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Nos passos da estrela guia: hermenêutica simbólica da tradição dos Três Reis Magos
Nos passos da estrela guia: hermenêutica simbólica da tradição dos Três Reis Magos
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Nos passos da estrela guia: hermenêutica simbólica da tradição dos Três Reis Magos

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"O livro de José Abílio Perez Junior, intitulado Nos Passos da Estrela Guia, fruto de uma pesquisa realizada com a acuidade de um físico observando estrelas, mas com a sensibilidade de um poeta que é atingido no olhar pelas mesmas estrelas, é um belo exemplo desse mistério: o que vemos quando vemos uma estrela?
A Folia de Reis carrega em si um acontecimento fontal: o mito, em sua origem, da visita que os magos fizeram ao Deus menino, nascido em Belém. A ele levaram presentes (ouro, incenso e mirra), a ele foram adorar, como se adora a um Deus, a ele foram guiados por uma estrela, a Estrela Guia! Há, no mito da visita dos magos a Jesus na gruta de Belém, a busca pela origem, pela fonte, pelo acontecimento primordial. E essa busca pela fonte, pela origem, que pula o tempo para saltar para dentro do momento do nascimento, é a alma mater da Folia de Reis. E, de dentro do momento do seu nascimento, ela salta de volta para o nosso tempo: para ser sempre, de novo, vista, anunciada, em verso e em prosa, em música e canto, em dança e em caminhadas, nas casas e pelos caminhos."
LanguagePortuguês
PublisherEDUEL
Release dateOct 26, 2018
ISBN9788572169653
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    Nos passos da estrela guia - José Abílio Perez Junior

    Sonhos)

    PREFÁCIO

    Estar à luz da estrela

    O que vemos quando vemos uma estrela? Uma estrela!, poderia ser a resposta e seria a mais lógica talvez. Mas, ao mesmo tempo, é um mistério o que vemos quando vemos uma estrela. Mistério no sentido de algo maior, escondido, não percebido no todo, que foge do alcance de nosso ver e entender. Sim, um mistério, porque o que chega a nossos olhos quando vemos uma estrela é uma pequena parcela de luz que, um dia, num tempo e momento original, saiu de sua fonte, viajou milhares e milhares de quilômetros, gastando para isso, por vezes, tempos para nós quase impossíveis de serem percebidos por nossos sentidos. Além do mais, não saiu diretamente de sua fonte até nossos olhos. Nessa longa viagem, essa luz foi influenciada por muitos campos gravitacionais, mudando até de rumo. Ao entrar na atmosfera terrestre, chocou-se com centenas e milhares de partículas que lhe emprestam novos tons, cores e reflexos. É isto que chega aos nossos olhos: uma luminosidade marcada por muitos e muitos percalços, uma luminosidade sobrevivente de uma longa viagem, carregando em si tudo quanto é influência e sendo delas, em parte, um reflexo.

    O que vemos quando vemos uma estrela? Seria muito desencantado o nosso existir se respondêssemos que não vemos uma estrela e sim um resto de luz, carregando um amontoado de influências. Mesmo que do ponto de vista da física estivesse correto assim pensarmos, nosso modo sensível de ser continua a ver estrelas quando vemos estrelas.

    Olhar estrelas é estar exposto ao tempo, ao mistério da existência dentro dele, ao mistério de uma origem que nos atinge, que a nós chega. Por mais que possa estar carregando influências de sua trajetória, do espaço e da velocidade – o que justamente faz o tempo –, não há como negar que há uma origem, um acontecimento il illo tempore (no tempo do surgir) e a esta origem estamos expostos quando vemos estrelas. Olhá-las é uma espécie de ponte, que pula por cima do tempo e nos coloca em sua origem; concomitantemente, olhar estrelas é estar exposto a influências do tempo, de reflexos mil que se inserem na existência fontal e que a fonte vai carregando consigo. Por isso, a existência não é só fonte, é exposição ao tempo e suas influências. Há, pois, tanto um olhar que é atingido pela origem, pela fonte, como um olhar que está sob a égide das influências, da condição histórica de nossos olhos. Assim, continuamos vendo estrelas quando vemos estrelas!

    O livro de José Abílio Perez Júnior, intitulado Nos Passos da Estrela Guia, fruto de uma pesquisa realizada com a acuidade de um físico olhando estrelas, mas com a sensibilidade de um poeta que é atingido no olhar pelas mesmas estrelas, é um belo exemplo desse mistério: o que vemos quando vemos uma estrela?

    A Folia de Reis carrega em si um acontecimento fontal: o mito em sua origem da visita que os magos fizeram ao Deus Menino nascido em Belém. A ele levaram presentes (ouro, incenso e mirra), a ele foram adorar, como se adora a um Deus, a ele foram guiados por uma estrela, a Estrela Guia! Há, no mito da visita dos magos a Jesus na gruta de Belém, a busca da origem, da fonte, do acontecimento primordial. E esta busca da fonte, da origem que pula o tempo para saltar para dentro do momento do nascimento é a alma mater da Folia de Reis. E, de dentro do momento do seu nascimento, ela salta de volta para o nosso tempo: para ser sempre de novo vista, anunciada, em verso e em prosa, em música e canto, em dança e caminhadas, nas casas e pelos caminhos. E assim diz o poeta Francisco Garbosi, embaixador da Folia de Reis:

    Você deve lembrar bem / Quando fomos a Belém / Adorar Jesus Menino. / Ao Filho do Onipotente / Oferecemos presentes / Mirra, incenso e ouro-fino. / A Estrela do Oriente / Seguia na nossa frente / Com fúlvidos raios de luz! /

    E aquele clarão divino / Guiou o nosso destino / Até encontrarmos Jesus. / Nós fomos desde o princípio / Testemunhar o início.

    E da simples frase do Evangelho de Mateus, alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém e perguntaram: ‘Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Vimos sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo’ (Mt 2,1b-2), a tradição, o tempo ao qual estamos expostos, fez ali muitos reflexos. Dessa forma, alguns magos tornaram-se Reis Magos, que foram, então, contados em número de três, os quais receberam na viagem do tempo nomes, Gaspar, Melchior e Baltazar, representantes de etnias de todos os cantos da humanidade e que viajavam em camelos. E muito mais coisas fizeram os reflexos do tempo nessa viagem… e os fez chegar a Uberaba, MG.

    Olhar esse mundo da Folia de Reis é como olhar uma estrela. O que vemos? Podemos ver uma fonte que sempre de novo se presentifica, mas, no mesmo movimento, é ver também reflexos dos lugares, das culturas, da viagem do tempo ao qual estamos expostos. É tudo isso que podemos ver quando vemos a Folia de Reis. Mas, para poder ver, é preciso expor-se ao tempo: foi o que fez José Abílio. O texto mostra essa imersão e, ao mesmo tempo, o esforço por conseguir ver, mostrar, perceber que a Folia de Reis condensa todo um mundo: nela está o tempo da origem, o tempo primordial revivido sempre. Com isso, a origem não é passado, ela é sempre presente, é sempre absoluta. Como justamente nos diz M. Eliade (1972), em Mito e Realidade: "Através da repetição periódica do que foi feito in illo tempore, impõe-se a certeza de que algo existe de uma maneira absoluta. Essa certeza é a estrela guia" da Folia de Reis. É essa a bandeira que é carregada e sempre passada à frente, de mão em mão, de canção em canção, de anúncio em anúncio, de casa em casa, de folião a folião, de embaixador a embaixador.

    Ler o texto de José Abílio Perez Junior é ser convidado a fazer parte dessa viagem, é ter a certeza de que estamos expostos ao tempo, mas sempre de novo atingidos pela origem que nos chega marcada e enriquecida pela trajetória da história, da qual somos um pedaço.

    Volney José Berkenbrock

    Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião

    Universidade Federal de Juiz de Fora, MG

    APRESENTAÇÃO

    Estudar a Folia de Reis e a cultura mineira é, de certa forma, revisitar antigas memórias. Na infância, quando morava com avó e tios em Uberaba, costumava considerar-me mineiro. Hoje, já não há tanta certeza, pois, após nascer na Bahia de Nosso Senhor do Bonfim e, em 15 dias, já estar a caminho – sempre a caminho – sem nunca me fixar, posso considerar-me um ser do trânsito e do transitório: fogo e água.

    Contudo, pensando com Paul Ricoeur (1988), compreender-se é sempre se compreender diante do mundo, transformar a consciência perante o nascimento do novo, em mim e nas coisas. Novamente devo compreender-me como mineiro, de modo a constituir este diálogo íntimo que pretendo, pois o mineiro é também esse andarilho, no trânsito de Goiás a São Paulo, São Paulo ao Mato Grosso e à região das minas ou dos pampas, transitoriedade que, dessa forma, liga-me à terra e aos que nela possuem suas raízes.

    A contraparte desse caminhar é a hospitalidade, como característica tipicamente mineira, uma das tantas formas da fraternidade entre aquele que habita a terra e aquele que peregrina.

    Se recorro aqui a memórias, não pretendo, como acredita Paul Valèry (1999), que todo exercício teórico é mero mascaramento de uma autobiografia. Antes, buscando superar o subjetivismo romântico e o objetivismo cientificista, penso, parafraseando Merleau-Ponty (1994), que só é possível uma hermenêutica para si, o que envolve, simultaneamente, o mergulho rumo à raiz da significação, assim como o retorno do cogito ao mundo vivido. Estou, corporalmente, no mundo, assim como o coração habita o corpo e o corpo habita a casa.

    Nesse duplo movimento, o retorno à raiz comporta um momento negativo enquanto reflexão radical. Assim sendo, não atualizo aqui a mera aplicação dos conceitos de qualquer autor ou o exercício de qualquer teoria relacionada a determinada disciplina acadêmica. Este momento negativo se radica no silêncio e é condição de verdade no uso da palavra.

    A palavra, por sua vez, enquanto linguagem que instaura o mundo humano como mundo do sentido, no apalavramento (ORTIZ-OSÉS) de homem e mundo, é sempre proferida em uma tradição. Não existe um verbo abstrato, mas o verbo feito carne que se corporifica segundo uma filiação humana. Menciono, assim, a filiação à tradição da antropologia filosófica herdeira do Círculo de Eranos, com a qual busco tecer o diálogo ao longo de todo o trabalho e, especialmente, à hermenêutica simbólica do filósofo basco Andrés Ortiz-Osés que, por sua vez, recebe as influências da Filosofia Hermenêutica de H. G. Gadamer e da Antropologia do Imaginário de Gilbert Durand.

    Colocar-me sob o escopo de uma antropologia filosófica significa ampliar o horizonte para além do conhecimento meramente científico de teor positivista, pois não é estritamente na lógica ou na razão que se encontra o rigor da reflexão filosófica ou sequer sua noção de verdade. A verdade, para a lógica, é uma simples adequação entre dois termos de uma equação, um valor formal, uma formalidade entre sentenças. Balizo meu trabalho pela noção de verdade em um sentido mais amplo, enquanto condição ontológica do saber e do conhecimento.

    A renúncia, expressa dessa forma, a uma definição, parece sacrificar o rigor do pensamento. Poderia, entretanto, ocorrer também que somente aquela renúncia seja capaz de colocar o pensamento no caminho de um esforço que permita conhecer de que índole é o rigor adequado do pensamento. Isto jamais poderá ser decidido a partir do tribunal da ratio. Ela não é absolutamente um juiz justo. Sem vacilar ela rejeita tudo o que não se lhe adapta e o empurra para o presumido pântano do irracional, delimitado, de resto, pela própria razão. A razão e a sua representação constituem apenas uma maneira de pensar e de nenhum modo são determinadas por si mesmas, mas por aquilo que ordenou ao pensamento pensar à maneira da ratio [...] (HEIDEGGER, 1969, p. 16).

    Se meu trabalho assume – ou busca assumir – um estatuto filosófico, a história da filosofia, por sua vez, "só é, enquanto tal, uma amostragem do lócus e situs – e deste modo, do habitus: quer dizer, da habitação e morada – do homem no seu mundo (ORTIZ-OSÉS, 1989, p. 61). Em sua concepção fundamental, a filosofia se traduz como amor a Sophia", ou seja, um amor sempre humanamente imperfeito, pois o saber absoluto, poderia ter dito Pitágoras, foi reservado aos deuses.

    Em meu trabalho, de forma ainda mais aberta, devo considerar, ao menos, três tradições que constituem o que sou, inextricavelmente imiscuídas em minha carne, em minha sensibilidade e em meu raciocínio: a ameríndia, a negro-africana e a branco-europeia. É certo que cada uma dessas designações é fruto de mestiçagens e, a rigor, não abarcam as variações internas e os limites precisos de raças ou povos; no entanto, mantenho a referência por deixar claro o entorno no qual me movo e a paisagem que me constitui. Mestiçagem que se opera, muito mais longe do que no texto, nos ossos, na pele, na carne e na alma como experiência de corporeidade (nos termos de Merleau-Ponty), como nó de significações vividas (FERREIRA-SANTOS, 2006, p. 99).

    Escrevo como caboclo entre caboclos, filho mestiço e palavra mestiça. Na fala híbrida entre o mito e a razão, no entrecruzamento das tradições que fornecem os elementos que constituem a paisagem que habito e na qual me movo. É necessário, não obstante, afastar o caráter etno deste trabalho ou, inversamente, ressaltar o etnocentrismo da cultura dita ocidental, que se funda na utilização de uma escrita fenícia e da numeração indo-arábica, em cujos mapas a latino-américa, que se estende à minha volta, figura como um outro, além-mar, onde se escondem monstros, aves do paraíso ou outras quimeras.

    Esta jornada interpretativa (FERREIRA-SANTOS, 2005) se realiza em Uberaba, MG, cidade na qual vivi meus anos de infância entre as brincadeiras de rua, as idas e vindas aos sítios de Araxá, as festas folklóricas (FERREIRA-SANTOS, 2004a) na rua, a iniciação à vida escolar e as trocas de agrados (pequenos presentes que alinhavam a reciprocidade comunal cotidiana) entre as senhoras da vizinhança.

    Se narrar um mito é reatualizar os acontecimentos da origem, descobrir a substância onírica da qual somos feitos) é, de certa maneira, rememorar imagens diletas da infância. É assim que retorno ao natal mineiro, que guardo na memória antes mesmo como clima que como imagem. Foi este clima que reencontrei nas folias e que, de certa forma, propiciou que eu reencontrasse fragmentos meus que ficaram dispersos pelos vários caminhos já trilhados.

    Acompanhei a Folia de Reis da Baixa, região rural pertencente ao município de Uberaba, no Triângulo Mineiro, às margens do Rio Grande, que separa os estados de Minas e São Paulo. Do dia 25 de dezembro de 2004 a 6 de janeiro de 2005, vivi antes como aprendiz de folião que como estudioso, dormindo, alimentando-me, tocando e caminhando, conforme toda a Companhia.

    A Folia da Baixa foi escolhida a partir do estudo de Sônia Fontoura, Luiz Henrique Cellullare e Flávio Canassa (1997), por ter sido considerada dentre as mais tradicionais folias que se movem em paisagem rural. Embora atualmente haja mais folias em perímetro urbano, isto é retrato da recente urbanização e a decorrente mudança de comunidades inteiras para as cidades, sucedendo daí algumas alterações no calendário e nas práticas. Optei, portanto, por uma Companhia em seu contexto ancestral, embora mesmo aí (ou justamente aí) possamos observar os efeitos de uma possível (pós)modernidade. A escolha pela paisagem agrária e a cultura popular, predominantemente oral e fortemente simbólica,

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