficos da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia

    Enjoying the preview?
    Page 1 of 1