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Gênero, Orientação Sexual, Raça e Classe: Violências Contra Estudantes no Campus de Uma Universidade Federal
Gênero, Orientação Sexual, Raça e Classe: Violências Contra Estudantes no Campus de Uma Universidade Federal
Gênero, Orientação Sexual, Raça e Classe: Violências Contra Estudantes no Campus de Uma Universidade Federal
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Gênero, Orientação Sexual, Raça e Classe: Violências Contra Estudantes no Campus de Uma Universidade Federal

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About this ebook

Organizado em quatro capítulos de leitura agradável, este livro descreve de modo contextualizado, analisando com rigor teórico aspectos qualiquantitativamente das violências praticadas no interior das instituições superiores de ensino no país, focando a UFV, bem como expõe suas dinâmicas psicossociais. Chega a interessantes conclusões. Uma delas aponta para a complexa teia de ações e opressões interseccionadas, de difícil compreensão e explicitação ao primeiro olhar, o qual em geral está treinado apenas para identificar situações violentas e conflitivas afeitas à classe econômica dos sujeitos nelas envolvidos. Outra interessante consideração final se refere à variabilidade do perfil dos perpetradores e das vítimas. Ou seja, mesmo estudantes de grupos mais susceptíveis a sofrerem diferentes violências na UFV (mulheres, LGBTs e negros/as), nem sempre se encontram na posição de subalternas/os e de oprimidas/os, sofrendo a referida violência desferida pelos habituais representantes (em geral, homens, brancos, heterossexuais e não pobres). Evidências empíricas revelam que integrantes dos grupos ditos vulneráveis também podem ocupar posições de agressores, discriminadores ou ofensores, utilizando-se de outras violentas hierarquias estabelecidas por meio dos marcadores de gênero, raça, classe social e/ou orientação sexual. (Tânia Mara Campos de Almeida Professora do departamento de Sociologia da Universidade de Brasília)
LanguagePortuguês
Release dateMay 30, 2019
ISBN9788546216246
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    Book preview

    Gênero, Orientação Sexual, Raça e Classe - Sales Augusto dos Santos

    (UnB)

    INTRODUÇÃO

    Sabe-se que os campi universitários não são espaços tão seguros e/ou livres de violências como se espera de um ambiente acadêmico, loci onde teoricamente deveria imperar a segurança de todos/as os/as cidadãos/ãs que os frequentam, especialmente dos/as seus/suas discentes. Nesses espaços há casos de violências física, sexual, psicológica, racial, de gênero, de orientação sexual, entre outras, que ocorrem interligadas e/ou relacionadas, bem como sobrepostas, mas não necessariamente nessa ordem, embora nem sempre sejam pesquisadas com a devida acuidade e/ou rigor. Sabe-se que há casos de violências denunciadas pelas vítimas em várias universidades brasileiras, do Norte ao Sul do País, a exemplo das Universidade Federal do Acre (Ufac)⁶, Universidade de Brasília (UnB)⁷, Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)⁸, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)⁹, Universidade São Paulo (USP)¹⁰, Universidade Federal do Paraná (UFPR)¹¹, entre outras.

    Os campi da Universidade Federal de Viçosa (UFV), ao que tudo indicava, não estavam e ainda não estão livres das mesmas violências denunciadas nas Instituições de Ensino Superior (IES) públicas supracitadas, visto que seus/suas discentes já haviam denunciado as ocorrências de casos de estupro, abuso, assédio e discriminação, que são frequentes no dia a dia da instituição¹². Portanto, havia evidências¹³ que davam suporte e justificavam a necessidade de se verificar por meio de pesquisas acadêmico-científicas as violências que ocorrem nos campi da UFV.

    Diante disso, em maio de 2016, a Pró-Reitora de Assuntos Comunitários (PCD) da UFV nos demandou uma pesquisa que investigasse os tipos de violência que poderiam estar ocorrendo contra os/as seus/suas discentes de graduação no campus Viçosa. Assim sendo, de certa forma, a PCD antecipou-se à hashtag #NãoÉNormalUFV, lançada em maio de 2017 por alguns/umas estudantes da Universidade, alunos/as que têm questionado várias situações que causam desconforto, criam problemas e/ou impõem opressões aos/às discentes da Universidade, inclusive ofensas preconceituosas, discriminações, práticas de violências psíquicas, simbólicas e materiais¹⁴, entre outras, tanto dentro como fora das salas de aula.

    Portanto, a nossa investigação, cujo resultado apresentamos neste livro, não surgiu por meio de um problema de pesquisa erigido por nós, ou melhor, proposto pelo autor do livro. A pesquisa que deu origem a esse livro foi uma demanda da UFV. O objetivo era saber se havia violência sistemática contra os alunos e as alunas da Universidade, fato que ficou comprovado como demonstram os dados aqui descritos, assim como as enunciações dos/as estudantes que entrevistamos e/ou foram entrevistados/as por outros/as pesquisadores/as, por meio de um roteiro de entrevista semiestruturado.

    Considerando os seus objetivos, devemos destacar também que esse livro é mais descritivo do que analítico. Aliás, praticamente não há análises, ou seja, explicações teóricas sobre as violências contra os/as discentes de graduação da UFV, campus Viçosa. Sabemos que a ausência de explicação limita significativamente o conhecimento sobre as violências praticadas contra esses/as discentes, especialmente contra as estudantes do sexo feminino, as mais agredidas no campus e/ou em festas acadêmicas. Contudo, também sabemos que a descrição do fenômeno é um passo importante para a sua explicação, especialmente quando não se tem pesquisas e/ou teorias sobre o tema pesquisado. Assim, mesmo com essa limitação, pensamos que esse livro pode ser um instrumento importante para uma futura explicação teórica desse tema. Pensamos ser essa a nossa principal contribuição ao tema.

    Dessa forma, o livro consta desta introdução, seguida da metodologia, onde se mostra como foi feita a pesquisa, ou seja, os caminhos que trilhamos para construí-la, incluindo aí quantos/as e quem foram os/as entrevistados/as etc. Na sequência, apresentamos os resultados da pesquisa, mas antes fazemos uma breve apresentação da cidade de Viçosa, com o objetivo de mostrar como a economia viçosense depende do funcionamento da UFV e como isso pode impactar na afirmação ou negação de violências contra os/as estudantes da Universidade.

    Ato contínuo, apresentamos o perfil dos/das estudantes da UFV, construído a partir dos dados da pesquisa. Aqui mostramos a escolaridade dos/das pais e mães dos/das estudantes entrevistados/as, assim como a sua cor/raça, sexo, orientação sexual, idade, naturalidade, local de moradia, participação política e/ou cidadã, o (re)conhecimento da existência de coletividades e/ou de grupos vulneráveis na sociedade brasileira, entre outras características.

    Em seguida, com o título da violência, apresentamos os vários tipos de violências a que estão submetidos/as os/as estudantes da UFV, dentro e fora de sala de aula. Nesse capítulo não somente apresentamos as violências que ocorrem na Universidade relatadas pelos/as seus/suas estudantes, mas, para fins didáticos, também construímos dois rankings das violências, o da autodeclaração e o da heteroclassificação, assim como construímos uma tipologia das violências sofridas pelos/as estudantes e uma tipologia dos/das agressores/as dos/das estudantes, ambas construídas a partir das violências automanifestadas.

    Esperamos que este livro possa ser útil ao conhecimento acadêmico-científico, porém, mais do que isso, que possa colaborar para o enfrentamento das violências e, principalmente, para a criação de políticas de prevenção de violências, quaisquer que sejam elas, contra quaisquer que sejam os/as agredidos/as: discentes, docentes, técnico-administrativos/as e servidores/as terceirizados/as de todas as cores/raças, sexos, orientação sexual, constituição corporal e/ou mental, religião, entre outras distinções.

    Notas

    6. Disponível em: Acesso em: 28 fev. 2016.

    7. Ibidem.

    8. Ibidem.

    9. Disponível em: . Acesso em: 28 fev. 2016.

    10. Ibidem.

    11. Ibidem.

    12. Disponível em: . Acesso em: 26 fev. 2016.

    13. Ibidem.

    14. A campanha via a hashtag #NãoÉNormalUFV tem denunciado uma rotina de preconceito e abuso cometidos por professores da Universidade Federal de Viçosa contra os/as alunos/as da Instituição. Disponível em: . Acesso em: 20 maio 2017.

    1. DA METODOLOGIA

    Nesta parte do livro apresentaremos os resultados das informações obtidas por meio da aplicação de um questionário que elaboramos e aplicamos aos estudantes de graduação da UFV. Este questionário foi confeccionado com base na literatura sobre o tema da nossa pesquisa, Violência contra os/as estudantes no campus Viçosa da UFV, que é parte de um projeto mais amplo (ou guarda-chuva) de pesquisa, qual seja, Violência nos Campi das Universidades Públicas Brasileiras, que pretendemos executar e/ou dar continuidade num futuro próximo.

    Todavia, devemos informar que embora seja considerável a bibliografia sobre o tema violência, a literatura sobre Violência nos campi Universitários é escassa. Praticamente não há produção de conhecimento sobre esse último assunto, que parece ser um tabu não somente no Brasil, mas em vários países, como os Estados Unidos da América (EUA)¹⁵. Somente quando estávamos na fase final da pesquisa supracitada tivemos conhecimento dos trabalhos "Violência, conflitos e crimes nos campi Universitários: subsídios para a política de segurança da UFG. Relatório de Pesquisa, de Oliveira e Santibanez (2015), e de Violência sexual na Universidade Federal de Viçosa: ‘Boa noite Cinderela Acadêmico’", de Martins, Fraga e Costa (2017).

    O primeiro trabalho tem como foco a política de segurança no campus da Universidade Federal de Goiás (UFG), por meio basicamente de duas abordagens. A primeira, quantitativa, que tinha como objetivo:

    Identificar e analisar as ocorrências relativas a conflitos intersubjetivos, crimes e contravenções nos câmpus da UFG, incluídas as regionais (situadas em Catalão, Jataí e Cidade de Goiás) que tenham sido registradas tanto no âmbito interno da Universidade, quanto em delegacias de polícia competentes para averiguar crimes e contravenções na região em que os câmpus se situam. (Oliveira; Santibanez, 2015, p. 5)

    A segunda abordagem, qualitativa, que tinha como objetivo:

    Descrever e mensurar as representações (julgamentos e valores) sobre risco, ocorrências de violência e tráfico de drogas nas Regionais da UFG, via pesquisa no modelo survey, por meio de grupos focais e entrevistas em profundidade, permitindo a identificação dos principais temas, conceitos e variáveis (qualitativas e quantitativas) que compõem as representações da comunidade universitária. (Oliveira; Santibanez, 2015, p. 9)

    O segundo trabalho, de Martins, Fraga e Costa (2017), tem relação com a nossa pesquisa, visto que teve como campo de pesquisa a UFV, assim como o tema violência contra as estudantes mulheres no campus Viçosa dessa universidade. Contudo, o trabalho limitou-se a investigar, por meio de documentos obtidos em redes sociais e por questionários on-line, aplicados via internet, um tipo específico de violência, a sexual ou os crimes sexuais contra as estudantes de sexo feminino. Como os/as autores/as afirmam:

    Esse trabalho é um desafio colocado frente à curiosidade investigativa do tema violência sexual, pois se reporta à prática dos crimes sexuais no interior da universidade: prática relativizada na instituição acadêmica, a partir do comportamento assumido por alguns estudantes, que exige reconhecer em seus alunos como agressores na rotina das relações interpessoais [...]. Esse trabalho objetivou uma maior compreensão das práticas de violência sexual envolvendo estudantes universitários. Sua hipótese inicial alude à fragilidade de reconhecimento das vítimas e agressores desse tipo de crime, pela dificuldade clássica aplicada à obtenção de dados consistentes e minimamente qualificados sobre o fenômeno. (Martins; Fraga; Costa, 2017, p. 3-5)

    Se a primeira pesquisa era bem mais ampla que a nossa, a política de segurança na e da UFG, a segunda pesquisa era menos abrangente, ou seja, era mais restrita, pois tinha como foco somente os crimes sexuais (e apenas contra as estudantes mulheres) no interior da UFV e em festas acadêmicas. Portanto, não foram pesquisas que tiveram como tema "violências nos campi das universidades brasileiras", como a nossa, assim como não utilizaram a mesma metodologia para produzir e/ou construir os dados sobre violências no meio acadêmico contra os/as estudantes da universidade.

    Independentemente das diferenças e dos focos das pesquisas supracitadas quando comparado com a nossa investigação, fazer pesquisa implica ter recursos monetários para a sua realização. Assim, considerando a falta desses recursos para tal, a nossa pesquisa foi realizada somente com os/as alunos/as de graduação da UFV do campus Viçosa¹⁶, locus onde foi feita a aplicação dos questionários, entre os dias 20 de junho de 2016 e 01 de julho de 2016.

    Desta forma, no primeiro semestre de 2016, quando foi aplicado o questionário, uma de nossas ferramentas para a construção e/ou produção de informações, a UFV tinha 11.239 alunos/as de graduação matriculados/as¹⁷. A priori, quando fomos consultados sobre a realização da pesquisa, pensamos em fazê-lo por universo. Mas, sem recursos para tal, fomos obrigados a optar por uma pesquisa por amostra. Assim sendo, foi contratada a PraxCis – Empresa Júnior de Ciências Sociais UFV para aplicar o questionário aos/às estudantes de graduação, tabulá-los (por meio do software Statistical Package for the Social Science – SPSS) e fazer o tratamento de dados. A PraxCis também ficou encarregada de fazer o cálculo amostral para a aplicação do questionário. Segundo esse deveriam ser (e foram) entrevistados/as 400 alunos/as, com erro amostral de 5% e grau de confiança de 95,0% (Santos, 2018).

    Mas, no contrato firmado com a PraxCis constava que a pesquisa seria feita por meio de amostra por cotas¹⁸ e não amostra probabilística. Respectivamente:

    A sistemática de levantamento por cotas é uma técnica de amostragem não probabilística que consiste na divisão da amostra em grupos ou estratos considerados relevantes para representar a população que se pretende investigar. Um determinado número de entrevistas (cotas) é estabelecido para cada um desses grupos, de sorte que a seleção seja proporcional ao seu tamanho na população. Por exemplo, se é dado a conhecer que 55% da população são do sexo feminino, então o desenho da amostra deverá entrevistar uma cota de 55% de mulheres. Se a estratificação etária da população aponta que 23% têm entre 30 e 39 anos, a cota correspondente na pesquisa deverá entrevistar o mesmo percentual, e assim por diante.

    E:

    A amostragem probabilística busca assegurar que todos os indivíduos na população tenham chances iguais de seleção na amostra, e que os subgrupos socioeconômicos representativos da população possam participar, no levantamento, em proporções assemelhadas às que se verificam no universo pesquisado. Já a sistemática de levantamento por cotas é uma técnica de amostragem não probabilística que consiste na divisão da amostra em grupos ou estratos considerados relevantes para representar a população que se pretende investigar.¹⁹

    Em face dessa cláusula contratual, isso nos impediu de exigir da empresa a realização da pesquisa por amostra probabilística, considerada, por alguns/umas pesquisadores/as, mais eficiente e/ou mais eficaz que a pesquisa por cotas amostrais²⁰. Mais ainda, observamos, no momento em que estávamos analisando os dados, isto é, bem após a realização do campo de pesquisa (aplicação dos questionários), que essa cláusula contratual não foi cumprida plenamente pela empresa PraxCis. Por exemplo, verificamos que houve pelo menos uma incoerência ou desproporcionalidade que ocorreu na cota por sexo, como se verá a seguir.

    De um total de 11.239 estudantes matriculados/as no primeiro semestre de 2016 na UFV, como vimos anteriormente, 5.726 eram alunas e 5.513 eram alunos, respectivamente, 50,95% e 49,05%. Contudo, os dados gerados, conforme Tabela 1, indicam que 51% dos/as estudantes de graduação entrevistados/as pela PraxCis foram do sexo masculino e 49%, do sexo feminino. Ou seja, não somente a PraxCis não estabeleceu amostras por cotas proporcionais nesse caso (isto é, de acordo com a quantidade de cada um dos sexos dos estudantes da UFV), como também entrevistou mais estudantes de graduação do sexo masculino (que são minoria na UFV) que estudantes do sexo feminino (que são maioria na Universidade).

    Tabela 1. Sexo dos/as estudantes

    Fonte: Santos, 2018.

    Ora, em razão de tal procedimento, entre outros, supomos que o processo de produção de dados realizado pela PraxCis teve algumas falhas que, infelizmente, não pudemos corrigir a tempo, uma vez que só as constatamos no momento em que começamos a analisar os dados da pesquisa, ou seja, após a entrega desses dados a nós. Em virtude dessas falhas, imediatamente nos surge a pergunta: a pesquisa que apresentamos neste livro ficou viciada? Qual o peso ou impacto dessas falhas no resultado da pesquisa (e/ou na análise dos dados)?

    A resposta é, infelizmente, não sabemos e não temos como responder essas questões agora. Contudo, pensamos que essas falhas não nos impedem de afirmar, por um lado, que a pesquisa nos proporciona uma fotografia das violências contra os/as estudantes de graduação do campus Viçosa da UFV, ou melhor, dos/das 400 estudantes que entrevistamos por meio de questionário, visto que a amostra também não é probabilística, não sendo, dessa forma, representativa de todos/as as/os estudantes da UFV. Mas, essa fotografia, ao que parece, não é tão nítida e/ou está ligeiramente desfocada em face das falhas na produção e/ou construção dos dados, até porque não usamos photoshop para editar as imagens ou o cenário que esta fotografia nos apresenta. Ao contrário, estamos enunciando que as imagens que essa fotografia nos mostra não foram editadas para que todos/as disséssemos e/ou acreditássemos que a pesquisa está perfeita, linda. Não, não está! Mas nem por isso não se consegue ver por meio dela vários tipos de violências contra os/as estudantes da UFV que entrevistamos. Isto é, embora não sendo nítida, a fotografia que aqui apresentamos demonstra que há problemas de violências contra alguns/umas estudantes da UFV do campus Viçosa, especialmente contra as estudantes mulheres, entre outras coletividades e/ou grupos vulneráveis. Esses, segundo o Dicionário de Direitos Humanos (on-line), da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), são:

    O conjunto de pessoas pertencentes a uma minoria que, por motivação diversa, tem acesso, participação e/ou oportunidade igualitária dificultada ou vetada a bens e serviços universais disponíveis para a população [...]. São grupos que sofrem tanto materialmente como social e psicologicamente os efeitos da exclusão, seja por motivos religiosos, de saúde, opção sexual (sic), etnia, cor de pele, por incapacidade física ou mental, gênero, dentre outras.²¹

    Ao que tudo indica, há aparente incoerência na definição ora apresentada, visto que na primeira parte da definição os grupos vulneráveis seriam formados ou se originariam por membros de minorias sociais, ou seja, eles estariam restritos às minorias²². Mas, na segunda parte, esses grupos não são definidos necessariamente como minorias (demográficas), mas como grupos que necessariamente sofrem exclusões em várias áreas e/ou campos sociais em virtude de discriminações e/ou violências (materiais, simbólicas, psicológicas, entre outras) a que são submetidos, definição esta que pensamos ser mais apropriada, visto que, por exemplo, mesmo não sendo minoria (demográfica) no Brasil, as mulheres sofrem várias discriminações e/ou violências em nosso país²³, como têm demonstrado várias instituições e/ou pesquisadores/as, como, Ipea (2011), Almeida (2017), Bandeira (2017 e 2014), Bandeira e Batista (2002), Carneiro (2017), Carneiro (2011), Marcondes et al. (2013), Waiselfisz (2015), entre outros/as.

    Em face de violências como as citadas anteriormente, entre outras, assim como de discriminações, as mulheres são consideradas um grupo vulnerável. Portanto, não é o critério quantitativo, minoria ou maioria, que define a vulnerabilidade de um grupo ou de uma coletividade. Ou seja, o critério que adotamos para definir quem é vulnerável tem a ver com o fato de a pessoa ser discriminada recorrente, sistemática e negativamente e/ou sofrer similarmente violências em determinada sociedade. Portanto, designamos coletividades e/ou grupos vulneráveis os grupos de pessoas que, em geral, são estigmatizadas²⁴ e/ou vítimas de preconceitos em face de suas características reais ou imaginadas e, por essa razão, são discriminadas, oprimidas e/ou sofrem violências, entre outras injustiças e opressões.

    Porém, devemos fazer um esclarecimento aqui. A literatura sobre esse tema geralmente classifica essas pessoas como integrantes de grupos vulneráveis. Entretanto, segundo o Dicionário de Sociologia. Guia Prático da Linguagem Sociológica, de Allan G. Johnson (1997, p. 119), grupo é um sistema social que envolve interação regular entre seus membros e uma identidade coletiva comum. Isso significa que o grupo tem um senso de ‘nós’ que permite a seus membros se considerarem pertencentes a uma entidade separada. Ainda segundo esse dicionário (1997, p. 120), em virtude dessa interação regular há o desenvolvimento do sentimento de lealdade entre os membros do grupo, assim como o grupo se torna um agente fundamental de controle sobre os/as seus/suas membros.

    Como se verá ao longo deste livro, os/as discentes mulheres, LGBTs, negros/as, entre outros/as estudantes da UFV, que classificamos como vulneráveis, não têm uma interação regular e/ou um envolvimento profundo e forte senso de identidade comum (até porque muitos/as deles/as, dentro da respectiva coletividade de pertencimento, nem se conhecem pessoalmente), caraterísticas que são fundamentais para caracterização e definição de um grupo, conforme Johnson (1997). Logo, pensamos que, técnica ou sociologicamente, não seria apropriado usar o termo grupos vulneráveis, mas sim coletividades vulneráveis. Segundo o referido dicionário:

    Uma coletividade consiste de pessoas que se consideram pertencentes a uma unidade social identificável [...]. Ao contrário do grupo, porém, a coletividade carece de padrões regulares de interação entre seus membros. [...]. As coletividades podem assumir inúmeras formas, incluindo identificações raciais, étnicas, nacionais, políticas, religiosas e comunitárias [...]. (Johnson, 1997, p. 42)

    Assim sendo, pensamos ser mais apropriado classificar o conjunto de estudantes discriminados/as, violentados/as, oprimidos/as etc., na UFV, como indivíduos pertencentes a coletividades vulneráveis em vez de pertencentes a grupos vulneráveis, em razão, especialmente, de não haver interação regular entre seus/suas membros. Todavia, ante a persistência na literatura do termo grupos vulneráveis, ao longo desse livro usaremos ora um ora outro termo, como sinônimos.

    Feitos esses esclarecimentos, enfatizamos que a fotografia dos/as estudantes da UFV que produzimos e apresentamos neste livro, ante as considerações que relatamos anteriormente sobre a operacionalização da geração/construção de dados feitas pela empresa PraxCis, não terá uma imagem nítida, nos impossibilitando fazer interpretações absolutas dos dados. Ou seja, não teremos uma fotografia com imagens cristalinas sobre as violências praticadas contra todos/as estudantes de graduação da UFV no campus Viçosa. Elas não serão cristalinas, mas serão imagens visíveis de vários tipos de violência que ocorrem no campus Viçosa da UFV, e que qualquer cidadão comum não míope poderá ver e identificar as principais vítimas e alguns/umas agressores/as.

    Ademais, reconhecer que a fotografia que construímos por meio dessa pesquisa pode não ser a expressão incontestável – o real-concreto – das violências no campus Viçosa contra os/as discentes de graduação não significa que a nossa fotografia sobre as violências na Universidade não sirva como um diagnóstico das opressões, discriminações e injustiças a que muitos/as alunos/as estão sujeitos/as e que, além disso, devemos desqualificá-la e/ou desconsiderá-la. Ao contrário, para nós essa fotografia um pouco desfocada significa que alguns dados e/ou tipos de violência podem estar subestimados em face das, ao que tudo indica, prováveis falhas da PraxCis no processo de produção/construção dos dados. Por exemplo, como indicamos antes, foram entrevistados mais estudantes de graduação homens (51%) que mulheres (49%), quando, para mantermos uma coerência proporcional, a PraxCis deveria ter entrevistado mais estudantes mulheres, que eram 50,95% do total de discentes da UFV, no primeiro semestre de 2016, quando foram realizadas as entrevistas. Observa-se aqui que houve inversão de porcentagens de discentes homens e mulheres de graduação que deveriam ser entrevistados/as.

    Devemos lembrarmo-nos de que as mulheres, numa sociedade machista como a brasileira, cuja universidade é um dos seus reflexos, tendem a ser mais vítimas ou, caso se queira, mais violentadas que os homens e por eles. Portanto, reduzir a quantidade de estudantes mulheres entrevistadas implicou reduzir também a probabilidade de emergir, próximo do real-concreto, os tipos de violência que, em geral, os estudantes homens não estão sujeitos de maneira excessiva no campus e/ou em festas acadêmicas, como, por exemplo, a tentativa de estupro, o estupro, o assédio sexual, levar cantadas ofensivas, ter o corpo desrespeitado, ser coagida a beijar alguém, entre outras violências, como se verá ao longo desse livro.

    Mas, antes de aplicarmos o questionário, este precisou ser elaborado, construído. O fato é que o questionário é teoria em ato, pois:

    A medida e os instrumentos de medição, e, de forma geral, todas as operações da prática sociológica, desde a elaboração dos questionários e a codificação até a análise estatística, constituem outras tantas teorias em ato, enquanto procedimentos de construção, conscientes ou inconscientes, dos fatos e das relações entre os mesmos. (Bourdieu; Chamboredon; Passeron, 2004, p. 53)

    Isso significa que para elaborarmos um questionário temos que ter pressupostos teóricos, pois o questionário não surge de um vácuo acadêmico-científico, sem estudo e pesquisas sobre o tema a ser pesquisado, no caso específico violências contra estudantes em universidades. Isto é, a elaboração de um questionário depende do conhecimento teórico sobre o tema a ser pesquisado, até porque, conforme Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2004), a teoria deve comandar o dado.

    Todavia, como visto anteriormente, não havia, ou melhor, não tínhamos conhecimento de um referencial teórico sobre o tema "violências nos campi das universidades brasileiras". Então como elaborar este questionário? Como gerar dados sem os pressupostos teóricos? Aqui recorremos ao sociólogo Boaventura dos Santos (1989), quando afirma que, na ausência de uma sociologia erudita, ou seja, de um conhecimento estabelecido sobre um tema, dependeremos muito da nossa criatividade ou do autoconhecimento. Ou seja, temos que ser criativos. Sendo assim, passamos a ler e estudar matérias publicadas em jornais, portais da rede mundial de computadores (Internet) etc., sobre violências que aconteceram contra os/as estudantes nos campi das universidades brasileiras, especialmente nas públicas, que vão dos trotes ao estupro e até morte de estudantes.

    Nesse processo, descobrimos uma pesquisa feita pelo Instituto Avon (2015)²⁵ com universitários/as. Embora essa pesquisa fosse focada somente na violência contra as mulheres, ela nos ajudou a pensar sobremaneira a confecção do nosso questionário²⁶. Além disso, lemos artigos acadêmico-científicos sobre violência contra grupos sociais estigmatizados e/ou coletividades vulneráveis, como mulheres, negros/as, indígenas, gays, lésbicas, transexuais, entre outras. Consequentemente, também lemos artigos e livros acadêmicos a respeito de preconceitos e discriminações raciais, sexuais, de gênero, de orientação sexual, violência contra mulheres, entre outros. Foi a partir desse conjunto de textos e/ou documentos que construímos um dos nossos instrumentos de pesquisa: o questionário²⁷. Por meio deste, buscamos informações sobre as violências a que estão submetidos/as os/as estudantes da UFV que entrevistamos.

    Antes de prosseguirmos, gostaríamos de destacar que, dentre os artigos utilizados para construirmos o questionário, o texto Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero, da professora Kimberlé Crenshaw (2002), da Faculdade de Direito da University of California, em Los Angeles, foi de extrema importância, especialmente porque nele a referida professora nos apresenta o conceito de interseccionalidade. Conceito esse que também norteou as descrições dos dados da pesquisa, assim como as incipientes análises contidas nesse livro. Segundo a professora Kimberlé Crenshaw:

    A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento. (Crenshaw, 2002, p. 177)

    A partir desse conceito chegamos à conclusão de que o questionário deveria contemplar algumas categorias a serem pesquisadas, especialmente algumas relacionadas ao perfil dos/as estudantes, que indicam a sua posição na sociedade brasileira, como o sexo/gênero, a cor/raça, a renda familiar, a orientação sexual, a identidade de gênero, a idade, o nível de escolarização do pai, o nível de escolarização da mãe, entre outras. Tais categorias, como indica Crenshaw (2002), podem ser (e geralmente são) usadas como eixos de poder distintos e mutuamente excludentes, que se entrecruzam e/ou se sobrepõem, implicando relações sociais complexas, não lineares, como veremos, por exemplo, ao analisarmos as discriminações sofridas pela estudante M1²⁸, entre outros casos.

    Em realidade, o conceito de interseccionalidade norteou a nossa pesquisa. Isto é, não somente nos indicou a necessidade de incluirmos as categorias supracitadas no questionário, mas de cruzarmos os dados obtidos a partir dessas categorias, com objetivo de verificar se havia múltiplas violências contra alguns/umas estudantes e/ou se alguns/umas são mais violentados/as que outros/as, algo que foi constatado, como se verá.

    Contudo, antes de avançarmos, devemos fazer uma rápida digressão, isto é, informar que há críticas ao conceito de interseccionalidade elaborado por Kimberlé Crenshaw. Uma delas, feita por Elsa Dorlin e citada por Danièle Kergoat (2010), é a de que utilização desse conceito como um instrumento de análise implica ver mulheres ocupando diferentes posições (fixas). Isto é, não se considera que as relações sociais²⁹ são dinâmicas. Desconsidera-se que essas relações condicionam constantemente aquelas posições, tornando-as instáveis e/ou cambiantes. Ou seja, não se leva em conta que não há posições fixas nas relações sociais e que as relações de dominação são móveis e historicamente determinadas. Conforme Elsa Dorlin:

    […] a definição [de Crenshaw] das relações sociais como setores de intervenção implica que as mulheres […] que enfrentam mais do que uma discriminação se acham em setores isolados. […] O conceito de interseccionalidade e, de maneira geral, a idéia de intersecção, dificulta pensar uma relação de dominação móvel e historicamente determinada […]. Em outros termos, a interseccionalidade é um instrumento de análise que coloca as relações em posições fixas, que divide as mobilizações em setores, exatamente da mesma maneira pela qual o discurso dominante naturaliza e enquadra os sujeitos em identidades previamente definidas. (Dorlin apud Kergoat, 2010, p. 98)

    Danièle Kergoat complementa a crítica de Elsa Dorlin ao conceito de interseccionalidade de Kimberlé Crenshaw, afirmando que ao considerarmos as categorias analíticas separadas das relações sociais, das quais as primeiras são frutos, pode-se mascarar essas relações, não nos permitindo ver, o mais próximo possível, a realidade concreta dos grupos sociais subordinados/as e/ou explorados/as (por exemplo, mulheres, negros/as, pessoas LGBTs, pobres, entre outros) em uma determinada sociedade.

    A multiplicidade de categorias mascara as relações sociais. Ora, não podemos dissociar as categorias das relações sociais dentro das quais foram construídas. Assim, trabalhar com categorias, mesmo que reformuladas em termos de intersecções, implica correr o risco de tornar invisíveis alguns pontos que podem tanto revelar os aspectos mais fortes da dominação como sugerir estratégias de resistência. A noção de multiposicionalidade apresenta, portanto, um problema, pois não há propriamente posições ou, mais especificamente, estas não são fixas; por estarem inseridas em relações dinâmicas, estão em perpétua evolução e renegociação. (Kergoat, 2010, p. 98)

    Porém, Kergoat (2010) não se limita à crítica ao conceito de interseccionalidade. Ela também apresenta uma alternativa ao mesmo, qual seja, o conceito de consubstancialidade, onde a referência e a mobilização da categoria classe social é obrigatória, visto que uma das críticas da socióloga francesa ao conceito da jurista estadunidense é que o conceito de interseccionalidade tem priorizado ou privilegiado o cruzamento entre as categorias raça e gênero, sendo a referência à categoria classe social algo basicamente protocolar, formal, não passando muitas vezes de uma citação obrigatória dessa última categoria (Kergoat, 2010, p. 97). Crítica essa que, ao que tudo indica, é pertinente, pois na primeira definição de interseccionalidade de Kimberlé Crenshaw (1994), a categoria classe social de fato não é enfatizada como são as categorias raça e gênero. Conforme a autora estadunidense:

    I used the concept of intersectionality to denote the various ways in which race and gender interact to shape the multiple dimensions of Black women’s employment experiences (…). This article has presented intersectionality as a way of framing the various interactions of race and gender in the context of violence against women of color. I have used intersectionality as a way to articulate the interaction of racism and patriarchy generally. (Crenshaw, 1994, p. 1244-1926) ³⁰

    Além da crítica da não utilização recorrente e concreta da categoria classe social (e até por isso), há uma suposição de que as categorias entrecruzadas (raça e gênero) seriam primordiais ou teriam prioridade sobre categorias não interseccionadas (como a classe, orientação sexual, entre outras). Ou seja, critica-se que haveria primazia do gênero e da raça sobre os demais eixos de diferenciação. Consequentemente, haveria algumas relações sociais primordiais ou prioritárias em relação a outras, visto que as categorias analíticas interseccionadas são fruto das relações sociais.

    Assim, numa tentativa de não se minimizar os conflitos de classe existentes nas relações sociais, entre outros conflitos ou problemas, bem como de desnaturalizar as construções que se baseiam na diferenciação das desigualdades, Danièle Kergoat propõe a utilização do conceito de consubstancialidade das relações sociais e sua propriedade essencial, a coextensividade, para analisar e compreender as opressões e/ou subordinações em sociedade. Segundo a autora francesa, consubstancialidade:

    É o entrecruzamento dinâmico e complexo do conjunto de relações sociais, cada uma imprimindo sua marca nas outras, ajustando-se às outras e construindo-se de maneira recíproca. Como disse Roland Pfefferkorn, essas relações estão envolvidas intrinsecamente umas com as outras. Elas interagem e estruturam, assim, a totalidade do campo social. Mas o fato de as relações sociais formarem um sistema não exclui a existência de contradições entre elas: não há uma relação circular; a metáfora da espiral serve para dar conta do fato de que a realidade não se fecha em si mesma. Portanto, não se trata de fazer um tour de todas as relações sociais envolvidas, uma a uma, mas de enxergar os entrecruzamentos e as interpenetrações que formam um no seio de uma individualidade ou um grupo. Quanto à coextensividade, ela aponta para o dinamismo das relações sociais. O conceito procura dar conta do fato de que elas se produzem mutuamente. (Kergoat, 2010, p. 100)

    A despeito das críticas de Kergoat (2010) ao conceito de interseccionalidade cunhado por Kimberlé Crenshaw (1994), devemos lembrarmo-nos de que, bem antes dessa última autora, a filósofa e feminista negra, Angela Davis³¹, já fazia análises interseccionando as categorias analíticas classe, raça e gênero, ou, mais especificamente, luta de classes, antirracismo e feminismo, embora não tenha nomeado essa metodologia de trabalho/pesquisa de interseccionalidade, como pode ser observado no livro Women, Race and Class (1981), que foi traduzido recentemente no Brasil³². Ou seja, nesse caso, a referência e a mobilização da categoria classe social foi concreta e fundamentais às análises de Angela Davis. Portanto, independente da crítica de Kergoat (2010) ao conceito de Crenshaw (2002 e 1994), nós operacionalizamos o conceito de interseccionalidade em nossa pesquisa, visto que ele já era mobilizado por Davis (1981) considerando as relações sociais, ou seja, sem essa autora separar as categorias analíticas das relações sociais.

    Também utilizamos nesse livro outro conceito que sofreu, e ainda sofre, várias críticas, o patriarcado. Conforme Sylvia Walby, em uma definição preliminar:

    I shall define patriarchy as a system of social strutures, and practices in which men dominate, oppress and exploit women. The use of the term social structure is important here since it clearly implies rejection of both biological determinism, and the notion that every individual man is in a dominant position and every individual woman is a subordinate one. (Walby, 1989, p. 214)³³

    Entre outras críticas ao conceito de patriarcado, afirma-se que ele não é um sistema paralelo ao capitalismo ocidental, assim como as mulheres não são só vítimas dos homens numa sociedade que além de ser machista é classista, racista, homofóbica, entre outras distinções e/ou opressões. Tais características das sociedades capitalistas indicam que as opressões não se limitam ao sexismo e/ou de que só há violência de homens contra as mulheres. Isto é, abre-se a possibilidade de mulheres oprimirem mulheres, como se verá no caso de M1 relatado neste livro, e, inclusive, oprimirem homens. Por exemplo, mulheres capitalistas poderiam explorar (economicamente) e/ou oprimir (socialmente) tanto mulheres quanto homens que não são capitalistas ou, mais precisamente, que são trabalhadores/as que vendem a sua força de trabalho àquelas, assim como mulheres brancas podem explorar e/ou discriminar e oprimir (racialmente) mulheres negras³⁴, como tem demonstrado algumas pesquisas (Marcondes et al., 2013) e estudos sobre ou dos feminismos negros (Carneiro, 2011 e 2001, 2004, 2003 e 1995; Davis, 2016; hooks, 2018 e 2015; Collins, 2016 e 2000). Do mesmo modo, reconhece-se que os homens não são só inimigos/opressores das mulheres em uma determinada ordem social, podendo alguns, em algumas situações e/ou conjunturas, serem aliados reais, concretos, contra algumas formas de opressão praticadas contra as mulheres.

    Há fatos históricos que confirmam a solidariedade discursiva e prática de homens e/ou a sua participação nas lutas das mulheres por emancipação e igualdade, como demonstrou a insuspeita feminista estadunidense Angela Davis (2016), ao analisar a luta das mulheres estadunidense ao direito ao voto. Segundo ela, Frederick Douglas, um dos mais dos respeitados ativistas antirracismo dos Estados Unidos da América, foi o principal homem que atuou na defesa da emancipação das mulheres em todo o século XIX (Davis, 2016, p. 93). E essa luta de Federick Douglas não era apenas privada, mas pública, como comprova uma publicação do próprio Federick Douglas no jornal North Star, que será vista mais à frente.

    Portanto, não é sem sentido que há críticas às teorias da patriarquia, isto é, à tese de que somente os homens dominam, oprimem e exploram as mulheres, como as críticas indiretas e/ou diretas Fraser (2013) e de Arruzza (2013). Esta última autora, por exemplo, não considera o patriarcado um sistema (de opressão das mulheres) independente, a parte e/ou paralelo ao capitalismo. Segundo Arruzza é necessária uma teoria unitária para pensar a relação entre a opressão das mulheres e o capitalismo. Mais ainda:

    A tese essencial da teoria unitária é a de que o feminismo marxista, a opressão de gênero e a opressão racial não correspondem a dois sistemas autônomos que possuem suas próprias causas particulares: eles passaram a ser uma parte integral da sociedade capitalista através de um longo processo histórico que dissolveu formas de vida social precedentes. (Arruzza, 2013, p. 57)

    Considerando que, nesse livro, focamos nossa pesquisa em um dos campi da UFV, o de Viçosa, onde não

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