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O bufão e suas artes: Artesania, disfunção e soberania
O bufão e suas artes: Artesania, disfunção e soberania
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O bufão e suas artes: Artesania, disfunção e soberania

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Longe de ser um livro inspirado em obras contendo escritos sagrados, com bordas douradas e capa de couro, reunimos aqui textos de variados autores, buscando uma diversidade de práticas e pensamentos que problematizam a bufonaria. Em termos ocidentais, longe da estabilidade e ordenação do mundo, em geral o tema da bufonaria parece vincular-se a risos derrisores e está mais próximo daquilo que se poderia chamar "ironia divina". Assim, neste nosso livro encontraremos bufões desagradáveis, questionadores de uma ordem vigente, críticos, oponentes e acusadores. E são também ¬figuras de grande vigor, com aparência disforme, inquietantes e de inteligência aguda. São seres que possuem voz própria e riso insensato. Eles riem de nós. Mais do que colaborar nos estudos sobre o Bufão no Brasil, este livro não desconsidera o interesse do leitor em geral que, além de rir, num dia qualquer se disponha a morrer de rir em uma bufonaria.
LanguagePortuguês
Release dateJan 30, 2018
ISBN9788546211340
O bufão e suas artes: Artesania, disfunção e soberania

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    O bufão e suas artes - José Amâncio Tonezzi Rodrigues Pereira

    final

    PREFÁCIO

    Este livro visa preencher uma lacuna nos estudos cênicos brasileiros, em especial no campo da comicidade e da bufonaria, uma arte que ressoa risos antigos e possui diversas ressonâncias desde sua aparição.

    Longe de ser um livro inspirado em obras contendo escritos sagrados, com bordas douradas e capa de couro, reunimos aqui textos de variados autores, buscando uma diversidade de práticas e pensamentos que problematizam a bufonaria. Em termos ocidentais, longe da estabilidade e ordenação do mundo, em geral o tema da bufonaria parece vincular-se a risos derrisores e está mais próximo daquilo que se poderia chamar ironia divina.

    Na Bíblia, em Jó (capítulo 40, versículo 19) elege-se o animal hipopótamo (beemote), e não o homem, como grande e possivelmente a principal obra do Criador: Ele é obra prima de Deus. Aqui, portanto, isto se constitui como verdade potente, cômica, grotesca e cruel. Assim, neste nosso livro encontraremos bufões desagradáveis, questionadores de uma ordem vigente, críticos, oponentes e acusadores. E são também figuras de grande vigor, com aparência disforme, inquietantes e de inteligência aguda. São seres que possuem voz própria e riso insensato. Eles riem de nós.

    Nas histórias de bufões sabemos que muitos deles foram perseguidos, condenados e mortos, especialmente na autodenominada sociedade cristã da Idade Média. O riso dos bufões ridiculariza e deforma a si mesmo e ao outro, o que foi e ainda é insuportável para determinadas sociedades.

    Outro aspecto que provoca rejeição ao Bufão, em certas culturas e épocas históricas, é que ele possui também uma postura festiva com seu corpo parodístico. A licenciosidade bufônica fez parte das festividades religiosas da Grécia antiga, permeada de muita zombaria e movimento vertiginoso, trazendo até hoje matrizes importantes para sua elaboração ficcional e performativa. Hoje, entretanto, festejar livremente parece perturbador.

    Então, como estimular e fortalecer a expressão cômica bufônica nos dias atuais? Como criar figuras que, ao performarem, possam nos retirar da seriedade rígida, da comodidade das certezas e crenças, para podermos jogar com tudo isso? Ora, um Bufão é quem nos faz brincar seriamente com nossas inflexibilidades e certezas. Por isso, é uma figura instigante, curiosa, divertida e tida também como perigosa até hoje. E, por isso, o Bufão pode não ser somente desagradável, mas degradante. Sendo assim, esta é a questão: o que precisamos degradar e a que (ou quem) desagradar, hoje, para vivermos nossa plena capacidade afetiva de existência?

    Mais do que colaborar nos estudos sobre o Bufão no Brasil, este livro não desconsidera o interesse do leitor em geral que, além de rir, num dia qualquer se disponha a morrer de rir em uma bufonaria. Sua temática pretende contemplar uma reflexão acerca das noções de artesania (o fazer, por meio de processos técnicos e intelectuais específicos na arte), da disfunção (o disforme e a discussão sobre semelhança ao divino, bem como os impactos sociais disso hoje) e da soberania (aqui entendida à luz, especialmente, da filosofia de Georges Bataille). Mostrando-se como assunto instigante, o Bufão provoca reflexões sobre o grotesco, o disforme, o monstruoso e, mais ainda, sobre alteridade, hibridismo, interculturalidade e desvio. Alguns desses assuntos têm sido de alto interesse, nos dias de hoje, com vistas ao aprofundamento e realização de discussões transversais no âmbito acadêmico e fora dele.

    O livro apresenta-se dividido em duas partes, trazendo reflexões que analisam a presença e ato do Bufão em dois âmbitos, sendo Em Cena a parte 1 e Em Sociedade a parte 2. Temos a participação de dois autores estrangeiros, ambos inseridos na segunda parte. Em Practicas de lo real bufonesco en la escena contemporânea, o chileno Andrés del Bosque traça relações entre a prática e o papel do Bufão em diferentes períodos históricos e obras literárias, que sustentam sua permanência e importância nos dias atuais, em que efetivos bufões como Leo Bassi e Albert Boadella mostram-se fundamentais. O outro texto, intitulado Sobre bufões, tempestades e ventos fortes ou a estranha vida que prevalece, é de autoria da filósofa portuguesa Ana Godinho, que concebe o Bufão como duplo e cúmplice do humano, desconsertante ao poder, à regularidade e à norma estabelecida. Um ser em ruptura e anárquico que, com criações cômicas e inaceitáveis, encarna a potência da desordem.

    Os outros autores são professores e artistas brasileiros. Beth Lopes, docente da Universidade de São Paulo (USP), traça um histórico das formas de atuação sócio-cultural e procedimentos cênicos do Bufão. Além das referências artísticas – entre elas, a máscara –, em termos sociais a autora enfatiza que na prática do bufão há um misto de diversão e rebelião, usando como exemplo alguns clássicos do cinema e manifestações recentes ocorridas no Ocidente.

    Bya Braga (UFMG), em seu texto Figuras bufônicas: cultura material de ator e outros bichos, disserta acerca de um processo de aprendizagem e pesquisa sobre a atuação bufônica no âmbito universitário, enfatizando a relação da artesania artística bufônica, como técnica específica, com a noção de cultura material tratada na Antropologia, bem como o potencial de ativismo contido nas figuras bufônicas.

    A criação do Bufão, por meio do conhecimento histórico e técnico de uma atuação corporal, é tratada por Cláudia Muller Sachs (UFRS). Ela descreve algumas práticas de criação para a composição das personagens e cenas da peça Gueto Bufo, destacando as abordagens de Jacques Lecoq e de Phillippe Gaulier no ensino cênico que relaciona corpo e jogo.

    O texto Bufonaria, riso e anomalia, de José Tonezzi, propõe a percepção de corpos que naturalmente se impõem, incidindo na presença e no comportamento de seres tidos como bufonescos que causam a ruptura no âmbito das etiquetas e das regras do ser social. Nos termos de Roberta Casa Nova, em A estratégia do prazer ou o prazer da estratégia, ainda que se valha de deformações corporais, vinculando-se à estética do grotesco e também a figuras tidas como párias da sociedade contemporânea, o bufão está distante de uma causa ou ideologia a ser defendida. Ele visa puramente a sobrevivência e manutenção da liberdade e do prazer, seja pela paródia ou pelo riso blasfemo.

    A contestação pela dissonância e pela paródia consta de rituais indígenas, o que aproxima os seus realizadores da prática de palhaços e bufões na sociedade euro-ocidental. É o que Mário Fernando Bolognesi traz à reflexão em Bufões e palhaços: entre o sagrado e o profano. Mediação entre o humano e o divino, entre as esferas e classes sociais ou entre a seriedade e o divertimento parece ser o papel do Bufão, seja pelo cumprimento de uma missão ou prática de uma profissão.

    O texto de Andrea Flores (UFPA), Risos grotescos ameríndios na floresta amazônica ou um corpo em processo de animalização, é uma narrativa poética, em modo de carta, na qual ela revela a presença da comicidade grotesca nas narrativas míticas ameríndias. Comenta, ainda, sobre a existência dos seres da floresta responsáveis pelo riso, bem como sobre seu processo performativo de animalização.

    Eden Peretta colabora com texto intitulado Bufô? Aproximações entre a bufonaria e a dança butô. A partir de um olhar inicialmente panorâmico, seguido de aprofundamento na dimensão e no sentido de tais práticas, detecta-se que os princípios subversivos e vínculos históricos, políticos e sociais presentes na dança criada por Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata tornam possível, sim, atestar a tal prática o codinome de bufonaria. As referências e justificativas detalham-se na reflexão do autor.

    Com base no de Norbert Elias sobre o processo civilizador, Ricardo Lucena e José Tonezzi desenvolvem uma reflexão sobre o mal comportamento e possíveis mazelas políticas que fazem detectar a presença do Bufão na sociedade contemporânea. Por sua vez, Vanessa Bordin trata dos papéis e da consequente função exercida pelo bufão/bobo na Idade Média e no Renascimento. Tendo como referência obras de Mikhail Bakhtin e Georges Minois, a autora reflete sobre o corpo grotesco nas festas populares, com sarcasmo e paródia tidos (ou não) como instrumentos de subversão e questionamento da hierarquia e da convencional ordem do mundo.

    O Bufão no ser e no cerne das coisas é a colaboração de Patrícia Franca-Huchet (UFMG) que aborda, neste texto, a força de uma caricatura e de uma charge, descreve um breve histórico sobre o bufão, bem como apresenta traços da presença bufônica na literatura e, especialmente, nas artes visuais comentando sobre artistas como Andy Warhol, Marcel Duchamp, Fabrice Hybert e Matthew Barney.

    Por fim, destacamos que o Bufão tem potência criadora e expressiva de também espantar nossos medos, desdramatizando nossa existência curta na terra. Transgredir tabus é uma ação continuamente necessária, mas é uma ação que contém um medo enorme. Assim, aprender a conviver e criar figuras bufônicas, que sejam ressonâncias do arquétipo do Trickster, que nos auxiliem também a vencer o medo, trata-se de uma atividade vital em nossa sociedade e também para nossa vida pessoal. E se a angústia é considerada na psicanálise como a sensação mais verdadeira de todas, cabe ao espírito bufônico enfrentá-la em nós.

    O Bufão é o nosso exorcista, por excelência.

    E ele é, acima de tudo, um acróbata do riso, ainda que pese como um hipopótamo.

    Bya Braga e José Tonezzi

    Organizadores

    1

    BUFONARIA: TRADIÇÃO E CONTEMPORANEIDADE

    Beth Lopes

    O mundo da bufonaria

    Este texto é dedicado ao bufão, figura que aparece através dos tempos e em distintas culturas para nos fazer rir. Meu texto, no entanto, não tem essa mesma propriedade e graça para fazer rir e divertir o leitor. São reflexões sérias acumuladas ao longo de muitos anos de estrada. Tem, no entanto, a pretensão de ser um texto para pensar sobre outras possibilidades de ver o mundo numa conexão estreita com a arte. E, para que seja possível fazer ambas, a arte e a vida, rindo.

    Quem é o bufão, de onde vem e o que faz são questões que a memória brasileira se esforça para responder já que estudos sobre ele são, na maioria, da tradição europeia. Tais imagens que surgem em fragmentos vêm através da história das artes, do riso e do teatro, associadas ao Bobo da corte. Ele reaparece do fundo de nossa memória como uma figura vestida com roupas coloridas e esfarrapadas, com um chapéu de guizos e um bastão que, na ponta, traz um boneco dele mesmo em miniatura. Assim ele se monta, trazendo nessa alegoria-figurino, a imagem invertida de seu soberano, o rei a quem ele serve. O bobo da corte ou do rei é uma espécie de bufão solitário, uma versão grotesca e teatral do próprio rei. Sendo um companheiro inseparável do nobre soberano desde os tempos primitivos e estabelecendo-se na corte da Idade Média à Idade Moderna, ele atua como uma réplica grotesca da maior autoridade da nação. Também é conhecido como o louco do rei, o qual chama o riso escarnecedor como se fosse um jogo de espelhos que reflete, em alternância, a imagem do personagem que o rei representa e a do personagem que representa a imagem derrisória dele mesmo.

    O contexto do bufão vem encantando os atores da atualidade que veem nele, não só uma técnica para comediantes, mas uma espécie de libertação dos modelos morais de comportamento e das metodologias de atuação tradicionais. Assim, a questão que norteia este texto é investigar como o estudo da história do bufão pode representar uma outra dimensão na formação do ator contemporâneo. Olhar para o bufão hoje não supõe perder as suas raízes, pois é só a partir delas é que se pode restaurar e transpor essa figura em consonância com os temas mais atuais.

    As diferentes formas, dos ritos aos espetáculos, de gêneros e estilos da bufonaria em referências que versam sobre o teatro, festa e riso centram-se, especialmente, no longo período que abrange a Idade Média e o Renascimento. As referências mais profundas, no entanto, revelam a presença de seres semelhantes ao bufão na Pérsia, no Egito, na Grécia, na África, e depois em Roma, séculos antes da Era Cristã.¹

    Destacam-se formas artísticas similares que, mesmo diante da seriedade do período medievo, mantiveram-se presentes durante as festas pagãs do calendário cristão, como o carnaval, seja para celebrar a chegada da primavera, a fertilidade ou o embate entre a vida e a morte, num tempo de inversão das normas, da fartura de comida e bebida, da liberdade de expressão e do exercício da sátira. O humor parece equilibrar um mundo de contradições entre pobres e ricos, patrões e empregados, santos e loucos, além das questões filosóficas em torno de um teatro sagrado e profano.

    No Renascimento, os bobos e bufões² eram constantes nas cortes, ao lado de seus monarcas, mas também eram convocados por particulares, corporações, tavernas, e até bordéis. Tal atividade, assim nos parece, não era apenas uma forma de entretenimento, nestes períodos da história, já que ao se identificar na profissão ele ganhava um honrado status social. Uma profissão cujo aprendizado requeria uma técnica aprimorada e, especialmente, talento. Era uma profissão de limites incertos, já que não se tratava apenas de alguém encarregado de fazer o público rir. Falamos ainda de alguém, cujos limites de sua arte iam além de provocar muito riso debochando dos outros. Era uma espécie de sombra do rei que, em muitos casos, acumulava a função de seu confidente e conselheiro e, portanto, uma testemunha silenciosa dos conflitos de seu tempo.³

    Bem ao gosto popular, tais manifestações salientavam, por outro lado, o valor das comunidades e muitas produções eram, geralmente, feitas por trupes itinerantes, razão suficiente para se pensar sobre a predominância e valor de uma vida em grupo. Na fragilidade do coletivo de trabalho enlaçavam-se a arte e a vida, num misto de ideologia e necessidade, questão que hoje é tão cara ao artista contemporâneo e que se alinha em vários aspectos às noções de performatividade e teatralidade.

    A reunião dos cômicos e a transmissão dos macetes da sua arte, se podiam ver, também, nas famosas "famílias de clowns e bufões" que iniciavam na arte os irmãos, primos, tios e avós, costume comum ainda em nossos dias no ambiente circense mais tradicional. Ganhou enorme fama, neste sentido, o circo da família de François Fratelline e em nossos dias ainda vimos Leris e o pai, Nani Colambaione, assim como os conhecidos brasileiros Picolino e Arrelia que também cultivaram a tradição circense. Assim eram as trupes de Commedia dell’Arte, cuja estrutura não era menos familiar do que a dos outros estilos, mas, mais do que os outros, organizavam-se em grupos com estratégias administrativas que garantiram, por um bom tempo, pelo menos, até a Idade Moderna, a permanência de seus coletivos.

    São todos parte de um amplo campo de prática cênica: a bufonaria.

    Incluem-se aqui todos os loucos e patifes que se dedicam a divertir o público, em todos os tempos. São eles a origem desta legião de atores cômicos que fazem prevalecer uma arte de aparente fácil compreensão, mas de difícil delimitação, principalmente devido às nuances que marcam o território teatral das diferentes máscaras.

    Ainda no período do Renascimento que, como se sabe, foi de grandes transformações culturais, políticas e religiosas; o homem, em seu processo de evolução, nesta época, tinha consciência de si mesmo como parte de um povo ou de uma família, mas só muito mais tarde perceberá o valor do indivíduo.

    Mais um bom motivo para constituírem-se os bandos de bufões que inspiram até hoje as pesquisas artísticas e pedagógicas, inicialmente na École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq e, alguns anos mais tarde, na École Phillipe Gaulier⁴ e destacam-se modelos pedagógicos e artísticos que estão bastante disseminadas entre nós brasileiros.

    Nessas duas escolas europeias independentes, embora tenham origens e semelhanças ente si, elas trazem visíveis variações em suas abordagens. Nota-se nas imagens de bufões de Lecoq que os figurinos são mais limpos, coloridos, harmoniosos, com formas bem desenhadas e, na de Gaulier, a representação traz um bando de sujos, feios e obscenos, o que denota diferenças de concepção. A condução artístico-pedagógica corresponde às diferentes perspectivas do estilo e visão de mundo de cada um. Gaulier explica como ambos começaram o estudo dos bufões:

    Tinham duas vias: a primeira é a do esteticismo artísticos; os bufões elegantes, graciosos, refinados, bem-vestidos, os dos jogos da sorte (cartas, tarô, etc.). Eles vinham do céu, rindo das imperfeições e se divertindo com elas. A segunda, a dos bufões grosseiros, ordinários, ásperos, rudes, primitivos, malcriados, desengonçados, obscenos, deformados, toscos, loucos, pederastas, putas, judeus, aqueles que forma arar nos campos de concentração, aqueles que antes do S XVI blasfemavam nas igrejas católicas, no Dia do asno, as bufonas que forma expulsas do paraíso.

    [...] Jacques que não gostava de conflitos de nenhum tipo, mas gostava das coisas artísticas, escolheu a primeira via de pesquisa. Para Deus, a arte, os artistas refinados! [...] Ele me chamava de anarquista. Para mim era uma saudação! [...] Jacques seguiu seu caminho de bom moço e eu, o meu.

    Uma pedagogia do gesto

    A viagem do ator pelo amplo território da bufonaria é garantida em ambas as pedagogias, afirmando-se como uma virada na visão hegemônica da formação stanislavskiana. A partir dos anos 70/80 a escola de Lecoq tornou-se sinônimo de teatro físico, de um teatro que se constrói pelo e com o corpo do ator e não pela análise do texto dramático. A compreensão de um outro caminho pedagógico e artístico que se constrói a partir da percepção da materialidade do corpo do ator e sua potência criativa. Não se trata de uma metodologia que substitui outra, ao contrário, trata-se de uma linguagem com suas especificidades que deve encontrar o contexto temático e dramatúrgico para este fim. Aliás, após anos trabalhando com jovens atores e diferentes propostas de temas e textos para o exercício da atuação, cada vez mais, tenho a convicção que cada escolha do que fazer no teatro passa por uma metodologia específica que sempre deverá encontrar o modo adequado de atuar para cada montagem teatral. Desse modo, trabalhar com o bufão pede uma dramaturgia específica, assim como um texto de Brecht, por exemplo, pede uma linha de atuação correspondente.

    O meu contato com este universo se deu lá pelos anos 80 com Inês Marocco, minha professora e, logo em seguida, minha colega da Universidade Federal de Santa Maria, que me mostrou as possibilidades do jogo do ator e me ofereceu abrigo na cidade de Paris, enquanto ela fazia mestrado e estudava no Lecoq. Desde então passei a praticar e pesquisar o corpo na mímica, na Commedia dell’ Arte, no clown e no bufão.

    Também foi com o espetáculo Reis Vagabundos (1982-83) e Império da Cobiça, do grupo Tear, dirigidos por Maria Helena Lopes, que vi concretamente o trabalho com o clown e com o bufão se tornar algo sério. Naquela época, o teatro experimental em território gaúcho começava a adotar a prática da improvisação e dos treinamentos corporais, diferentes das montagens que se erguiam a partir de estudos de mesa de textos teatrais. Maria Helena Lopes é uma forte referência sobretudo com o espetáculo Crônica de uma Cidade Pequena (1984), cujo processo de criação tornaria emblemático esse modo de pesquisar a linguagem cênica.

    Vários artistas gaúchos se interessaram pela escola de Lecoq, recebendo a herança do teatro físico, improvisacional, coletivo, das relações criativas entre diretores e atores, dos tempos de dedicação à pesquisa e disciplina. Este teatro surgia como uma alternativa ao textocentrismo, forma em que predominava o texto teatral nos modos tradicionais de criação teatral. Nesse sentido, o conhecimento da gestualidade, inclusive a da bufonaria, passou a constituir a matéria-prima dos processos de criação deste período e seguintes.

    Na virada dos anos 80 para os 90, em São Paulo, as experiências muito criativas e a direção inteligente de Cristiane Paolo-Quito foram seminais para a avalanche de estudos e espetáculos com o clown, influência dessa linhagem europeia. As máscaras passaram a fazer parte das metodologias de atuação, inclusive com Tiche Vianna que, até hoje, se dedica à renovação das máscaras da Commedia dell’Arte. Muitos outros artistas transitam pelo estudo das máscaras ampliando o interesse pedagógico por elas.

    Cresce, desde então, o interesse nos estudos brasileiros em torno dos bufões, clowns, commediantes dell’arte, entre outras máscaras que alinham-se ao universo da bufonaria, habitantes de um universo de estudos teatrais ligados aos movimentos populares e sobre os quais ainda resta muita pesquisa a fazer.

    Nas escolas europeias o projeto de inclusão da bufonaria segue alinhado com o estudo de outras máscaras e o jogo do ator, sendo que na École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq, até hoje, segue-se a linhagem da gestualidade e análise de movimentos e, na École Philiphe Gaulier, os estudos sobre máscara neutra, jogo, clown e bufão transitam em contraste com os estudos da dramaturgia, melodrama, Shakespeare, Tchéckov, Feydou e tragédia grega.

    A prática do bufão e do clown, entre nós, tornou-se uma prática importante na formação de atores, assim que entraram para as escolas e universidades. Os atores ganharam novas possibilidades de atuação ao lado dos métodos mais tradicionais. Se engana, no entanto, quem insiste em desmerecer o trabalho da bufonaria, atribuindo facilidades no seu traquejo, mas certamente o fato de levar o ator ao descobrimento de "seu clown ou seu bufão" mexeu com questões bastante adormecidas nos próprios atores: as suas emoções, as fragilidades e o prazer do jogo.

    Como as leis e princípios da bufonaria desconstroem a ideia da ilusão perfeita da realidade, também, a redescoberta da expressividade do gesto do ator como matéria-prima da construção das figuras e do jogo proveniente delas aprofundou a intrínseca relação ator-personagem, perfurando as camadas interiores da gestualidade e das emoções do ator. O mergulho nesse universo, portanto, não se faz apenas com a técnica: é preciso se reinventar.

    Gaulier é impiedoso na sua pedagogia, incorporando a mesma atitude amoral do bufão. Ele nos

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