Inesquecível: Antologia
By Bia Carvalho, Josy Luz, Juliana Parrini and
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Inesquecível - Bia Carvalho
Todos os direitos reservados
Copyright © 2018 by Qualis Editora e Comércio de Livros Ltda
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
(Decreto Legislativo nº 54, de 1995)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
A994i
1.ed
Azevedo, Maribell -
nesquecível / Maribell Azevedo, Juliana Parrini, Catarina Muniz, Bia Carvalho, Josy Luz. - Florianópolis, SC: Qualis Editora e Comércio de Livros Ltda, 2018.
Recurso digital
Formato e-Pub
Requisito do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: word wide web
ISBN: 978-85-7027-024-5
1. Literatura brasileira 2. Romance brasileiro 3. Ficção 4. Época 5. Contos I. Título II. Autores
CDD 869.93
CDU - 821.134.3(81)
Qualis Editora e Comércio de Livros Ltda
Caixa Postal 6540
Florianópolis - Santa Catarina - SC - Cep.88036-972
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www.facebook.com/qualiseditora
@qualiseditora - @divasdaqualis
SUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Ficha Catalográfica
Maribel Azevedo
Menina Borboleta
Juliana Parrini
Por acaso, amor
Catarina Muniz
Bravo amor
Bia Carvalho
Corações Amaldiçoados
Josy Luz
Conspirações do destino
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está ligada.
Luís Vaz de Camões
1838
Encaro os homens que me cercam, seus olhos castanhos não são amigáveis. No entanto, evitam meu olhar. Sigo caminhando de costas retas, sei que o inevitável me aguarda ao final desse trajeto.
Preso, julgado, condenado, sei que não há meios de escapar da dura sentença. Sinto o suor escorrer por baixo de minha farda militar. O mês de junho estava quente, o sol brilhava intenso no céu sem nuvens. E o céu, do tom de um vivo azul, de certa forma me consolava, por lembrar-me de seus olhos.
Incrível a capacidade da mente viajar e se desligar do que acontece, de transpor o tempo e o lugar, ao ponto de sair dessa prisão e me ver novamente num belo palácio em Munique para uma reunião familiar. Fui uma criança tímida, e me senti meio perdido com tantos parentes. Porém, entre tantos adultos, uma mãozinha encontrou a minha. Assustado, olhei nossas mãos unidas e percorri o braço descoberto que acompanhava aquela misteriosa mão. Vi que a pessoa em questão era uma criança também e usava vestido branco. Quando subi mais o olhar me deparei com o rostinho de um anjo. Cabelos loiros, perfeitamente penteados, emolduravam o rosto meigo, os cachos nas laterais caíam por seus ombros. Olhos de um límpido azul me olhavam sem medo. Ela nunca teve medo, nem mesmo no final. Tinha um espírito curioso e questionador, contudo extremamente gentil. Após sua partida, seu exemplo de coragem continuou a me inspirar, principalmente agora.
Não, não voltarei ainda ao presente, onde estou entre inimigos. Continuarei no passado, entre minha família, parentes, conversas, risos e brincadeiras. E com essa menina. Minha nova amiga. Meu futuro amor. Mas nessa época não tive qualquer pensamento romântico, apenas admiração e carinho.
— Olá. Sou Maria Amélia — apresentou-se com sorriso encantador.
Levei alguns segundos captando essa informação. Observei os traços harmoniosos.
— Meu nome é Maximiliano — retribuí, falando baixinho.
— Eu sei. Mamãe me contou.
— Quem é sua mãe? — inquiri curioso.
— Aquela ali que está conversando com titia, próxima a janela — respondeu, apontando para o local em questão.
A mulher que ela indicava usava vestes pretas.
— Sua mãe é a viúva? — fiz a pergunta de forma inocente e automática, contudo, arrependi-me do comentário quando vi o semblante dela se entristecer.
— Sim, meu papai está no céu; e de lá, ele cuida de nós.
— Sinto muito — desculpei-me, sentindo-me tolo.
— Ah, está tudo bem. Mamãe amava muito o meu papai. Ela diz que ele nos amava muito também. Mas ele era um general e foi vitorioso na guerra antes de partir.
— Quem era seu pai? — perguntei, curioso. Sendo um menino, a menção de general e guerra mexeram com minha imaginação.
— D. Pedro I, Imperador do Brasil. Um homem muito corajoso — respondeu com evidente orgulho.
De repente, lembrei algumas fofocas familiares, ditas pelos cantos de nossa casa. Sobre esse impetuoso imperador brasileiro que havia falecido em uma guerra em Portugal, deixando uma parenta viúva e a filha pequena. Eu era muito pequeno para entender o que um imperador do Brasil estava fazendo numa guerra em Portugal, mas percebi que para sua filha ele era algum tipo de herói e, antes de tudo, seu querido pai.
— Sua mãe é bonita — comentei. Apesar do traje de luto, era uma mulher jovem e bela.
— Ela é? Não é linda minha mamãe?
E como se tivesse nos ouvido, sua mãe virou o rosto e olhou exatamente em nossa direção. Ao nos fitar abriu um sorriso suave, retribuído por nós dois.
— Quer conhecê-la? — ela me consultou.
Anuí movendo a cabeça. Mesmo crescendo numa família composta por membros da realeza, ainda era emocionante conhecer uma Imperatriz.
Fomos de mãos dadas, e ao caminhar reparei que tínhamos a mesma altura, posteriormente descobri que ela era um ano mais velha.
A Imperatriz Amélia foi muito amável, gostei logo dela. Assim como havia gostado imediatamente de sua filha. De fato, elas se pareciam muitíssimo. Tanto na aparência quanto na educação. A diferença principal, a meu ver, era que a Imperatriz, embora bonita e simpática, possuía uma profunda melancolia em seu olhar. Já Maria Amélia transbordava vivacidade e alegria.
Aqueles foram dias mágicos. Toda a família decidiu passar alguns dias no campo, o que nos permitiu mais liberdade para várias brincadeiras, quase sempre observados de longe por nossas amas. Nos balançamos, revezando no balanço preso a uma árvore do jardim.
— Mais alto! Mais alto! ,ela gritava feliz e eu atendia seu pedido, impulsionando-a.
Fecho os olhos e a vejo perfeitamente: seus cachos voando, a longa saia branca esvoaçando, suas bochechas rosadas e o som musical de sua risada ecoando na brisa. Um momento perfeito da infância, carinhosamente gravado na memória.
Passávamos o tempo percorrendo os jardins; eu e ela, que tínhamos 6 e 7 anos respectivamente, fizemos daquele lugar bucólico nosso mundo encantado. Gostávamos de trepar nas árvores, e me agradou bastante descobrir a moleque que era. Ela suspendia a barra do vestido rodado e agilmente se equilibrava nos galhos. Quando nos cansávamos dessas estripulias, gostávamos de passear um pouco por entre as roseiras.
— Veja! Uma borboleta! — Maria Amélia exclamou alegremente, apontando para uma rosa ao meu lado.
— Gosta delas?
— Sim! — respondeu, acompanhando interessada os movimentos das asas coloridas e cintilantes. Mamãe me disse que no Brasil tem uma infinidade de tipos, cores e tamanhos. Quero ver todas!
Fiquei observando o encantamento provocado pelo inseto em Maria Amélia. Parecia fascinada. Nosso parentesco não era tão próximo, sabia que ela devia ser uma prima distante. Nesse momento algo nela, apesar da alegria espontânea, me sugeriu um espírito solitário. Maria Amélia, assim como essa borboleta, trazia graça e beleza ao mundo adulto que a cercava. Foi com essa imagem em mente que pronunciei um apelido que só seria conhecido por nós.
— Menina Borboleta.
Vi um par de olhos azuis se arregalarem.
— O que disse?
— Você é a Menina Borboleta. Parece-se com elas — expliquei com minha sinceridade infantil.
— Bobinho! Como posso me parecer com algo tão lindo criado pelo bom Deus?
Dei de ombros. Não tive coragem de explicar que para mim ela superava a beleza de qualquer borboleta. Inclusive as brasileiras.
Corremos, brincamos mais um pouco e, enfim, nos chamaram para comer. Colocaram uma toalha no gramado e nos sentamos ali partilhando a refeição deliciosa trazida pelos criados. Os adultos ficaram em cadeiras, felizmente preferiram deixar as crianças mais à vontade. Todos querendo aproveitar o tempo bom e ensolarado. Como sempre, eu estava ansioso por comer de tudo, especialmente os bolinhos recheados de creme e cobertos com açúcar.
— Você tem irmãos? — Maria Amélia perguntou, enquanto pegava um biscoito amanteigado.
— Sim, tenho dois irmãos, sou o do meio — respondi antes de morder o meu bolinho favorito.
— Também tenho irmãos, mas ainda não os conheço todos.
— Como assim? — questionei surpreso.
— São meus irmãos por parte de pai. Conheço a Maria da Glória, ela é a rainha de Portugal. Mas minhas outras manas e meu mano Pedro que moram no Brasil não conheço.
— E tem vontade?
— Ah! Muita!
— E por que não vão lá? Você e sua mãe?
— Mamãe diz que não nos permitem. Que depois que saímos do Brasil, as coisas ficaram diferentes. Não entendo muito bem.
— Que pena — falei, sem saber como responder a essa situação.
— Pois é. Mas se Deus permitir, um dia faremos essa viagem. Ela gosta muito do meu maninho. Às vezes chora de saudade, trocam cartas afetuosas.
Posteriormente, entendi que não obstante os irmãos existentes, por questões políticas e geográficas não havia contato real entre eles. E de fato, por parte de sua mãe, ela era filha única.
A seriedade do momento foi quebrada por seu olhar insistente em mim e o súbito sorriso malicioso.
— O que foi? — falei, desconfiado.
— Tem açúcar no seu nariz. De fato, na cara toda. — E deu uma gostosa risada.
Imaginei que por comer tão gulosamente devia estar com a cara toda suja. Não pensei duas vezes. Peguei o bolinho e passei de sua testa até o queixo, formando uma linha branca no meio da sua face.
— Max! Seu maroto! — reclamou.
Fiquei com medo ao ver sua expressão aborrecida. Será que tinha exagerado? Não estava acostumado a brincar com meninas. Nunca fiquei tão à vontade ao lado de uma. Será que com meninas não se podia brincar assim?
Aos poucos, ela abriu um sorriso e fui me sentindo menos nervoso.
— Obrigada.
— Pelo quê? — inquiri confuso.
— Por me deixar ser sua amiga. Espero que meu mano Pedro seja como você.
— Como eu?
— Sim — falou, pegando o bolinho de minha mão. — Doce como açúcar. — E deu uma boa dentada.
Também mordi outro e me senti feliz.
Quando abro os olhos, ainda posso sentir o sabor do creme na língua, sentir o perfume das flores do jardim e ouvir o som de conversas indolentes naquele pôr do sol.
— Vamos! — diz o soldado com grosseria.
Seguimos pelo corredor da fortificação e passamos por uma porta. Entramos numa sala de poucos móveis. Dois homens estão lá sentados, reconheço meus dois generais. Um parece apavorado, o outro resignado. Todos sabem que nossos destinos já foram selados. Não resta mais nada, nenhum recurso, apenas esperar por nossos algozes.
— Retirem todos os seus pertences e ponham sobre a mesa — o soldado exige friamente.
Meus homens se levantam e também me adianto. Olhamo-nos sabendo que estes são os últimos rituais. Mantemos o silêncio, as palavras agora são desnecessárias.
Lentamente esvaziamos os bolsos e colocamos o conteúdo em cima da mesa. Surgem relógios de bolso, medalhinhas com imagens de família ou com motivos religiosos. Até mesmo um pequeno pente. Rio-me com a ideia de pentear os cabelos. Vaidade nesse momento me parece tão sem sentido. Alianças de casamento também precisam ser removidas, serão devolvidas às esposas. Penso na minha esposa, que nesse momento está na Europa buscando apoio para a nossa causa. Quanto tempo terá passado desde desse dia até que lhe seja dada a fatídica notícia? Com pesar, imagino o terror que provocará nela. Gostaria de ter gerado algum herdeiro, não ficaria sozinha. Entretanto, talvez seja melhor assim. Seria torturante saber que meus filhos estariam sujeitos a enfrentar animais como esses.
— O colar! — alerta o soldado olhando para meu pescoço.
Abro o fecho e retiro a joia. Volto a lembrar daquela tarde em Munique. Da minha querida amiga. Da minha eterna noiva. Olho a medalha da Virgem Maria em minhas mãos e sei a quem ela deve pertencer.
— Por favor, faça chegar às mãos da Imperatriz Dona Amélia, Duquesa de Bragança.
O soldado me olha por um momento, acredito que tentando entender o pedido e a quem me referia. Mas sua reação confusa foi logo substituída por grosseria ao pegar o colar e enfiar de qualquer jeito no bolso da calça. Espero que ele se lembre desse pedido.
— Significa muito para mim — reforço o pedido, tentando transmitir o quanto anseio que se cumpra esse desejo.
Ele volta a me encarar, após alguns segundos sua expressão fria suaviza um pouco e com um breve movimento de cabeça parece concordar.
Retribuo o gesto.
— Obrigado — agradeço engolindo em seco.
Só sobra então um anel na mão direita. Deixei por último por ser o objeto que será mais doloroso me despedir. Esse é um objeto especial, motivo de muitos ciúmes de minha esposa desde que descobriu na verdade do que se tratava. Porque era como se fosse um minúsculo porta-joias. Dentro dele, cuidadosamente protegido, se esconde um único cacho de cabelo. Não preciso abrir para lembrar a cor, embora por todos esses anos contemplá-lo e tocá-lo ajudasse a minimizar a eterna saudade. Aquele pequeno cacho castanho foi tudo que me restou dela, além das lembranças.
Pisco os olhos e novamente não estou mais aqui, dessa vez volto a sentir o cheiro do mar, a umidade salgada na pele, vejo o vento fustigando fortemente as velas. Tenho quase 20 anos, sou um jovem oficial da marinha austríaca e estou num navio, cruzando o oceano.
Descubro que nossa próxima parada é em Lisboa. Lembro-me da minha querida amiga de infância que lá reside com sua mãe, e decido lhes fazer uma visita. Assim que aportamos, envio um mensageiro para comunicá-las da minha chegada e questionando se é oportuno ser recebido. Fico feliz ao receber a resposta positiva e alegre, assinada pela Imperatriz.
Consigo um cavalo e procuro me informar como chegar ao Palácio das Janelas Verdes. Não parece complicado. É final do inverno e o dia está nublado, por isso corre um vento gelado. Confesso que, após tanto tempo confinado na embarcação, ter a chance de estar novamente em terra, desfrutando de companhia familiar e saboreando uma boa refeição me deixava muito animado. E eu veria novamente minha amiga após todos esses anos! Estava bastante curioso sobre como ela estaria. Esperava que não tivesse acontecido o mesmo que ocorreu com algumas primas; de lindos anjinhos, tornaram-se gárgulas enfeitadas.
Perguntando aqui e ali, finalmente consegui me deparar com a fachada do palácio. Uma grande construção com belos jardins externos e que por ficar num terreno elevado permitia ter uma excelente vista do Rio Tejo. Enquanto um criado me aguardava à entrada e a quem entreguei as rédeas, outro me esperava à porta, onde me deu boas-vindas e convidou-me a entrar.
Atravessamos algumas salas belamente decoradas como convinha a posição das residentes. Então, entramos num salão onde duas mulheres se encontravam sentadas. Uma estava com vestido preto e a outra de azul. E foi quando fitei esta última, que aconteceu o espanto e iniciou o deslumbramento, a devoção, o compromisso e o amor. Como posso explicar? Era ela, eu reconheci. Porém, também não era. Se fosse possível uma borboleta continuar sua metamorfose, se existisse um próximo estágio seria esse. Com o importante detalhe de que ela nunca foi uma