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Editorial do ENSINO MAGAZINE (Março 2009)

www.ensino.eu

João Ruivo (www.rvj.pt/ruivo; ruivo@rvj.pt)

Não se nasce professor


Ser professor é uma lenta e metódica metamorfose. É um movimento perpétuo entre a
lagarta e o casulo. É um vai - vem contínuo entre o saber e o desaprender. É a
adaptação permanente à mudança: dos saberes, das metodologias, das culturas, das
tecnologias… Ninguém nasce professor e a sua eficácia não é uma questão de sorte ou
acaso. Aqui, como em tudo o resto na vida, a sorte, ou acaso, dão muito, mesmo muito
trabalho.

Há um clique, um momento, uma circunstância, e muitas vezes até um imprevisto em


que se escolhe ser professor. Aparentemente porque se gosta. Há quem lhe chame um
chamamento interior. Outros dizem que é porque ninguém é atraído ao engano, porque
se sabe bem o que essa profissão significa, já que desde tenra idade todos a conhecem
por dentro.

Porém, e a partir desse singular instante, desse acordar para o futuro, tudo está por
fazer. Porque se trata duma profissão artesanal: faz-se dos gestos das mãos e dos
recados do coração, com recurso à uma profana mistela de tradição e de inovação.

Não se nasce professor. Um professor molda-se numa educação inicial e condiciona-se


numa aprendizagem permanente, ao longo da vida. Nunca o é, mesmo quando se
atreve a julgar que controla o quotidiano. Professor é erosão e reconstrução. É avanço
e recuo. É acusação e vítima. É conquistador e sitiado. É lugar santo e profanado.

Ninguém nasce professor e, quem o quiser ser, é bom que saiba da gratificante e
complexa tarefa que o aguarda no virar de cada esquina do seu percurso profissional.

Os decisores políticos sabem tudo isto muito bem. Melhor que muitos professores. Mas
preferem fingir que o ignoram. Fica mais barato e sustenta-lhes o discurso da soberba
e da desconstrução da profissão docente. Uma classe desmotivada, sem alvo e sem
estratégia, é fácil de docilizar e de submeter às baixas políticas constrangidas às
exigências orçamentais.

É por isso que vivemos uma conjuntura política, económica, social e até cultural que
não motiva a escolha da profissão docente.

Os professores entregues a si próprios, sem acompanhamento nem adequada e


suficiente formação complementar sentem sobre os seus ombros o peso da enorme
responsabilidade que lhes é imputada pelo Estado e pelas famílias. Vítimas de uma
angustiante solidão profissional, cativos dentro das quatro paredes da sala de aula onde
trabalham, quantas vezes em condições desmoralizadoras, os docentes atingem
perigosos estádios de desencanto, de desilusão e desmotivação profissional.

Por isso urge mudar os políticos e as políticas para que a profissão de professor
reencontre os estímulos, incentivos, e até razões para que os docentes se envolvam
num processo de motivação e evolução qualitativa das suas capacidades pessoais e
profissionais.

A ausência de um código deontológico que ajude a consolidar a cultura profissional dos


docentes também não permite que se atenuem os resultados negativos de todas as
pressões externas e motiva mesmo o aparecimento de sensações de insegurança e de
receio permanentes. Hoje, alguns professores trabalham em condições tão
desanimadoras que não conseguem enfrentar com autonomia e liberdade as
contradições que todos os dias encontram dentro das suas escolas.

Proclama-se uma escola inclusiva numa sociedade que não acolhe os excluídos.
Pretende-se promover uma escola para todos numa sociedade em que o bem-estar e a
cultura só estão ao alcance de alguns; em que a escola não consegue integrar os filhos
das famílias vitimadas por políticas de incúria. Políticas essas que acentuam o
desemprego, o trabalho infantil, a iliteracia, a delinquência, a violência doméstica e
coagem muitos pais a verem a escola obrigatória como um obstáculo à incorporação
dos filhos no mundo do trabalho, já que esta não lhes é apresentada como uma solução
meritocrática, porque as políticas e os políticos se revelaram incapazes de tomar
medidas que evitassem as clivagens entre os que tudo têm e os que pouco ou nada
possuem.

Arvora-se uma escola em que os valores transmissíveis não encontram acolhimento em


inúmeros lares, porque são constituídos por famílias disfuncionais. Uma escola onde se
exige o cumprimento de currículos obsoletos e onde a máquina burocrática da
administração escolar obriga a incontáveis horas de reuniões em órgãos,
departamentos, comissões, sessões de atendimento…

Esta é a autêntica escola pública em que trabalha a maioria dos nossos (excelentes)
professores. A escola em que também é preciso (ainda se lembram?) que os docentes
tenham tempo para ensinar e os alunos encontrem momentos para aprender.
Aprender, aprender sempre, porque essa é a seiva de que se faz um professor.

João Ruivo
ruivo@rvj.pt

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