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O Arqueiro Dourado: As crônicas dos halos folclóricos
O Arqueiro Dourado: As crônicas dos halos folclóricos
O Arqueiro Dourado: As crônicas dos halos folclóricos
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O Arqueiro Dourado: As crônicas dos halos folclóricos

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Após constantes catástrofes a assolarem o planeta Terra e modificarem a geografia continental, surgiram os folclores, que passaram a conviver com os humanos sobreviventes e os feiticeiros, divididos entre os do bem (magos) e os do mal (bruxos). O modo de vida era semelhante ao que um dia fora conhecido como período medieval, embora certo conhecimento tecnológico estivesse presente na sociedade em prol da sustentabilidade.
A Mãe Natureza, fenômeno que protegia o equilíbrio terrestre, criou, a partir dos folclores e sob a influência da lua, os Halos Folclóricos que, de tempos em tempos, reacendiam-se a fim de impedir ameaças iminentes ao planeta.
No segundo reacender desses halos, décadas depois de sua primeira aparição na Terra, é que Hugo Dhuí Luz, aprendiz na Liga dos Guardiões, descobre, por meio de seu mentor, Mestre Tarsila, que deverá partir para outro reino (Fartura), onde terá a missão de, a cada lua cheia, encontrar tais halos e mantê-los em segurança, até que cada ser destinado pela Mãe Natureza apresente-se como seu guardião e se una a seu respectivo halo.
Em sua missão, Hugo se deparará com sacis e o temível Boitatá, além de bruxas interessadas em se apoderar dos halos. Conhecerá Lara, uma jovem inocente acusada de matar o próprio pai, e que possui um dom, relacionado aos folclores, que muito lhe será útil em sua aventura. Encontrará o Arco e Flecha de Ouro em meio a um torneio pela mão da princesa de Fartura, enquanto investigará o sumiço das Adagas de Esmeralda (ambos, Halos Folclóricos), presenciando, do reacender do halo dourado, o efeito causado sobre a lua. Terá que protegê-lo da ganância de homens e sacis, contando com a ajuda de seu fiel companheiro Renus e dos sobrinhos de Baronesa Alethéa, que o acolhe nesse desconhecido reino.
Por fim, desbravará a Floresta das Araras e o Pântano do Fogo-Fátuo, passando por uma tribo indígena, em busca do verdadeiro guardião a ser reconhecido pelo folclore que o protege, tendo o desafio de controlar sua expectativa de se tornar tal eleito, conhecido outrora como "O Arqueiro Dourado".
LanguagePortuguês
PublisherViseu
Release dateDec 1, 2018
ISBN9788554546878
O Arqueiro Dourado: As crônicas dos halos folclóricos

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    O Arqueiro Dourado - Renato J. Mello

    escrita.

    Personagens

    Hugo Dhuí Luz

    Renus Luz

    Mestre Tarsila

    Mestre Draus

    Mestre Éllius

    Mestre Dimitri

    Mestre Jim

    Mestre Iori

    Rustian Paixão

    Lara Mel Paixão

    Baronesa Alethéa Bravura

    Artemius Bravura

    Henri Bomtempo

    1° Ministra Barbarela Verdasco

    Tião-Peçonha (saci)

    Rei Willian Fracasso

    Rainha Essília Boaventura Fracasso

    Príncipe Carolino Boaventura Fracasso

    Princesa Marjorie Boaventura Fracasso

    Imperador Tahmores Veraneio

    Imperatriz Keyko Bifum Veraneio

    Príncipe Nobuyuki Veraneio

    Imperatriz Penélope Dom Veraneio

    Princesa Stéfanie Veraneio

    Isbelli (escrava)

    Mago Jobim

    Duquesa Setsuyo Bifum

    Conde Eulico Pimenta

    Condessa Daubreuli Pimenta

    Sue Kellen Pimenta

    Alhandra Pimenta

    Pajé Aboré (índio)

    Uaná (índio)

    Picumã (saci)

    Coró (saci)

    Cacau (saci)

    Fabrício Luz

    Ricardrik Contento

    Rui Trapaça (pirata)

    Vitor Verruga (pirata)

    demais aprendizes, piratas, sacis, soldados e plebeus.

    Prólogo

    O chilrear animado do desconhecido pássaro, na manhã preguiçosa, de garoa fina, era o único som a manifestar-se no silêncio do pântano. Em alguma árvore, entre tantas a brotarem do lamaçal, o pássaro cantarolava, farfalhando folhas com o bater de suas asas. Somente sua algazarra era ouvida. Nem o príncipe nipônico, nem seus guardas ou escravos, vislumbravam-no.

    A comitiva de Nova Dunas estava mais preocupada com os ruídos que poderiam vir da gruta que cercavam. Escondidos no limite da mata, aguardavam qualquer sinal dos três oficiais, pertencentes à guarda imperial, que seguiram à frente para vasculhar o local. Há mais de uma hora haviam se embrenhado na escuridão da caverna, o que impacientava o destemido e orgulhoso príncipe. Nenhum som emitia-se de lá.

    A jornada até a gruta completava naquela manhã três semanas. Nobuyuki não sabia dizer o porquê da demora. Talvez, em algum trecho, tivessem se perdido. A mata fechada da Floresta das Araras por vezes era traiçoeira, enganando a direção aos aventureiros.

    Os guardas e escravos atribuíam a culpa, justificando a delonga para o soberano, ao extenso deslocamento desde a cidade imperial. Atravessaram o deserto de Nova Dunas, enfrentaram a subida da cordilheira para depois descê-la do lado oposto e, assim, penetraram na verde, densa e úmida selva de Fartura até alcançarem aquele pântano lamacento e fedorento. Plenamente justificável a demora.

    A dificuldade maior estava para ser enfrentada, entretanto. A temível fera a habitar a gruta poderia surpreendê-los, impedindo-os de completarem a missão. Desconheciam os perigos a que se arriscavam. Quase nada sabiam a respeito do que os farturenses chamavam de Boitatá, um dos folclores a habitar, livremente, as férteis terras do reino que os avizinhava.

    O príncipe teria sido um dos primeiros a infiltrar-se na gruta se não fosse a unanimidade de seus súditos aconselharem-no a aguardar a pesquisa de campo dos oficiais. Todos sabiam que deveriam regressar com Nobuyuki intacto. Os guardas, para evitarem a escravização, e os escravos, com a promessa de se tornarem livres, desde que se tornassem membros da guarda imperial.

    Só que os três desbravadores não regressavam. E nenhum sinal era dado, o que agoniava a todos, principalmente a impaciência do príncipe nipônico.

    O dia foi avançando, e a cada instante tornava-se mais dificultoso frear o ímpeto audacioso de Nobuyuki.

    – Basta! – Metade da manhã já havia se esgotado. Saltando da árvore em que se acomodara, afundou o coturno na lama e, em tom de ordem, determinou: – Acompanhem-me!

    Em poucos passos, o chão tornara-se firme. A dificuldade agora vinha do pequeno paredão a proteger a entrada da gruta, metros acima do solo. Lá foram homens em escalada, fixando-se às pedras, encaixando braços e pés entre saliências e falhas do flanco.

    Sem grandes dificuldades, o príncipe foi o primeiro a alcançar a fenda na pedra. Por ela, uma pessoa atravessaria em pé. Atrás, seus homens traziam armas e tochas. Apenas dois escravos permaneceram à base da caverna, guardando os pertences e alimentos do grupo. Eram os menos habilidosos nas artes marciais.

    Em posse de espadas e lanças, com as tochas a queimar em fogo para a luminosidade dentro da gruta, a expedição preparava-se para ingressar no habitat de Boitatá.

    O que era para ser uma entrada cautelosa, a fim de explorar o ambiente e evitar atrair a atenção do monstro, tornou-se uma embrenhada alvoroçada e desmedida. Antes que o primeiro atravessasse a fenda de acesso à gruta, gritos pavorosos e ruídos de explosões arrepiaram a espinha dos membros da comitiva. Boitatá estava em casa.

    Com a partida destemida de Nobuyuki à imersão na escuridão, oficiais e escravos sentiram-se obrigados a acompanhá-lo. Infindáveis corredores abriam-se à frente, reuniam-se novamente, voltavam a se dividir, e tomavam outras direções dentro da caverna, dispersando a expedição.

    Os berros e repentinas ondas de calor conduziam o príncipe pelos tortuosos caminhos a serem escolhidos. Ferozes silvos também eram indicadores de onde poderiam encontrar os oficiais atacados.

    A cada passo, a cada nova encruzilhada de estreitos corredores, mais dispersões do grupo, e Nobuyuki não sabia se se aproximava ou se se distanciava de seu objetivo. Ofegante de tanto correr, sofreu a primeira indecisão ao deparar-se em mais uma bifurcação. De ambos os lados parecia vir o barulho... os gemidos... o atemorizador calor. Olhou para trás, e viu-se acompanhado de apenas dois homens. Dos demais, uma parte certamente estava perdida como ele. A outra, a contar pelos sucessivos gritos, já havia se deparado com a cobra folclórica.

    – Por aqui! – Decidiu ao léu, e foi.

    Pareceu-lhe a escolha certa. Toda a balbúrdia do ataque tornava-se mais nítida como a luminosidade local. A caverna parecia estar iluminada em seu centro por alguma luz que Nobuyuki não arriscava palpitar. O importante, no entanto, era poder vislumbrar seu oponente. Mas o oponente também poderia vislumbrá-lo.

    O caminho foi se encurvando até o corredor findar ao alto de uma gigantesca galeria, iluminada por fogueiras distribuídas ali e acolá. Abaixo, Nobuyuki deparou-se com seus homens esquivando-se de botes, e atacando a imensa cobra a cuspir labaredas de fogo. Um fogo estranhamente azulado.

    A atenção maior do príncipe, no entanto, foi atraída pelo reluzir de um dourado abandonado ao chão. O artefato que viera buscar, que motivara toda aquela expedição.

    Recostando-se à parede, Nobuyuki deslizou pela encosta da galeria até alcançar a arena em que homens e Boitatá batalhavam. Embrenhou-se em meio a ela, embora escravos e oficiais fizessem de tudo para evitar que seu soberano ficasse frente a frente com a cobra. Muitos deles estavam feridos, com partes do corpo queimadas.

    Desviando da cauda a chacoalhar aqui, chicotear ali, o príncipe nipônico tentava alcançar o artefato de ouro que Boitatá protegia com seu corpo, afastando de quem quer que tentasse dele se apoderar. A cobra folclórica estava cercada por todos os lados, mas tinha plenas condições de defender-se com sua cauda a agitar-se para toda e qualquer direção, acertando um, esmagando outro contra a parede, passando rasteira nos que não desviassem de seu imprevisível percurso.

    Nobuyuki conseguia desviar dos ataques e botes sem grandes ameaças, seguido e protegido por um dos escravos, em seu encalço desde que ingressaram na gruta. Por ora, o folclore não focara em atacá-lo. Preocupava-se com os demais que, afoitos em serem os heróis a surrupiarem o artefato, arriscavam-se no combate frontal com a fera.

    Alcançar o que viera buscar parecia impossível. A cada vez que se aproximava, Boitatá alternava a posição de seu corpo e do bem que protegia, com sua vida, dos invasores.

    Alcançando a traseira da cobra, Nobuyuki arriscou-se em disparada. Baixou a cabeça na primeira estilingada da cauda em sua direção. Na volta desta, teve de encurvar-se o quanto pôde ao chão, dobrando o corpo até cair de costas. Foi sua sorte. Sentiu o raspar em seu corpo da ponta em escamas eriçadas.

    Uma mão esticou-se a erguê-lo. O escravo a acompanhá-lo. Estava mais interessado em protegê-lo do que em valer-se do momento para a glória pessoal.

    O príncipe insistiu no plano traçado. Continuou a percorrer a lateral do corpo que se rastejava no solo, sustentando o restante a erguer-se para o alto, atacando com botes e ateando fogo.

    – Arr! – irritou-se em mais uma tentativa frustrada. Percorrera toda a lateral do corpo viscoso para quando, a passos de sua conquista, este mover-se como uma onda até deslocar o artefato ao lado oposto.

    Boitatá agora reparava em Nobuyuki. O primeiro ataque veio numa trombada em escamas, lambendo-o no rosto em viscosidade, atirando-o para o lado. Na sequência, antes que pudesse se recompor, labaredas de fogo sopraram em sua direção.

    Nobuyuki teria sido seriamente torrado se não fosse o escravo pular sobre si, desviando-o do fogaréu. A coxa direita mostrou-lhe a ardência que teria de suportar no corpo inteiro, caso resistisse. Sangrava em carne viva, mas não estava pior do que a lateral do dorso direito de seu escravo. Este ainda teve forças para recompor-se ao novo ataque de Boitatá, arremessando sua lança contra a cabeça da cobra, que teve de recuar no bote.

    Aproveitando a distração, o príncipe partiu ao encontro da fera. Os pés, da corrida, buscaram o equilíbrio ao contato com o solo gosmento em que Boitatá se deslocara e, no escorregão, aproveitou o embalo para esticar os braços. Teria uma única chance a cruzar com o artefato. Um arco e três flechas, tudo esculpido a ouro. Agarrou-os como pôde, utilizando-se do impulso da corrida e tombo para distanciar-se de Boitatá.

    Enfim, o Arco e Flecha de Ouro em suas mãos.

    Não havia tempo para vangloriar-se ou admirar a famosa arma que descobria realmente existir. As lendas sobre sua existência eram verídicas. Um Halo Folclórico, Nobuyuki acreditou. Sim, eles existiam.

    Aos berros de seus companheiros, o príncipe agora se lançava em fuga. Desviou três vezes da cauda a chacoalhar. Nas esquivadas, derrubou uma das flechas a tilintar no chão. Por sorte, um oficial que o seguia dela se apoderou.

    No relance para trás, Nobuyuki ainda viu aquele fiel escravo, e mais dois a desviarem dos ataques de Boitatá. Distraíam-no para sua fuga.

    Embrenhando-se novamente naqueles infindáveis corredores, a saída parecia tão semelhante à entrada. Berros de homens e silvos estridentes da fera folclórica. Não era só escapar da gruta. Boitatá poderia acompanhá-los, caçando-os pelo pântano, pela floresta, pelas montanhas. Quiçá, pelo deserto. Até então, o halo pertencia a ele.

    Alguns ficariam para trás... pelo caminho... E o caminho da volta estava apenas começando.

    I

    O Halo Verde

    O céu aos poucos tingia-se em verde. Discretamente. A princípio, imperceptível a desatentos, ao anoitecer, abocanhando o encurtado dia outonal em Grã O’Fran. Era a primeira noite de lua cheia do outono no hemisfério norte.

    Sozinho e às escondidas, Hugo testava-se na arena a céu aberto com uma espada. Inadmitia qualquer deficiência, ainda que minimamente persistente nessa modalidade de artes marciais. Vinha treinando com espada há três semanas.

    A fria temperatura ao relento não era impedimento para a transpiração do rapaz. A intensidade dos movimentos umedecia seu cabelo liso, escuro, ligeiramente comprido. Gotículas brotavam pela testa, ardendo-lhe os amendoados olhos, e escorrendo por um apresentável rosto, iluminado por um sorriso costumeiramente bondoso e cativante.

    Todos se concentravam no refeitório para o jantar. Nenhum esfomeado ou mestre perceberia sua ausência. Tantos aprendizes... Enganava-se. O jovem não se apercebia, mas além de seu sobrinho Renus, que enchia o prato para guardar comida para o tio, a quem tinha mais como irmão, seu mestre também sabia de seus treinamentos proibidos.

    A Liga dos Guardiões vedava, terminantemente, exercícios em horários que não fossem aulas e, principalmente, com armas nas que o aprendiz não estivesse matriculado. Os alunos chegavam a ter contato com as demais modalidades que não à de sua turma. O eventual e específico treinamento, entretanto, limitava-se ao aprendizado de como eram manuseadas, quais os erros cometidos pelo oponente, e como desarmá-los. Mas para Hugo não bastava tais conhecimentos. Apesar de apresentar certa dificuldade com espadas e adagas, tinha noção do manuseio.

    Assistia às aulas práticas de outras turmas, prestando atenção nos movimentos. Desejava tornar-se um guerreiro completo, conhecedor de todas as artes marciais que pudesse aprender. Por mais que tivesse sofrido durante anos, tais aprendizados foram-lhe de grande valia. Tinha plenas condições de lutar com qual arma fosse. Talvez perdesse para os guerreiros especializados na arma utilizada no combate, sem deixar, entretanto, de lhes dar grande trabalho. Se lutasse com armas que não pertencesse à modalidade do oponente, ainda que também não fosse a sua, aí a probabilidade de vitória reverteria para si.

    A maioria gabava-se da plena técnica que possuía na especialidade aprendida. Hugo procurava angariar conhecimento em todas, o que já alcançara com seus estudos, aulas práticas, olhos observadores e treinos secretos.

    Por alguma razão ainda obscura, o mestre de Hugo não o impedia de treinar escondido. Auxiliava-o, inclusive, evitando que outros membros da liga descobrissem as irregularidades do aprendiz preferido. Fácil tarefa a seu sábio e enigmático mentor, que a mais uma noite assistia com admiração a ousadia e perseverança de seu pupilo.

    Aquela enluarada noite, no entanto, revelava-se incomum. O céu prenunciava o retorno de uma era mágica, adormecida anos atrás, esquecida pelos antepassados, não recontada à maioria dos descendentes. A lua iluminava-se num verde esmeralda, fenômeno desconhecido ao exótico azul acinzentado dos olhos de Hugo.

    Em meio a uma sequência de golpes ao ar, encenando uma batalha, o faiscar da estranha claridade na lâmina da espada o desconcentrou. A princípio, acreditou tratar-se de uma antecipação da aurora boreal. Logo desvendou a realidade: um relance de olhar ao alto, e a lua brilhava esverdeada no céu estrelado, com um claro entorno verde envolvendo-a. Um halo lunar.

    Admirado com o efeito natural, Hugo era um dos primeiros a vislumbrar o reaparecer dos Halos Folclóricos. A notícia espalhar-se-ia pela Terra, e todos se perguntariam qual a razão para aquele fenômeno.

    – É chegada a hora temida! – Mestre Tarsila aparecia por entre as colunas, de onde espiava os treinamentos do pupilo. Parecia levitar ao invés de andar.

    Mesmo aos 28 anos, Hugo ainda temia a repreensão de seu mestre. Um susto arrepiante o fez tentar, infrutiferamente, esconder a espada surrupiada da sala das armas, trancafiada aos finais de tarde. Renus, contudo, era um excelente ladrão noturno. Astutamente conseguira furtar uma cópia da chave para entregá-la a Hugo. Até então, ninguém reclamara o desaparecimento da reserva.

    Todas as noites o jovem dirigia-se à sala das armas para apropriar-se de uma, até seu cansaço desanimá-lo, devolvendo a espada antes que alguém, no dia seguinte, desse por sua falta. Diariamente as armas eram conferidas, fosse na distribuição matinal, fosse no recolhimento antes do anoitecer.

    – Não se dê ao trabalho, Hugo. Venho acompanhando seu treinamento noturno há dias. Prefere treinar armas com que não tem tanta habilidade, a se concentrar em nossas competições internas, deixando de lado a vaidade na possível vitória do campeonato da liga. Admiro sua persistência... virtude que se manterá desconhecida por todos, a depender de mim. – Uma ponta de sorriso satisfatório no mestre não passou despercebida. – Precisa se preocupar com o que o céu nos revela.

    Aliviado com a reação de Tarsila, Hugo respirou tranquilo. Contemplou novamente o espetáculo natural representado no céu:

    – É assustadoramente mágico! Nunca imaginei presenciar tamanho fenômeno natural.

    – Presenciará inúmeros deles. A era dos Halos Folclóricos regressou. Não se pode saber ainda o porquê, mas a sábia Mãe Natureza manifesta-se na época oportuna.

    Tantas perguntas a serem esclarecidas e que, certamente, gerariam outras. Saberia Mestre Tarsila responder a todas? Sempre parecera a Hugo, e a todos da liga, que Tarsila era o mestre mais sábio quando se tratava de halos. E um agora reacendia. Um halo, e Tarsila à sua frente. Hugo tinha de usufruir do momento:

    – Qual a relação de uma lua verde com os Halos Folclóricos? – indagou confuso.

    Nada acerca de lua colorida aprendera em relação aos halos. Os ensinamentos sempre se limitaram a afirmar suas existências, embora não revelassem como eles se manifestavam, a fim de evitar temor na Terra.

    Em uma época distante de qualquer passado imaginável por Hugo, após constantes catástrofes naturais e dizimação de grande parte dos seres terrestres, o planeta reencontrou seu equilíbrio, novamente estruturado nas quatro estações climáticas, posterior a uma breve era glacial que se apoderou da Terra. Parte do reequilíbrio terrestre deu-se pela proteção de criaturas geradas pela Mãe Natureza.

    Os folclores, como foram denominados os novos habitantes do planeta, passaram a conviver com os humanos sobreviventes, e com os feiticeiros, classe que englobava os magos e os bruxos. Alguns daqueles seres não tão dóceis, outros extremamente curiosos, além dos arredios, e dos temidos por qualquer ser vivo.

    Grande parte das novas crias da Mãe Natureza, no entanto, habituou-se rapidamente com os homens. Os conflitos iniciais aos poucos foram desaparecendo, desde que um respeitasse o espaço do outro.

    Para a manutenção da paz, aos folclores também era importante a preservação da flora, como matas e água, e toda a espécie de fauna.

    Como os homens já descendiam de ancestrais que sofreram para reerguer o habitat natural, por anos permaneceu inerente à consciência dos humanos o espírito do desenvolvimento sustentável.

    Com o novo crescimento da população, normas passaram a ser necessárias para um convívio decente entre as pessoas, ressurgindo a detenção do poder a um único indivíduo que comandasse a coletividade submetida a si.

    Novamente os humanos sentiram a sede de poder e domínio sobre os demais, guerreando entre si e avançando em locais destinados aos folclores. Reinados foram, aos poucos, criados por áreas e ilhas existentes na Terra, em uma disposição distinta da que se conhecera por mapas. Continentes que se restringiram a grandes ilhas, separadas por oceanos gigantescos. Dos polos, o gelo estendia-se a encobrir vasta extensão advinda do período glacial em que o planeta se resfriara, sem possibilidade de mensurar se abaixo das sólidas placas de água encontrar-se-ia solo.

    Uma força sempre oculta, desde os tempos mais remotos, no entanto, preparou-se para impedir os momentos de cobiça do homem. O fenômeno denominado Mãe Natureza envolvia toda a Terra, e reagia aos ímpetos de destruição de seus seres. Criou os folclores e, a partir deles, sob os efeitos com que a Lua influenciava o planeta, surgiram os Halos Folclóricos.

    Destinados a homens e magos escolhidos, os Halos Folclóricos acenderam, um a um, em noites de lua cheia, que se iluminava pela cor específica, de acordo com a pedra ou metal precioso que regia cada um dos halos, refletindo o majestoso brilho no planeta. Da lapidação dos folclores a criar armas exclusivas, os humanos e magos delas se utilizavam para defesa da paz.

    Na época, dois magos muito conceituados dominavam o mundo da magia após o falecimento do mestre em comum. A sábia Mãe Natureza conhecia bem a essência de cada um, e escolheu Mago Jobim como guardião de um dos halos, enciumando seu companheiro, o Mago Alfons.

    Outro renegado pelos Halos Folclóricos, Augustus Coragem, refutado em detrimento de seu irmão gêmeo, Amadeus Coragem, uniu-se a Alfons. Fizeram um pacto para apoderarem-se de todos os halos, exterminando os guerreiros escolhidos. Para isso, Alfons revelou sua verdadeira índole: praticando magia negra, o que levava qualquer mago a tornar-se bruxo, criou a Insígnia Negra, a partir da qual, com a reunião de todos os Halos Folclóricos, seu detentor tornar-se-ia superior a qualquer ser terrestre, dominando toda a extensão do planeta.

    O plano dos renegados surtia efeito, e a cobiça e os desentendimentos entre os comparsas revelaram a Alfons que ele não precisava manter alianças, por ora, senão com os bruxos que o seguiam. Augustus passou a não lhe ser mais necessário. Amaldiçoou-o, fazendo-o rastejar pela Terra em corpos de folclores, aprisionado a uma vida vagante. A cada morte, Augustus retornaria em outra forma folclórica, até que o bruxo fosse derrotado, e os magos, humanos e seres folclóricos o perdoassem.

    Alfons seguiu seu plano. Usurpava os halos de seus guardiões, preparando-se para dominar o maior poder manifestado sobre a Terra.

    Reunindo os demais guardiões para enfrentar o mal que novamente devastava a Terra, Jobim enfrentou uma batalha árdua e mortal, confrontando seu antigo amigo, dominado pelas trevas da bruxaria. Homens, folclores e feiticeiros uniram-se à batalha, e finalmente derrotaram os planos de Alfons, rompendo com a força da Insígnia Negra, sem, contudo, extingui-la por completo.

    Após a difícil e amarga vitória, os guardiões se separaram, afastando-se uns dos outros, com receio de que alguém novamente se apoderasse dos halos, detendo a união de seus poderes de paz, transformados e concentrados em mal.

    Jobim sabiamente escondeu seu Halo Folclórico, juntamente com suas memórias acerca dessa época, sob um feitiço que só poderia ser desfeito com a vontade da Mãe Natureza. Em local distinto, ocultou as partes a comporem a Insígnia Negra, indestrutíveis aos seus conhecimentos, esperando que nunca a encontrassem, ou caíssem em mãos erradas.

    Augustus acabou não sendo perdoado por suas traições, condição essencial para o desfazimento de sua maldição. Teve que permanecer sofrendo na condição de folclore que lhe fora imposta, sumindo entre as matas.

    Houve desconhecimento total de notícias suas. A maioria imaginava que ele não sobreviveria muitos anos e logo desapareceria da face da Terra. Em geral, os folclores tinham tempo de vida menor que o homem e, para um folclore, o ser devia saber como agir e se defender corretamente nessa condição, a fim de evitar ataques de outros seres vivos, principalmente em uma época em que todos passaram a temer todos. Seu destino era uma incerteza esquecida.

    A aliança entre homens, folclores e feiticeiros cessou diante da desconfiança que passou a reinar entre uns e outros. A maldade de Alfons acabou por desunir, com cada povo vivendo separadamente sua história.

    Desde as conquistas e, posteriormente, queda do Bruxo Alfons, os sobreviventes desse período calaram-se sobre como os Halos Folclóricos se manifestavam ou reacendiam, pretendendo impedir que forças ocultas novamente almejassem apoderar-se do poder das trevas que os halos unidos, em razão de magia negra, geravam. Limitaram-se a contar apenas parte da história, revelando a mera existência de tais halos e seus guardiões, sem mencionar, contudo, quantos e quais seriam. O povo tinha conhecimento do halo de esmeraldas em virtude da fama recaída sobre Amadeus Coragem na época, nem tanto por culpa dele, mas sim pelo orgulho da nação em ter um representante como guardião de um halo, que se tornara símbolo do país.

    – Sim, o halo de esmeraldas! – concordou Hugo ao desembarcar da breve imersão no desconhecido passado, recontado nas palavras de Tarsila. – Há quem se refira também ao halo que pertenceu a um arqueiro.

    – O Arqueiro Dourado! – Hugo poderia afirmar ter notado certa nostalgia nas palavras de Tarsila. – Embora alguns duvidem de sua existência... Muitas histórias foram inventadas sobre guardiões e halos inexistentes.

    – Essa lua... – insistiu Hugo, antes que divagações dissipassem o propício momento para desvelar verdades.

    – Os halos reacendem por meio da lua, Hugo – revelou Tarsila, interrompendo-o. – Aparecem cada qual em noite de lua cheia. Durante os sete ou oito dias dessa lua, ela brilhará de acordo com a cor que rege o respectivo halo, enriquecendo sua força aqui na Terra. Quando o respectivo guardião se apoderar de seu halo, os dois se unirão e se iluminarão sob a cor que os rege.

    Fantástico! Nos poucos esclarecimentos sobre halos, não era revelado que a lua seria envolta por diferentes tons, cada um correspondente a um Halo Folclórico.

    – Poucos partilham desse conhecimento.

    – E quantos e quais são?

    – Tudo a seu tempo, meu caro. A natureza se encarregará de revelar. Mas acredite, após o primeiro, outros virão na sequência de luas cheias.

    O mestre voltou-se para trás dos pilares, tão silencioso como se levitasse. Sempre usava uma longa túnica negra, que lhe cobria todo o corpo, inclusive os cabelos, demonstrando apenas seu frágil rosto feminino. Os pés desapareciam por trás do manto, e nenhum movimento abaixo da túnica era perceptível, o que causava a qualquer um a clara aparência de levitação. Hugo teve que correr para encontrá-lo e acompanhá-lo.

    – Senhor! – Tarsila exigia que a tratassem no masculino, respeito a garanti-la como mestre na liga por tantos anos. – Há muitos esclarecimentos que ainda anseio...

    – Hugo, acredite. Você é um dos mais preparados que temos nesta liga para desvendar o mistério que envolve o reaparecimento dos Halos Folclóricos. O que precisa urgentemente é continuar seus treinamentos ocultos. Guarde a espada. Prefira as adagas. É tempo de revelar onde o par de Adagas de Esmeraldas se encontra. Precisa estar preparado para manuseá-las, caso seja o escolhido.

    – Como guardião? – indagou temeroso e ao mesmo tempo entusiasmado. Nunca se imaginara guardião de qualquer halo.

    – Não sabemos os desígnios da Mãe Natureza. Treine, Hugo! Apenas treine. Treine as adagas, mas jamais deixe de lado a arma que o completou... a arma forjada a você. Os volarensis são a união de todo o seu conhecimento em artes marciais. Agora finja que não me viu, e que lhe dei tais conselhos. Preciso retirar-me por uns dias, e ninguém pode saber para onde fui. Quando voltar, conversaremos.

    II

    Volarensis

    Quando Hugo Dhuí Luz foi trazido de sua terra natal para Grã O’Fran, jamais poderia imaginar algum dia ter uma arma forjada a si, muito menos que cresceria rodeado por histórias de Halos Folclóricos que envolviam seus ancestrais.

    Sob a custódia de um guerreiro, aos 10 anos de idade deixou Ilhas de Valnésia, recém-órfão de mãe após a invasão de piratas que destruíram o reinado matriarca, governado por Valquíria Coragem Luz. Desembarcou no norte e, sem destino certo, acabou permanecendo sob a guarda dos mestres da Liga dos Guardiões. Seu parente vivo mais próximo, tio materno, Benício Luz, declinou de seus cuidados. Restaram-lhe os estudos em colégio interno até a época em que teve idade para concorrer a uma vaga na liga.

    Ao longo de sua juventude, foi ambientando-se e conhecendo as frias terras do norte, como Grã O’Fran era conhecida. O novo mundo localizava-se acima do trópico do planeta, com montanhas de picos elevados, cobertas por gelo eterno, vales com florestas de altos pinheiros (moradia apropriada a roedores, cervos e ursos brancos), e planícies extensas, cobertas, ao menos na metade do ano, por neve. Homens, divididos, em sua maioria, entre os estudiosos em medicina e nas mais variadas ciências, e o exército de rapazes da Liga dos Guardiões, também habitavam a região.

    Local ideal para os humanos estudarem, fossem livros, fossem artes marciais. Alguns vinham de outros reinos, como da corte de Fartura e seus vilarejos, ou dos desertos e oásis de Nova Dunas. Pouquíssimos, de Costa Quedas Sul, ou outras ilhas habitáveis. Em tempos não tão remotos, também de Ilhas de Valnésia, quando homens por lá constituíam uma nação.

    O país, como assim denominavam seus cidadãos, era governado por um parlamento composto por cinco integrantes, sendo um o regente, com direito a voto de desempate. O primeiro, e que instituiu essa forma de governo, eleito pelo clamor do povo, foi Amadeus Coragem, o escolhido pela Mãe Natureza como guardião do Halo Folclórico Esmeralda, por ele lapidado nas Adagas de Esmeraldas, auxiliado por seu outro irmão mais novo, Amílcar Coragem, mais voltado aos estudos que a artes marciais.

    Com o falecimento de Amadeus, as adagas permaneceriam como herança da família Coragem se seu guardião tivesse deixado descendentes. Os únicos, entretanto, que descendiam de sua linhagem, eram parentes colaterais, os sobrinhos-bisnetos Valquíria, Benício e Luciano, todos de sobrenome Luz, filhos de sua sobrinha-neta Áurea, casada com Valentim Luz, única filha de Amílcare Coragem, sobrinho de Amadeus.

    O Halo Folclórico, então, conservou-se em outra parte da família. Motivou a criação da Liga dos Guardiões, que passou a treinar jovens para as mais diversas espécies de armas criadas pelos homens, como espada, arco e flecha, discos, mangual, lança e adagas.

    Enquanto Valquíria especializava-se em estudar folclores e partiu para Ilhas de Valnésia, tornando o lugar habitável, Benício se desinteressava por lutas, concentrado na ciência. Restou a Luciano especializar-se na habilidade com as adagas, até que estas foram estranhamente furtadas por amigos da família, vindos do Reino Fartura, sumindo logo em seguida por entre os mares, juntamente com o tão valioso halo pertencente a Grã O’Fran, além do próprio desaparecimento de Luciano, que partiu em busca das adagas, não se tendo notícias de sua desventura.

    Grã O’Fran, no entanto, continuou a recrutar e ensinar rapazes sobre artes marciais, e anos se passaram sem que novas notícias fossem reveladas quanto às adagas ou o paradeiro de Luciano Luz. Era o pouco que todos sabiam. Fora o pouco que Hugo soubera sobre seus ancestrais.

    Concentrou-se, desde sua infância, nas técnicas de defesa e ataque pessoal, quando fora salvo da morte em sua terra de origem, juntamente com seu sobrinho, na época, recém-nascido. Pouco se recordava do dia em que perdera Valquíria, sua amável e dedicada mãe, assassinada pelos invasores no reino. Os seguintes também se apagaram de sua memória, até refazer-se do sofrimento, quando o amenizar da dor permitiu que o presente fixasse-se em lembranças.

    De Valquíria, no entanto, ainda guardava doces lembranças. Fora criado na meninice unicamente por ela. O pai, como tinham contado quando meninote, não se encontrava mais presente entre os vivos.

    Na idade apropriada, Hugo conquistou uma vaga na Liga dos Guardiões, deixando o internato dos livros para traz, enclausurando-se em outro. Ao menos, o tempo não era mais só de leitura. Dividia-se entre livros e artes marciais.

    No decorrer dos estudos, entretanto, acabou passando por todas as especializações de lutas, o que lhe ocasionou frustração pessoal. Era motivo de chacota dos demais membros.

    Hugo não se adaptou tão facilmente como os demais aprendizes às armas que teve de treinar nos anos iniciais na Liga. Antes que qualquer aluno fosse matriculado em alguma classe, primeiramente era submetido a uma bateria de testes com todas as armas manuseadas na escola, a fim de avaliar em qual se mostraria mais habilidoso. Se aprovado, seria matriculado. Dificilmente os mestres, que aplicavam o teste, erravam na seleção da arma em que o aprendiz se especializaria. Hugo, entretanto, não se revelou extraordinário em nenhuma, mas teve um desempenho homogêneo em relação a todas, para a estranheza dos mestres, que estavam acostumados a recém-chegados hábeis especificamente numa ou noutra modalidade.

    O início do treinamento deu-se com a espada. Um início dificultoso. Mal conseguia desembainhá-la, já estava sendo atacado pelo oponente. Limitava-se à defesa. Não possuía habilidade no ataque. Quando tentava, num rompante de fúria pelas caçoadas dos expectadores, entregava a luta ao se desproteger, facilmente vencido.

    Seus colegas já ingressavam na Liga dos Guardiões com certo conhecimento no manuseio da arma, vez que, no exame para ingresso, muitos pretendentes a aprendiz não eram aprovados. Ao menos Hugo, que, anteriormente à matrícula, nunca tivera aulas, diferentemente da maioria, foi aprovado no teste de admissão. Era no que se sustentava para encarar suas dificuldades. Sabia que algum dom para artes marciais ele possuía.

    Seu mestre então o encaminhou às adagas no ano seguinte. Enquanto os meninos de sua idade já se especializavam nas armas que tinham maior destreza, Hugo tentava um novo recomeço. Mas as adagas lhe pareciam mais dificultosas. O contato corporal na luta era infinitamente mais próximo que a espada, o que não lhe facilitava o aprendizado. Acabou por ser remanejado da segunda turma, símbolo de Grã O’Fran, legado de seu tio-bisavô Amadeus Coragem.

    Parte da aceitação de sua transferência deu-se em virtude da forte rixa que tinha com outro jovem, filho de Benício Luz, seu primo, portanto. Arrogantemente talentoso com as adagas, Fabrício era especialmente insuportável com Hugo. Adorava massacrá-lo nos pequenos campeonatos de adagas que eram designados.

    Ambos eram fisionomicamente muito parecidos, dada a relação de parentesco, o que contribuía para a disputa de egos. Fabrício usava o cabelo curto, menos liso que de seu primo. Seus olhos, no entanto, eram mais claros, verde piscina, o que o levava a se considerar mais charmoso. Tinha que se destacar em tudo. Até na aparência disputava com Hugo.

    A tormenta durou um ano, tempo em que Hugo também teve que suportar as aulas de espada. Não que não gostasse de nenhuma delas. Pelo contrário, adorava aprender as técnicas de manuseio das armas. Era o melhor aluno na teoria. Na prática, porém, sofria com o desprezo dos colegas e com seu próprio orgulho ferido. Era um dos que mais demoravam a se adaptar.

    Finalmente foi transferido para a classe de arco e flecha. Arma que mais admirava, e que sempre tivera vontade de aprender e se especializar. O entusiasmo em ser, pela primeira vez, o melhor aluno da classe, permaneceu até a evolução de seus companheiros iniciantes em aulas práticas da Liga dos Guardiões, em que ele já estava há dois anos, acertando alvos longínquos tão bem quanto ele. E a impressão de que, finalmente, seria o melhor da turma, descobrindo sua missão na liga, esvaiu-se quando três garotos acertavam miras que ele mal conseguia visualizar. Ao menos, desta vez, estava entre os melhores.

    Mais um ano, e outra transferência.

    Ao final de cada ano letivo, por mais que viesse a demonstrar evolução nos últimos meses, acabava por ser remanejado. Parecia sempre certa sua transição de classe.

    Conduzido para a turma do mangual e, no ano seguinte, a da lança, até que, relutante por anos, teve que aceitar a classe de discos, armas menos mortíferas, e por isso a rejeitada pela maioria dos jovens, desejosos por combates corporais, ou aéreos mais agressivos, como o arco e flecha e até a lança.

    Desde que ingressara na turma do mangual, Hugo vinha demonstrando uma evolução rápida à adaptação com a arma, tanto que estranhou sua transferência para a da lança, na qual também se deu tão bem, que terminou o ano letivo em primeiro colocado.

    A essa altura, encaminhando-se para o sexto ano, não lhe surpreendeu, ao contrário para os demais aprendizes, sua transferência ser, mais uma vez, inevitável.

    Com os discos, não foi diferente. Hugo evoluía rápido nos treinamentos, espantosamente à frente dos demais novos colegas, como nos dois últimos anos. Tinha grande conhecimento de técnicas, já adquiridas nos anos anteriores, com as mais variadas armas.

    Teve tempo de sobra para estudar sobre leis, matéria de grande importância na liga, que formava guerreiros em defesa da paz, orientando-os a defender, fosse com o uso de armas, ou com o de palavras, qualquer ser humano, assunto esse que o interessava. Também se dedicava ao estudo de folclores, tema que verdadeiramente o atraía, herdado pela admiração que sua mãe cultivava sobre esses seres. Na infância, escutava-a noite e dia, lia suas anotações sobre curupiras, sereias, sacis, dentre outros com os quais ela tivera oportunidade de conviver ou meramente conhecer.

    O estudo dava-se mais sozinho do que com algum professor. Seu mestre, vez ou outra, orientava-o sobre quais memórias ler acerca de estudiosos falecidos que deixaram alguma informação sobre seu contato com os mais variados folclores.

    Aulas específicas sobre esse tema não eram dadas na Liga dos Guardiões, embora o mestre de Hugo acreditasse ser de extrema valia aos jovens que buscavam algum dia serem contemplados pela Mãe Natureza como guardião de algum halo.

    A política do local, no entanto, impedia tal aprendizado. Acreditava-se serem de pouca serventia as horas dedicadas a como tratar ou enfrentar um folclore. Em Grã O’Fran, a oposição de uma criatura folclórica a um homem levava-a ao sacrifício. Esse pensamento adviera do repúdio que o efeito da Insígnia Negra causara entre humanos e folclores, levando alguns destes, quando da guerra com o Bruxo Alfons, a se aliarem ao mal, dominados pelos feitiços das trevas.

    Os homens de Grã O’Fran desconfiavam dos folclores, e com eles não pretendiam manter alianças ou qualquer relação. Para a felicidade desse povo, no território continental não se tinham notícias da habitação de tais criaturas. Estas se encontravam mais em Ilhas de Valnésia, Costa Quedas Sul e pelo reino de Fartura. Estórias sobre alguns terem sido vistos vagando por Nova Dunas, além de outras ilhas isoladas no oceano, eram contadas ali e acolá.

    A animosidade que pairava sobre onde Hugo vivia não o contagiava. Entre uma aula e outra de discos, dedicava-se à escassa leitura folclórica.

    Seu mestre o acompanhava. Nunca o abandonara nas trocas de turmas, o que não ocorria com outros aprendizes que porventura tivessem de trocar uma ou duas vezes de classe, tendo que se adaptarem ao modo de proceder do novo mestre, além dos que trocavam de mestre em virtude do seu, coincidentemente, acompanhar Hugo por sua peregrinação de turmas pela liga. A explicação era que seu mentor, o mais antigo, tinha que dar aulas e conhecer todos os aprendizes, e que sempre fora especializado em todas as armas, embora em nenhuma tivesse plena habilidade como os demais que com ele aprenderam um dia.

    Nesse ponto Hugo teve sorte. Manteve-se sempre sob os cuidados do mesmo mestre, embora os próprios aprendizes o vissem como o mais fraco, dada sua antiguidade, somada ao fato de ser o único dos mentores do sexo feminino, o que contribuía para o deboche sofrido por Hugo.

    O filho de Valquíria acostumara-se, durante a estadia na liga, a ser menosprezado, principalmente por Fabrício, que parecia incomodar-se sobremaneira com sua existência. Passou a ignorar os aborrecimentos, concentrando-se em seus estudos e treinamentos.

    Inadmissível a si eram injustiças com colegas da liga. Quando um ou outro era acusado injustamente pelos demais, ou simplesmente ignorado, Hugo os defendia. Questionava incriminações e punições infundadas na liga. Era o advogado dos rejeitados.

    Nunca fora necessário utilizar tal habilidade para si. Seus colegas, sabedores de sua inteligência, evitavam colocá-lo em enrascadas. Em matéria de defesa em leis, Hugo era hors-concours. Sofria apenas com gracejos e caçoadas, atitudes que procurava ignorar.

    Típico aprendiz a sempre ansiar por mais, Hugo estimulava seu mestre a extrair-lhe o melhor. Na classe de discos, as técnicas de lançamento, acerto do inimigo e recepção da arma tornaram-lhe simples no decorrer dos anos. Desejava mais que os conhecimentos dominados sobre o manuseio do bumerangue e do chakram, armas pertencentes à turma dos discos. Temia as falhas no combate corporal. Talvez pela experiência nos anos iniciais na liga, como na espada e nas adagas, sentia a necessidade de uma arma mais adequada ao impacto frontal, principalmente por acreditar que, uma vez formado guerreiro, enfrentaria qualquer oponente, tanto de longe quanto de perto. E no combate corpo a corpo, os discos não lhe traziam vantagem.

    A insistência de seus argumentos pertinentes a Mestre Tarsila levaram-no, há dois anos, a uma reunião secreta, em plenas férias, numa taverna frequentada regularmente por estivadores do porto de Alva Boreal, dado o beco em que se localizava ser na rebarba do cais. O assunto a tratar exigiria sigilo, inclusive dos demais membros da liga, que poderiam se opor ao que Tarsila idealizava.

    Para a surpresa de Hugo, outro mestre lá o esperava quando encontrara Tarsila bebendo uma cerveja escura num canecão de vidro. Mestre Jim, o sábio nipônico a compor o corpo docente da Liga dos Guardiões, não era apenas, embora já fosse o suficiente, um exímio espadachim. Era o mais criativo e adaptável dos mestres.

    Sem palavras para exteriorizar sua incompreensão quanto à ilustre e talvez indesejada presença na reunião (poderiam ter sido descobertos), Hugo não se esforçara a sair do silêncio.

    – Tenho ouvido suas sugestões, meu rapaz – indicara Jim a cadeira em que Hugo deveria se acomodar. – Mestre Tarsila põe-me a par de seus anseios desde que suas queixas se iniciaram quanto... à falta de competitividade dos discos, digamos assim.

    E as palavras continuaram a se ausentar da boca de Hugo, embora o coração pulsasse em esperança.

    Novamente a mão de Jim apontara a cadeira, momento em que Hugo apercebera-se de seu estado atônito. Envergonhado, rapidamente ocupara o assento.

    Folhas foram espalhadas pela rústica mesa de madeira. Desenhos a lápis forjavam lâminas para bumerangues e hastes para o chakram.

    – Conforme suas orientações, por sinal muito sábias, esbocei alguns rabiscos. Pareceu-me mais interessante e funcional a adaptação dos bumerangues – continuara Jim, deixando de lado as poucas gravuras quanto ao chakram. – Os bumerangues são mais alongados, e seu formato permite que seu contorno do lado de fora possa ser forjado com uma bela lâmina cortante. Do lado de dentro, o qual terá de treinar para que tenha contato com sua mão quando a ela retornar, sob o risco de decepá-la, poderíamos criar uma abertura da qual sairia uma haste que se tornaria a base da arma, numa forma piramidal.

    Hugo rapidamente se concentrara nas explicações. O deslumbre com o momento, deixaria para depois. Na liga, treinavam a moderação de suas emoções. Imprescindível o controle, a fim de que não interferissem em momentos cruciais.

    Jim destacara o desenho em que esboçara a ideia. A base era dobrável, de forma que poderia perfeitamente encaixar-se dentro da estrutura do bumerangue.

    – Basta um movimento com o dedão, ou outro com o qual melhor se adaptar, para que essa haste surja de dentro do bumerangue, onde você poderá segurar e

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