Navegando
By Rubem Alves
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Navegando - Rubem Alves
Navegando
Rubem Alves
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Há mares que tem fim.
Há mares que não tem fim,
como o mar de Minas...
(Rubem Alves)
O mar de Minas não é no mar.
O mar de Minas é no céu
pro mundo olhar pra cima e navegar
sem nunca ter um porto onde chegar
(Arimatã Martins)
O Elias Abrahão foi companheiro de
navegação nos mares que têm fim.
Aí ele foi sozinho navegar
no mar que não tem fim,
para o qual irei um dia.
É bom saber que ele está lá,
à espera, preparando o barco
pra juntos navegarmos no
universal mar de Minas
A ele, a quem amo mais que qualquer irmão,
dedico este livro.
Sumário
O MAR
Em louvor à inutilidade
A síndrome do pânico
Quero viver muitos anos
O blazer vermelho
O CAIS
Você e o seu retrato
Por um casamento
Quem não pode transar não pode casar
O lobo e o falcão
PARTIDAS
Navegando...
O barco
O avesso é mais divertido
VIAGENS
A cozinha
Bicho-de-pé
NAUFRÁGIOS
O ano 2000
Quando a dor se transforma em poema
SOBRE O AUTOR
OUTROS LIVROS DE RUBEM ALVES
REDES SOCIAIS
CRÉDITOS
Em louvor à inutilidade
As crianças,
do jeito como saem
das mãos de Deus,
são brinquedos inúteis
não servem para
coisa alguma...
Brinquedo não serve para nada. Objeto inútil. Útil é uma coisa que pode ser usada para se fazer algo. Por exemplo, uma panela.
Ela é útil. Com ela se fazem feijoadas, moquecas e sopas. Uma escada também é útil: pode ser usada para se subir no telhado, para apanhar jabuticabas nos galhos altos, para trocar uma lâmpada. Um barco é útil: pode ser usado para atravessar um rio. Úteis são o palito, a vassoura, o canivete, o pente, a camisinha, a aspirina, o lápis, a bicicleta, o computador e os meus dedos que digitam as palavras que penso.
Convidaram-me para dar uma palestra para pessoas de terceira idade. Comecei minha fala de forma solene: Então os senhores e as senhoras chegaram finalmente a essa idade maravilhosa em que podem se dar ao luxo de ser totalmente inúteis!
. Pensaram que fosse xingamento, ofensa. E trataram, cada um, de me explicar a sua utilidade. E exigiram ser colocados na caixa das coisas úteis, onde estavam a vassoura, o papel higiênico e o serrote. Mas eu só queria que eles fossem colocados no mesmo baú onde estavam os brinquedos.
Lá em Minas era assim que se valorizava o marido, dizendo que ele morava na caixa de coisas úteis: O Onofre é assim caladão, desengonçado e sem jeito. Mas marido melhor não pode haver. É sem defeito. Bom demais: não deixa faltar nada em casa...
.
As mães, sagazes, sabiam que um casamento duradouro depende da utilidade das esposas. Como a expressão esposa útil
não fica bem, substituíram-na por esposa prendada
. Sabedoria das mães sagazes: esposa prendada, casamento duradouro, mãe viúva abrigada. Preparavam suas filhas para o casamento transformando-as em ferramentas-complementos de panelas, agulhas e vassouras. Cozinhar, varrer, costurar: esses eram os saberes necessários à formação de uma mulher útil. Nunca ouvi falar, não conheço, ignoro qualquer esforço no sentido de desenvolver nos homens e nas mulheres os seus potenciais de brinquedo. Afinal de contas, brinquedo é coisa inútil.
O que se procura é um cavalo (ou égua) marchador, que não se espante com mau tempo, que fique amarrado no pau espantando moscas com o rabo sem relinchar: muito mais útil que um cavalo selvagem, lindo de se espiar, maravilhoso de se sonhar, mas impossível de se montar. Simetricamente, uma mulher submissa, caseira e trabalhadora vale mais que uma mulher com ideias próprias que voa por lugares não sabidos. Há um capítulo das Sagradas Escrituras, no livro de Provérbios (31:10-31), onde se encontra a mais fantástica ficção sobre a mulher virtuosa que eu jamais vi. Aquilo não é uma mulher; é uma máquina. Mulher faz-tudo, de um marido faz-nada. Porque não sobra nada para ele fazer. A descrição é tão doida que a única explicação que tenho para tal colar impossível de virtudes é que o autor devia estar fazendo uma brincadeira, gozação amorosa com sua mulherzinha que não era nada daquilo, mas que tinha virtudes de brinquedo que ele adorava.
Quando o valor das coisas está na utilidade, no momento em que deixam de ser úteis são jogadas fora. Uma lâmpada queimada, uma caneta Bic vazia, um saquinho de chá usado: vão todos para o lixo. Na hora de despedir os empregados, é sempre a lei da utilidade que funciona. Cozinheira que cozinha bem fica no emprego e tem aumento. Cozinheira que põe sal demais no feijão e deixa queimar o arroz é despedida. Esta é a lei da utilidade: o menos útil é jogado fora para que o mais útil tome o seu lugar. Minha máquina de escrever, faz mais de um ano que não