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ISSN 1413-389X Temas em Psicologia da SBP—2003, Vol. 11, no 2, 134– 146

A prática educacional com crianças surdocegas


Fátima Ali Abdalah Abdel Cader-Nascimento
Maria da Piedade Resende da Costa
Universidade Federal de São Carlos

Resumo
Esta pesquisa descreve e analisa três fases de um procedimento de intervenção com duas crianças surdoce-
gas pré-lingüísticas. O estudo foi desenvolvido em uma escola especial de Brasília e nas residências, duran-
te nove meses. O objetivo foi implementar e avaliar procedimentos de intervenção com os sujeitos, basea-
dos na abordagem co-ativa de van Dijk e na perspectiva sócio-histórica. Os resultados sugerem que as es-
tratégias propostas por van Dijk na década de 60 mostraram-se eficazes quando associadas a práticas de
sala de aula que privilegiaram o uso simultâneo de vários recursos alternativos de comunicação (Libras,
gestos, movimentos corporais coordenados, Tadoma, escrita, fala, objetos de referência etc.). As alunas,
que inicialmente apresentaram uma comunicação expressiva elementar, no final da pesquisa, passaram a
apresentar novas competências comunicativas baseadas no uso de sinais, escrita, bem como melhoraram no
desempenho nas suas tarefas, concentração e comunicação, passando a demandar mais informações do seu
meio.
Palavras chave: criança surdocega, comunicação, ensino especial, movimento co-ativo.

Educational practice with deaf-blind children


Abstract
This research describes and analyzes three phases of an intervention procedure with two deafblind pre-
linguistic children. The study was carried out at a special school in Brasilia and at their residences, for nine
months. The objective was to implement and evaluate intervention procedures with the subjects, based on
the co-active van Dijk approach and on the socio-historical perspective. Results suggest that the strategies
proposed by van Dijk in the ‘60s were effective when associated with classroom practices that favored the
simultaneous use of several alternative communication tools (Libras, gestures, coordinated body
movements, Tadoma, writing, speech, reference objects, and so on). The students, who initially
demonstrated elementary expression communication, evidenced new communicative competences at the
end of the research, based on the use of signs and writing, having improved their performance in their tasks,
their concentration and communication, and having started to demand more information from their
environment.
Key words: deaf-blind children, communication, special education, co-active movement.

O presente estudo refere-se à questão do desenvolvimento da comunicação e do processo de escolari-


zação de crianças surdocegas pré-lingüísticas, sem outros comprometimentos aparentes. Para tanto, desen-
volveu-se uma pesquisa de intervenção em sala de aula, com o objetivo de implementar e avaliar procedi-
mentos de intervenção baseados na abordagem co-ativa e na perspectiva sócio-histórica. O objetivo da in-
tervenção consistiu em criar novas competências e desenvolver novos repertórios de comportamento envol-
vendo a aprendizagem de vários recursos de comunicação. A pesquisa foi desenvolvida numa escola espe-
cial pública de Brasília, durante um período de nove meses e envolveu duas crianças surdocegas.
_________________________________________________________________________________

Trabalho apresentado XXXIII reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, Belo Horizonte, MG, outubro de
2003.
Apoio financeiro: FAPESP e CAPES
Endereço para correspondência: Via Washington Luís, km 235 – Caixa ostal 676 – São Carlos – SP – CEP13565-905.
E-mail: pabdalah@bol.com.br
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Considerou-se no desenvolvimento lares de comportamento, necessitando de aten-


deste estudo que o sujeito é antes de tudo uma dimentos específicos.
pessoa, singular, única e dinâmica, conseqüen- A abordagem co-ativa de van Dijk
temente, a intervenção precisa ser específica e (1968) apresenta procedimentos que podem
dinâmica; e, que seu desenvolvimento depen- possibilitar condições adequadas ao desenvol-
derá essencialmente das modalidades de ativi- vimento da comunicação em surdocegos pré-
dades de como são propostas no meio escolar e lingüísticos. Esta abordagem parte do princípio
familiar. que as atividades propostas precisam ser reali-
zadas em conjunto com a criança, através do
Revisão teórica
movimento de mão sobre mão. Para isto é fun-
Os registros sobre a educação da criança
damental o envolvimento afetivo dos partici-
surdocega, relatam nomes de pessoas que con-
pantes. A relação afetiva promoverá um ambi-
seguiram aprender a ler e escrever. Em geral,
ente no qual a criança sentir-se-á com uma
as informações são imprecisas em relação ao
margem de segurança para poder participar das
perfil dos surdocegos e ao método empregado
atividades. O autor ao abordar os vários níveis
na comunicação receptiva e expressiva. Para
de comunicação reporta-se às seis fases, identi-
Amaral (2002) a história da educação dos sur-
ficadas por ele como: nutrição, ressonância,
docegos sempre esteve próxima da educação
movimento co-ativo, referência não representa-
de surdos. Assim, o método gestual desenvol- tiva, imitação e gesto natural. Estas fases cons-
vido na França e o oral na Alemanha sofreram
tituem-se em um processo dinâmico de incor-
algumas adaptações, entre elas: acrescentou-se,
poração de estímulos sociais, podendo ser se-
a percepção tátil ou a alteração do espaço de
qüenciais ou cumulativas.
sinalização segundo a condição visual do sur-
Segundo Writer (1987) a nutrição con-
docego.
siste no desenvolvimento do vínculo social
Collins (1995) aponta Victorine Morri-
acolhedor entre a criança e o professor. Para
seau como a primeira mulher surdocega a rece-
McInnes e Treffry (1997) este vínculo acontece
ber educação formal, em Paris, em 1789, sendo
gradualmente, podendo ocorrer um processo
a França pioneira na instituição da educação
interativo com oito etapas, no qual a criança
formal para esta população na Europa. Keller
surdocega: (1) resiste à interação; (2) permite e
(1961) relata que a educação de Laura Brigdg-
a admite; (3) colabora passivamente; (4) de-
mam iniciou-se quando esta tinha oito anos em
monstra prazer e satisfação em participar; (5)
1837, na Escola Perkins, nos Estados Unidos
responde aos estímulos; (6) acompanha e a ori-
pelo professor Dr. Samuel Gridley Howe. O
enta; (7) imita condutas; (8) inicia por si mes-
trabalho com Laura consistia na utilização da
ma a interação. Todas estas etapas pressupõem
soletração manual para a transmissão e recep-
a cumplicidade afetiva e competências profis-
ção das informações. Este recurso de comuni-
sionais adicionais necessárias a interação com
cação influenciou e contribuiu para o desenvol-
crianças surdocegas.
vimento de programas educacionais em dife-
No campo pedagógico a ressonância
rentes países, entre eles a Alemanha em 1887.
consiste na realização de uma atividade con-
Outros casos são relatados na literatura,
junta na qual criança e professor se percebem
o mais conhecido deles é a história de Helen
agindo juntos. O objetivo é despertar no outro
Keller (1880-1968), educada a partir dos sete
a consciência dos efeitos de seus movimentos
anos em 1887, pela professora Anne Mansfield
no corpo do interlocutor. Para tanto, faz-se ne-
Sullivan parcialmente cega, sendo a primeira
cessário promover a variação do binômio: con-
surdocega a concluir ensino superior. O méto-
tato físico e interrupção da atividade, como
do de comunicação utilizado foi a soletração
lembram McInnes e Treffry (1997).
das unidades de cada palavra através do alfabe-
O movimento co-ativo consiste na orien-
to manual (Keller, 2001).
tação da mão da criança pelo professor no esta-
Freeman (1991) comenta que os distin-
belecimento de contato com o objeto do conhe-
tos graus de surdez e as inúmeras possibilida-
cimento. Faz-se necessário que a mão do pro-
des de deficiência visual, quando aparecem
fessor esteja em contato com o objeto, manten-
associadas geram, inicialmente, quadros singu-
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do a mão da criança sobre a sua. Gradativa- uma ênfase nas indicações táteis como uma
mente, o professor vai permitindo que a criança forma de viabilizar às crianças o acesso às
entre em contato com o objeto do conhecimen- informações através do movimento e das sen-
to. O objetivo é ampliar a ação motora do sur- sações, maximizando e otimizando seus senti-
docego no ambiente. dos remanescentes. Proporcionam-se, assim,
Durante a fase da referência não repre- novas condições da relação entre as influên-
sentativa introduz-se o uso do objeto de refe- cias recíprocas dos fatores biológicos
rência como um recurso mediador da interação. (habilidades e recursos que a criança dispõe) e
O objetivo é relacionar determinados objetos sócio-culturais, na aprendizagem de novos
com as atividades a serem realizadas (Bloom, repertórios de comportamentos das crianças
1990). A apresentação do objeto inicialmente surdocegas (Vygotsky, 1988).
precisa ser contextual; depois se promove sua Para o desenvolvimento desta aborda-
descontextualização, passando a utilizá-lo co- gem na prática escolar, é necessário um pro-
mo uma referência que antecipa a atividade grama educacional cuidadosamente determi-
programada. Para tanto, o objeto reduzido ou nado. A organização do ambiente de trabalho
simplificado, precisa ter uma equivalência sim- ajuda o surdocego a memorizar a disposição
bólica com o real e com a atividade a ser de- dos materiais permanentes facilitando sua ori-
senvolvida. entação e mobilidade no espaço da sala de
A quinta fase é a imitação, representa a aula. O estabelecimento da rotina é fundamen-
continuação do movimento co-ativo de forma tal porque viabilizará melhores condições para
mais rica, uma vez que o surdocego começa a a criança evocar, combinar e se orientar nas
re-criar os elementos simbólicos assimilados a atividades do dia, podendo futuramente ante-
fim de conseguir a satisfação de suas necessi- cipar as atividades mediante o objeto de refe-
dades. rência da mesma. Para isto é importante colo-
O gesto natural é a última fase descrita car estes objetos em um espaço definido
por van Dijk (1968). Nesta fase, o surdocego (caixas de memória, mesa), segundo a seqüên-
começa a criar seus próprios gestos para repre- cia das tarefas a serem desenvolvidas no dia,
sentar algo que deseja conquistar. Transforma de tal forma que quando a criança chegar à
os movimentos corporais em instrumento de sala de aula possa tomar conhecimento da
comunicação. Assim, os primeiros gestos a programação. Após a realização da atividade,
serem utilizados no trabalho com surdocegos o objeto de referência é retirado do local, indi-
devem imitar um jogo motor, no qual todo o cando o fim da atividade (McInnes, 1999).
corpo participa da identificação do objeto ou
da situação. O que importa é representar os Método
objetos a partir do que se pode fazer com eles, Participantes
tornando claro o que se pretende realizar, exe- Participaram deste estudo duas crianças
cutar em um momento específico. Outro passo surdocegas, pré-lingüísticas, do sexo femini-
necessário é o nível co-ativo dos gestos natu- no, sem outros comprometimentos aparentes,
rais, isto é, o professor deverá repetir muitas porém com atraso no desenvolvimento da co-
vezes de forma atraente e lúdica o movimento municação. As crianças eram de famílias com
do gesto, antes da criança ser capaz de realizá- baixo nível socioeconômico. As duas residiam
lo de forma independente. Muitas vezes, é ne- em cidades do Distrito Federal distantes cerca
cessário que os gestos e os sinais sejam realiza- de 35 km de Brasília.
dos no próprio corpo da criança. Quando esta A identificação das alunas será 9I e 7G,
conseguir realizar o gesto sem ajuda, evidenci- os números representam a idade cronológica
ará que possui condições de falar sobre algo de cada uma durante o período de coleta de
que está ausente. Neste estágio, o mediador dados e as letras foram aleatórias. O compro-
deverá estimular a expressão da criança por metimento auditivo e visual em ambas foi de-
meio de perguntas. corrente da Síndrome da Rubéola Congênita.
Percebe-se que em todas as fases desen- A 9I possui oito anos de experiência escolar
volvidas e descritas por van Dijk (1968), há na rede pública de ensino especial e a 7G, três
anos.
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A 9I possui surdez profunda (106dB em atender solicitações, seguir orientações, manter


orelha direita e 111dB em orelha esquerda, nas um diálogo (com gestos ou sinais) e antecipar
freqüências da fala 500, 1000 e 2000Hz). En- situações. Elas não responderam a perguntas
quanto 7G possui surdez profunda (130dB em simples realizadas em sinais, gesto e fala, por
ambas orelhas). As alunas não apresentavam exemplo: O que é isto? Quantos têm? Que dia
capacidade auditiva funcional para ouvir e inte- é hoje?
ragir com o ambiente. Desta forma, não res-
pondiam ao chamado verbal, bem como não Local e materiais
conseguiam emitir palavras que pudessem ser As atividades realizadas durante este
compreendidas. Além disto, apresentavam difi- estudo foram desenvolvidas em locais habitu-
culdade em compreender as informações, defa- ais para as alunas: a sala de aula e em suas resi-
sagem para atender solicitações, seguir orienta- dências. Utilizaram-se, também, espaços públi-
ções, manter um diálogo e antecipar situações. cos como: passeios em shopping, zoológico,
Elas não responderam a perguntas simples rea- “fast food”, lojas, parque da cidade, etc. Estes
lizadas (pela pesquisadora, professora e famí- passeios contaram sempre com a presença de
lia) em sinais, gesto e fala, por exemplo: O que alguém da família.
é isto? Quantos têm? Que dia é hoje? Os materiais foram planejados e confec-
Em relação à deficiência visual a 9I tem cionados em parceria com a professora de sala,
atrofia de olho direito e apresenta catarata e segundo a necessidade de cada situação de a-
glaucoma de ângulo fechado em olho esquerdo prendizagem, entre eles: ficha de chamada em
de difícil controle. Realizou quatro cirurgias de lixa e em botões de camisa na cor preta
glaucoma (aos 4, 7, 8 e 9 anos), com prognósti- (simbolizando os pontos do sistema braile),
co de perda total de visão. A 7G foi submetida fichas com diversos alfabetos, fichas tridimen-
a quatro cirurgias de catarata (aos 9 meses, 4, 5 sionais da rotina-diária com objetos de referên-
e 7 anos), apresenta visão apenas no olho direi- cia colados em papel cartão preto nas dimen-
to. sões de 17 X 10 cm. Os objetos colados nesta
Quanto à funcionalidade visual a 9I a- base variavam de acordo com as atividades do
presentava impedimento no campo visual peri- dia. Assim, na ficha de segunda-feira foram
férico, dificuldades para detalhes, dificuldades colados miniaturas de lápis, colher, instrumen-
de leitura de impressos com letra Arial menor to musical e pedaço de toalha, indicando as
que fonte 48 ou impressos apagados, necessita- atividades de: sala de aula, lanche, música e
va do sistema braile para leitura e escrita. A natação.
aluna 7G apresentava impedimento no campo Organizaram-se, também, seis caixas de
visual central, necessitava de material impresso memória, confeccionadas com potes de sorvete
bem marcado. Ambas apresentavam dificulda- com capacidade para dois litros. As caixas fo-
des em visualizar a lousa a mais de 1 metro de ram identificadas com os números de 1 a 6
distância, sem sair do lugar (baixa acuidade com sua respectiva representação. Dentro das
visual para longe); realizavam acomodação e caixas eram colocados os objetos e materiais
adaptação visual para identificar objetos de referentes às atividades programadas. Foram
modo incomum (muito perto do globo ocular); confeccionados, também, cartões tridimensio-
realizavam aproximação dos objetos a 10 cm nais de identificação de ambiente. A base des-
do globo ocular, percebiam sinais a 20 cm de tes cartões foi feita em papel cartão preto nas
distância. No caso da 9I era comum identificar dimensões de 22 X 17cm. Em cima desta base
sinais e letras do alfabeto dactilológico através foram coladas miniaturas de objetos que fazi-
do toque. Ressalta-se que o resíduo visual das am referência à atividade desenvolvida no inte-
alunas podia ser aproveitado no trabalho esco- rior da sala, por exemplo, colocou-se uma bo-
lar, de orientação e mobilidade e no desempe- neca simbolizando a sala de atendimento a be-
nho de atividades de vida diária, desde que o bês.
material fosse adaptado. Após haver obtido dos pais, o termo de
As alunas apresentavam dificuldade em consentimento e participação no estudo, foram
compreender as informações, defasagem para desenvolvidas três fases de investigação: uma
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avaliação inicial do repertório das alunas em sendo solicitado.


comunicação e conhecimentos relacionados à
pré-escola, a intervenção e uma avaliação pos- Intervenção
terior à intervenção. Foram realizados 130 en- Após uma análise prévia do desempe-
contros num total de 650 horas de atividade de nho e das habilidades das alunas durante a
campo, durante nove meses. avaliação inicial, deu-se prioridade na inter-
venção as seguintes áreas do desenvolvimen-
Avaliação inicial to: linguagem (exposição a vários meios de
A avaliação inicial consistiu na realiza- comunicação alternativa), socialização
ção de entrevistas com os pais, visita as resi- (ampliação dos contatos com ambientes e pes-
dências, leitura e análise de exames clínicos e soas), cognição (ênfase em atividades envol-
relatórios educacionais, bem como na aplica- vendo conceito corporal, leitura e escrita, ma-
ção de tarefas próprias da sala de aula, respei- temática, orientação espacial e temporal), ori-
tando as características individuais de aprendi- entação e mobilidade. Trabalharam-se as á-
zagem de cada aluna. Foram avaliadas cinco reas: AVD, motricidade, treino de visão sub-
áreas do desenvolvimento: AVD, coordenação normal (TVS) e treino auditivo com base na
motora, linguagem, socialização e cognição. A integralização dos conteúdos.
avaliação inicial foi realizada no mês de abril. O método da estimulação multi-
Durante a avaliação inicial buscou-se sensorial (EMS), foi enfatizando durante a
avaliar os seguintes aspectos do desenvolvi- intervenção uma vez que prevê a apresentação
mento: orientação temporal (fazem uso do ca- diferenciada da mesma informação através da
lendário, qual a noção de tempo que as alunas ação, do pensar e do fazer associados ao con-
possuem?), orientação espacial (orientação e teúdo emocional e motivacional, conforme
mobilidade), conceito corporal (conhecem e destaca Bruner (1976). Neste processo, teve-
registram todas as partes do próprio corpo), se o cuidado de conhecer e determinar a via
atividade de vida diária (são independentes?), de sentido mais eficiente para cada aluna (9I
estimulação auditiva (percebem, localizam, por meio da via tátil-cinestésica e 7G pela via
discriminam sons? Quais?), leitura visual). Exemplificando o método da EMS:
(reconhecem letras, palavras em códigos dife- contornava-se o corpo de uma aluna na lousa,
rentes?), escrita (realizam escrita espontânea, depois a estimulava para que contornasse com
fazem uso de pseudoletras ou letras?) e mate- seu dedo a forma desenhada. Através desta
mática (conhecem os algarismos? Quantifi- atividade combinava a estimulação tátil-
cam?). cinestésica do toque e do traçado com a visu-
As áreas mencionadas possibilitaram al. Quando ocorria dispersão visual, dirigir o
avaliar os recursos de comunicação receptiva e olhar para outros estímulos, a pesquisadora se
expressiva utilizados pelas alunas. Observou-se aproximava e segurava na cabeça da aluna, de
nas atividades como elas manipulavam os obje- modo que seus olhos fossem direcionados
tos: se o faziam ao acaso, isto é, se os utiliza- para o desenho. Combinando com a aproxi-
vam inadequadamente, não distinguindo nem mação realizava-se o encorajamento verbal
analisando como são; ou se utilizavam os obje- estimulando a audição através da vibração do
tos de maneira funcional; ou ainda, se os mani- corpo.
pulavam de forma criativa e simbólica; ou en- Tendo em vista o método da EMS pla-
tão, se brincavam com os objetos reinventando nejou-se as atividades de modo a articular os
coisas do mundo. conteúdos presentes em uma mesma tarefa.
Todas as atividades foram apresentadas Para tanto, estabeleceu uma rotina de trabalho
para as alunas por meio dos seguintes recursos que teve por objetivo situar as alunas num
de comunicação: sinal, gesto, fala, expressão espaço e num tempo definidos e concretos,
facial e corporal, contração ou relaxamento da conforme Cader e Costa (2000). Foram pro-
musculatura, objetos de referência, escrita im- gramadas e executadas as seguintes ativida-
pressa e em braile e exemplos, isto é, muitas des: (a) música e oração de entrada (realizada
vezes foi necessário demonstrar o que estava por toda escola), (b) orientação espacial
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(quantificação das portas e leitura das indica- Costa (1997);


ções táteis do percurso); (c) conversa de roda 3. repetição da brincadeira, usada no item 1 encon-
(temas selecionados com a família); (d) calen- tro casual (no caso de duas amigas);
dário (compreensão da mudança cíclica dos 4. apresentação do registro alfabético em escrita
dias); (e) chamada (identificação do próprio ampliada associada a letras avulsas;
nome); (f) merenda; (g) recreio, e (h) novida- 5. percepção tátil da produção do som. A aluna posi-
des (passeios, dramatização de histórias, jogos cionava sua mão na face da pesquisadora,
com e sem a participação dos pais). quando esta realizava a marcação fonológica
As atividades tiveram em comum os se- das unidades da palavra e da associação das
guintes procedimentos: (a) demonstração con- mesmas;
textual por meio da representação corporal do 6. fixação do registro escrito da palavra no plano ver-
conteúdo; (b) segmentação de uma palavra tical (lousa), depois no horizontal;
(sinal) geradora presente na representação; (c) 7. representação contextual, social e cultural do signi-
repetição da representação com ênfase na pala- ficado durante o recreio;
vra (sinal); (d) apresentação do registro alfabé- 8. fixação do registro escrito no plano horizontal, medi-
tico em escrita ampliada e braile associado a ante diferentes formas de ditado:
letras avulsas; (e) Tadoma (percepção tátil da - ditado oro-tátil (a pesquisadora falava e a
fala); (f) fixação escrita no plano vertical e, aluna realizava a leitura oro-tátil);
depois no horizontal, conforme Séguin (1846 - a aluna emitia o som e a pesquisadora ou
apud Costa, 1994); (g) representação sócio- professora registrava-o;
cultural do significado; (h) fixação do registro - realizava-se a leitura do registro escrito: si-
escrito através de várias formas de ditado; (i) nal, fala e dactilologia;
generalização e aplicação da aprendizagem. - ditado dactilológico (realizava-se a soletra-
No caso, do ensino de palavras, as ati- ção digital e a aluna registrava);
vidades tiveram em comum os seguintes proce- - aluna soletrava a palavra e a pesquisadora ou
dimentos: professora a registrava;
1. demonstração contextual por meio de representação - pesquisadora ou professora realizava o sinal
corporal total da situação (Cader, 1997). Exemplifi- e a aluna registrava a palavra;
cando: o encontro vocálico "OI", não era intro- - aluna realizava a leitura do registro através
duzido como tal, mas como uma interação em do sinal, fala, dactilologia.
uma situação contextual criada para este fim. Caso houvesse alguma correção, as alu-
Para isto a pesquisadora pegava a bolsa e avi- nas eram orientadas a realizarem a comparação
sava que ia sair, andar. De repente ela encon- entre o modelo correto e o próprio registro.
trava com uma amiga, a vê e a cumprimenta / 9. generalização e aplicação da aprendizagem. No
Oi/ (fala acompanhada de sinal), dando dois exemplo citado da palavra "Oi", a pesquisadora
beijos na face da mesma. Esta cena se repetia estimulava as alunas a cumprimentarem pesso-
várias vezes, alternando os participantes, até as conhecidas na escola. Para isto, juntas, du-
que as alunas conseguissem entender o signifi- rante o recreio, a pesquisadora cumprimentava
cado social e cultural da palavra /oi/. Neste as pessoas de forma que as alunas conseguis-
exemplo, têm-se: (a) movimento, ação global; sem acompanhar o movimento do sinal. Depois
(b) fala; (c) dactilologia; (d) sinal; (e) represen- cada aluna era estimulada a repetir a ação, atra-
tação cultural e social do ato (beijos na face, de vés dos seguintes passos:
acordo com o costume local); - marcava a soletração dactilológica da pala-
2. segmentação da palavra em unidades. Realizava-se vra "oi";
a aproximação das letras avulsas ou das fichas - realizava o sinal no espaço, tendo a mão da
contendo o registro das letras. No caso citado aluna sobreposta à mão da pesquisadora;
da palavra ”oi”, realizava-se a aproximação - tocava com o dedo indicador a parte inferior
das unidades (o e i) acompanhada da emissão dos lábios de cada aluna, impulsionando-o
“oi”. A emissão da unidade "o" era prolonga- para frente, para lembrá-la da emissão da pala-
da até que a união entre a vogal "o" e "i" ocor- vra. Este procedimento fez-se necessário na
resse, conforme procedimento descrito por interação com crianças cegas;
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10. registro escrito em braile, mediante o uso do segundo a modalidade de serviço oferecido.
brailex e larabraile (materiais produzidos pela O objetivo foi proporcionar as alunas à
instituição Laramara situada em São Paulo), e oportunidade de comparar os objetos, identifi-
máquina braile modelo Perkins. car a mudança do espaço físico e orientar-se
Portanto, o procedimento mencionado em relação à seqüência de atividades e a mo-
priorizou a ação (movimento e representação), dalidade do atendimento, bem como se deslo-
estimulou à síntese visual (gráfica), a síntese car de uma sala para outra de forma autôno-
oro-tátil (vibração da emissão verbal). Além ma. Deste modo, elas eram estimuladas a en-
disto, incentivou a utilização de diferentes for- contrar salas, ou ainda, a levarem ou busca-
mas de registro (soletração dactilológica, braile rem material em salas diferentes.
digital, fonológica, gráfica, letras avulsas), re- 3. Conversa de roda. Teve por objetivo am-
presentação em Libras, aplicação e generaliza- pliar o vocabulário em sinais, palavras e ex-
ção do significado contextual, social e cultural pressões mediante a alternância de turnos de
da palavra. Buscou-se manter uma rotina de conversação. Inicialmente, estes momentos se
trabalho marcada pela regularidade e freqüên- restringiram a perguntas realizadas pela pes-
cia destes procedimentos, com vistas a ampliar quisadora com indução das respostas.
e diversificar o vocabulário. A título de exem- 4. Calendário. Teve por objetivo possibi-
plo descrever-se-ão outras atividades que fize- litar às alunas condições para se situarem em
ram parte da rotina. relação a: (a) atividade (começo, meio e fim);
1. Música. Teve por objetivo familiarizar os (b) sucessão das situações de aprendizagem
sujeitos com a seqüência, o ritmo e a melodia em espaços distintos e com outros profissio-
dos sinais e com a atividade comum aos de- nais; (c) renovação cíclica dos períodos (dias
mais alunos da escola. A interpretação em Li- da semana, meses), e (d) compreensão do ca-
bras era realizada pela pesquisadora, que ficava ráter irreversível do tempo (segunda-feira já
em frente à aluna (9I), no mesmo nível. Nesta passou). Enfatizou-se um tempo dinâmico,
posição, realizavam-se as seguintes etapas: (a) envolvendo relações de passado, presente e
marcação de cada sinal de forma lenta; (b) re- futuro dos acontecimentos. Para tanto, utiliza-
petição dos sinais através do movimento co- ram-se os seguintes materiais: ficha tridimen-
ativo; (c) realização dos sinais no campo visual sional (3D): rotina diária e do tempo; ficha 2D
ou no braço, mão da aluna; (d) indicação da nomes: dia, mês e ano; calendário adaptado e
música, através do sinal de referência. caixa de memória, conforme descritos anteri-
2. Orientação espacial. Teve por objetivos (a) ormente.
explorar as relações entre os objetos no espaço; A atividade do calendário foi dividida em
(b) locomover-se; (c) quantificar as portas exis- três partes: (a) tempo; (b) dia da semana e do
tentes a partir de um referencial; (d) identificar mês, e (c) organização da caixa de memória.
o espaço através dos indícios táteis e cinestési- O item referente ao tempo foi explorado em
cos associados à via visual durante a locomo- seis etapas, são elas: (1) pegar as fichas 3D-
ção, conforme lembram Huebner et al. (1995). tempo; (2) ir para o pátio; (3) selecionar as
As alunas eram estimuladas e orientadas a res- fichas representativas do dia (sol, frio etc.);
peito das pistas táteis presentes na parede e no (4) retornar à sala de aula; (5) representar na
piso da escola, bem como quantificar as portas. lousa e depois no papel as condições do dia;
Assim, com a mão fechada e tendo a mão da (6) guardar as fichas. Inicialmente, as etapas
pesquisadora abarcando a mão de uma aluna, eram orientadas pela pesquisadora, depois
liberava-se para cada porta um dedo da mão da pela professora, no final as alunas as realiza-
aluna e os demais permaneciam na posição vam sem ajuda.
original. No início, esta atividade foi realizada O item referente ao dia da semana e do
de maneira co-ativa, com ajuda total, depois mês consistiu em um processo de sete etapas:
com ajuda parcial, por fim a realização era in- (1) realizar a identificação e reconhecimento
dependente. de cada ficha 3D: rotina diária; (2) marcar o
Outra técnica consistiu no uso de objetos dia da semana; (3) estabelecer a correspon-
de referência para identificar as salas da escola dência entre o sinal e nome; (4) soletrar o no-
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141 Prática educacional com crianças surdocegas

nome do dia; (5) identificar as atividades do dado apenas o comando.


dia; (6) identificar e distinguir o dia com uma Quanto à leitura foi disponibilizado le-
fita; (7) guardar as fichas 3D: rotina diária no tras (em vários alfabetos) e palavras já ensina-
quadro de pregas. No final do primeiro semes- das na escola. Avaliou-se a capacidade das alu-
tre estas fichas passaram a orientar a organiza- nas em reconhecer, decodificar e conceituar as
ção das caixas de memória, só depois desta palavras contextualizadas (rótulos) e isoladas.
organização que as fichas (3D: rotina diária) A escrita foi avaliada através do registro
eram guardadas no quadro de pregas. escrito de uma situação vivenciada em sala
5. Chamada. Esta atividade era realizada (escrita espontânea) e do ditado de palavras
com fichas 2D: nomes (lixa e braile), e teve por conhecidas pelas alunas. Em matemática avali-
objetivo trabalhar a leitura e escrita no nível da ou-se a distinção dos numerais de letras, rela-
palavra mais próxima das alunas, despertando ção entre quantidade e sua representação nu-
o interesse pelo próprio nome, reconhecendo-o mérica, organização da seqüência de 1 a 6 na
enquanto uma identidade pessoal e intransferí- ordem crescente e decrescente, registro da se-
vel. A chamada constituiu-se em uma estraté- qüência numérica de 1 a 10, agrupamento em
gia de ensino para conteúdos específicos, entre diferentes bases (3, 4 e 5), participação em jo-
eles: (a) reconhecer as letras do alfabeto e do gos respeitando as regras dos mesmos, reco-
sistema braile; (b) comparar letras no próprio nhecimento e identificação dos antecessores e
nome; (c) comparar letras entre nomes diferen- sucessores de 1 a 6.
tes; (d) relacionar letra impressa com a dactilo-
logia; (e) relacionar letra impressa com o fone- Resultados e Discussão
ma (via Tadoma); (f) quantificar as letras e /ou Para analisar os dados utilizaram-se a
vogais iguais; (g) identificar a letra inicial e abordagem qualitativa (análise de conteúdo -
final; (h) realizar o registro espontâneo do no- Lüdke e André, 1986; Marcuschi, 1998) e
me; (i) copiar o nome com apoio visual, tátil e quantitativa (freqüência e percentagem). Proce-
com ajuda, etc.. deu-se a uma análise específica do desempenho
O procedimento consistia na apresenta- de cada aluna, nas atividades propostas durante
ção de uma ficha por vez. Às vezes as fichas as fases da pesquisa. Os resultados foram quan-
eram apresentadas na mesa, outras vezes reali- tificados segundo as menções estabelecidas (B
zava-se a atividade em pé, no mesmo plano das para baixo desempenho, M para médio desem-
alunas. Realizava-se a leitura do nome através penho e A para alto desempenho).
da soletração manual, do movimento labial Foram realizados 130 encontros com as
acompanhado de sons e da marcação do seg- alunas, num total de 650 horas. Nestes encon-
mento da leitura (da esquerda para direita). tros, verificou-se que a 9I freqüentou 58% e a
Com isto introduzia-se o segmento da leitura e 7G apenas 14% do previsto. Vale ressaltar que
a representação da composição quirêmica do ambas residem em cidades satélites de Brasília,
sinal em Libras para a palavra “nome”. Duran- a uma distância aproximada de 40 (9I) e 30
te toda a atividade questões eram realizadas: (7G) km da escola. Apesar da distância, os lo-
"de quem é este nome?" "Nome é seu?" "É cais são de fácil acesso, neste sentido a distân-
seu?" "Este nome é dela?". Após a identifica- cia não pode ser considerada uma justificativa
ção e registro as fichas eram colocadas no qua- para o não comparecimento às aulas, pois elas
dro de pregas. possuíam passe livre com direito a acompa-
nhante.
Avaliação final Em decorrência das dificuldades dos
Na avaliação final realizou-se entrevistas com pais em garantir a presença da filha 7G às aulas
os pais e aplicou atividades semelhantes àque- foi sugerido à família que a aluna passasse a
las da avaliação inicial, porém com um maior usar o transporte da Associação de Deficientes
grau de dificuldades, no mês de dezembro. As- Visuais de Brasília. Apesar do receio da mãe,
sim, com relação ao conceito corporal, foi soli- os pais aceitaram a sugestão. Assim, no segun-
citado às alunas que desenhassem no papel a do semestre 7G passou a utilizar o referido
representação do corpo humano, tendo sido transporte e sua freqüência passou de 28% para
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142 F. A. A. A. Cader-Nascimento e M. P. R. da Costa

39% no segundo semestre. Apesar do índice tível com os comportamentos apresentados no


não chegar a 50% nota-se que houve um maior início deste estudo, entre eles: mostrava-se
comparecimento às aulas, sendo que suas faltas apática em relação ao espaço escolar e às pes-
passaram a serem justificadas pela família. soas, produzia barulhos intensos e constantes
Este contexto configurou-se em uma ao manipular objetos, não possuía o hábito de
variação na intensidade e duração dos atendi- fechar (ou encostar) a porta do banheiro ao
mentos oferecidos a 7G, fato não previsto no utilizá-lo. Em qualquer espaço da escola, ti-
projeto inicial da pesquisa. Assim, apesar dela nha o hábito de levantar a roupa para arrumar
ter freqüentado apenas 123 horas-aulas de um as peças do vestuário de baixo. Os recursos de
total de 650, apresentou um bom aproveita- comunicação expressiva utilizados restringi-
mento em todas as áreas do desenvolvimento am-se a: gritos, birra, choro, movimentos cor-
enfatizadas durante este estudo. Esta informa- porais, pontapés, gestos naturais, bem como
ção permitiu inferir que apenas a intensidade e possuía o hábito de conduzir as pessoas pelo
duração dos atendimentos, por si só não são braço para alcançar o objeto de seu desejo.
determinantes da aprendizagem e desenvolvi- Em relação às atividades de vida diária
mento, mas sim a qualidade e as condições 7G, durante a avaliação inicial, apresentou um
pedagógicas dos atendimentos oferecidos no melhor desempenho, provavelmente, as carac-
espaço escolar e familiar. A Figura 1 apresenta terísticas intrínsecas desta área contribuíram
os resultados obtidos por 7G nas avaliações de com este resultado. Como o universo social da
abril e dezembro. 7G era restrito ao contexto familiar no qual as
dificuldades de comunicação eram o principal
conflito vivenciado e descrito pela família, o
Desempenho da aluna 7G em abril resultado apresentado em abril evidencia o
100
fre q ü ê n c ia d e

que a 7G conseguiu aprender e desenvolver


re s p o s ta s %

segundo as condições sócio-culturais dadas.


50 Apesar de sua baixa freqüência no pri-
meiro semestre letivo, há um progressivo e
surpreendente resultado no desempenho da
0 7G em dezembro, em todas as áreas do desen-
volvimento. Entre as mudanças comportamen-
baixo médio alto tais destacam-se: atenção compartilhada, inte-
resse em aprender sinais mediante a imitação
AVD Desempenho dalinaluna
motor guagem7G em dezembro
social cognição e repetição dos mesmos de forma contextuali-
100 zada ou não. Passou a fazer uso da letra inicial
fre q ü ê n c ia d e

do nome de algumas pessoas para referir-se a


re s p o s ta s %

elas em sua ausência ou presença.


50
Em decorrência das alterações positivas
no comportamento apresentado pela 7G, no-
0 tou-se a redução de fatores estressantes pre-
baixo médio alto sentes no ambiente familiar, principalmente
em relação às condições de interação dos pais
AVD motor linguagem social cognição com a filha, como se pode perceber nas falas:
“agora eu entendo minha filha”; “minha filha
Figura 1. Desempenho da aluna 7G, nas áreas agora é outra. Eu falo para ela ficar sentada,
avaliadas durante a pesquisa. ela fica” (mãe).
O desempenho da 9I nas avaliações
Observa-se na Figura 1 que a 7G obteve em realizadas em abril e dezembro nas áreas do
abril um desempenho, predominantemente baixo desenvolvimento enfatizadas durante a coleta
em todas as áreas do desenvolvimento avaliadas, de dados, consta na Figura 2.
principalmente, em: coordenação motora fina, Observa-se na Figura 2 que a 9I obteve
linguagem, e cognição. Este resultado é compa- em abril conceitos mais altos nos comporta-
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143 Prática educacional com crianças surdocegas

mentos relacionados a AVD e motor. Em rela- combinar os recursos distintos de expressão


ção à linguagem, socialização e cognição al- (gesto, registro escrito, sinal, dactilologia, fala,
cançaram conceitos baixos com destaque para representação funcional da situação) nas intera-
a área da linguagem. Estes resultados são com- ções no meio familiar e escolar. Com isto hou-
patíveis com os comportamentos apresentados ve uma redução do estresse dos pais em relação
durante a avaliação inicial, entre eles: dificul- às condições de interação com a filha, confor-
dades na realização de movimentos adequados me mostra as falas: “agora é mais fácil enten-
para a higiene bucal; produção de barulhos a- dê-la”; “agora eu posso sair e falar aonde eu
través da ação de arrastar os objetos permanen- vou, que ela fica me esperando. Ela agora me
tes da sala de aula; desinteresse em conhecer os entende” (mãe).
detalhes dos rótulos de produtos como cor, for- Portanto, os resultados evidenciaram um
ma, cheiro ou pistas táteis; desconhecia o signi- progressivo e evidente desenvolvimento das
ficado das pistas táteis permanentes na escola, possibilidades de intervenção com surdocegos.
apesar de já freqüentá-la há dois anos. Situações inesperadas como a baixa freqüência
da 7G nas atividades de sala de aula geraram
Desempenho da aluna 9I em abril indícios de que a combinação das variáveis: (a)
100 diversificação das experiências vivenciadas em
fre q ü ê n c ia d e

relação ao local, tema e situações; (b) interação


re s p o s ta s %

entre profissionais e a família; (c) respeito à


50 diversidade e as condições apresentadas inici-
almente pelas alunas e suas famílias; (d) orien-
0 tação teórica de van Dijk, principalmente, às
fases de nutrição e movimento co-ativo; contri-
baixo médio alto buíram com a aprendizagem e desenvolvimen-
to obtido pelas alunas no final da coleta de da-
AVD motor da alluinnaguagem
Desempenho 9I em dezembrosocial. cognição
dos.
100 Ao longo do desenvolvimento deste es-
fre q ü ê n c ia d e

tudo foi possível constatar que não há distinção


re s p o s ta s %

na relação triádica entre professor, aluno sur-


50 docego e conhecimento desde que seja: (a) res-
peitados as características e necessidades; (b)
0 oferecidas condições adequadas de acesso à
informação, mobilidade e comunicação; (c)
baixo médio alto otimizados os recursos de comunicação apre-
sentados pelos alunos mediante procedimentos
AVD motor linguagem social cognição adequados.
Com este estudo foi possível constatar a
Figura 2. Desempenho da aluna 9I nas áreas necessidade de se proporcionar ao professor
avaliadas durante a pesquisa. regente apoio e formação em serviço em rela-
ção à aprendizagem e ao aperfeiçoamento de
Além dos comportamentos mencionados, competências específicas e necessárias no tra-
a 9I apresentava atenção compartilhada, desde balho com alunos surdos (conhecimento da
que o adulto utilizasse vocativo de chamada, Libras); com cegos (sistema braile, sorobã e
suas respostas aos estímulos eram induzidas. técnicas de adaptação e ampliação de material),
Quando não conseguia entender a informação e com surdocegos (objeto de referência, movi-
ela imitava os sinais, gestos e movimentos do mento co-ativo, ressonância, técnica de adapta-
interlocutor. Durante a intervenção, demons- ção de sinais e letras, Tadoma). Todo este qua-
trou respostas progressivas evidentes em rela- dro precisa estar em um espaço pedagógico no
ção ao processo de aprendizagem dos conteú- qual alunos, pais e profissionais possam cres-
dos. cer como seres que se respeitam.
A partir de agosto 9I passou a utilizar e Enfim, os dados evidenciaram que:
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144 F. A. A. A. Cader-Nascimento e M. P. R. da Costa

quando a criança surdocega possui no seu am- dos à forma encontrada por elas para exterio-
biente familiar e escolar uma reciprocidade e rizar o interesse no estabelecimento e manu-
disponibilidade na utilização diversificada de tenção das relações interpessoais. Provavel-
recursos de comunicação, suas condições de mente, esta característica que emergiu nos
aprendizagem se ampliam melhorando suas resultados seja pertinente à tese de Chomsky
interações com seu meio físico e humano e, (1973) sobre a existência nos seres humanos
conseqüentemente, deste para com ela. de uma programação inata destinada a desen-
A teoria de van Dijk (1968) mostrou-se volver aptidões para a linguagem.
básica na estimulação da aprendizagem de sis- Porém, a presença apenas da motivação
temas alternativos de comunicação em crianças para a conversação não promoveu uma intera-
surdocegas, desde que consideradas suas parti- ção prazerosa. A motivação constituiu-se no
cularidades e as especificidades de seu contex- passo inicial do processo, no entanto a função
to histórico, social e cognitivo. Neste processo, cultural da comunicação demonstrou que: (a)
é importante não perder de vista que qualquer o apoio às intenções comunicativas das alu-
deficiência influencia o estabelecimento das nas, interpretando suas contribuições com ba-
relações interpessoais e exige a organização de se no contexto imediato e no objeto; (b) a ex-
novos padrões de interação. Para isto, as fases posição delas aos modelos alternativos de
de nutrição, ressonância, movimento co-ativo e conversação; (c) a participação em experiên-
uso do objeto de referência consistiram nos cias de interação apropriadas e adaptadas às
pilares básicos para o apoio e a ampliação dos particularidades da surdocegueira, evitando
recursos de comunicação utilizados pelos parti- sua exclusão das atividades promovidas no
cipantes deste estudo. âmbito escolar e familiar; foram condições
A realização dos movimentos co-ativos que contribuíram com a ampliação dos recur-
na apresentação de objetos, gestos, sinais ou sos de comunicação das alunas. Este fato re-
dactilologia se mostrou uma estratégia bastante percutiu positivamente no ambiente familiar
eficiente na medida em que proporcionou uma promovendo novos padrões de interação. En-
margem de segurança para as alunas explora- fim, não há um único fator desencadeador do
rem de forma sistematizada o ambiente próxi- desenvolvimento da comunicação, mas uma
mo, bem como contribuiu com a superação das série de situações que se relacionam, determi-
dificuldades de configuração das mãos na reali- nam e reforçam-se mutuamente promovendo
zação dos sinais ou das letras do alfabeto dacti- formas específicas de comportamento.
lológico. Os resultados nas áreas de AVD e mo-
Os dados obtidos durante a intervenção tricidade (coordenação e controle dos grandes
levaram a redefinir o papel do objeto de refe- e pequenos músculos) mostraram que a surdo-
rência na comunicação com surdocegos, uma cegueira não comprometeu o acesso das alu-
vez que, inicialmente, não era possível compa- nas a estes conhecimentos e, principalmente, a
tibilizar a atenção das alunas em relação à in- aprendizagem e desenvolvimento de habilida-
formação funcional do objeto com os comple- des a eles relacionadas. No entanto, quando se
mentos da interação entre os participantes. Foi passa do nível do contato com objetos concre-
necessário primeiro canalizar a atenção das tos e manuseáveis para o nível abstrato das
alunas para a pesquisadora, desenvolvendo relações e interações entre indivíduos da mes-
assim a atenção compartilhada e, só depois, ma espécie e do conteúdo cultural, verifica-se
apresentar o objeto de referência. Com isto, que o grau de acesso pelos surdocegos altera-
evitou-se a interação privilegiada entre sujeito se. Esta alteração evidencia a necessidade de
e objeto presente no comportamento apresenta- adaptação que promova as condições adequa-
do pela 7G, e introduziu-se a importância do das de aprendizagem. Este resultado confir-
outro na exploração do objeto do conhecimen- mou o que a literatura da área evidencia como
to. uma das principais implicações da surdoce-
Durante a pesquisa foi possível constatar gueira: acesso à comunicação expressiva e
que as alunas demonstravam motivação para a receptiva (Watkins e Clark, 1991; Wheeler e
conversação, sendo os movimentos coordena- Griffin, 1997).
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145 Prática educacional com crianças surdocegas

Considerações finais cation option. The Royal New South Wales


A teoria do crescimento da consciência Institute for deaf and blind children. Mono-
simbólica de van Dijk viabilizou condições graph, Austrália: North Rocks Press.
específicas para promover o desenvolvimento Bruner, J. S. (1976). Uma nova teoria de a-
da comunicação entre a criança surdocega e o prendizagem. 4 ed. Rio de Janeiro: Bloch.
ambiente, rompendo a barreira imposta pela Chomsky, N. (1973). Linguagem e pensamen-
deficiência. As duas participantes deste estudo to. 3 ed. Petrópolis: Vozes.
passaram a compreender e fazer uso do voca- Collins, M. T. (1995). History of Deaf-Blind
bulário da língua de sinais e da dactilologia, no Education. Journal of Visual Impairment &
entanto para atingirem este nível precisaram Blindness, 89 (3), 210-212.
compreender a existência, as funções e os efei- Cader, F. A. A. A. (1997). Leitura e escrita na
tos da comunicação no meio e, isto, foi possí- sala de aula: uma pesquisa de intervenção
vel pela via gestual e só depois pelo sinal. com crianças surdas. Dissertação de Mes-
Evidenciou-se com este estudo a impor- trado. Brasília: Faculdade de Educação.
tância dos programas educacionais especializa- Cader, F. A. A. A.; Costa, M. P. R. da. (2000).
dos destinados a oferecer o máximo de oportu- Possibilidades de intervenção pedagógica
nidades com atividades variadas para que os com crianças surdas com comprometimento
surdocegos possam engajar-se de forma ativa e visual. CD-Rom da 23ª. Reunião da AN-
criativa no ambiente. Para isto, é necessário ter PED. Caxambu: ANPED, 1-14.
o veículo de contato com eles. Somente depois Costa, M. da P. R. (1994). O deficiente auditi-
de vencer o isolamento no qual se encontra é vo: aquisição da linguagem, orientações
que os programas poderão ser desenvolvidos para o ensino da comunicação e um proce-
em sua essência. Desta forma, todo o trabalho dimento para o ensino da leitura e escrita.
inicial precisa concentrar-se no desenvolvi- São Carlos: EDUFSCar.
mento da habilidade de comunicação. Costa, M. da P. R. (1997). Alfabetização para
Em fim, este estudo permitiu constatar deficientes mentais. 3 ed. São Paulo: Edi-
que a aprendizagem de recursos alternativos de con.
comunicação é possível com repercussão nas Freeman, P. (1991). El bebé sordociego. Um
outras áreas do desenvolvimento humano. Isto programa de atención temprana. Madrid:
leva a afirmar que se o objetivo do trabalho Editora Espanhola.
educacional for à comunicação, então a exposi- Keller, H. (1961). Lutando contra as trevas.
ção dos surdocegos a todos os recursos possí- 2ed. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cul-
veis e disponíveis de comunicação é o meio tura.
mais viável e promissor para atingir a meta. Se Keller, H. (2001). A história de minha vida.
o objetivo da educação for a aprendizagem da São Paulo: Ed. Antroposófica.
linguagem oral, o Tadoma se mostra um méto- Lüdke, M. e André, M. E. D. A. (1986). Pes-
do eficiente para alcançar esta meta. No entan- quisa em Educação: abordagens qualitati-
to, se o objetivo da educação for sua escolari- vas. São Paulo: EPU.
zação, então neste caso, sua exposição a recur- Huebner, K. M.; Prickett, J. G.; Rafalowski-
sos variados e distintos de comunicação pode Welch, T. e Joffee, E. (1995). Hand in
não ser o melhor caminho. Este fato demanda a hand: essentials of communication and
realização de pesquisas básicas na busca de orientation and mobility for your students
novas descobertas. who are deaf-blind. New York: American
Foundation for the blind.
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146 F. A. A. A. Cader-Nascimento e M. P. R. da Costa

planning and support for individuals who Wheeler, L. e Griffin, H. C. (1997). A


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Ciências & Cognição 2008; Vol 13 (2): 160-178 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 15/06/2008 | Revisado em 24/07/2008 | Aceito em 25/07/2008 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 30 de julho de 2008

Artigo Científico

A relação fraterna de crianças com cegueira congênita: estudo de


três casos

The sibship relation of blind children relationship: three cases study

Fernanda Vilhena Mafra Bazona,  e Elcie Fortes Salzano Masinib


a
Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Educação, Brasil; bUniversidade de
São Paulo, Faculdade de Educação, Brasil

Resumo

Esta pesquisa tratou da relação de crianças com cegueira com seus irmãos mais velhos e teve
como objetivo buscar a compreensão de como essa relação se configura. Apoiou-se na
abordagem qualitativa seguindo os procedimentos metodológicos definidos por Lüdke e André
(1986), buscando analisar os dados a partir de categorias definidas levando em conta os
objetivos da pesquisa e o conteúdo das entrevistas e do Teste das Fábulas embasado em
referencial psicanalítico. Os sujeitos de pesquisa foram três mães de crianças com cegueira e
seus filhos com a idade de nove ou dez anos. Foram realizadas entrevistas com todos os
sujeitos. Os dados obtidos apontam que as crianças com cegueira buscam em seus irmãos fonte
de prazer, companheirismo e modelos de identificação, mesmo quando possuem uma relação
conflituosa. Os achados desta pesquisa confirmaram que esta relação influencia o
desenvolvimento dos indivíduos e sugerem que são necessários outros estudos acerca deste
tema. © Cien. Cogn. 2008; Vol. 13 (2): 160-178.

Palavras-chave: cegueira; relação fraterna; relação familiar; criança.

Abstract

This is a research involving the relationship among congenital blind children and older
siblings. The research targets, the understanding of how is the blind children relationship with
their older siblings by conducting interviews with them and their parents. The presently study
is supported by qualitative focus and follow the methodological procedure defined by Lüdke
and André (1986). The study seeks to analyze the data with defined categories by the objectives
of the study and the interview and legend test based in the psychoanalytic theory. Three
congenital blind children and their mothers were taken as subjects for this research. The
children ages were nine or ten years old. Interviews were carried out with mothers and
children, and the legend test was applied with the children. Drawn conclusion from data
collection points out that blind children, even in a brotherly conflicting relationship, find on
the siblings a pleasurable source, companionship and most of times a self identification model.
The research findings stress the point that the brotherly relationship is highly important for the
congenital blind children development, suggestions are made for additional studies to be taken
over this fact in order to lead our knowledge to a broader understanding over this subject.©
Cien. Cogn. 2008; Vol. 13 (2): 160-178.

Keywords: blindness; sibling relationship; family relationship; children.

160
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Ciências & Cognição 2008; Vol 13 (2): 160-178 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 15/06/2008 | Revisado em 24/07/2008 | Aceito em 25/07/2008 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 30 de julho de 2008

1. Introdução

Esta investigação enfoca depoimentos de crianças com cegueira congênita ou


adquirida até um ano de idade, e também de seus pais sobre o relacionamento com irmão(ã)
mais velho(a) sem deficiência, buscando assim a compreensão de como se dá essa relação.
Apesar de publicações sobre relações familiares afirmarem que a relação fraterna é de
extrema importância na vida de um indivíduo e que constitui também a primeira experiência
social, de papéis sexuais, da linguagem, entre outras, as pesquisas brasileiras a esse respeito
são escassas, ainda mais no que se refere às deficiências (Villela, 1999).
Esta escassez foi comprovada a partir de levantamento bibliográfico nas Bibliotecas
do Centro Latino Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME),
nas bibliotecas da Universidade de São Paulo, da Universidade de Campinas e da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo utilizando os seguintes descritores: sibling relation,
siglingship, sibship, blind and sibling, cegueira, relação fraterna, relação entre irmãos, irmãos
e cegueira, família e cegueira.
No âmbito dos estudos acerca das relações familiares, McKeever (1983) e Bank e
Kahn (1982) ressaltam que pouco se fala na relação entre irmãos, predominando pesquisas
sobre a relação entre pais e filhos e mais especificamente entre mãe e filho. Dunn (1988) fez
uma revisão bibliográfica sobre a interação entre irmãos quando um deles possui uma
deficiência, chegando à conclusão de que essa questão permanece sem esclarecimento devido
a duas razões principais: existência de poucos estudos dedicados a analisar separadamente os
efeitos da presença de uma criança com deficiência no desenvolvimento da criança normal e a
falta de observações diretas e documentadas do relacionamento fraterno e sua relação com a
formação da criança.
A relevância em buscar compreender a relação entre irmãos e seu significado para a
criança abre possibilidades de entendimento sobre uma relação constitutiva do ser humano
que pode influenciar a pessoa do seu nascimento à sua morte. O entendimento das
particularidades dessa relação para a criança com cegueira proporciona a aproximação da
forma de perceber, sentir, agir da mesma como integrante e atuante desse relacionamento.
Masini (1994, 1997) ressalta em seu trabalho que, para a compreensão do indivíduo
com cegueira, é preciso levar em consideração que ele possui um referencial perceptual
desconhecido para os videntes, e que a constante comparação entre pessoas com cegueira e
videntes não fornece esclarecimentos sobre o desenvolvimento da pessoa com cegueira e seu
posicionamento no mundo. Faz-se necessário então, enfocar a pessoa com cegueira
considerando o seu referencial perceptual, isto é, a sua forma singular de perceber e interagir
no mundo.
Ouvir pessoas com cegueira pode ajudar e nortear a compreensão das mesmas, não
mais a partir da falta da visão, mas, sim do uso dos sentidos que propiciem seu contato e
apreensão do mundo. Assim, nesta investigação os dados foram analisados sem qualquer
comparação entre crianças com cegueira e videntes, respeitando assim suas singularidades.
Para se ter claro as características dos sujeitos que fizeram parte desta pesquisa é
relevante assinalar o conceito de cegueira utilizado. A partir da resolução adotada pelo
Conselho Internacional de Oftalmologia em Sidnei, Austrália, em 20 de Abril de 2002,
cegueira pode ser definida como a perda total de visão nas quais os indivíduos precisam
contar predominantemente com habilidades de substituição da visão (Conselho Brasileiro De
Oftalmeologia, 2002).
Quanto à cegueira congênita, pode-se caracterizá-la como a que se manifesta no
nascimento ou logo depois dele, estando geralmente relacionada com pigmentação difusa
atípica, diminuição dos vasos da retina e atrofia do nervo óptico (Rey, 1999).

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Ciências & Cognição 2008; Vol 13 (2): 160-178 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 15/06/2008 | Revisado em 24/07/2008 | Aceito em 25/07/2008 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 30 de julho de 2008

As pesquisas dedicadas ao estudo da relação entre irmãos de crianças com deficiência


apontam que, freqüentemente, as necessidades dos irmãos de uma criança com deficiência são
negligenciadas por pais e professores, já que na maior parte das famílias as necessidades da
criança com deficiência são colocadas em primeiro plano (Vadasy et al., 1984).
No que se refere especificamente à relação fraterna de crianças com cegueira, uma
pesquisa foi desenvolvida por Lavine (1977) com cinco crianças com cegueira congênita,
brancas e sem nenhuma outra deficiência, buscando entender sua relação com seus irmãos. A
amostra consistiu em dois meninos e três meninas, sendo que um menino e uma menina
possuíam dois irmãos mais novos e o restante possuíam de um a cinco irmãos mais velhos,
sendo eles os caçulas.
Esta investigação fez parte de uma pesquisa maior, realizada por Selma Fraiberg,
Universidade de Michigan, com duração de 7 anos. Foi constatado que as expectativas
existentes na relação entre mãe e bebê influenciam grande parte do desenvolvimento deste.
Este fato não é diferente quando se trata de um bebê com cegueira; portanto, essas
expectativas influenciam a extensão das oportunidades de aprendizagem abertas para a
criança com cegueira na idade pré-escolar e o nível de interação social que a mesma pode
desenvolver.
Na interação entre pais e filhos com cegueira, um ponto destacado por esta pesquisa
foi que muitas vezes ocorre a monopolização da atenção pela criança com cegueira, já que
esta realmente precisa de um acompanhamento prolongado. Ao não possuírem expectativas
em participar de jogos e atividades espontâneas, as crianças com cegueira têm menos
oportunidade de construir seu papel na família do que seus irmãos (Lavine, 1977).
A ordem de nascimento foi outro fator evidenciado por Lavine (1977) que deve ser
levado em conta, pois influencia de maneira marcante os comportamentos dos indivíduos.
Experiência, desenvolvimento físico e expectativas paternas são fatores que colocam o
primogênito em uma situação de liderança. Por outro lado, quando a criança com cegueira é a
última a nascer, o fato de ser considerada o bebê da família pela posição na constelação
familiar exacerba sua condição.
Ao fim da pesquisa, Lavine (1977) concluiu que:

• Não há diferença significativa entre a interação fraterna dessas crianças e das crianças
videntes;
• A relação entre irmãos oferece uma oportunidade para a criança com cegueira desenvolver
comportamentos que a ajudam a adaptar-se à cegueira;
• A autora ressalta que, nos casos estudados, houve uma grande influência dos pais como
fator externo no relacionamento dos irmãos e lista as características observadas:
• Expectativas rígidas acerca do papel do irmão com relação à criança com deficiência;
• Sentimentos ambivalentes no que se refere a atender a demanda do filho com deficiência,
mas ao mesmo tempo não prejudicar o irmão;
• Dificuldade em notar as necessidades de cada filho separadamente;
• Dificuldade na inserção da criança com cegueira na dinâmica familiar;
• Influência dos pais na relação fraterna impedindo situações espontâneas (Lavine, 1977).

A conclusão deste estudo aponta para a impossibilidade do entendimento da relação


fraterna como um fenômeno isolado, pois está a todo o momento exposta a influências
externas, como a dinâmica familiar, a comunidade na qual a família está inserida, etc. A
interação entre as influências externas e o desenvolvimento da história particular entre os
irmãos fornecem informações muito úteis sobre a influência que os irmãos possuem no
comportamento interativo de crianças com cegueira (Lavine, 1977).

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A literatura encontrada, apesar de limitada, mostra que a criança com deficiência pode
ser encarada como um peso tanto pra a relação familiar quanto para a relação fraterna. A
pesquisa de Villela (1999) que buscou o entendimento das repercussões emocionais nos
irmãos de crianças com deficiência visual aponta nesta direção.
Esta pesquisa avaliou dez crianças entre 6 e 11 anos de idade que possuíam irmãos
com deficiência visual. Foi concluído que existe um sofrimento específico nestas crianças
referente às suas fantasias inconscientes, que tomam um caminho peculiar devido à dinâmica
familiar. Sabe-se que a figura mais importante no desenvolvimento primitivo da criança é sua
mãe e que ela serve de modelo de identificação para as demais crianças. Nesta pesquisa foram
encontradas mães que estavam voltadas para o atendimento de seu filho com deficiência
visual e que esperavam compreensão de todos, não podendo perceber a demanda afetiva dos
demais filhos. “As crianças ficam aderidas a isto, e não reivindicam suas necessidades em
prol da preservação da boa relação com o irmão deficiente e com a mãe” (Villela, 1999: 179).
Villela (1999), ao fazer a análise desses dados, refere-se ao grande sofrimento psíquico
causado pela repressão da hostilidade e pelo afastamento das reais necessidades de afeto da
própria criança. Conclui, então, que essas crianças fazem parte de uma população de risco no
que se refere ao sofrimento emocional. Esses dados diferem dos encontrados por Powell e
Ogle (1992) referentes aos mecanismos psíquicos utilizados por essas crianças com a
finalidade de preservar a relação amorosa com o irmão com deficiência, o que estes autores
interpretam como evidência de níveis elevados de altruísmo, empatia e responsabilidade nos
irmãos de crianças com deficiência.
Pode-se perceber, pelos estudos de Villela (1999), bem como os de Powell e Ogle
(1992), a grande ênfase dada ao aspecto psíquico, afetivo e emocional gerado pela presença
de uma criança com deficiência visual na família. Cabe pois, aqui, uma pergunta: este
envolvimento psíquico, afetivo e emocional não diz respeito também à criança com a
deficiência no que tange ao seu relacionamento fraterno? Estudar então a relação entre irmãos
a partir de como a criança com cegueira a sente e percebe é de grande importância para a
compreensão da relação como um todo e no que se refere a crianças com cegueira. Tendo em
vista estas considerações iniciais, os objetivos desta pesquisa foram:

• Descrever as relações fraternas de crianças com cegueira;


• Compreender como é a relação de irmãos a partir de depoimentos das crianças com
cegueira e de seus pais;

2. Método

Esta pesquisa pautou-se no referencial metodológico da pesquisa qualitativa voltada


para a descrição de um fenômeno para desvelar seu sentido. Delineia-se pelo enfoque clínico-
qualitativo que conforme Turato (2003) caracteriza-se como “um meio científico de conhecer
e interpretar as significações – de natureza psicológicas e psicossosiais – que os indivíduos
(....) dão aos fenômenos do campo de saúde-doença” (p. 240).

2.1. Coleta de dados

A coleta dos dados foi norteada pelas características sugeridas por Bogdan e Biklen
(1992):

• O ambiente natural como fonte direta dos dados e o pesquisador o principal instrumento
da pesquisa;

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• O material obtido contém a descrição de pessoas, situações e acontecimentos, podendo


haver a transcrição de entrevistas e depoimentos;
• Preocupação com o processo maior do que com o produto;
• O significado atribuído pelas pessoas à sua vida. Levando em consideração as diferentes
formas de pensar dos participantes, esta modalidade de estudo permite elucidar a dinâmica
interna das situações, geralmente inacessíveis ao observador externo.

A análise dos dados é feita a partir de um processo indutivo, isto é, os pesquisadores


não buscam evidências para hipóteses pré-definidas.Foram sujeitos desta pesquisa três
crianças com cegueira congênita que possuíam um irmão mais velho sem qualquer
deficiência. As crianças apresentavam as seguintes características1:

• Luiza (10 anos): freqüentava escola regular e atendimento especializado; filha de Carmem
(36 anos – doméstica) e Antônio (motorista de ônibus); irmã de Alex (20 anos) e Lúcia (10
anos – irmã gêmea);
• Ricardo (9 anos): freqüentava escola regular e atendimento especializado; filho de Marina
(40 anos – trabalhava em casa na confecção de bíblias) e José (47 anos – desempregado);
irmão de Renata (19 anos) e Luís (14 anos);
• Karina (9 anos): freqüentava escola regular e atendimento especializado; filha de Maria
(52 anos – do lar) e João (43 anos – coordenador de tráfego); irmã de Kelly (16 anos) e Karen
(9 anos – irmã gêmea). Os instrumentos para a coleta de dados foram os roteiros de entrevista
semi-estruturados e um gravador digital.

A avaliação do nível socioeconômico foi baseada em Quadros e Antunes (2001), que


desenvolveram uma pesquisa sobre as classes sociais presentes no Brasil. Segundo esse
estudo pode-se separar a população em quatro camadas, a partir de sua ocupação. As camadas
apresentadas por estes autores são:

• 1ª camada: proprietários que empregam mão de obra assalariada e alta classe média,
assalariada ou não que pode ser considerada a “elite” socioeconômica.
• 2ª camada: “setores intermediários”, a média classe média, assalariada ou autônoma, e os
proprietários de pequeno negócio familiar urbano (comércio e serviços).
• 3ª camada: “massa trabalhadora urbana”, composta pela baixa classe média assalariada,
pelos segmentos operários e demais assalariados populares e segmentos inferiores dos
trabalhadores autônomos.
• 4ª camada: base do mercado de trabalho urbano, composto por trabalhadores assalariados
de segmento mais baixo, autônomos e empregadas domésticas; e a maioria de trabalhadores
rurais e agricultores familiares.

Nesta pesquisa, como se trata do relacionamento entre crianças, foram consideradas as


ocupações dos pais, constatando-se que as três famílias faziam parte da 4ª. camada definida
pelos autores.
É importante deixar claro que, apesar das três famílias encontrarem-se na 4ª. camada,
no que concerne à caracterização do nível socioeconômico por Quadros e Antunes (2001), a
partir das entrevistas, foi notado que Maria e João possuem uma situação financeira melhor
do que a das outras famílias por morarem em casa própria com maiores recursos, como
número de televisões e computador. Essa melhor condição financeira deve-se, principalmente,
ao fato de Maria ser assistente social e ter trabalhado até o nascimento das gêmeas. Já a
situação de Carmem, Antônio, Marina e José são similares, morando em casa alugada com

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poucos cômodos e parcos recursos. Cabe aqui fazer essa ressalva, já que ela pode ser um
motivo de diferenciação no cotidiano das famílias.
Com relação à coleta e registro de dados pode-se destacar:

2.2. Instrumentos

Foram utilizados roteiros de entrevista semi-estruturados o Teste das Fábulas e um


gravador digital para registro das entrevistas.

2.3. Entrevistas

A entrevista psicológica constitui um recurso fundamental na busca de aspectos


psicológicos e pode ser definida como uma relação humana na qual um dos participantes
busca entender os acontecimentos e deve atuar a partir deste conhecimento. “A realização dos
objetivos possíveis da entrevista (investigação, diagnóstico, orientação, etc) depende desse
saber e da atuação de acordo com esse saber (Bleger, 1998: 7).
Deve-se compreender que na entrevista o entrevistador faz parte do campo, isto é, ele
condiciona determinados fenômenos que vai registrar, podendo, assim, ser questionada a
validade dos dados obtidos. Bleger (1998) ressalta que tal objetividade na investigação não
está presente em nenhum outro campo científico e, com certeza, não está presente na
Psicologia já que seu objeto de estudo é o homem. Desse modo, afirma que a máxima
objetividade consiste em incorporar o sujeito que observa como uma das variáveis do campo.
Bogdan e Biklen (1982) afirmam que a pesquisa qualitativa encontra no ambiente
natural uma fonte direta de informações, sendo o pesquisador seu principal instrumento.
Pressupõe, assim, o contato prolongado e direto do pesquisador com o ambiente e a situação
investigada, podendo ser chamado de estudo “naturalístico”.
Ludke e André (1986), a partir do trabalho de Bogdan e Biklen (1982), comentam que
o contato estreito entre o pesquisador e a situação observada é necessário para o entendimento
de um determinado objeto, pois este é influenciado pelas circunstâncias que o rodeia. Assim,
as pessoas, os gestos, as palavras e os comportamentos devem sempre ser estudados inseridos
em seu contexto.
Nesta pesquisa foi adotada a entrevista semi-estruturada que é caracterizada por Ludke
e André (1986) como uma entrevista que situa-se entre a entrevista não-estruturada e a
estruturada; ela possui um esquema básico que não é aplicado rigidamente, permitindo, dessa
maneira, que o entrevistador faça adaptações quando necessário. Isto posto, foi estabelecido
neste estudo alguns temas a serem abordados, tanto na entrevista preliminar com os pais
quanto na entrevista com as crianças, com o objetivo de possibilitar a investigação mais
ampla sobre o cotidiano do indivíduo e de seu relacionamento com os irmãos.

2.4. Teste das fábulas

Outro recurso utilizado foi o Teste das Fábulas criado por Luisa Düss. Esse teste foi
apresentado primeiramente por esta autora em 1940, e possui um referencial teórico
freudiano. Sua primeira versão compunha-se de histórias incompletas que tinham o objetivo
de investigar conflitos inconscientes. Em 1950 Düss divulgou o resultado de suas pesquisas
com o teste ampliando-o posteriormente. Seu objetivo era obter um diagnóstico do complexo
e não uma classificação nosológica dos sujeitos investigados. Esse teste engloba uma forma
verbal e uma pictória. A primeira é composta de 10 fábulas, nas quais o herói, que pode ser
uma criança ou um animal, encontra-se em situações que representam cada fase do

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desenvolvimento psicossexual para Freud, sendo que essas situações por serem ambíguas e
simbólicas facilitam a projeção da criança e permitem a identificação de conflitos. Já a forma
pictória, possui 12 lâminas com ilustrações adequadas a cada história e que devem ser
apresentadas simultaneamente à forma verbal (Cunha e Nunes, 1993).
Nesta pesquisa foi utilizada apenas a forma verbal do teste porque as crianças
estudadas são desprovidas do sentido da visão, e também a utilização da forma pictória não é
recomendada por Cunha e Nunes (1993) para crianças a partir dos 8 anos.
A aplicação realizada foi individual contando com um inquérito posterior a cada
resposta, quando possível, e este inquérito tem por finalidade o enriquecimento da resposta
para posterior avaliação. A avaliação, por sua vez, foi realizada segundo modelo proposto por
Cunha e Nunes (1993).
Optou-se pela utilização do Teste das Fábulas, pois ele possibilita, através de suas
histórias, a investigação de alguns temas do desenvolvimento da criança. A relação entre
irmãos é tratada especificamente na fábula três que, além das reações frente ao desmame,
engloba o tema da rivalidade fraterna. Foi aplicado o teste na íntegra, vez que a relação entre
irmãos poderia também aparecer nas respostas a outras fábulas como ocorreu no caso de
Ricardo e Karina.

2.5. Procedimentos

A coleta de dados seguiu os seguintes procedimentos:

• Entrevista preliminar com a mãe das crianças para a apresentação da pesquisa e assinatura
do termo de consentimento livre e esclarecido, bem como para investigar a percepção das
mesmas sobre a relação de seus filhos;
• Entrevista com as crianças para a investigação sobre sua relação com seus irmãos mais
velhos.

O registro das entrevistas foi realizado através da gravação das mesmas e posterior
transcrição. Esta forma de registro demonstrou-se muito eficaz pois permite captar as
informações de maneira imediata e absolutamente fiel à forma como são expressas, evitando,
assim, a seleção de informações pelo entrevistador. A gravação permitiu ao entrevistador,
reiterando Lüdke e André (1986), acompanhar de forma mais livre a fala e as expressões dos
entrevistados. Algumas dificuldades em relação à entrevista gravada, tais como as expressões
faciais, corporais e mudanças de postura foram registradas pela entrevistadora, imediatamente
após o encerramento da entrevista. O gravador, apesar de poder ser um instrumento inibitório
para o sujeito, já que nem todas as pessoas sentem-se à vontade frente à gravação de sua fala,
isto não ocorreu nestas entrevistas. Uma dificuldade foi a transcrição da fala do entrevistado
para o papel, pois esta operação não é tão simples quanto se imagina, tomando várias horas e
apresentando informações cruas nas quais é difícil destacar as informações centrais.

2.6. Análise dos dados

A análise dos dados coletados foi realizada em três etapas que se caracterizaram por:

• 1ª etapa: consistiu da categorização dos dados das entrevistas e da realização de recortes


no Teste das Fábulas. Após análise deste instrumento em sua íntegra foram feitos recortes
ressaltando apenas as respostas das crianças, nas quais estivessem presentes referências à
relação entre irmãos;

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• 2ª etapa: foi feita a convergência dos dados da primeira fase buscando ligações entre eles;
• 3ª etapa: foi estabelecida a relação entre os dados obtidos nesta pesquisa e a literatura
científica encontrada sobre a temática.

3. Resultados e análise

A análise dos dados partiu da identificação de categorias presentes nos discursos dos
entrevistados e pela posterior identificação de convergências entre os sujeitos como segue:

3.1. Convergência nas entrevistas com as mães

3.1.1. Relação entre irmãos

Neste tópico é abordada a percepção das mães acerca da relação dos irmãos. Tanto
Maria quanto Marina afirmaram que eles se entendiam bem e participavam das atividades uns
dos outros, como por exemplo: Luís levava Ricardo à instituição de atendimento
especializado, quando Marina não podia. Carmem comentou que apesar de Lúcia ficar com
Luiza todo dia à tarde enquanto ela trabalhava, percebia que elas não tinham uma boa relação,
havendo pouco afeto entre elas e o não compartilhamento das atividades. Quanto à relação de
Luiza com o Alex, no momento da pesquisa, era restrita a contatos telefônicos, já que ele não
morava mais na mesma cidade que a família.
Um fator comum nas três famílias foi a presença de ciúme na relação dos irmãos.
Marina disse que Luís tinha ciúmes de Ricardo e achava que isso se devia a ela sempre
defendê-lo, e também pelo fato de, às vezes, Ricardo dormir com ela.
Carmem comentou que Luíza tinha muito ciúme, mas que quando Alex morava com
elas era pior, pois todos tinham ciúme uns dos outros, expressando várias vezes seu
descontentamento em ter irmãos. Maria contou que Karen tinha muito ciúme de Karina, não
ocorrendo o inverso, e Kelly, por sua vez, tinha ciúme das gêmeas. Relatou, ainda, a
ocorrência de competição entre Karen e Karina como, por exemplo, acerca do
desenvolvimento do seio.
Quanto à interferência das mães na relação dos irmãos todas as três relataram esta
ocorrência. Marina falou que, normalmente, favorecia Ricardo quando este brigava com Luís
a respeito de assistir televisão e disse ainda, que em alguns momentos, não precisava intervir,
pois eles se entendiam sozinhos. Maria também disse que, muitas vezes, precisava intervir na
relação das filhas e que procurava favorecer uma de cada vez, e Carmem comentou que
intervinha sempre, pois Lucia e Luiza brigavam muito por diversos motivos, como a
televisão, o telefone, entre outros. Tanto Carmem quanto Maria comentaram sobre suas
atitudes quando as gêmeas brigavam, chegando a se agredir fisicamente. Carmem batia nas
duas quando isso acontecia e Maria não favorecia nem uma nem outra.
Uma questão que apareceu apenas nas entrevistas de Marina e Maria, foi a relação dos
irmãos com amigos. Ambas disseram que eles não tinham amigos em comum. Marina falou
que Ricardo conhecia todos os amigos de Luís e que gostava deles e aqui deve-se chamar a
atenção para a discordância na entrevista de mãe e filho, já que Ricardo disse que não gostava
dos amigos de Luís. Maria comentou que, apesar das gêmeas não terem as mesmas amigas,
como eram da mesma classe na escola, acabavam fazendo parte do mesmo grupo e disse
ainda que elas (Karina e Karen) não gostavam das amigas de Kelly (irmã mais velha).

3.1.2. Relação com os pais

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Neste item está a análise das respostas das mães a respeito da relação entre pais e
filhos. As três entrevistadas afirmaram que agiam da mesma forma com todos os filhos. Aqui,
porém, destaca-se uma discrepância na entrevista de Marina, pois, ao mesmo tempo em que
ela disse que tratava os três filhos igualmente, comentou que nas brigas de irmãos sempre
favorecia Ricardo, o que deixava Luís com ciúme. Carmem falou que procurava não favorecer
nenhuma das duas e que quando elas brigavam e passavam a culpa de uma para a outra ela
batia nas duas. Já Maria comentou que se não agia da mesma forma com as três, sentia-se
culpada.
Quanto à relação das crianças com o pai, Marina expôs que o pai era frio e não dava
tanta atenção para os filhos, nem para Luís, nem para Ricardo. Maria também contou diversos
episódios nos quais precisou intervir na relação de Karina e João. Carmem foi a única das
entrevistadas que não contou com a presença do marido no diagnóstico da cegueira de Luiza e
no período posterior a este, pois já estavam separados, e falou que o ex-marido tinha pouco
contato com as filhas e que por muitas vezes chegava embriagado nas visitas sendo impedido
de vê-las por Maria.
Maria e Marina expressaram, de formas diferentes, certa dificuldade dos maridos em
lidarem com as limitações dos filhos. Marina contou que José não saía com Ricardo até mais
ou menos os quatro anos de idade, e que ela percebeu que ele tinha vergonha do filho. Já
Maria comentou que João teve muita dificuldade em aceitar que Karina andasse de bengala, e
que teve a impressão que ele não conseguia lidar com o fato da deficiência da filha poder ser
observada por outras pessoas de forma concreta.

3.1.3. Falam sobre a cegueira

Com a categorização das informações coletadas nas entrevistas, buscou-se sistematizar


a fala das mães sobre como elas lidavam com a questão da deficiência com a família.
Tanto Marina quanto Maria disseram que conversavam com a família sobre a cegueira
do filho. Marina falou que perguntava para Ricardo se ele era feliz e disse que quando
questionada sobre o porquê Ricardo havia nascido com cegueira explicou a ele que quando
Deus queria uma coisa não adiantava reclamar. No que concerne à Maria, esta comentou que
a questão da cegueira de Karina era discutida em família e que quando Karina expressava o
desejo de não ser cega, Maria explicava que ela não podia falar assim, pois fora a cegueira ela
era perfeita. A maneira como Maria abordava o assunto não permitia que Karina expressasse
sentimentos de desagrado e tristeza em relação à cegueira. Carmem, por sua vez, não
conversava diretamente com as filhas sobre a cegueira de Luiza, mas que ambas já a
escutaram falar sobre o assunto.
Alguns pontos que não foram citados pelas três mães, mas que merecem ser
contemplados neste tópico estão expostos a seguir.
Marina comentou que conversava muito com o marido sobre a condição de Ricardo e
que ele se sentia culpado pela cegueira do filho, posto que, na época da gestação, estava
desempregado e Marina brigava muito com ele. Falou ainda que José, muitas vezes, chegava
a pedir desculpas verbalmente para o filho e fazia com que ela também pedisse desculpas.
Maria relatou que quando Karina foi levada para fazer a cirurgia devido ao
descolamento da retina, Kelly expressou o desejo de que Karina voltasse da cirurgia
enxergando e que precisou lidar durante algum tempo com o fato de Kelly não querer uma
irmã com cegueira.

3.1.4. Inclusão escolar

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As três crianças estudavam em escola regular e freqüentavam atendimento


especializado a pessoas com deficiência visual.
Karina era a única das crianças que estudava na mesma escola que a irmã gêmea,
estavam na mesma classe e, segundo Maria, Karina não queria ser separada de Karen. Kelly
também estudou na mesma escola, mas como iniciou o colegial precisou mudar. O mesmo
ocorreu com Luís, que até o ano anterior à pesquisa estudava na mesma escola que Ricardo.
Luiza, por sua vez, nunca estudou com Lúcia, pois, segundo Carmem, no município em que
mora não havia sala de recursos e professora especializada; então, Luiza não foi aceita na
escola regular de lá.
Quanto às tarefas escolares não houve semelhança entre as crianças, Karina e Karen
faziam a lição juntas e Lúcia e Luiza não. Marina não comentou nada sobre esse assunto em
sua entrevista.

3.1.5. Atividades de lazer

No que se refere às atividades de lazer que os irmãos faziam juntos o que apareceu de
semelhante foi que, independente das circunstâncias, os irmãos brincavam juntos, mesmo
quando brigavam muito e tinham tipos de brincadeiras diferentes.

3.2.Convergências nas entrevistas com as crianças

3.2.1. Gostavam de fazer com o(a)irmão(ã)

Nesta categoria destaca-se o fato de que as três crianças afirmaram que gostavam de
sair com os irmãos. Ricardo para ir ao parque, passear de metrô ou ir à instituição de
atendimento especializado; Luiza para ir à casa da avó ou andar de bicicleta com o irmão; e
Karina para ir à feira e ao cabeleireiro.
Outra atividade comum eram as brincadeiras que variavam de acordo com a
preferência de cada um, mas estavam presentes nos três casos. Outra característica comum nas
entrevistas de Karina e Lúcia foi o fato de que ambas afirmaram que gostavam de assistir
televisão com as irmãs.

3.2.2. Não gostavam de fazer com o(a) irmão(ã)

A única característica comum nos três casos foi referente a brigar; as três crianças
afirmaram que não gostavam de brigar com seus irmãos e o motivo das brigas era diferente,
dependendo de cada caso.

3.2.3. Atividades que não compartilhavam

Os três entrevistados afirmaram que, em alguns momentos, não brincavam com os


irmãos: Karina e Ricardo porque não gostavam dos amigos dos irmãos e Luiza porque Lúcia
não queria brincar com ela.

4. Discussão sobre os dados analisados

A reflexão sobre os dados foi sistematizada na seguinte seqüência:

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1º - Item de maior convergência que aparece na relação entre a criança com cegueira e seu
irmão(ã);
2º - Itens convergentes nas famílias;
3º - Itens sobre a relação das mães com os filhos;
4º - Itens que aparecem apenas em um dos sujeitos, mas que assinalam pontos importantes das
relações que requerem atenção;
5º - Características específicas.

4.1. Item de maior convergência que aparece na relação entre a criança com cegueira e
seu irmão(ã)

Nos três casos, de formas e em graus diferentes, ficou claro o papel que os irmãos
representavam quando: Ricardo afirmou que gostava muito de brincar e passear com Luís,
como ir ao parque, andar de metrô, ouvir música; Luiza, questionada sobre como é ter um
irmão, verbalizou:

“Ah, é bom, porque às vezes quando ela quer brincar nós brinca, quando ela quer sair a
gente sai. Nós vai na casa da minha vó que mora perto, eu gosto de ir lá. E também vou
na rua com a Lúcia aí nós brinca de castelinho de areia.”

Expressou, então, sentimentos positivos acerca de possuir uma irmã apesar de ter
relatado uma relação conflituosa com a mesma; Karina, embora tenha falado que preferia ter
apenas a Kelly como irmã, relatou as brincadeiras que fazia com a Karen (irmã gêmea) de
forma prazerosa. A esse respeito percebe-se que, independente da presença de ciúme e
rivalidade, as três crianças encaravam sua relação com os irmãos como uma fonte de prazer
em algum grau. Estes dados reiteram Furman e Burhmester (1985), que apontam a extrema
importância da relação entre irmãos para o desenvolvimento social da criança, sendo uma
fonte freqüente de companheirismo, ajuda e suporte emocional. Afirmam ainda que, muitas
vezes, irmãos mais velhos cuidam de seus irmãos mais novos e também podem ser modelos
de identificação como fica claro, por exemplo, no caso da relação entre Karina e Kelly.
Estudos como o de Lavine (1977) e o de Stillwell e Dunn (1985) consideraram que a
relação entre irmãos é influenciada em grande parte pelo relacionamento estabelecido com os
pais, sendo que esse relacionamento pode ser fator facilitador ou trazer dificuldades para a
relação fraterna. O posicionamento de Carmem, ao definir que devido às brigas Lúcia e Luiza
não deveriam ficar juntas, dizendo: “Eu acho assim que cada uma tem que ficar na dela, né?
Uma em um canto e a outra no outro, né?”, pode ser dificultador. Esta atitude constitui uma
barreira na relação das irmãs, pois, à medida que os conflitos não são encarados e resolvidos,
há uma clara tendência a evitar esses conflitos, podendo tornar o ciúme e a rivalidade cada
vez maiores.
A relação de irmãos, por ser a primeira relação intensa entre pares, é um importante
agente de socialização, sendo que esse relacionamento auxilia o desenvolvimento social.
Através da convivência com os irmãos, as crianças desenvolvem suas habilidades sociais que
serão, posteriormente, utilizadas em outras relações (Powell e Ogle, 1992). Também aqui,
esta afirmação pode ser corroborada pelas três famílias entrevistadas. Maria e Karina
contaram que esta brincava muito com as irmãs e que, apesar de não ter os mesmos amigos
que Karen, por fazerem parte do mesmo grupo social, acabavam por estarem juntas. Deve-se
ressaltar ainda que, através da brincadeira relatada por Karina, na qual ela e a irmã gêmea
encenam situações da vida adolescente, estão adquirindo habilidades sociais e de adequação
ao mundo. Luiza também, ao contar que brincava com sua irmã encenando situações de

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compra (mercearia) ou de banco pode, através da imitação da vida adulta, estar recorrendo a
habilidades sociais e adquirindo-as. O mesmo se passa com Ricardo que relatou que gostava
de sair com o irmão para ir ao parque ou ao metrô.

4.2. Itens convergentes nas famílias

Um dos pontos de grande relevância notado nas três famílias é que nenhuma delas
conversava de forma livre sobre a deficiência. É muito importante para o desenvolvimento da
criança com cegueira que lhe seja permitido falar de seus sentimentos e sensações sobre sua
deficiência. Apesar de Marina e Maria terem afirmado que conversavam com seus filhos
sobre a cegueira, nenhuma delas baseando-se em seus relatos, deixava que as crianças dessem
vazão aos seus sentimentos e frustrações acerca da deficiência. Marina disse que quando
Ricardo perguntou a ela porque as pessoas nasciam com cegueira, ela respondeu que não
sabia explicar, mas que quando Deus queria alguma coisa não adiantava reclamar. Maria, por
sua vez, quando Karina falou que não queria ser cega respondeu:

“Karina você é tão linda, sabe, com nove anos você tem ainda uma vida inteira, a
mamãe não tem mais jeito, vou ser linda só na próxima encarnação! Sou feia, tenho 52
anos, tô na reta final, não tenho chance nenhuma, olha quanta coisa você tem pela frente
e a mamãe não tem nada" ou "Eu não admito que você reclame de nada porque o jeito
que a mamãe viu você nos meus braços."

Tanto a resposta de Marina quanto a de Maria não permitiram que os filhos


expressassem seu descontentamento e desejo de não serem cegos, barrando a expressão da
frustração que pode vir a ser tão importante para o desenvolvimento da criança. Carmem
contou que não conversava com as filhas sobre a cegueira de Luiza, mas que ambas já a
ouviram falar sobre a deficiência e, aparentemente, acreditava que essa questão estava
resolvida. Esse pensar contradiz seu relato na entrevista, pois, além de expressar claramente
que não se conformava com a cegueira da filha, chorando ao falar da mesma, o fato de não
conversar com Lúcia e Luiza sobre a cegueira da última pode apontar uma grande dificuldade
da mãe em lidar com a situação, preferindo mantê-la distante, o que, provavelmente, deve
refletir em sua atitude com as filhas. Dessa forma, deixa de ocorrer o alívio na criança
assinalado por Burlingham (1961) e que acompanha a capacidade de falar sobre a cegueira e
sobre a frustração relacionada à deficiência. Conforme esta autora, falar sobre a cegueira
proporciona uma sensação de alívio na criança, gerando um conforto e liberação, permitindo
que as mesmas possam expressar outros assuntos até então não explorados. Além disso, esta
autora enfatiza que, ao expressar seus sentimentos sobre a deficiência, as crianças abrem-se
para novas experiências e sua curiosidade acerca do mundo aumenta de forma marcante.
É importante destacar a semelhança na constituição das três famílias analisadas: as três
mães tiveram seus primeiros filhos em uma união e os dois seguintes em outra; todas elas
notavam diferenças no relacionamento entre os irmãos que possuem o mesmo pai e os que
possuem pais diferentes. Carmem falou que quando Alex vivia com ela, as relações eram
repletas de ciúme e cada um falava que os outros não deveriam existir, incluindo a afirmação
de Alex que as gêmeas não deveriam ter nascido, pois vieram depois e as gêmeas que diziam
que Carmem não deveria ter tido Alex antes.
Maria também notou essa diferença, principalmente no relacionamento entre o atual
marido e Kelly, dizendo que esta sofria por não ser filha do mesmo pai e que isso influenciava
os relacionamentos familiares. Aqui cabe um apontamento, pois, tanto na entrevista de Maria
quanto na de Karina, ficou claro que esta última defende a irmã mais velha do pai e se alia a

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ela em algumas situações. Karina disse: “Meu pai não é o pai da Kelly, só que ele trata ela
bem, assim, trata bem. Eu falei para ele ‘E ai de você tratar mal a Kelly!’” Marina também
relatou diferenças no relacionamento de Ricardo com Luís e Ricardo com Renata, e disse que
Renata não tratava mal Ricardo, mas era seca com ele. Estas falas podem relacionar-se ao que
Bank e Kahn (1982) comentam sobre a rivalidade fraterna ocorrer devido à fragmentação das
famílias modernas, as quais, muitas vezes, têm formações distintas no nascimento dos
diversos filhos.
Uma outra questão a ser notada nos dados levantados pela pesquisa é a delegação de
responsabilidade aos irmãos. Marina contou que Luís, apesar de ter 14 anos, é muito maduro e
assume responsabilidades como a de levar Ricardo para a instituição de atendimento
especializado que freqüentava e, mesmo sendo advertida que, como Luís era menor de idade,
ele não poderia estar acompanhando Ricardo, disse: “Ele adora o irmão...É...Semana passada
ele que trouxe o Ricardo aqui...É por que, falam que não pode porque ele só tem quatorze
anos mas ele é grandão, né?...Cabeça feita, né?” Maria relatou que Karen costumava fazer
tudo o que Karina pedisse e Carmem falou que Lúcia fazia tudo por Luiza quando ela não
estava, como servir o almoço para a irmã. Dunn (1985) afirma que quando um irmão possui
uma deficiência os irmãos saudáveis tendem a assumir responsabilidades que não teriam caso
a deficiência não estivesse presente. Essa questão fica clara nas três entrevistas.

4.3. Itens sobre a relação das mães com os filhos

Quanto à intervenção e tratamento das mães para com seus filhos, percebe-se, como
apontado anteriormente, que Marina afirmou que tratava os filhos da mesma maneira, mas,
durante sua entrevista, constatou-se uma tendência em proteger Ricardo em diversas
situações, em falas como:

“É que agora tem duas televisões mas antes com uma TV só saía muita briga, às vezes o
Ricardo...É que o Ricardo gosta de assistir o canal 4 e o 2 e o Luís já não, é o 5, só o 5,
aí as vezes o Luís fala: ‘Agora o Lu vai assistir’. ‘Ah não, agora que vai começar meu
desenho!’ ‘Não, eu falei que vou assistir e acabou!’ Aí eu falo: ‘Mas Luís, você não
falou pra mim que você ia sair?’ Aí se eles começam a brigar eu me meto no meio e
falo: ‘Não, você falou que ia sair então agora o Ricardo vai assistir!’ eu tenho que entrar
no meio...Eu sempre favoreço o Ricardo...”

Marina percebia ainda que esta atitude gerava ciúme em Luís e complementou
dizendo: “É, acho que é por isso que o Luís tem ciúmes... Às vezes o Luís fala: ‘Ai pra mãe
tudo é o Ricardo!’ Porque o Ricardo gosta de assistir canal 4 e eu também gosto, eu já me
acostumei, ele adora assistir canal 2 e aí também me acostumei.” Fica claro aqui que a
intervenção de Marina a favor de Ricardo influencia a relação dos irmãos. Ricardo, por sua
vez, parece corroborar esta questão com a fábula do cordeirinho, aparentemente tomando
certas atitudes por medo de perder o vínculo com a mãe.
Carmem, no entanto, disse que tentava não favorecer nem uma nem outra em suas
decisões:

“Agora quando eu não estou em casa é uma briga. Tem dia que ela liga no meu serviço,
não a Lúcia, a Luiza, e fala: ‘Mãe, ela não quer isso, mãe ela não quer aquilo!’ Aí eu
digo: ‘Quando eu chegar em casa a gente conversa’. Aí quando eu chego lá todo mundo
está quietinho, quer dizer, aí eu pergunto: ‘Quem fez isso? Quem fez aquilo?’ E elas
começam: ‘Foi a Lúcia, foi a Luiza!’ Aí eu pego e bato nas duas. Agora quando uma

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quer assistir uma coisa e a outra quer ver outra coisa eu desligo a TV, eu não vou nem
pro lado de uma nem pro lado da outra.”

Em sua fala nota-se o não enfrentamento de um conflito, assim como quando relatou
que cada uma deveria ficar em um canto. Apesar de ter uma atitude igual com as duas filhas,
essa atitude não se adaptava às circunstâncias, pois as duas eram punidas por igual e não se
confrontavam com o motivo da briga e com as características específicas de sua relação.
Nota-se que as intervenções de Carmem e Marina não levavam em consideração os
eventos ocorridos; Marina porque acaba favorecendo sempre a Ricardo e Carmem por não
estabelecer um contato com o conflito resolvendo-o de forma igual para as duas irmãs, no que
parece uma tentativa de empregar um senso de justiça.
Maria, por outro lado, contou que às vezes se culpava por não fazer as coisas iguais
para as filhas: “Aí você se policia, então o copinho com água fica do lado direito, a jarrinha
com água fica lá, então se eu abasteço um copo eu tenho que fazer sempre os dois porque as
vezes eu me culpo”. Contou que Karen e Kelly tinham ciúmes de Karina, então procurava
fazer as coisas iguais para as filhas. Falou sobre o ciúme de Karen: “Na hora de se trocar
rápido, você pega e põe a pasta na escova e agiliza as coisas, aí a Karen chega lá e fala
assim: ‘Mãe você pôs pasta só pra Karina?’". Quanto à Kelly disse: “A Kelly fala: ‘Ai mãe,
estreou um filme, vamos não sei o que?’ Ai ela fala ‘Vocês ficam aí sozinhas ô Karina e
Karen porque a mãe vai me levar lá que é só maior que quatorze anos’., ‘Lógico que não,
que não sei o que, ou vamos todas, você vai ter que assistir a Xuxa ou a Tayna’. ‘Eu não vou
assistir este filme de bebê!’ Ai eu falo assim: ‘Kelly não dá, né?’ ‘Esta vendo só, se fosse só
eu pronto! Vocês só vieram encher meu saco’". Apesar de ocorrer o ciúme na relação das
irmãs, nota-se ao longo da entrevista de Maria que ela procurava adotar uma posição
equilibrada entre as filhas; então, se Karen a ajudou mais nas tarefas domésticas ela ganhava
uma recompensa que as outras não. Aparentemente, ela adequava sua atitude às circunstâncias
que apareciam.
Os fatores apontados acima estão em acordo com Kris e Ritvo (1983) quando afirmam
que, além das intervenções dos pais no que se refere à relação entre irmãos, a postura dos
mesmos na relação com cada um dos filhos é de extrema importância. É preciso que haja um
senso de justiça nessas relações que vai além do fazer a mesma coisa para todos os filhos. O
senso de justiça paterno deve estar alicerçado na percepção das diferenças pessoais de seus
filhos. É necessário que haja flexibilidade para que sejam encontradas atitudes adequadas às
situações apresentadas ao longo da vida. Com certeza, é de extrema importância a capacidade
de justiça materna representada pela igualdade no tratamento dos filhos e pela percepção das
diferenças entre eles adequando suas atitudes às circunstancias. Também Shopper (1974)
aborda esse assunto e afirma que muitos pais acreditam erroneamente que se os filhos forem
tratados da mesma maneira não sentirão ciúmes um do outro e brigarão menos. Todavia, na
verdade, o que ocorre é geralmente o oposto.
A interação das mães com seus filhos com cegueira é outro fator que influencia a
relação destes últimos com seus irmãos. Pode-se destacar no relacionamento de Ricardo e
Marina sua fala a respeito de querer o filho por perto, de ter parado de trabalhar fora para ficar
com o filho e da sua defesa a Ricardo em suas brigas com Luís. Já no que se refere à Maria, o
nascimento de Karina trouxe modificações essenciais na vida familiar, porque esta deixou de
trabalhar para cuidar dos bebês, provocando ressentimento em Kelly devido à perda da
condição financeira que tinham anteriormente. Deve-se apontar também que Kelly tinha
problemas de relacionamento com o padrasto, o que podia agravar a aceitação das
modificações em sua vida. Esses fatores corroboram o que Lavine (1977) afirma sobre a
possibilidade de ocorrer a monopolização da atenção dos pais pela criança com cegueira,

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posto que esta realmente necessita de um acompanhamento prolongado, e esta monopolização


pode influenciar o relacionamento entre irmãos, muitas vezes, conturbando-o.
Além disso, Lavine (1977) ressalta que quando a criança com cegueira é a caçula há
um padrão de comportamento que pode ser adotado, no qual ela ignora a agressão, não
cumpre passivamente as demandas, e usa de uma terceira pessoa, como a mãe, em sua defesa.
Esta característica é óbvia no comportamento de Karina citado por Maria, no qual ela, muitas
vezes, não queria fazer suas tarefas domésticas, utilizando-se de recursos para isso:

“Às vezes ela fala: ‘Mamãe eu estou muito cansada, você deixa?’ Que nem hoje ela
deixou os pratos lá e vem mosquito, etc, etc. ‘Ai, eu estou muito cansada, hoje você
pode?’ ‘Hoje eu posso, eu também tô cansada, mas eu posso, só que vamos combinar,
amanhã você lava o meu, então a gente troca’. ‘Ai tá bom vai, vamos ver se amanhã eu
fico menos cansada.’”

4.4. Itens que aparecem apenas em um dos sujeitos, mas que assinalam pontos
importantes das relações que requerem atenção

A inserção de uma criança com deficiência na família abala o ambiente e a estrutura


emocional familiar, modificando, muitas vezes, os papéis desempenhados por seus integrantes
(Buscaglia, 2002). Isso fica ressaltado na entrevista de Maria sobre a reação de Kelly quando
contou que iria levar Karina para fazer a cirurgia devido ao descolamento de retina: “A Kelly
falou assim: ‘Você vai levar ela pra operar né mãe?’ ‘É’. ‘Então você vai voltar com ela
enxergando porque eu não quero irmã cega!”. Nota-se a resistência à aceitação da
deficiência, e há, ainda, as implicações sociais da mesma que podem ser ilustradas pelo
pedido de Kelly para que a mãe virasse Karina de costas para o corredor do metrô pois tinha
uma mulher olhando fixamente para elas. No caso de Kelly, estas falas parecem estar ligadas
ao que Fiumi (2003) e Finnie (1980) afirmam sobre os sentimentos ambivalentes existentes
em relação ao indivíduo com deficiência, pois, ao mesmo tempo em que há o amor pelo
membro familiar há a rejeição de sua deficiência.
Porém, fica aqui a pergunta: será que a criança com cegueira percebe esse movimento
de ambivalência? E se percebe como reage a ele?
Quanto ao vínculo formado entre irmãos, deve-se destacar a relação entre Ricardo e
Renata que foi pouco abordada na entrevista. Marina falou muito pouco da relação entre eles
e disse apenas que, apesar de Renata não ter vergonha de Ricardo, era seca com ele; Ricardo,
em sua entrevista, praticamente não menciona a irmã. Pode-se caracterizar, neste tema, o que
Bank e Kahn (1982) referem como “pouco acesso”. Esse fenômeno é definido a partir da
concepção de que a vinculação entre irmãos depende do acesso existente entre eles, havendo
um grande número de irmãos que, aparentemente, não possuem influência entre si, tendo
pouco impacto emocional entre um e outro. Algumas características podem ser destacadas
nestes irmãos: geralmente possuem uma diferença de idade maior que 8 anos; compartilham
poucos momentos, espaço, contatos sociais, e amigos; não precisam um do outro e
aparentemente os pais também não estimulam esta necessidade. Ricardo e Renata preenchiam
as características apontadas por estes autores.

4.5. Características específicas

No que concerne às características específicas de irmãos gêmeos, Bank e Kahn (1982)


afirmam que eles podem se encontrar em fusão, já que realizam a maior parte de suas
atividades juntos, como dormir, alimentar-se e tomar banho. Podem estar presentes nesta

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relação ciclos de intensa briga e intensa afeição que, geralmente, dominam suas relações e,
aparentemente, não conseguem viver separados um do outro. Existem famílias, entretanto,
que encorajam a aquisição de habilidades individuais nos gêmeos, favorecendo, dessa forma,
um desenvolvimento saudável. A identificação muito próxima de um gêmeo com o outro
impede que eles se separem e demonstra que suas representações de si e dos objetos estão
extremamente distorcidas. No caso de Karina e Karen percebe-se o discernimento de Maria
em estimular a aquisição da independência, e pode-se exemplificar este fator com a situação
comentada por Maria que este ano na escola vários gêmeos foram separados e que Karina
disse que não iria se separar de Karen:

“Na escola comum, ano passado trocaram alguns gêmeos, de sala, aí a Karina: ‘Ah eu
vou falar com a dona Vera, porque não é para mudar a gente de sala’ Eu falo que a
independência, porque ano passado ficou definido que as crianças ficaram este ano e o
ano que vem, que aí cada uma vai fazer sua aula de música etc e tal.”

Maria parece ter consciência da grande vinculação à qual irmãos gêmeos estão
expostos e procura estimular a independência de cada uma. Já no caso de Luiza e Lúcia, as
intensas brigas podem, como foi dito anteriormente, derivar-se de problemas no processo de
diferenciação entre elas, gerando conflito e rivalidade.

5. Considerações finais

Retomando o objetivo desta pesquisa, ou seja, de buscar compreender como é a


relação entre irmãos a partir de depoimentos das crianças com cegueira e de seus pais, pode-
se apontar algumas características levantadas neste trabalho.
Nota-se que as três crianças entrevistadas buscavam no irmão uma fonte de prazer em
algum grau, independente de sentirem ciúme ou de serem rivais. Luiza buscava em Lúcia
(irmã gêmea) uma companheira, apesar das brigas constantes, e encontrava em Alex (irmão
mais velho) uma figura menos conflituosa; Ricardo também procurava Luís (irmão mais
velho) como companheiro, obtendo sucesso em diversas ocasiões; e Karina, apesar de
compartilhar mais experiências com Karen (irmã gêmea), admirava e identificava-se com
Kelly (irmã mais velha).
A rivalidade entre irmãos apareceu como fator presente nas três famílias, em graus e
manifestações diferentes, desde as demonstrações claras até as veladas. Essa característica da
relação pode ser constatada na resposta dada pelas três crianças à fábula do cordeirinho. (Esta
fábula faz parte do Teste das Fábulas aplicado nos sujeitos de pesquisa, sua temática visa
estabelecer a presença ou não de rivalidade fraterna).. Há ainda expressões de agressividade
contra os irmãos, como no caso de Karina e Luiza. Conforme apontado por Villela (1999), a
ambivalência dos pais em relação à criança com deficiência pode dar origem a
comportamentos reativos de superproteção ou de extrema indulgência que, quando
intensificados, são capazes gerar sentimentos de rivalidade entre os irmãos.
Essa pode ser uma das causas da presença de rivalidade entre os irmãos, em especial
no caso de Ricardo, já que Marina assume claramente que favorece Ricardo em detrimento do
irmão. Outra causa para a rivalidade pode ser encontrada na obra de Bank e Kahn (1982), que
consideram a desorganização e a fragmentação das famílias modernas como uma das causas
da rivalidade. Afirmam estes autores que as mudanças no mundo atual ocorrem de maneira
tão rápida que crianças com um ou dois anos de diferença podem estar sujeitas a experiências
absolutamente distintas e inclusive a formações familiares diferentes. A mudança na
constituição familiar está presente nas três famílias estudadas, uma vez que as crianças com

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cegueira são filhas de pais diferentes dos seus irmãos mais velhos, o que pode ser uma fonte
de conflito e rivalidade entre eles.
Quanto à atitude das mães, sabe-se que elas se constituem como figura de
identificação para a criança nas fases mais precoces da vida, e suas atitudes para com os
irmãos são de extrema importância, pois servem como modelo de identificação. Neste estudo,
apesar das três famílias terem constituições semelhantes, as atitudes das mães são diversas:
Marina parecia dedicar-se de forma maciça a Ricardo; Maria tentava dividir-se entre as três
filhas; e Carmem buscava igualar sua reação às duas irmãs.
Nota-se que todas as mães protegiam seus filhos com cegueira cobrando ações e
delegando responsabilidades aos seus irmãos. Não foi constatado, porém, a percepção delas a
respeito de como seus filhos são impactados por essas delegações. Porém cabe aqui ressaltar
que como a influência da atitude materna na relação de irmãos não consistiu um dos objetivos
deste trabalho, registra-se a importância de pesquisas futuras a este respeito.
Nas três famílias um fator de extrema importância notado nesta pesquisa é que não se
falava sobre a deficiência de forma clara e continente, não dando possibilidade de expressão
para a criança com cegueira de manifestar seus sentimentos frente à cegueira e nem a
oportunidade de discussão desta condição com seus irmãos. Apesar de duas mães afirmarem
que conversavam com seus filhos sobre essa questão, ao exemplificarem a conversa, percebe-
se que não há acolhimento das angústias e ansiedades dos filhos, o que pode influenciar de
forma negativa seu desenvolvimento.
Outro objetivo deste estudo era identificar as atividades que as crianças com cegueira
realizavam com seus irmãos. Constatou-se que todas as crianças entrevistadas
compartilhavam atividades de lazer com seus irmãos como brincadeiras, jogos e passeios. As
três relataram as atividades em comum como fonte de prazer e contentamento; apenas Luiza
comentou pontos negativos nas atividades, tais como brigas. As atividades escolares eram
compartilhadas somente por Karina e Karen, porque eram as únicas a estudarem na mesma
escola.
Alguns dados colhidos nesta pesquisa deram origem a indagações sobre a relação de
irmãos gêmeos quando apenas um deles possui uma deficiência. A relação entre gêmeos já
possui características próprias que divergem da relação fraterna em geral. Quando um deles
possui uma deficiência essa relação torna-se ainda mais intrigante, pois, como fica a
identificação entre eles? Como as mães conseguem lidar com filhos tão semelhantes em idade
e com necessidades, muitas vezes, absolutamente diversas no que se refere ao seu
desenvolvimento? Como não privar o irmão gêmeo sem deficiência de atenção quando o
outro pode necessitar de diversas intervenções?
Outra pergunta gerada a partir desta pesquisa diz respeito às particularidades da
relação entre irmãos de uma criança com cegueira no seu ambiente escolar. Como apenas uma
das crianças estudava na mesma escola que sua irmã não foi possível aprofundar esse assunto.
Portanto, cabe aqui assinalar a importância de esclarecer mais sobre a relação dos irmãos na
escola. Como é estar na mesma sala de aula? Ou na mesma escola?
Deve-se chamar atenção também para a dificuldade de se encontrar pesquisas acerca
de indivíduos com cegueira que levem em consideração seu referencial perceptual não
fazendo assim uma comparação dos mesmos com os videntes. No que se refere a pesquisas
sobre o relacionamento fraterno cabe aqui ressaltar que não foi encontrada nenhuma, o que
mais uma vez aponta para a necessidade de novos estudos sobre o tema.
Constatou-se que a relação entre irmãos é de grande riqueza e importância na vida do
indivíduo. Contudo, não foi possível esgotar a investigação da relação fraterna de crianças
com cegueira nesta investigação por motivos óbvios como o tempo disponível para a
execução da mesma e o número de sujeitos encontrados com características semelhantes às

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buscadas. Tentou-se então, a partir das informações coletadas, delinear características


percebidas pelas crianças com cegueira e suas mães sobre a relação entre irmãos, porém fica
assinalada a importância da continuidade de pesquisas em busca de aprofundar
conhecimentos acerca de famílias com uma criança com deficiência para que os mesmos
possam ser utilizados como recursos nos entendimentos das relações familiares.

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Villela, E.M.B. (1999). As repercussões emocionais em irmãos de deficientes visuais.
Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, SP.

Notas

(1) Todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios para garantir o sigilo da identidade
dos sujeitos.

 - F.V.M. Bazon é Psicóloga (Universidade Estadual Paulista, UNESP), Mestre em


Distúrbios do Desenvolvimento (Universidade Presbiteriana Mackenzie) e Doutoranda em
Educação (USP). Atua como Professora Colaboradora (Departamento de Educação, UEL). E-
mail para correspondência: febazon@usp.br. E.A.F.S. Masini é Pedagoga (USP), Mestre em
Psicologia (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP), Doutora em Psicologia
(PUC-SP), Pós-doutora (USP) e Livre-Docente em Educação (USP). Atua como Professora
Associada (aposentada) na Faculdade de Educação (USP) e Professora da Pós-graduação
Stricto Sensu em Distúrbios do Desenvolvimento (Universidade Presbiteriana Mackenzie).

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A invenção na ponta dos dedos: a reversão da atenção em pessoas com deficiência visual<<-1->>

A invenção na ponta dos dedos: a reversão da atenção


em pessoas com deficiência visual*

(Invention on fingertips: attention reversion in visually impaired people)

Virgínia Kastrup∗∗

Resumo
Diversos estudos têm indicado que a perda de visão produz uma
reorganização do sistema cognitivo em função de novos
investimentos da atenção, que são condição para a reinvenção da
vida cotidiana dessas pessoas. Por outro lado, é cada vez mais
evidente que o campo do perceber envolve um conjunto de
experiências complexas, que vai além da dimensão funcional e
utilitária. Existe uma atenção funcional, que é voltada para a vida
prática, e uma atenção suplementar, que participa dos processos
de invenção. O objetivo do texto é analisar, em pessoas que
perderam a visão, duas mudanças da atenção: o redirecionamento
da visão para o tato e a reversão, na qual a atenção sofre uma
mudança de qualidade. A argumentação recorre a estudos de
psicologia experimental, aos trabalhos de Bergson, Depraz, Varela
e Vermersch, bem como a uma pesquisa de campo realizada numa
oficina de cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida.
Palavras-chave: Invenção; Atenção; Deficiência visual.

investigação da atenção ganhou relevo a partir da década de 1990 em

A função da retomada dos estudos da consciência pelas ciências cognitivas,


mas os estudos sobre a atenção em pessoas cegas e com baixa visão ainda
são pouco numerosos. O presente trabalho busca um entendimento da atenção
em pessoas com deficiência visual adquirida, cuja cognição é distinta da de

· Texto recebido em fevereiro/2007 e aprovado para publicação em março/2007.


*
Agradeço ao Instituto Benjamin Constant e, sobretudo, aos participantes da oficina e às ceramistas Clara Fonseca e Dóris
Kelson, que acolheram gentilmente a equipe da pesquisa. Agradeço também aos bolsistas de iniciação científica Paula
Rego Monteiro Marques Vieira, Luciana Manhães, Filipe H. Carijó e Maria Clara de Almeida, que participaram de todas
as etapas da pesquisa que deu origem a este texto. Agradeço também ao CNPq, pelo apoio.
**
Doutora em Psicologia, professora do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, e-mail: vkastrup@terra.com.br
• O Processo editorial deste artigo foi acompanhado pelo Editor Responsável e pelos membros da Comissão Executiva.

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Virgínia Kastrup
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cegos congênitos. São considerados cegos congênitos pessoas que nunca viram.
Seu sistema cognitivo é, desde o nascimento, constituído com base nos demais
sentidos e sem referência a elementos visuais. Cegos precoces são aqueles que
perderam a visão entre seis meses e um ano de idade. Como o diagnóstico da
cegueira pode não ser imediato, a diferença mais significativa não é entre cegos
congênitos e precoces, mas entre precoces e tardios, em função da existência,
nos últimos, de referências visuais e coordenações neurais entre as modalidades
sensoriais, que ocorrem, em média, até os três anos de idade (Hatwell, 2003).
Os cegos tardios constituem casos bastante efetivos de deficiência visual
adquirida, sendo palco de processos de aprendizagem e, em última análise, de
uma exigência de profunda reinvenção cognitiva. O funcionamento cognitivo
na cegueira adquirida guarda, por certo, diversos pontos em comum com o
dos videntes e dos cegos congênitos, todavia é fundamental investigar suas
possíveis especificidades.
Algumas das transformações cognitivas da deficiência visual adquirida estão
diretamente relacionadas à redução da eficiência de habilidades e hábitos
anteriores, ou seja, de comportamentos caracterizados pelo automatismo, como
verter água num copo, colocar pasta na escova de dente ou caminhar pela rua.
O comportamento automático é um comportamento sem atenção. Sua
utilidade na vida prática é justamente liberar a atenção para outras atividades.
Assim, quando um vidente caminha para o trabalho, seguindo seu percurso
habitual, libera a atenção para pensar em algo que está lhe preocupando, em
um compromisso que terá no final da tarde, para fazer projetos ou evocar
lembranças do dia anterior. A perda da visão, quando se instala, produz uma
redução das ações automáticas e um aumento da participação da atenção nas
mais simples tarefas da vida cotidiana.
No domínio da psicologia cognitiva da deficiência visual, o tema da atenção
surge no âmbito da discussão sobre o problema da compensação sensorial.
Segundo as teorias mais tradicionais da compensação, a pessoa cega possui, em
função da ausência da visão, um melhor desempenho de sentidos como o tato
e a audição. Presente já em D. Diderot (1979) e bastante disseminada no
senso comum, a idéia de compensação tem sido objeto de recorrentes análises.
Vygotski (1997) afirma que a melhora no desempenho dos demais sentidos
não é uma dádiva divina e nem pode ser explicada por uma reorganização
fisiológica imediata, mas resulta de um processo de construção, em que ganham
destaque vetores sociais e culturais, entre os quais se destaca a linguagem.
Embora bastante utilizada, a noção de compensação não deixa de colocar muitos
problemas. O apelo excessivo a ela pode levar a pensar que todo o problema da
reorganização cognitiva dos que perderam a visão consiste em compensar uma

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A invenção na ponta dos dedos: a reversão da atenção em pessoas com deficiência visual<<-1->>

perda para, enfim, continuar conhecendo o mundo como o fazem os videntes,


apenas seguindo, para isto, caminhos indiretos e mais longos. Enfim, se chamada
a explicar tudo, a noção de compensação acaba por não explicar grande coisa,
além de obscurecer a dimensão inventiva que marca tal reorganização cognitiva,
na qual a percepção tátil ganha papel de destaque (Belarmino, 2004; Rego-
Monteiro, Manhães & Kastrup, 2007).
Ivette Hatwell (2003) afirma que os estudos atuais dão indicações que a
cegueira não modifica diretamente os limites sensoriais de acuidade, mas orienta
a atenção para signos não visuais, além de melhorar os procedimentos
exploratórios do tato e da audição. Hatwell substitui a explicação psicofísica
da redução dos limiares de sensibilidade pela tese do redirecionamento da
atenção. A perda da visão não resulta imediatamente numa potencialização
dos demais sentidos, mas, ao aprender a redirecionar a atenção para eles, a
pessoa tira partido de signos que até então não faziam parte de seu domínio
cognitivo. A atenção a tais signos é de suma importância para o desempenho
de atividades da vida prática, como aquelas da escola, do trabalho e da vida
social (Hatwell, 2003, p. 67-68).
Os estudos psicológicos sobre a atenção têm identificado algumas de suas
características e propriedades. Trata-se de um processo que se acopla a outros
processos cognitivos, como a percepção, a memória e o pensamento. Sua função
é de modulação dos demais processos, podendo amplificá-los, atenuá-los ou
inibi-los (Camus, 1996). A atenção é, nessa medida, o fundo de flutuação da
cognição, sendo também uma atitude cognitiva (Vermersch, 2002a; 2002b).
Ao longo da história da psicologia, alguns autores têm enfatizado suas funções
de adaptação e de seleção (James, 1945; Ribot, 1931), e isto se acentua nos
modelos cognitivos baseados no processamento de informação (Broadbent,
1958; Shiffrin & Schneider, 1977). Mas já nos estudos seminais de William
James (1945) a função seletiva da atenção não pode ser separada da fluidez
atencional, que acompanha o fluxo do pensamento (Ferraz & Kastrup).
Trabalhos recentes têm demonstrado que a atenção não é um processo binário,
0-1, atenção-desatenção, como aparece, de forma mais ou menos explícita, em
muitos textos sobre o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade – TDA/
H. O avanço dos estudos tem evidenciado a necessidade de considerar a atenção
um processo heterogêneo, cujo funcionamento é complexo e composto por
distintas variedades e gestos atencionais (Vermesch, 2002a, 2002b; Camus,
1996; Mialet, 1999; Kastrup, 2004, 2007).
A maioria dos estudos em psicologia experimental enfatiza o valor funcional
e mesmo instrumental da atenção, o que não é destituído de importância do
caso da deficiência visual adquirida. Para as ações da vida prática, é preciso

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Virgínia Kastrup
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aprender a prestar a atenção aos signos que chegam pela audição e pelo tato:
reconhecer pessoas pela voz, ouvir o ruído dos carros para atravessar a rua, usar
as sensações táteis dos pés e aquelas transmitidas pela bengala, perceber signos
auditivos para saber a posição e distância de objetos do ambiente etc. É também
preciso que se aprenda a distribuir a atenção entre mais de um sentido numa
atividade complexa, como circular pela cidade, assistir uma aula ou participar
de uma reunião social.
No entanto, é incontestável que nem todos os problemas da cegueira dizem
respeito a questões de ordem prática (Oliveira, 2002). Um homem que estava
perdendo gradativamente a visão como efeito de uma diabete persistente deu
o seguinte depoimento, que expressa bem esta situação: “Quando a gente perde
a visão, a gente fica muito pra baixo […]. Ainda mais eu, que era uma pessoa
que gostava de viajar, adorava ver esse Rio de Janeiro, adorava ver o Corcovado,
adorava ver…” (P2). Observa-se em sua fala que os problemas a serem
enfrentados pelas pessoas que perdem a visão envolvem, por certo, a
possibilidade de caminhar pela rua, trabalhar e manter uma vida autônoma,
mas também poder contemplar o mundo, entrar em contato com coisas bonitas
ou interessantes, experimentar contentamento com certas percepções e ter
experiências que nada tem a ver, ao menos diretamente, com os problemas da
vida prática. Nessa direção, Oliver Sacks (1995) narra o caso de um pintor
que, tendo perdido a visão de cores em função de um desastre de automóvel,
enfrentou sérios problemas em relação, por exemplo, à alimentação e à sua
vida sexual. A comida cinzenta provocava náuseas e sua mulher parecia ter cor
de rato, deixando de provocar nele qualquer atração. Os exemplos mostram
que o campo do perceber envolve um conjunto de experiências complexas,
que vai além da dimensão funcional e utilitária. As experiências perceptivas
não utilitárias, muitas vezes, mobilizam uma atenção de qualidade especial
que, conforme veremos, está envolvida nos processos de invenção de mundo e
de si. É preciso sublinhar, entretanto, que não estamos nos referindo apenas a
situações excepcionais de invenção, mas a de diferentes experiências que se
dão no âmbito da vida cotidiana transpondo, em certos momentos, sua
dimensão meramente pragmática (Kastrup, 1999).
Tomando como foco o processo de reconstrução do sistema cognitivo das
pessoas que se tornam cegas, nosso objetivo será analisar dois problemas relativos
à atenção: o redirecionamento e a mudança de qualidade. O primeiro problema
– o do redirecionamento da visão para o tato e outros sentidos – envolve a
atenção funcional, voltada para a vida prática, em que predominam uma atitude
recognitiva e atos de focalização e de prestar atenção. Trata-se aí de uma atenção
submetida a uma finalidade. O segundo problema envolve uma atenção

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A invenção na ponta dos dedos: a reversão da atenção em pessoas com deficiência visual<<-1->>

suplementar, que não possui caráter funcional e utilitário, no qual prevalece


uma atitude de abertura, contato e receptividade. A reversão na qualidade da
atenção foi tematizada por N. Depraz, F. Varela e P. Vermersch (2003; 2006) e
por H. Bergson (2006a; 2006b; 2006c). Ao discutir a mudança na qualidade
da atenção, Depraz, Varela e Vermersch (2003) referem-se ao movimento que,
no contexto da epoché fenomenológica, faz com que a atenção passe de uma
atitude de busca para uma atitude de abertura ao encontro, que corresponde
ao gesto de deixar-vir (letting-go). Sublinham, também, que essa reversão da
atenção não é imediata, mas requer um tempo de espera em que se enfrenta
um vazio, algumas vezes difícil de sustentar. Em diversos momentos de sua
obra, Bergson faz referência a uma atenção suplementar (2006c) e ao fenômeno
da conversão da atenção (2006b). A característica dessa segunda atenção é a
ausência do interesse, que, por sua vez, define a atenção à vida prática, que é
seletiva e envolvida com a ação. Bergson afirma ainda que a atenção suplementar
inverte o fluxo cognitivo habitual e promove o alargamento da percepção,
possibilitando uma apreensão direta do objeto. Ela o faz com o desaparecimento
momentâneo do recorte utilitário operado pelo percebedor, que se sobrepunha,
através de seus interesses, ao próprio objeto. Além de tomar como referência
tais colocações, nos baseamos numa pesquisa de campo realizada numa oficina
de cerâmica para portadores de deficiência visual adquirida, no Instituto
Benjamin Constant,1 no Rio de Janeiro, com uma amostra de 18 participantes.
Foi utilizado o método da cartografia (Deleuze & Guattari, 1995; Rolnik,
2006; Kastrup, 2007) para a observação das aulas de cerâmica e para elaboração
dos relatos. Foram também realizadas entrevistas de explicitação (Vermersch,
2000) com nove participantes (P) e duas professoras. Por meio dessas estratégias
metodológicas buscou-se examinar as mudanças da atenção que participam da
reconstrução cognitiva e da reinvenção da vida de pessoas que perderam a visão.

O redirecionamento visuo-tátil da atenção: algumas


distinções entre o tato e a visão
Muito se tem destacado a relevância funcional do tato na vida prática e
cotidiana das pessoas cegas. O tato é considerado o sentido mais apropriado
para fornecer as referências para deslocamento no espaço, que deixaram de
existir com a perda de visão, e é por meio dele que a maior parte do
conhecimento espacial deve ser reconstruída. Investida pela atenção, a audição
também tem papel importante na discriminação de estímulos e na detecção de

1
O Instituto Benjamin Constant é um centro de referência nacional para as questões da deficiência visual, ligado ao
Ministério da Educação. Possui uma escola, capacita profissionais da área, assessora escolas e instituições, oferece consultas
gratuitas à população, possui oficinas de reabilitação, produz material especializado, impressos em braile e publicações
científicas. A oficina de cerâmica, na qual foi realizada a pesquisa, é ligada à Divisão de Reabilitação e é coordenada pela
ceramista Clara Fonseca.

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Virgínia Kastrup
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obstáculos, tal como ocorre no fenômeno de ecolocalização. Pela localização


dos objetos por sons, que são, às vezes, inaudíveis para os videntes, a audição
pode vir a dar aos cegos indicações sobre a direção e a distância dos objetos. A
audição serve, sobretudo, à apreensão de signos temporais e sucessivos, podendo
perceber ainda as modulações de intensidade e de timbre da voz, muito
importantes nas relações sociais. A audição parece mais dependente da ordem
sucessiva de apresentação dos estímulos que o tato, que pode criar, ele próprio,
uma ordem de apreensão por meio da exploração com as mãos e os dedos.
A principal característica do tato é que ele é uma percepção proximal, de
contato, diferentemente da visão e da audição, que são sentidos que possibilitam
a percepção à distância. O tato possui um campo perceptivo exíguo, sendo
quase nulo quando há ausência de movimento exploratório voluntário. Por
esse motivo, o princípio de figura-fundo não dá conta de modo adequado da
percepção tátil. Segundo Gentaz e Hatwell (2000, p. 130), em função do
caráter seqüencial da exploração e da possibilidade de modificar à vontade o
tamanho do campo perceptivo tátil, o tato é menos sensível que a visão às leis
gestaltistas de organização da configuração espacial. Nessa direção, outros
estudos têm revelado a não sensibilidade do tato à lei da proximidade (Hatwell,
Orliaguet & Brouty, 1990) e ao princípio de simetria (Locher & Wagemans,
1993; Wagemans, 1995; Walk, 1965).
Por ser uma percepção de contato, o tato tem uma capacidade cognitiva
geralmente intensificada por movimentos de exploração envolvendo dedos,
mãos e braços. Neste caso, percepções cinestésicas se reúnem a percepções
cutâneas, resultando numa percepção tátil-cinestésica também chamada
percepção háptica. G. Revesz (1950), J. Gibson (1962) e I. Hatwell (2003)
definem a percepção háptica como uma percepção por fragmentos, aos pedaços,
sempre sucessiva e às vezes parcial. Enquanto a visão dá lugar a uma percepção
distal e global da cena, o tato fornece um conhecimento por partes, isto é,
menos estruturado. Os movimentos de exploração são efetuados sucessivamente,
o que confere ao conhecimento tátil um caráter seqüencial e uma apreensão da
forma que é mais lenta que pela visão. Diferente do tato, a visão pode perceber
a forma, o tamanho e a cor dos objetos em frações de segundos, sem o recurso
a movimentos de exploração mais específicos, embora haja exploração com os
olhos. Por esse motivo, o tato sobrecarrega a atenção e a memória de trabalho,
pois requer operações cognitivas de integração e síntese para chegar a construir
uma representação2 unificada do objeto.

2
A noção de representação é utilizada aqui em sentido pragmático, sem referência a fundamentos, significando um modo
particular de conhecer. Nos termos de Francisco Varela, trata-se aqui da representação em sentido fraco, e não em sentido
forte, como é utilizada pelo cognitivismo computacional. A representação em sentido forte traz consigo uma tomada de
posição ontológica – há um mundo prévio que lhe serve de fundamento – e epistemológica – o conhecimento é objetivo
quando corresponde a este mundo. Cf. Varela, Thompson e Rosch (2003).

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A sobrecarga da atenção no uso do tato não parece, entretanto, uma regra.


Após um processo de aprendizagem, o reconhecimento tátil pode se tornar
rápido e automático nos cegos, dispensando a atenção, da mesma maneira que
ocorre quando um vidente pega um objeto na bolsa sem olhar, abotoa a camisa
ou pisa nos pedais do automóvel. É curioso notar que a maior parte dos trabalhos
sobre percepção háptica em deficientes visuais é voltada para o estudo de
processos de identificação e reconhecimento de objetos. O reconhecimento de
um objeto consiste em situá-lo em categorias de nossa experiência passada
(Klatzky, Lederman & Metzger, 1985; Lederman & Klatzky, 1997). Nos casos
estudados, o reconhecimento háptico revela-se rápido e preciso, levando em
conta propriedades materiais como textura, peso e temperatura.
Segundo a tese da especialização das modalidades sensoriais, defendida por
Lederman e Klatzky (1993), cada modalidade sensorial é mais habilitada para
o tratamento de certas propriedades dos objetos e menos habilitada para outras.
Em razão de seu modo de exploração, o tato não tem bom desempenho na
percepção espacial (forma, tamanho e cor), mas funciona com excelência na
percepção de propriedades materiais. No entanto, é preciso destacar que o tato
pode efetivamente chegar a um conhecimento da forma. Mesmo por um
processo mais lento e mais laborioso que aquele da visão, o tato pode atingir,
para tarefas de reconhecimento, resultados bastante semelhantes (com exceção
do limite da cor), fazendo com que, em termos de produto final, a distinção
entre tato e visão seja atenuada.
O trabalho que acompanhamos na oficina de cerâmica consistia, em diversos
momentos, em desenvolver uma percepção háptica com atenção, levando a
perceber e mesmo a aprender a reconhecer formas através do tato. Certo dia,
uma participante (P4) estava fazendo uma vasilha com o barro. A professora a
orientava no sentido de tocar a peça que estava criando, para perceber o
andamento do trabalho e o que ainda precisava ser retocado. A professora
dizia: “Vai passando a mão ao redor da peça e vai sentindo como ela está
ficando. Está vendo onde ela precisa ser consertada?” A moça foi contornando
a peça com as mãos, com um toque bem leve e paciente. “Agora estou sentindo.
Este lado aqui está um pouquinho mais alto que o outro, não é?” E a professora
acrescentou: “Sempre que você estiver fazendo uma peça, tenta tocá-la e senti-
la como um todo, porque assim você vai começar a visualizá-la melhor e vai ter
uma noção de como está ficando.” Fica claro na fala da professora que neste
momento o tato é utilizado para suprir a falta da visão. Trata-se aqui de uma
espécie de tato ótico, cujo objetivo é perceber o objeto como um todo. Para
isso, procede pela construção, passo a passo, da percepção da forma. A percepção
da forma resulta então de um movimento voluntário de exploração atenta

Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 69-90, jun. 2007 75


Virgínia Kastrup
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envolvendo uma seqüência de sensações táteis elementares, que culmina numa


síntese.
Observamos que a aprendizagem anterior pode constituir um obstáculo
para o direcionamento da atenção para o tato, tão necessária àqueles que
experimentam um processo de perda da visão. No caso de pessoas com baixa
visão, foi observado que a fixação no resíduo visual pode causar dificuldades
para a utilização plena dos recursos da percepção tátil. Uma participante
descreveu esta situação: “Era bom quando eu tinha olho, porque o olho mandava
a mão fazer e a mão fazia. Agora, sem olho, quer dizer, no tato […], a relação
fica muito, assim, de ansiedade. Porque como eu tenho resíduo visual, eu quero
ver, mas eu não estou vendo. Então eu não sei mais mandar na minha mão.
Porque eu quero que a minha mão faça através do olho, mas a mão não obedece.
Quando eu quero que o tato funcione de verdade eu fecho o olho.” (P9) Note-
se que o fechamento voluntário do olho é a estratégia desenvolvida pela mulher
para se livrar do investimento atencional nos signos visuais e então investir a
atenção no tato de maneira mais eficiente. Embora residual, a visão ainda é o
sentido que domina seu sistema cognitivo e a hegemonia da visão acaba por
dificultar o direcionamento da atenção para a percepção e a exploração tátil.
Até algumas décadas atrás se acreditava que havia uma atenção específica
para cada modalidade sensorial, ou seja, que visão, audição e tato dispunham
de recursos atencionais próprios (Wickens, 1980; 1984). Hoje, prevalece a
tese de uma distribuição da atenção entre as diferentes modalidades. Foram
feitos estudos com sujeitos videntes sobre distribuição da atenção em tarefas
bimodais, visando produzir conhecimento para otimizar situações como a do
piloto de avião, que deve receber e tratar vários sinais ao mesmo tempo. Pensou-
se que, para evitar sobrecarga da visão, seria mais eficiente que os estímulos
fossem enviados por diferentes modalidades sensoriais. No entanto, estudos
consecutivos mostraram que a atenção a uma modalidade repercute sobre as
demais. Sucessivos deslocamentos intermodais não esperados sobrecarregam a
atenção, fazendo com que a atenção multimodal pareça ter um custo cognitivo
maior do que a unimodal (Spence & Driver, 1997). Os estudos indicaram
também que o custo da divisão da atenção entre modalidades parece ligado à
prática maior ou menor com as modalidades concernidas, como mostra a
comparação entre cegos e videntes (Kujala et al., 1997).
Consideramos, entretanto, que a sobrecarga atencional evidenciada nas
tarefas multimodais não pode ser dissociada do contexto em que tais pesquisas
foram realizadas. É importante notar que os experimentos investigam situações
de realização de tarefas, que requerem atos de focalização. Por outro lado, é
possível observar que as situações multimodais, que envolvem mudança de

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direção e atenção dividida entre diferentes modalidades, são freqüentes na vida


diária de pessoas cegas, assim como na de videntes. Andar de ônibus, fazer
compras no supermercado ou almoçar num restaurante são atividades
multimodais que não parecem sobrecarregar de modo importante a atenção.
Ocorre que nos experimentos enumerados anteriormente a atenção é voltada
para a realização de tarefas, requerendo, principalmente, atos de focalização e
de prestar atenção. Ao que tudo indica, é isto que sobrecarrega a atenção, e
não a mudança de direção para diferentes modalidades sensoriais.
Nesse sentido, foi curioso ver surgir nas entrevistas depoimentos de
participantes acerca da atenção distribuída entre o tato e a audição, apontando
que a atenção aos signos auditivos, dependendo da situação, podia, inclusive,
criar condições propícias ao trabalho com a cerâmica. Alguns afirmaram que
não gostam de falar enquanto trabalham, mas que ouvir conversas paralelas
não atrapalha. Já ouvir música e cantar “ajuda na inspiração e na concentração”.
“Quanto menos [a gente fala] melhor” (P7). “Eu me concentro, eu me
concentro de tal maneira que eu não converso. Só converso se precisar de uma
orientação […]. Eu ouço tudinho. O que eles estão conversando, eu estou
ouvindo, mas eu estou dedicado ali no meu trabalho” (P1). “Na hora que eu
estou fazendo, eu me isolo mesmo. Agora, isto não quer dizer que eu não
escute o meu exterior […]. Eu sempre gostei de estudar ouvindo música. A
música para mim não perturba” (P5). A música parece propícia para instalar
uma atenção aberta e receptiva, capaz de cavar um vão no seio da estreita
conexão sensório-motora que predomina na vida prática. A experiência com a
música, ouvindo ou cantando, não é de reconhecimento, mas de contato,
encontro, sem mediação da representação. Ouvir música concorre para
desmontar a relação sujeito-objeto. É um convite ao encontro. O sujeito não
tem uma representação da música, mas mistura-se com ela, entrando em contato
com um plano de forças moventes. Ouvir ou mesmo cantarolar uma música
não requer o ato de focalização ou de prestar atenção. Ao contrário do ato de
falar, que requer uma relação ativa com a língua para a construção de frases e
de sentido, e que por isto exige uma atenção mais focada, ouvir música e
cantar mobilizam uma atenção de fundo, que, ao invés de interferir na atenção
concentrada na argila, parece ajudar a guiá-la e sustentá-la.

A reversão da atenção: a mudança de qualidade e o problema da conversão

A mudança de qualidade
O problema da mudança na qualidade da atenção foi discutido por Depraz,
Varela e Vermersch (2003; 2006). Os autores referem-se ao movimento que,

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no contexto da epoché fenomenológica, faz com que a atenção passe de uma


atitude de busca para uma atitude de abertura ao encontro, que corresponde
ao gesto de deixar-vir (letting-go). Afirmam que o movimento de busca é o
movimento espontâneo, que é próprio da atitude natural. A reversão da atenção
é, por sua vez, um gesto mais raro e mais difícil, posto que exige a reversão de
tal atitude. Sublinham ainda que tal reversão da atenção não produz efeito
imediato. Ela requer – e daí advém uma de suas maiores dificuldades – um
tempo de espera em que se enfrenta um vazio, algumas vezes difícil de sustentar.
A atenção precisa ser concentrada e, ao mesmo tempo, aberta. Trata-se de
atenção receptiva, sem ser passiva, já que depende de um gesto específico. Mas
esse gesto não equivale ao prestar atenção.
Um dos exemplos explorados por Depraz, Varela e Vermersch (2003) é a
visão estereoscópica. A visão estereoscópica, ou em 3D, é uma experiência em
que uma percepção tridimensional emerge de um desenho bidimensional, após
alguns instantes de fixação do olhar. O foco do olhar não pode incidir em
qualquer ponto do desenho, mas deve pousar na ponta do nariz. Depraz, Varela
e Vermersch apontam que é apenas no momento em que abandonamos a
atitude de busca da forma e eliminamos o esforço da atenção voluntária,
sustentando uma atitude de espera atenta, que uma imagem estável pode surgir.
Num primeiro momento, a atenção perde o foco, atravessando um tempo em
que nada se distingue. Então, adotando uma atitude atencional de deixar-vir
(letting-go), a forma emerge subitamente, introduzindo uma mudança clara na
percepção. Esse fenômeno envolve uma desaceleração do tempo, que contrasta
com a velocidade cognitiva habitual. Além da velocidade mais lenta, a
dificuldade advém de ser preciso entregar-se a um movimento involuntário.
Trata-se aí de uma experiência pouco usual, que é paradoxal no sentido em
que consiste em adotar voluntariamente uma atitude involuntária. Ocorre
controle das condições da atenção, mas não do conteúdo que virá a preencher
o vazio.
Além da visão estereoscópica, outras práticas evidenciam uma reversão da
atenção que busca para a atenção que encontra. No campo da deficiência visual,
Paul Bach-y-Rita (1972) desenvolveu, na década de 1970, o TVSS – Tactile-
Visual-Substitution-System, que consiste num dispositivo que converte uma
imagem visual, captada por uma câmera de vídeo, numa imagem tátil. Essa é
produzida por uma matriz de vibradores, que é colocada nas costas ou no
tórax da pessoa. Sem qualquer treino, uma pessoa cega é capaz de detectar
alvos simples e de se orientar com eles, além de discriminar linhas horizontais
e verticais e também o sentido de alvos móveis. O dispositivo requer alguma
aprendizagem para reconhecimento de formas geométricas simples. Seu uso é

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menos adequado para objetos dotados de diferentes orientações e para o


reconhecimento de rostos, além de não servir para percepção de cores. Com a
evolução técnica, o dispositivo passou por um processo de miniaturização,
melhorou a definição da imagem e foi adaptado para bebês (Sampaio & Dufier,
1988; Bach-y-Rita & Sampaio, 1995). Se a câmera não for manipulada pela
pessoa cega, e sim pelo experimentador, não são obtidos os resultados esperados
(Sampaio, 1994). O próprio sujeito precisa manipular ativamente a câmera,
com a cabeça ou com as mãos, usando movimentos direita-esquerda, alto-
baixo, zoom etc, no sentido de produzir uma constante variação de estimulação.
Só assim ele pode vir a ter a experiência de que o objeto percebido está na sua
frente, o que é condição para que ele consiga utilizá-lo para sua orientação.
O TVSS produziu um grande debate acerca de suas possibilidades e limites.
Além de uma tecnologia para pessoas com deficiência visual, os estudos tiveram
um alcance epistemológico e, por evidenciar a importância da ação para a
cognição, transcenderam o domínio da psicologia cognitiva da cegueira. Varela,
Thompson e Rosch (2003) ressaltam sua relevância em destacar o papel da
ação na cognição. Afirmam: “Quando a pessoa cega comporta-se ativamente
dessa forma, depois de poucas horas de experiência ocorre uma notável
emergência: ele não interpreta mais as sensações da pele como tendo relação
com o corpo, mas como imagens projetadas no espaço sendo exploradas pelo
‘olhar’, dirigido pelo corpo, da câmera de vídeo. Então, para experienciar ‘objetos
reais lá fora’, ele deve dirigir a câmera ativamente (com a cabeça ou as mãos).”
(Varela, Thompson & Rosch, 2003, p. 179) Lenay et al. (2000, p. 294) também
comentam que o dispositivo constitui um forte questionamento do modelo
cognitivo computacional, não apenas de processamento linear e seqüencial,
mas também de processamento paralelo, que pressupõe uma informação
passivamente recebida. Segundo os autores, o TVSS, ao apontar a
indissociabilidade entre percepção e ação, constitui uma “prova empírica direta”
da construção progressiva das representações, baseada na regulagem constante
entre ação e sensação. Para os autores, o TVSS não substitui a visão e não faz
ver, no sentido pleno do termo, mas constitui uma prótese efetiva no que
concerne à dimensão utilitária da percepção.
No que diz respeito ao funcionamento da atenção durante o uso do
dispositivo, pode-se notar que este exige, em primeiro lugar, um
redirecionamento. Como observa E. Pacherie (1997), a sensação é tátil, mas a
percepção a que ele dá origem é visual. Em outras palavras, a sensação é tátil,
portanto próxima do corpo, mas para ter a experiência de distalização, ou seja,
do objeto real, na frente, a pessoa não pode prestar atenção no próprio corpo.
É necessário que a atenção não se detenha nas costas para que a experiência do

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Virgínia Kastrup
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objeto “lá fora” possa emergir. Em segundo lugar, a percepção distal, do objeto
“na frente”, requer uma mudança na qualidade da atenção que revela
semelhanças com aquela da visão estereoscópica. A emergência da percepção
do objeto se faz a partir de certo deslocamento da atenção. É abandonando a
atitude de busca e adotando uma atitude de receptividade ativa que a atenção
aberta vem preenchida por um conteúdo. Assim, Paul Bach-y-Rita e Eliana
Sampaio, além de produzirem um dispositivo para auxiliar deficientes visuais,
que dá evidências do papel da ação na cognição, dão também indicações da
mudança da qualidade da atenção à qual se referem Depraz, Varela e Vermersch
(2003).
A cartografia na oficina de cerâmica trouxe situações que também revelam
a reversão da atenção. O trabalho com a cerâmica não se limita à atenção
funcional, caracterizada por uma atitude cognitiva de busca e em que
predominam atos de focalização e de prestar atenção voltados para o
reconhecimento e a ação. Ela mobiliza uma atenção suplementar durante os
processos de criação, que se caracteriza por uma atitude cognitiva de abertura
ao encontro de algo que não se buscava. A atenção suplementar surge quando
o sujeito sai da posição de piloto da atenção, ou seja, deixa a atitude intencional
e desmancha o foco na realização de tarefas.
Uma das participantes descreveu a dificuldade em perceber, através do tato,
a forma de uma peça que ela havia moldado. “Quando eu fiz o meu primeiro
rosto, o primeiro rosto mesmo de escultura, eu não conseguia ver o rosto. Eu
estava com a bola na minha mão, construindo o nariz, o olho, a boca, e eu
pegava, e isso me dava uma aflição tão grande, tão grande… E eu não conseguia,
eu não conseguia ver o rosto ali com a minha mão. Então eu apalpava com as
duas mãos, a cabeça na minha mão e eu apalpando e alisando e eu não via”
(P4). O problema que se evidencia na criação de peças de cerâmica é que nem
sempre a percepção, mesmo a do próprio ceramista, é convocada ao
reconhecimento. A participante comentou sua aflição ao tentar reconhecer o
rosto que ela própria esculpia. “Se você pegar numa caneca, você sabe que é
uma caneca, mas se você pegar num objeto abstrato, você não vai saber que
aquilo é um objeto, é uma coisa qualquer. Você não sabe o que é, pode parecer
várias coisas, mas não é realmente aquilo que é com a luz acesa. Assim era eu
com aquele rosto. Eu pegava no rosto, na peça, na argila e não via o rosto […].
E olha que ele cabia na palma de minha mão. Eu passava assim e não via. Uma
coisa muito estranha. Me deu muita aflição, eu fiquei muito angustiada. Eu
queria tirar dali um rosto, mas eu não conseguia ver um rosto, sabe? Foi muito
difícil pra mim” (P4). O fato de a mulher não reconhecer o objeto que ela
própria estava criando atesta o quanto o processo de criação se dá, em parte,

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fora de foco, e sem um controle absoluto por parte do eu. Como a pessoa não
coloca na cerâmica um objeto representado dentro da cabeça, mas a criação se
dá através de um movimento de composição entre a idéia e a matéria fluida do
barro (Kastrup, no prelo),3 a relação com o objeto criado nem sempre é de
reconhecimento imediato. A experiência pode ser mesmo de estranhamento.
A mesma mulher continuou falando de sua experiência.
Aí a professora virou pra mim e falou assim: “Deixa o rosto surgir
naturalmente, deixa que ele vai surgir, relaxa que ele vai surgir.” E
eu fiquei com aquilo ali, respirei fundo, tentei relaxar, aí eu fui e
coloquei a mão… […] A cabeça na minha mão […], e eu não
conseguia ver um rosto naquilo que eu tava fazendo. Se eu pegasse
no nariz eu sabia que era um nariz, se eu pegasse na boca eu sabia
que era a boca, mas num todo eu não conseguia ver a peça. E foi
um processo muito lento, de muitos dias. Eu acho que eu levei
uns dois, mais de um mês pra fazer o primeiro rosto. Até que eu
consegui passar a mão e ver. […] Ela falou no primeiro momento
que eu comecei, mas eu levei mais de um mês. (P4)
Quando a professora aconselha a “relaxar”, parece que o intuito é fazer com
que a mulher abandone a atitude de busca voluntária de reconhecimento da
forma, como se fosse preciso deixar de buscar para, enfim, encontrar. Em termos
de atenção, trata-se de uma orientação para uma mudança de qualidade, para
uma atitude de letting-go. Só assim ela pôde vir a encontrar o que não buscava
mais.

A conversão da atenção
Bergson distingue dois tipos de percepção. A primeira é voltada para
interesses práticos e é assim definida: “Auxiliar da ação, ela isola, no conjunto
da realidade, aquilo que nos interessa; mostra-nos menos as coisas do que o
partido que delas podemos tirar. Antecipadamente as classifica, antecipadamente
as etiqueta; mal olhamos o objeto, basta-nos saber a que categoria ele pertence”
(Bergson, 2006b, p. 158). A segunda é descrita com a percepção do artista:
“Quando olham para alguma coisa, vêem-na por ela mesma, e não mais para
eles; percebem por perceber – por nada, pelo prazer” (Bergson, 2006b, p. 158).
Por este desprendimento dos interesses do eu, possuem “uma visão mais direta
da realidade”. Segundo Bergson é por um deslocamento da atenção que o
espírito se distancia dos interesses que limitam a percepção para chegar a sua
ampliação. Denomina conversão o movimento de transformação da atenção
3
Kastrup, V. (No prelo). O lado de dentro da experiência: atenção a si e produção de subjetividade numa oficina de
cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida.

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Virgínia Kastrup
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funcional na atenção suplementar. Adverte ainda que habitualmente predomina


a atenção funcional, mas existem episódios que concorrem para a dita conversão.
A conversão brusca da atenção é narrada pelos afogados, que vêem, em poucos
segundos, sua memória desfilar inteiramente. A morte iminente ou emoções
fortes também operam a conversão da atenção, mas pequenas conversões são
relativamente freqüentes na experiência de cada um de nós. A experiência com
a arte provoca, muitas vezes, a inversão do fluxo cognitivo habitual, concorrendo
para o alargamento da percepção. Bergson afirma ainda que esta atenção
suplementar pode ser cultivada e educada (Bergson, 2006). A educação da
atenção consiste, na maior parte das vezes, em “retirar seus antolhos, em
desabituá-la do encolhimento que as exigências da vida lhe impõem” (Bergson,
2006b, p. 160).
A perda da visão pode ser um episódio de transformação do funcionamento
atencional e de intensificação de movimentos de conversão. Bergson comenta
ainda que visão é “o batedor do tato” (Bergson, 2006b, p. 170), antecipando-
se a ele e preparando a ação no mundo. Comprometida com a ação, a visão
recorta, do conjunto do campo, figuras relativamente estáveis, deixando de
lado o fundo de duração e a mudança que existe por trás das formas estáveis.
Mas a inversão do curso cognitivo habitual não é fácil. Encontra resistências
nos hábitos anteriores e exige esforço. De todo modo, é por meio da atenção
suplementar que se promove o alargamento da percepção, possibilitando uma
apreensão mais direta do objeto.
Durante os processos de criação na oficina de cerâmica a atenção suplementar
comparecia, por exemplo, no momento em que se tinha uma idéia. Foram
também observados indícios da reversão da atenção quando havia mudança de
idéia ao longo da elaboração da peça. Um participante afirmou “Você vai
fazendo alguma coisa e na hora você muda. […] Você fica tão desligado, que
acaba esquecendo aquela idéia que você tinha, e você parte para uma outra
coisa, na hora ali” (P6). Trabalhar “desligado” é trabalhar solto, sem a atenção
comprometida em atingir um objetivo predeterminado. Isto significa que a
idéia não funciona como um ponto de chegada prefixado, mas como um ponto
de partida. Outro participante descreveu assim o momento da mudança de
idéia: “Eu estava fazendo uma chuteira. Uma chuteira que era pra colocar um
celular: um porta-celular […]. Quando eu fui fazer as travas da chuteira […],
eu tive que fazer quatro pontinhos, assim, como se fossem as travinhas, né? Aí
quando eu vi aqueles quatro pontinhos eu falei: ‘Pôxa, isso ficou parecendo a
letra ‘g’’ […]. Dali me surgiu, me abriu a idéia, né?” Enquanto manipulava o
barro, ele foi tocado por um fragmento, em que percebeu uma forma emergente.
A surpresa em perceber a letra “g” do alfabeto Braille fez com que o processo

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de criação sofresse uma bifurcação e tomasse outro rumo. E ele continua. “Aí
pensei bem e falei: ‘Pô, dá pra fazer as letrinhas em braile em cerâmica’ […]. E
aquilo ficou na minha cabeça […] A idéia. Aí eu fui pra casa, levei um pedaço
de argila. Cortei, fiz o molde […]. E comecei a fazer as peças, as pecinhas”
(P2). Após a surpresa do toque, a atenção pára, se detém na idéia. Há um
movimento de pouso (cf. Kastrup, 2007). O participante foi tomado,
mobilizado e então é a idéia que toma conta do processo de criação. Ele é
levado a dar forma à idéia, atualizá-la, compondo com a matéria. Tudo isto
tocando e se deixando tocar pelo barro. Não cabe entrar aqui nos detalhes da
continuidade do processo de criação e nos movimentos de vaivém entre a idéia
e os signos da matéria (Kastrup, no prelo).4 Basta lembrar que o tato revela
aqui sua dimensão plenamente háptica. É o fragmento da peça, e não sua
forma global, que respondem pela conversão da atenção. Por outro lado, a
experiência transpõe os limites da relação entre um sujeito e um objeto. O
encontro é contato direto e sem mediação. Tocar o barro é, ao mesmo tempo,
e de modo indiscernível, ser tocado por ele.

O ótico e o háptico na cognição inventiva


A fecundidade da noção de percepção háptica, como percepção de
fragmentos e por contato direto, levou ao questionamento de que se ela seria
restrita ao tato. Trazendo a investigação da percepção para o campo da arte, G.
Deleuze (1981) propôs que a distinção mais importante não é entre os diferentes
sentidos, mas entre o funcionamento ótico e o funcionamento háptico da
percepção. A percepção ótica se caracteriza pela organização do campo em
figura e fundo. A segregação autóctone faz com que a forma salte do fundo, o
que instala uma hierarquia, uma profundidade no campo. Além do dualismo
figura-fundo, faz parte da percepção ótica a organização cognitiva no dualismo
sujeito-objeto, que configura uma visão distanciada, característica da
representação. O ótico não remete apenas ao domínio visual, mas este, em
função de suas características, é aí dominante. Já a percepção háptica é uma
visão próxima, em que não vigora a organização figura-fundo. Os componentes
se conectam lado a lado, localizando-se num mesmo plano igualmente próximo.
Além da mão, o olho tateia, explora, rastreia, o mesmo podendo ocorrer com
o ouvido ou outro órgão. De todo modo, a distinção mais importante aqui é
entre percepção háptica e percepção ótica, e não entre os diferentes sentidos,
com a visão, a audição e o tato. Para Deleuze, o movimento da percepção
háptica se aproxima mais da exploração de uma ameba do que do deslocamento
4
Kastrup, V. (No prelo). O lado de dentro da experiência: atenção a si e produção de subjetividade numa oficina de
cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida.

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de um corpo no espaço. O movimento da ameba é regido por sensações diretas,


por ações de forças invisíveis como pressão, estiramento, dilatação e contração.
Não é o movimento que explica a sensação, mas, ao contrário, é a elasticidade
da sensação que explica o movimento (Deleuze, 1981, p. 30). A especificidade
da percepção háptica é que pode não vir a produzir uma representação, e sim
uma experiência direta, que pode concorrer para a inventividade da cognição
(Kastrup, 2007).
Deleuze aponta a importância do rastreio próximo e da percepção de
fragmentos. Tais características não constituem um limite do tato, mas uma
possibilidade e mesmo uma potência, que pode ser desempenhada por outros
sentidos, inclusive pela visão. Todo sentido possui, em princípio, uma
virtualidade háptica. Por outro lado, a percepção da forma, império da visão e
tão útil para o deslocamento no espaço, pode cegar para certos atributos do
objeto. Essa idéia surgiu na fala de um participante, que declarou que percebera,
pela primeira vez, o fundo de uma caneca após ter ficado cego. Este fragmento
da caneca, que jamais havia sido percebido antes, ganhou existência através da
exploração háptica.
Deleuze propõe o conceito de percepção háptica para dar conta da
experiência com a arte, independentemente de qual o sentido envolvido. Há
então uma visão háptica, assim como uma escuta háptica ou um tato háptico.
A visão pode ser ótica háptica e o tato pode ser ótico. O tato pode ser ótico se
quer só substituir a visão. É háptico ao sentir movimentos emergentes ou formas
que se insinuam de modo inesperado. Deleuze coloca ênfase não tanto no
caráter seqüencial e demorado na construção da representação, mas no aspecto
positivo da captação direta de fragmentos e sensações. O que ele sublinha é o
acesso, através da percepção háptica, à dimensão de virtualidade da forma. O
fragmento, como a forma que apenas se insinua, não salta aos olhos como uma
gestalt e pode ou não seguir o caminho da representação.
Para concluir, podemos dizer que a perda da visão reduz o nível de
automatismo cognitivo e mobiliza a atenção. Na vida prática, o automatismo
é substituído pelo esforço de uma atenção focada e da memória de trabalho,
para ações cognitivas diversas como a reflexão e o cálculo. Mas a redução do
automatismo pode também dar lugar à experiência direta, à atenção suplementar
a ao alargamento da percepção. A situação de criação no trabalho com a cerâmica
é distinta da situação de realização de tarefas, pois não segue objetivos
predefinidos. Mesmo quando há uma idéia prévia ao trabalho, esta pode sofrer
modificações ao longo do processo de criação. Quando a perda da visão abre a
possibilidade de desenvolvimento de processos de criação, como é o caso que
observamos na oficina da cerâmica, esta perda pode acionar um processo de

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reinvenção, atualizando outras virtualidades da atenção e da percepção.


Retirados de boa parte dos compromissos da vida prática, encontram um tempo
solto. Na oficina de cerâmica, isto é, favorável ao desenvolvimento de um
trabalho sem pressa e sem a exigência de resultados. Os processos de criação
funcionam, neste caso, como outro tipo de compensação. Não mais como
busca de caminhos indiretos para chegar ao mesmo fim, mas para trilhar outros
caminhos. Como afirma o fotógrafo cego Eugen Bavcar, “A escuridão pode ser
uma iluminação”. Do momento que não vê, percebe de outra maneira, traçando
nova fronteira entre o visível e o invisível.

Abstract
Several studies have indicated that the loss of sight causes a
reorganization of the cognitive system due to new allocations of
attention, which are the condition for the reinvention of these
people’s daily lives. On the other hand, it becomes more and more
evident that the field of perception encompasses a set of complex
experiences beyond the functional and useful dimension. There is
a functional attention geared towards practical life, and a
supplementary attention that permeates the process of invention.
This paper aims to analyze two types of changes in attention in
those who have lost their sight: the redirection of sight towards
tact; and reversion, that is, a change in the attention quality. The
argumentation is supported by experimental psychology studies;
the works of Bergson, Depraz, Varela and Vermersch; and a field
work carried out in a ceramics workshop with people presenting
acquired visual impairment.
Key words: Invention; Attention; Visual impairment.

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Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 13, n. 1, p. 69-90, jun. 2007 89


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Avaliação cooperativa de sítios eletrônicos com pessoas cegas


Cooperative evaluation of web sites with participation of blind people

SOUZA, Edson Rufino de.


Mestrando em Design – ESDI / UERJ
FREITAS, Sydney Fernandes de.
Doutor em Engenharia da Produção – ESDI / UERJ - UniverCidade

Palavras-chave: acessibilidade, avaliação cooperativa, pessoas cegas.

Sabe-se que a Web privilegia a informação baseada nos aspectos visuais da informação: cores, fotografias, ícones,
símbolos. Dessa forma, a acessibilidade à internet por usuários cegos é dependente de programas que possuem síntese
de voz, que convertem as informações da tela para a apreensão auditiva. Entre programas desta categoria, um dos mais
usados no Brasil é o Dosvox. Este artigo apresenta a primeira parte de uma pesquisa que procura avaliar a usabilidade
deste programa. Foi feita uma avaliação cooperativa com estudantes universitários cegos. Os resultados indicam que o
programa afetou a experiência dos usuários com a Web, e o conhecimento adquirido poderá ser usado no
desenvolvimento de novas versões do Dosvox.

Key-words: accessibility, cooperative evaluation, blind people.

It is known that the Web privileges the information based on the visual aspects of the information: colors, photographs,
icons, symbols. Thus, the accessibility to the Internet for blind users is dependent of screen reader software, that
convert the information of the screen for the auditory apprehension. Between programs of this type, one of the most
used in Brazil is Dosvox. This paper presents the first part of a research that tries evaluate the usability of that
program. It has been executed a cooperative evaluation with blind college students. The results indicate that the
program affects the experience of the users with the Web, and the acquired knowledge can be used in development of
new versions of Dosvox.

Introdução.
Sabe-se que hoje a internet é uma fonte inesgotável de recursos e informação para todos. Através da grande
rede, pode-se trabalhar, estudar, pesquisar, conhecer pessoas. Contudo, conforme Berners-Lee, o criador da
World Wide Web, “o poder da Web está em sua universalidade. O acesso por todos independentemente de
deficiência é um aspecto essencial”. Mesmo frente a essa necessidade, um percentual expressivo de pessoas
com deficiência, particularmente os cegos, estão excluídos do acesso amplo à Web.

Sendo a internet um grande mecanismo de inclusão social, é fundamental que o maior número possível de
pessoas se beneficiem dela. Deve-se assim permitir o acesso por pessoas com diferentes capacidades físicas,
cognitivas, perceptivas, em diferentes contextos de utilização, para que todos possam aproveitar os seus
recursos.

Estudos realizados pelo governo britânico e pelas Nações Unidas (DRC, 2004; ONU, 2006) comprovam que
a grande maioria dos sítios eletrônicos não respeitam os requisitos mínimos para que usuários com
deficiência possam ter um bom aproveitamento durante a interação. De maneira geral, os sítios eletrônicos
não seguem os padrões considerados mínimos em termos de acessibilidade na Web.

A fim de contribuir para a inclusão dos cegos na Web, diversas tecnologias de apoio têm sido projetadas. No
Brasil, o Dosvox é um dos mais programas usados pelos cegos, e a sua melhoria depende de estudos de
usabilidade e de acessibilidade.

Acessibilidade na Web.
A norma ISO 16071 (2003), que estabelece diretrizes internacionais para a acessibilidade em programas de
computador, define conceitualmente acessibilidade como a “usabilidade de um produto, serviço, ambiente ou
recurso por pessoas com a mais ampla diversidade de capacidades” (características físicas, mentais e
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perceptivas).
Como usabilidade pode ser definida, de acordo com a norma ISO 9241 parte 11, como efetividade, eficiência
e satisfação num dado contexto de uso por usuários específicos, pode-se assim dizer que acessibilidade será a
conjugação de efetividade, eficiência e satisfação por qualquer pessoa e sem a definição de um contexto
específico de uso.

Em outras palavras, é necessário que a interação se dê de maneira efetiva, com o máximo de eficiência
possível e oferecendo uma experiência satisfatória para diferentes tipos de usuário, com ou sem deficiência,
usando dispositivos ou programas alternativos com telas pequenas (como celulares e computadores de bolso)
ou programas desatualizados. Mesmo que com apresentações diferentes, é necessário garantir o mesmo nível
de acesso à informação para todos, respeitando as características de cada uma dessas circunstâncias.

No caso da Web, as pessoas cegas são as que enfrentam maior nível de dificuldade para tentar realizar tarefas
ou buscar informação (DRC, 2004). Nielsen (2001) estima que o acesso à Web é três vezes mais fácil para
pessoas que não têm problemas de visão em relação a pessoas com deficiência visual.

- Sobre cegueira.
O decreto federal 5.296, de 2 de dezembro de 2004, define deficiência visual em duas categorias:
“cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção
óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção
óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que
60 graus; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores”.

Segundo esta classificação, pessoas com 5% da visão, ou menos, são cegas; já a acuidade visual entre 5% e
30% caracteriza visão abaixo do normal.

Conforme outro tipo de classificação, encontrada no sítio eletrônico do Instituto Benjamin Constant (IBC), é
cego o indivíduo cuja visão, mesmo com a correção adequada no melhor dos seus olhos, é de 20/200 (ou
6/60) ou menos, isto é, se ela só consegue ver a 20 pés (aproximadamente 6 metros) o que uma pessoa de
visão normal pode ver a 200 pés (em torno de 60 metros).

- Requisitos de acessibilidade para conteúdo em páginas Web.


O World Wide Web Consortium (W3C) é um consórcio internacional onde organizações e pessoas afiliadas
de todo o mundo trabalham juntas no desenvolvimento de padrões, políticas e guias de melhores práticas
para o desenvolvimento da Web.

O W3C, com seu Web Accessibility Initiative (WAI) estabeleceu diretrizes internacionais para garantir a
difusão de práticas para adequação dos documentos na Web em termos de acessibilidade. Com esse objetivo,
foi elaborado em 1999 um documento, o Web Content Accessibility Guidelines (WCAG). Este é ainda hoje
considerado como o padrão mundial em termos de acessibilidade de conteúdo na Web. Entretanto, a
conformidade e adequação ao WCAG ocorre de forma voluntária.

Contudo, o WCAG vem sendo alvo de inúmeras críticas por sua desatualização em relação aos avanços da
internet. Além disso, um estudo realizado por um órgão britânico comprovou que mesmo a adequação
integral a suas recomendações não garantiriam acessibilidade efetiva (DRC, 2004). Este estudo, que entre
outros métodos realizou a avaliação de sítios eletrônicos que cumpriam todas as recomendações do WCAG
com a participação de usuários com diferentes deficiências auxiliados por especialistas, encontrou uma série
de problemas de acessibilidade, onde 45% destes não eram violações diretas ao WCAG.

Frente a estas e outras críticas, uma nova versão do documento está atualmente em estágio de
desenvolvimento, o WCAG 2.0. Assim como todo documento do W3C, ele está sendo publicado em working
drafts, que são iterativamente analisados pela comunidade de interessados que envia seus correções e
sugestões de mudança.
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Tecnologias de apoio.
As pessoas com deficiência geralmente utilizam tecnologias de apoio, que estendem as suas possibilidades
perceptivas e motoras. Entre estas tecnologias, pode-se apontar como exemplos: próteses para pessoas com
deficiência motora, aparelhos auditivos para pessoas com surdez moderada, programas de computador que
ampliam o conteúdo na tela do computador para pessoas com baixa visão, monitores Braille para pessoas
com surdo-cegueira.

- Tecnologias de apoio no acesso à Web por pessoas cegas.


Há diversas formas de tecnologias que dão suporte a pessoas cegas na interação com sítios eletrônicos na
Web. Existem desde programas de computador (software) a dispositivos físicos (hardware). No presente
estudo, serão apresentados apenas exemplos de tecnologias de apoio baseadas em software.

Como não podem acessar o conteúdo da Web de maneira visual, as pessoas cegas utilizam principalmente
no acesso à internet programas que utilizam a síntese de voz. Entre os programas desta categoria, destacam-
se os os leitores de tela como solução mais difundida e utilizada.

Basicamente, os leitores de tela transformam o conteúdo na tela do computador em voz sintetizada ou pré-
gravada, passível de apreensão auditiva para pessoas que não possam ou tenham dificuldade de ter acesso
visual à informação. Além das pessoas cegas, também utilizam estes programas algumas pessoas com baixa
visão e com deficiência cognitiva.

Existem muitos leitores de tela disponíveis, sendo a maioria comercial. Destacam-se o Jaws, o Virtual Vision
e o NVDA. O objetivo destes programas é permitir que estas pessoas consigam interagir com o computador
como as outras pessoas, realizando suas tarefas cotidianas. Contudo, estes programas se limitam a
transformar o conteúdo da tela em voz, sendo uma interface entre os programas (navegadores, programas de
e-mail, processadores de texto e outros) e seus usuários.

Assim, para que haja acessibilidade de fato, é necessário que os programas e páginas na Web garantam a
usabilidade por outros dispositivos de entrada diferentes do mouse. Como a grande maioria dos cegos acessa
o computador via teclado, todas as seções e links em uma página devem ser passíveis de ser acessadas com
facilidade por este dispositivo.

De maneira análoga. um documento da Web será lido pelo programa leitor de tela para permitir sua
apreensão sonora, a partir da forma como está estruturado, em linguagens adequadas para a marcação de
páginas na Internet, como o HTML e o XHTML. Torna-se desta forma crucial que os documentos sejam
construídos de forma a garantir a máxima compreensão independente da maneira como será acessado, seja
de maneira visual, sonora ou tátil. No caso de leitura não visual de um documento da Web, ele é linearizado
e transformado por tecnologias de apoio, de acordo com sua estrutura em termos de código-fonte.

- Sobre o Dosvox.
O Dosvox é um sistema para computadores da linha PC que se comunica com o usuário através de síntese de
voz em português (podendo ser configurada em outros idiomas). Ele é formado por um conjunto de
programas que compõem um ambiente de sistema integrado para uso por pessoas cegas.

O sistema surgiu em 1993, através do trabalho de Antônio Borges e de Leonardo Pimentel, que na época era
estudante de Informática na UFRJ. O objetivo era conseguir uma forma de fazer com que Leonardo, que é
cego, conseguir utilizar o computador. Na época, as soluções existentes em síntese de voz para computadores
eram precárias. Boa parte das soluções se baseavam em placas de síntese de voz, que eram muito caras.

Assim, foram sendo gradativamente desenvolvidos os módulos que compõem o Dosvox. Entre os recursos
que acompanham atualmente o Dosvox, podemos citar:
• Sistema operacional que contém os elementos de interface com o usuário;
• Sistema próprio de síntese de fala, que traduz em voz todas as mensagens apresentadas pelo sistema;
• Editor, leitor, impressor e formatador de textos em formato convencional ou Braille;
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• Programas para acesso à Internet, como correio eletrônico e navegadores;


• Jogos de caráter didático e lúdico.

O sistema vai além do que oferecem os leitores de tela, que complementam os programas convencionais em
ambiente Windows transcrevendo o conteúdo da tela para áudio para a apreensão auditiva. O ambiente
Dosvox possui internamente seus próprios aplicativos e tem como objetivo ser uma solução completa para
que as pessoas com deficiência visual possam fazer uso de computadores. Todos os programas são passíveis
de ser acessados a partir da navegação por teclado e há ajuda contextual presente.

Acompanham ainda o Dosvox outros programas que rodam fora do ambiente Dosvox, como um leitor
simplificado de telas (Monitvox) e um ampliador de telas (LentePro) para facilitar a leitura para pessoas com
baixa visão. Ambos rodam em ambiente Windows.

O sistema busca estabelecer um diálogo sonoro com o usuário, convidando o usuário a navegar através de
menu via teclado e buscando ao máximo facilitar a realização de tarefas sem conhecimento técnico. A
comunicação homem-máquina é simplificada, e leva em conta as características e limitações dessas pessoas.

Muitas das mensagens sonoras emitidas pelo Dosvox é feita em voz humana gravada, o que diminui o índice
de estresse para o usuário, segundo os seus desenvolvedores (DOSVOX, 2007).

O sistema é gratuito, e é executado a partir do Windows, estando em testes uma versão do sistema para o
Linux, o Linvox, e conta com o suporte direto dos desenvolvedores do projeto. Estes mantém uma lista de
discussão via correio eletrônico, a Voxtec. Esta lista tem como objetivo servir como um fórum para um
diálogo constante com os usuários do Dosvox e assim poder ouvir comentários, críticas e sugestões de
melhorias. A lista facilita tanto a troca de experiências de usuários como a aquisição de informações que
podem ser usadas em possíveis melhorias para o programa.

No Brasil, o sistema Dosvox é muito utilizado, sendo possivelmente o mais difundido. Além disso, é uma
solução de código aberto, passível de melhorias propostas pela comunidade. Assim, pretende-se com o
presente estudo entender melhor como se dá a interação dos usuários cegos na interação com a Web
utilizando o programa Dosvox.

Sujeitos do estudo.
Neste estudo, pretende-se observar a influência específica do programa Dosvox na experiência interativa de
pessoas cegas com a internet. Para isso, buscou-se inicialmente um grupo que fosse relativamente
homogêneo em termos de contexto e nível sócio-cultural.

- Alunos cegos da UniverCidade.


Foi realizado previamente um contato com a coordenação da faculdade de Fisioterapia da UniverCidade -
Centro Universitário da Cidade, onde soube-se que estudam alunos cegos e com baixa visão. O objetivo
deste contato foi conseguir a autorização para que estes alunos participassem do presente estudo.

Houve uma conversa preliminar com quatro alunos cegos e quatro alunos com baixa visão, onde pôde-se
conhecer um pouco do perfil dos voluntários. Entre os alunos cegos, percebeu-se que dois deles eram mais
interessados e engajados no aprendizado de novas tecnologias no acesso à Web e já eram usuários do
Dosvox com experiência, enquanto os outros dois demonstravam certa resistência a este tipo de ferramenta e
quase nunca faziam uso das mesmas, tendo pouca experiência no uso do Dosvox.

O objetivo foi observar a experiência dos alunos cegos com a Web via Dosvox. Foi realizada uma pesquisa
através de questionário por e-mail com os dois alunos mais interessados, já com experiência no uso do
Dosvox. A partir de uma entrevista preliminar, percebeu-se que os outros dois tinham muito pouca
experiência com o programa, e não tinham o perfil necessário para participar do estudo.

O questionário continha as seguintes perguntas:


• Qual a sua idade?
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• Você é cego de nascença? Se não, há quantos anos perdeu a visão?


• Há quantos anos (ou desde quando) utiliza o Dosvox?
• Há quantos anos (ou desde quando) acessa a internet?
• Você acessa a internet pelo módulo Webvox do Dosvox?
• De quais características você mais gosta no Webvox?
• Quais características te incomodam no Webvox?
• Dê sua opinião geral sobre o Webvox.

A partir do questionário, percebeu-se que o perfil de ambos era muito semelhante. Ambos tem quase a
mesma idade (27 e 28 anos), perderam a visão e usam computador através do Dosvox há mais de 10 anos.
Apesar de fazerem uso da ferramenta há anos, ambos não reconheceram o nome Webvox, e associaram a
outros módulos do Dosvox, como o Cartavox.

Ambos destacaram como pontos positivos as possibilidades proporcionadas pelo Dosvox, como
possibilidade de acesso a textos, e-mail, bate-papos sonoros, entre outros. Percebeu-se também nas respostas
que os problemas de acessibilidade dos sítios eletrônicos são associados ao Dosvox.

Metodologia do estudo.
A partir destas informações, optou-se por observar os dois voluntários que demonstram ser mais motivados
no acesso à Web com o uso de tecnologias de apoio.

- Avaliação cooperativa.
Para observar a influência do Dosvox na interação dos voluntários cegos com a Web, será utilizada a
avaliação cooperativa. Segundo Monk (1993), este método é um procedimento para obter informações sobre
problemas experimentados ao se trabalhar com um protótipo de software, e a partir dos resultados poder
propor melhorias para as próximas versões.

Segundo Santos (2000), a característica fundamental deste procedimento está em que o usuário e o
pesquisador trabalham de maneira colaborativa. Enquanto o usuário realiza tarefas dentro do sistema
observado, ele é observado pelo pesquisador e estimulado a “pensar alto”, fazendo perguntas, descrevendo as
ações realizadas e emitindo comentários acerca do que ocorre durante a interação.

Como o usuário realiza as tarefas fazendo comentários sobre a interação, isto interfere na maneira com que
ele as executa. Pode-se registrar o experimento com anotações, gravação de áudio, vídeo e programas de
monitoração da ação na tela, de acordo com a infra-estrutura disponível.

- Aplicação do método.
O experimento foi realizado no laboratório de informática da UniverCidade, que conta com computadores
onde a versão mais recente do DosVox (3.4) está instalada em todos os computadores.

Para a realização do experimento, foram definidas algumas tarefas a ser seguidas pelos usuários para
observar suia interação com a Web via Dosvox. As tarefas eram:
1ª Buscar no Google pelo sítio eletrônico da Associação Brasileira de Pilates (ABP);
2ª No site da ABP, buscar informações sobre curso básico de Pilates;
3ª Entrar no sítio eletrônico do Submarino e procurar o último CD de Caetano Veloso, “Cê”;
4ª Entrar no site do DosVox e encontrar a versão mais atual do programa.

Antes do experimento, foi explicado aos voluntários que o desempenho deles não era o foco do experimento,
e sim o Dosvox e como este influenciava em sua experiência com a Web, seja positiva ou negativamente.
Em seguida, os voluntários iniciavam a configuração do Dosvox. Abaixo descreve-se como se deu a
interação dos usuários com a Web durante o experimento. Foi realizado registro por escrito sobre o
comportamento dos voluntários e das impressões do pesquisador.
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Voluntário A.
Nas pré-configurações do Dosvox, anteriores ao início das tarefas, o voluntário A desativou a síntese de falas
SAPI, dizendo ser esta pior em relação à padrão do Dosvox.

Inicialmente, ele entendeu acesso a internet como sinônimo de acessar o seu e-mail. Assim, ele acessou o
Cartavox, através da opção C, do menu R (rede). Só quando orientado, percebeu que se tratava de buscar
páginas na Web.

1ª tarefa: Buscar no Google pelo sítio eletrônico da Associação Brasileira de Pilates (ABP).
Ele tentou encontrar o Google em “páginas selecionadas” (opção S), mas não encontrou. Relatou que era o
procedimento que realizava em casa e que lá já tinha salvos os endereços das páginas que ele mais acessava.

Usou a opção de “trazer página” (T) e digitou o endereço com auxílio do pesquisador, já que não sabia
soletrar a palavra “google”. A página foi carregada, e ele chegou sem problemas ao campo de busca, apesar
da quantidade de links que havia no caminho.

Realizou a busca por “Associação Brasileira de Pilates”. Na página de resultados, teve dificuldade em
entender as opções que vinha antes dos resultados, citando como exemplo o item “Páginas do Brasil”, que
para ele não era claro em relação ao contexto. Contudo, depois conseguiu chegar até os resultados e, por fim,
encontrou o sítio eletrônico.

2ª tarefa: No site da ABP, buscar informações sobre curso básico de Pilates.


Tentou acessar informações sobre o curso através da busca textual do Webvox. Tentou buscar por “curso
básico”, “curso basico” e “curso”, quando enfim encontrou o link procurado.

3ª tarefa: Entrar no sítio eletrônico do Submarino e e procurar o último CD de Caetano Veloso, “Cê”.
Entrou no sítio eletrônico do Submarino e iniciou a leitura linear da página. Ao ouvir o termo “cds”, tentou
usar novamente a busca textual, usando este termo, mas isto não o ajudou a encontrar informações sobre o cd
procurado.

Acessou o link “música digital”, depois voltou e enfim encontrou a busca do site, digitando “caetano
veloso”. Contudo, ele não conseguiu encontrar os resultados na página seguinte, tamanha a quantidade de
conteúdo que aparece antes dos mesmos. Cada vez que se carrega a página, é necessário ler uma grande
quantidade de itens entre menus, imagens e outros até acessar o conteúdo específico. Por fim, desistiu da
tarefa.

4ª tarefa: Entrar no site do Dosvox e encontrar a versão mais atualizada do programa.


Lembrou-se que o link para o sítio eletrônico do Dosvox salvo estava salvo nas “páginas selecionadas” e
acessou mais uma vez este recurso (opção S). Entrou num sítio do Projeto Dosvox (CAEC), que continha um
link para a página principal do Dosvox. Ao carregá-la, encontrou o link para o programa sem problemas.

Voluntária B.
Inicialmente, entrou na opção “Gerador de Homepages” (opção W) pensando ser o navegador do Dosvox.
Não sabia o nome do navegador (Webvox), e nem a opção específica para acessá-lo a partir do menu, e
precisou de ajuda.

1ª tarefa: Buscar no Google pelo sítio eletrônico da Associação Brasileira de Pilates (ABP).
Não associou inicialmente “trazer página” (opção T) à opção para acessar um sítio eletrônico. Abriu a página
do Google, e também encontrou sem problemas a caixa de busca, digitando nela “Associação Brasileira de
Pilates”. Ao iniciar o carregamento da página com os resultados da busca no Google, ela pensou que já seria
a página da Associação procurada, e foi orientada sobre o engano pelo pesquisador.

Ao descobrir que naquela página eram exibidos os resultados da busca, começou a ler o texto linearmente,
mas ao chegar à caixa de busca que é colocada no começo da página, não entendeu o que fazer, e realizou a
busca mais duas vezes, sem conseguir passar desta caixa de texto todas as vezes. Ela não entendia porque a
caixa de texto aparecia de novo, e pensava ter feito algo errado ou que a busca não havia sido feita.
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Apenas quando informada que os resultados seriam exibidos após a caixa de texto, ela seguiu lendo o
conteúdo e encontro o link adequado. Contudo, não sabia o que fazer para entrar no link, e acabou entrando
por engano na versão salva em cache no Google. Por fim, desistiu da tarefa.

2ª tarefa: No site da ABP, buscar informações sobre curso básico de Pilates.


Como não houve o completamento da tarefa anterior, foi necessário entrar no sítio eletrônico da ABP através
de seu endereço (www.abpilates.com.br), que foi informado à voluntária. Ao entrar no sítio eletrônico, ela
leu a página linearmente até chegar ao link “Novidades e cursos”.

Como a página que se abre é um texto um pouco mais longo, ela vai ouvindo o início de cada parágrafo e
pulando para o próximo, para economizar tempo. Fez isso até encontrar o link “Cursos”, onde encontrou a
informação procurada.

3ª tarefa: Entrar no sítio eletrônico do Submarino e e procurar o último CD de Caetano Veloso, “Cê”.
Entrou no sítio eletrônico do Submarino, e acionou por engano a opção “Lista de casamento”. Percebeu o
engano, e recarregou a página principal. Relatou que não era claro quando era texto e quando era link,
citando como exemplo uma lista de itens que aparece antes das categorias principais do sítio eletrônico.
Contudo, tal lista era o título da página, que não pode ser associado a link, e que ela identificou como
conteúdo.

Achou a busca, mas na página de resultados se confundiu com a quantidade de itens entre o início da página
e os resultados propriamente ditos.

Desistiu de procurar o CD pelo Submarino e tentou o Google, mas realizou uma busca muito genérica,
apenas por “Caetano Veloso”. Mais uma vez teve dificuldades em entender que os resultados vinham após a
caixa de busca. Entrou no link sobre o Caetano Veloso do Wikipédia, no que foi informada que tal página
não serviria para encontrar o CD do cantor. Após isso, desistiu da tarefa, passando para a última.

4ª tarefa: Entrar no site do Dosvox e encontrar a versão mais atualizada do programa.


Assim como o outro voluntário, também lembrou que a página estava entre as “páginas selecionadas” e usou
esse recurso. Este apresentou um comportamento atípico, não abrindo o link quando a voluntária pressionava
“enter”. Isso deixou-a nervosa, e fez com que ela acionasse o recurso repetidas vezes, até que o mesmo
funcionou.

Após o carregamento da página do Dosvox, ela iniciou a leitura linear do documento, relatando que este
continha muito texto. Entretanto, ela não teve muita dificuldade em encontrar o link para o programa
atualizado.

Resultados e discussão.
De maneira geral, a grande maioria dos problemas encontrados pelos voluntários durante o estudo está
relacionado ao baixo nível de acessibilidade dos sítios eletrônicos visitados (à exceção do sítio do Dosvox).

Contudo, percebeu-se alguns problemas de acesso proporcionados pelo Dosvox. Ambos desativaram o
recurso de síntese de voz SAPI, que disseram oferecer baixa qualidade de voz. Para a voluntária B, usuária
menos freqüente do programa em relação ao voluntário A, algumas termos utilizados nos menus do Dosvox
não eram muito claros, e precisavam de explicação (mesmo ela conhecendo o programa há mais de dez
anos), como o “Trazer Página” e o “Gerador de Homepages”.

Aconteceram alguns casos em que foram acionados links da opção “páginas selecionadas” (opção S) e a
página não era aberta, possivelmente por algum defeito do programa. Da maneira como o conteúdo é
apresentado pelo Dosvox, também não é muito clara a diferença entre links e o texto comum, sendo pouco
perceptível também a diferença entre estes e os títulos e subtítulos das páginas, segundo os voluntários.
De maneira geral, contudo, o programa foi elogiado por ser considerado fácil de aprender e por ser gratuito,
o que facilita a sua difusão.
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Conclusões.
De maneira geral, o experimento teve sucesso, já que pôde-se aprender mais sobre a maneira com que o
Dosvox influencia a interação de pessoas cegas com a Web. Percebeu-se alguns problemas de usabilidade
que certamente influem negativamente na qualidade da interação.

Contudo, deve-se destacar mais uma vez que a grande maioria dos problemas enfrentados pelos usuários
eram proporcionados pelos sítios eletrônicos acessados que têm sérios problemas de acessibilidade, como
ficou demonstrado pelo experimento, à exceção do sítio eletrônico do Projeto Dosvox, que foi projetado em
conformidade com os padrões de acessibilidade.

A partir dos resultados deste experimento, que é parte de uma pesquisa de mestrado que estuda a influência
do Dosvox na experiência de cegos com a Web, podem ser elencados alguns novos passos, entre eles a
realização de testes da mesma natureza e entrevistas com especialistas em acessibilidade cegos, entrevistas e
pesquisas estruturadas com os desenvolvedores e pesquisas quantitativas com outros usuários do Dosvox
através da lista Voxtec.

Espera-se assim contribuir para o desenvolvimento do Dosvox, que é sem dúvida um marco na vida dos
cegos no Brasil e no movimento em prol da acessibilidade, para que se possa ter uma sociedade da
informação mais inclusiva e igualitária.

Bibliografia.
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International Standards Organization (ISO). ISO/TS 16071: Ergonomics of human-system interaction -


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MONK, Andrew; WRIGHT, Peter; HARBER, Jeanne; DAVENPORT, Lora. Improving your humam-
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NIELSEN, Jakob; COYNE, Kara Pernice. Beyond ALT Text: Making the Web Easy to Use for Users
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SANTOS, Robson; MORAES, Anamaria de. Ergonomização da interação homem-computador:


abordagem heurística para avaliação da usabilidade de interfaces. Rio de Janeiro, 2000. Dissertação de
Mestrado - Departamento de Artes & Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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Disponível em: <http://www.w3.org/TR/WAI-WEBCONTENT/>. Acesso em: 22 jun. 2007.

Edson Rufino de Souza edson.rufino@gmail.com


Sydney Fernandes de Freitas sfreitas@univercidade.edu.br
http://www.muitoespecial.com.br/imprimir.asp?conteudo=1346

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BREL E A CEGUEIRA: UMA GEOGRAFIA DA ALMA

Brel e a cegueira: uma geografia da alma*

João Vicente Ganzarolli de Oliveira


Prof. Dr. do Deptº de História e Teoria da Arte

da Escola de Belas-Artes da UFRJ

Rio de Janeiro / Brasil

Resumo

Este artigo destaca o papel da poesia e da música como fenômenos


particularmente acessíveis aos cegos. O núcleo é a obra de Jacques Brel
(1929-1978), cujo potencial descritivo revela-se propício para a abordagem
pretendida.

Résumé

Cet article met em relief le rôle de la poésie et de la musique en tant que


phenomènes particulierement accessibles aux aveugles. Le noyau est l’oeuvre
de Jacques Brel (1929-1978), dont le potentiel descriptif convient à l’approche
choisi.

A paisagem é indissociável dos caminhos interiores.


A alma reflete-se sobre a localidade espacial.[1]

Passados trinta anos da morte de Jacques Brel (1929-1978), o mínimo que se


pode fazer é dedicar-lhe algumas linhas. Falo como admirador. Escuto suas
músicas e leio suas letras pelo simples prazer de fazê-lo. Não se trata de
insistir aqui no valor musical e poético da sua obra; são devidamente
reconhecidos o talento do trovador belga do século XX, a beleza das suas
melodias e a profundidade dos seus versos. Contudo, eis que me parece haver
encontrado um aspecto problemático na sua obra. Não se trata de uma
imperfeição; é simplesmente uma ausência temática – e considerando que por
vezes já é difícil julgar um artista com base naquilo que ele produziu, o que
diremos de um julgamento voltado para aquilo que ele deixou de produzir? É
digno de nota que Brel não fale da cegueira nas suas canções. Evidentemente
admito a possibilidade da presença desse tema numa ou noutra canção que eu
não conheça. Mas assumo o risco de dizer que o tema da cegueira, ainda que
ele apareça nesta ou naquela canção em particular, não é importante na obra
de Jacques Brel como um todo. Não há nada de comparável, por exemplo, com
a literatura de Jorge Luis Borges, que concede ao binômio visualidade/cegueira
um lugar central. É claro que isso tem relação com o fato de Borges sofrer da
vista desde a juventude e ter sido atingido pela cegueira na vida adulta; Brel
não passou por tal experiência. Mas isso não soluciona o problema, pois a
cegueira não é condição necessária para que se faça um poema a seu respeito.
Lembremo-nos do Cego em Haiderabade, de Cecília Meireles, que caminha

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IMAGEM CORPORAL: CORPOREIDADE DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA


VISUAL

Ms. Profª. Rosilene Moraes Diehl


Acad. Educ. Física Paulo E. F. Peixoto
UNILASALLE, Canoas, RS

RESUMO
Este trabalho propõe identificar a percepção da imagem corporal de indivíduos com
deficiência visual. A especificidade deste estudo consistiu em analisar a percepção
corporal do indivíduo cego e com baixa visão na relação de orientação e mobilidade,
relações sociais e emocionais. O instrumento foi a entrevista semi-estruturada. Os sujeitos
deste estudo foram 11 adultos com deficiência visual. Destacamos três importantes
categorias de respostas: percepção corporal em relação aos aspectos motores, sociais e
emocionais. Para que as pessoas com deficiência visual sejam mais autônomas seu
contexto deve ser de acessibilidade, tanto no aspecto familiar quanto na vida escolar e
social.

ABSTRACT
This study consisted of analyzing the corporal perception of the blind people in the
orientation and mobility, social and emotional relations. The instrument was semi-
structuralized interview. The subjects of this study had been 11 adults with visual
deficiency. We detected three important categories of answers: corporal perception in
relation to the aspects motor, social and emotional. So that the people with visual
deficiency are more independent their context must be of accessibility, as much in the
familiar aspect and in belonging to school and social life.

RESUMEN
Este estudio consistió en el analizar de la opinión corporal de personas ciegas y las
relaciones de la orientación y de la movilidad, sociales y emocionales. El instrumento
utilizado foie semi-estructuradas entrevistadas. Los individuos de este estudio fueron 11
adultos con deficiencia visual. Detectamos tres categorías importantes de respuestas:
percepción corporal en referencia a los aspectos motores, sociales y emocionales. De
modo que la gente con deficiencia visual sea más independiente su contexto debe tener
accesibilidad, tanto en la vida familiar, cuanto en la vida de la escuela como en la vida
social.

1. INTRODUÇÃO
O corpo é a expressão material da personalidade. Sendo intrínseco e inerente,
identificado a nós como nosso esqueleto, nosso aparelho muscular, o corpo como um todo.
Temos percepção corpórea própria. Diariamente, frente ao espelho, nos comparamos com
os padrões vigentes, estereótipos de beleza e perfeição, e a tendência é imitá- los. Imitação
do vestir, do pentear, do modelar o corpo e, principalmente, como agir a partir dos gestos e
movimentos. O comportamento do ser humano segue padrões que podem ser
compreendidos de forma mais ou menos nítida que entendemos como arquétipos, criando
seu próprio mundo através da conquista da natureza. A “corpolatria” é expressão da cultura
somática da sociedade de consumo. Estas colocações fazem- nos refletir sobre a dificuldade
de modificar uma representação sócio-cultural.
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Os órgãos dos sentidos têm o papel de “situar- nos” perante o mundo. Assim como a
linguagem que está baseada nas imagens, é através da visão que construímos a opinião
sobre o mundo.
Para a pessoa com deficiência visual a percepção de si e do mundo à sua volta é
alterada devido às informações que recebem serem reduzidas e suas representatividades,
pobres. Assim, tais informações, feitas através da exploração do ambiente pela s mãos e
outros sentidos, têm sua representatividade, às vezes, distorcida, gerando ansiedade e
insegurança. Seus conceitos se formam ao longo do tempo e a partir de seus
relacionamentos sociais, com informações produzidas a partir da descrição de objetos e
espaço, por pessoas não cegas.
De acordo com Diehl (2006) a imagem do corpo, bem como sua relação com o
meio ambiente, são conceitos abstratos para os cegos, tendo em vista que eles não dispõem
ou possuem poucas referências visuais. Eles constroem o seu mundo físico basicamente
através de sensações táteis, olfativas e auditivas.
Um dos aspectos mais inquietantes, na concepção do desenvolvimento perceptivo-
motor do indivíduo com deficiência visual, é o de reconhecê- lo como um sujeito capaz de
realizar e expressar sua corporeidade com a mesma “grandeza” que um vidente. Na
Educação Física, é fundamental a utilização do corpo como instrumento de comunicação e
expressão no desenvolvimento do indivíduo com deficiência visual. Atividades que
busquem satisfazer as necessidades pessoais e sociais no dia a dia, de forma independente
e auto-suficiente são, por exemplo: expressão corporal, música, dança, teatro e atividades
esportivas adaptadas. “O contato com o fato artístico, os sons, a música, o movimento, a
dança e as artes plásticas, são elementos que nutrem as vivências e a conduta pessoal”.
(BRIKMANN, 1989, p.105).
A proposta deste artigo destina-se, fundamentalmente, pesquisar os parâmetros da
percepção corporal em deficientes visuais, identificar capacidades de percepção da imagem
de seu corpo, suas inter-relações entre eles e com os demais. Gallahue & Ozmun (2003),
comenta que fatores como um sentimento de bem-estar, imagem corporal, posição de
controle e depressão, podem ser influenciados pelo envolvimento em atividades físicas.

2. METODOLOGIA
Este trabalho é um estudo descritivo-exploratório. Demarca o perfil de um grupo,
analisa certos fenômenos, define pressupostos, identifica estruturas e possíveis relações
com outras variáveis.
Definiu-se a população de indivíduos com deficiência visual, tendo como amostra
nove sujeitos com cegueira total e dois com baixa visão, na faixa etária entre 19 e 45 anos,
pertencentes à região metropolitana de Porto Alegre. Dois dos entrevistados são do sexo
feminino e nove do sexo masculino.
O instrumento utilizado foi uma entrevista semi-estruturada. Os itens norteadores
da pesquisa foram os seguintes: a) como se dá a percepção da imagem corporal do
indivíduo com deficiência visual; b) sua percepção em relação ao corpo e sua mobilidade
nas atividades da vida diária e também nas atividades físicas mais intensas; c) relação e
interação com o meio, a família, a sociedade, etc.; d) como se processa seu lado emocional,
seus medos, inseguranças, alegrias e tristezas.

3. APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS


Após a coleta dos dados foi possível chegar a 3 categorias de análise: conforme
aspecto físico motoras, social e emocional.
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Perspectiva físico/motora
Observamos que estes indivíduos possuem dificuldade em relação à percepção de
seu corpo quanto aos aspectos físicos e motores. A percepção, muitas vezes, ocorre a
partir das informações dadas pelo outro. Informações que são fundamentais para seu
crescimento integrado sob vários aspectos. “O que eu percebo do meu corpo é assim, eu
percebo o que os meus amigos falam” (Entrevistado 2); “... eu não me importo muito com
isso, mas...eu só sei o que as pessoas dizem, né...” (Entrevistada 10).
Quanto maiores forem os estímulos e novas experiências do indivíduo, mais
completo será seu desenvolvimento perceptivo, principalmente sob o ponto de vista
psicomotor.
“Falar sobre a percepção que o cego tem do mundo, só ele pode falar, pois somente
ele pode percebê- lo pelo seu corpo” (PORTO, 2005, p.35). Quando nos deparamos, ou
imaginamos um objeto, ou quando construímos a “imagem” de um objeto, não agimos
como uma simples máquina perceptora, mas como uma personalidade que experimenta
essa percepção.
Através da elaboração da imagem corporal percebemos que somos iguais aos
demais, pelo menos em nossa forma. Os cegos têm, na maioria das vezes, uma “visão”
distorcida da realidade corporal. “... Eu sou alto, um pouco... tenho 1,63m” (Entrevistado
8). O Entrevistado 6, aproximadamente mesma altura, disse que era meio alto. “Sou meio
magro... meio gordinho” (Entrevistado 1).
Percebemos que a tendência é perceber o mundo, mais como eles crêem ou querem
que seja do que através da informação recebida através dos diferentes estímulos.
Acreditamos que para adquirir real percepção, os indivíduos dependem das relações entre
os fatores do estímulo captados e das experiências vividas com este estímulo.
Vivemos numa cultura em que a aparência é extremamente valorizada. É através
dessa aparência que os demais nos percebem e nos reconhecem, por isso pode-se destacar a
importância da imagem na determinação do conceito de auto- identidade e de
autovalorização.
Essa cultura constrói sua imagem de corpo e essa imagem se constitui numa
maneira própria de “ver” e viver o corpo. Porém se percebe que os indivíduos cegos
mesmo estando, às vezes, fora do “padrão” de beleza estabelecido pela cultura da
corpolatria, relatam estarem contentes com seus corpos. “...Me sinto um pouco alta, né,.. eu
me sinto realizada com meu corpo... não sinto bonita e nem feia, me sinto no padrão
normal” (Entrevistada 10).
A maioria dos sujeitos entrevistados demonstrou preocupação com a postura,
relatando que freqüentemente alguém lhes faz alguma observação a respeito do
assunto.“Sim, eu ando sempre de cabeça baixa... eu tenho que levantar a cabeça e não
consigo” (Entrevistado 7); “...Sim, a professora de teatro. Ela sempre fazia comentários
com a gente, sempre caminhar com a cabeça alta, “olhando” para a frente e nunca
caminhar encurvado, apoiando-se na bengala” (Entrevistado 8).
Uma vida fisicamente ativa e habilidade para desenvolver tarefas da vida diária, são
fatores que podem ter efeito positivo no conceito que adultos têm de si e na maneira como
os outros os vêem (Gallahue & Ozmun, 2003). Devemos ter em mente as dificuldades
sofridas pelos indivíduos cegos quanto às possibilidades de ação e interação motora.
Dificuldades ocasionadas pela reação da família e da sociedade que tendem a super
protegê- los e a cercearem suas ações. “Às vezes eu tenho medo de ir para certos lugares,
porque não tenho boa mobilidade. Às vezes eu vou para esquerda quando é para direita. Eu
tenho uma mania, de não ”olhar” para a pessoa que está falando”(Entrevistado 6).
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Poucas atividades esportivas e exercícios reforçam este aspecto. Por isso,


decorrente dessa já citada tendência à inatividade e a super proteção, constatamos que
existe um déficit motor, acarretando uma diminuição de sua mobilidade. Tudo isso, traz
consigo uma criação de barreiras e obstáculos que dificultam sua acessibilidade nos lugares
onde poderia ir sozinho. “Uso bengala, eu não ando na rua sozinho, só se agarrar no braço
de uma pessoa para caminhar” (Entrevistado 3); “Olha, na rua eu não ando sozinha
ainda...mas eu estou fazendo aulas de locomoção” (Entrevistada 5).
Os obstáculos encontrados podem levá-los a um processo desencadeador de severos
comprometimentos relacionados à independência, segurança e integração com o meio e
consigo mesmo.
O ser humano é um complexo de emoções e ações, propiciadas por meio do contato
corporal nas atividades psicomotoras, que também favorecem o desenvolvimento afetivo
entre as pessoas, o contato físico, as emoções e ações. A psicomotricidade contribui de
maneira expressiva para a formação e estruturação do esquema corporal, o que facilitará a
orientação espacial. Consiste em relacionar-se através da ação, como um meio de tomada
de consciência que une o “ser corpo”, o “ser mente”, o “ser espírito”, o “ser natureza” e o
“ser sociedade”. A psicomotricidade está associada à afetividade e à personalidade, porque
o indivíduo utiliza seu corpo para demonstrar o que sente.
É importante ressaltar que, quando foram questionados sobre as atividades da vida
diária, se alguém na família ajudava em alguma coisa, dois sujeitos responderam que a
mãe, além de outras ajudas, até abotoava suas roupas, ajudando a colocar a cinta nas calças
e amarrar os sapatos.“A minha mãe faz tudo para mim”(Entrevistado 3); “...Eu ainda não
apreendi. A maioria dos cegos, a família faz isso com ele, para proteger. Só que depois
prejudica um pouco” (Entrevistado 11).
Muito embora todos os outros tenham relatado que sentem alguma dificuldade para a
elaboração de suas atividades da vida diária, demonstraram que têm mais iniciativa a
respeito.“Eu procuro fazer tudo sozinho, independer das pessoas, mas eu gosto quando
uma pessoa vem se oferecer para me ajudar em alguma coisa, eu gosto disso”
(Entrevistado 9).
A criança só apreende aquilo que vive concretamente. É importante que ela faça
suas próprias descobertas através da manipulação e exploração do ambiente físico-social.
Para isso podem e devem ser exploradas situações referentes às atividades domésticas,
como por exemplo: alimentação, higiene pessoal, saúde, segurança e vestuário. Segundo
Tavares (2003, p.81), “O desenvolvimento de nossa identidade corporal está intimamente
ligado ao processo de vivenciar sensações dimensionadas à singularidade de nossas
pulsões e de nossa existência desde a mais tenra idade”.

Perspectiva social
A família, muitas vezes, cria ao redor da criança cega uma redoma formada pela
superproteção, causada pelo sentimento de culpa, pela desestruturação que o nascimento de
uma criança deficiente causa, pelo medo e por falta de informações. Existe um total
cerceamento da ação motora, tudo vindo à criança sem que ela saiba a origem, ocorrendo
situações abaixo do seu limiar de captação, fazendo com que ela tenha a tendência de
fechar-se cada vez mais em seu mundo. “...Eu levanto todo o dia às 8 horas. Tomo café.
Vou para meu quarto, sento em minha cadeira giratória que a minha mãe me deu e fico
escutando rádio o dia todo” (Entrevistado 3).
Para Gandara (1992) a família desempenha papel fundamental no desenvolvimento
e educação do indivíduo com deficiência visual, pois resultados mais imediatos e corretos
viriam de esclarecimentos e atendimentos prestados a partir da infância.
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Como a pessoa cega é muito dependente do meio, não tem muitas chances de
escolha, só lhes resta atribuir valor ao que nele acontece. Sua área afetiva poderá estar
saturada destes sentimentos equivocados, manifestando ansiedade, inseguranças ou até
mesmo, sentimentos de incapacidade. Os indivíduos entrevistados deixaram transparecer a
carência afetiva, trazendo a reboque outros sentimentos, como o medo, a tristeza e o pior
de todos, o sentimento de solidão. “Ser carente é ser humano, é estar vivo e atuante numa
eterna luta, sempre recomeçada e nunca finda” (SAÚDE, 2001, p.82).
A compreensão do quanto o indivíduo cego pode e é capaz diante das situações de
vida é um desafio para ele e seus familiares. A maneira como a família se comporta pode
acelerar ou retardar o processo de independência, trazendo conseqüências profundas ao
longo do seu desenvolvimento. Nesse sentido, entendemos a importância da estimulação
na família.
A preocupação com o desenvolvimento da criança com deficiência visual deve
iniciar-se no nascimento, para que possam se estabelecer suas bases e atingir a maturidade
necessária para uma boa interação sócio-afetiva no seu meio. Cabe, ainda, aos especialistas
da Educação Especial, assumirem seu papel enquanto responsáveis pela orientação e
estimulação durante o desenvolvimento da criança procurando evitar, prevenir e
minimizar, na medida do possível, as defasagens que poderão ocorrer tanto no
desenvolvimento, quanto na aprendizagem.
Em conformidade com Schilder (1980, p.243): “Nossa imagem corporal só adquire
suas possibilidades e existência porque nosso corpo não é isolado”. Segundo este autor, um
corpo é necessariamente um corpo quando está entre outros corpos. As pessoas aprendem a
avaliar seus corpos através da interação com o meio em que vivem, assim sua auto- imagem
é desenvolvida e reavaliada continuamente.
É preciso estimular o indivíduo com deficiência visual para que se mostre através
de sua linguagem corporal, prestando atenção à sua maneira de mover-se, de relacionar-se
com o mundo. Cada um traz, em seu corpo, uma memória de vida, uma história, um
contexto familiar. Saber olhar esses corpos com a singularidade de cada um é o
fundamento de uma didática cuidadosa, que valoriza a subjetividade e estimula
potencialidades. Para as pessoas cegas, as maiores alegrias são centradas nos contatos,
criando referenciais com alguém que lhes dê atenção. Em contra-partida, manifestam
grande frustração quando são relegadas à condição de deficientes e até mesmo uma
redução de atenção desperta- lhes tristeza. A indiferença dos videntes não é bem assimilada,
tendo como conseqüência a insegurança. Identificou-se que a maioria do público
entrevistado não possui muitos amigos e, que o pouco que tem, também é deficiente visual.
“...Eu prefiro ter amigos cegos do que videntes, porque me sinto mais seguro, sabe...o
vidente não me dá muita segurança... porque já tentei me aproximar de pessoas que
enxergam, mas acabei não conseguindo” (Entrevistado 7).
A partir de experiências que valorizem atividades que contemplem o contato com o
outro, com o mundo, podemos destacar a contribuição da construção de uma identidade e o
desenvolvimento do indivíduo. Para o deficiente visual, estas experiências se tornam
fundamentais, desenvolvendo e fortalecendo sua independência e sua auto-estima.
Conforme Porto (2005), o ser humano é inseparável do meio ambiente e esse entorno
humano se dá pela natureza e sociedade.
Nessa pesquisa, apenas um sujeito relatou que participa de festas com
videntes.“Vou bastante, mas eu peço aos amigos para não me deixar no meio para não
bater em ninguém.”(Entrevistado 2)
Na maioria das vezes, suas relações pessoais são comprometidas, fugindo do
padrão de normalidade estabelecido.“Eu converso mais é por telefone. Eles (os amigos)
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nunca têm tempo. Eles falam, ah eu vou te visitar, mas na vão. Aí eu tenho que ligar, senão
não me ligam”.(Entrevistado 11).
Assim, podemos identificar o quanto é complicado para esse público participar de
eventos para videntes. O que se constatou é que na maioria das vezes, eles só participam de
festas promovidas por entidades representativas dos indivíduos com deficiência visual.
Quatro sujeitos relataram que nunca participam.
O relacionamento entre as pessoas caracteriza a unidade básica do sistema. Esta é
formada sempre que duas ou mais pessoas prestam atenção ou participam nas atividades da
outra, constituindo-se como um contexto crítico para o desenvolvimento. As pessoas não
constroem seu esquema corporal sozinhas, sendo essencial o diálogo com os pais,
professores, colegas e amigos, sobre o esquema corporal e a imagem do corpo. “Perceber e
relacionar-se com o meio ambiente não se resume apenas aos sinais diretos que o cérebro
recebe de determinados estímulos” (PORTO, 2005, p.88).

Perspectiva emocional
A pessoa cega, muitas vezes, chega à fase adulta sem um “passado” de
experiências, não apresentando as rotinas da vida cotidiana de acordo com a sua idade.
Seus conceitos básicos como esquema corporal, lateralidade, orientação espacial e
temporal, são quase inexistentes e sua mobilidade difícil, o que poderá levar à baixa
estima.
De acordo com estas colocações, pode-se entender o quanto a criança deficiente
visual pode ser mal conduzida em seu desenvolvimento e aprendizagem, quando guiada
pela insegurança, superproteção e, mesmo, desconhecimento das pessoas que a cercam.
A partir dos relatos, podemos evidenciar alguns pontos relativos à perspectiva
afetiva, onde os entrevistados revelaram possuir uma grande carência, acarretando
dificuldades para o equilíbrio emocional e a construção de sua personalidade. “Às vezes eu
quero conversar com minha mãe e ela diz que não pode. Ela finge que não escuta. Então,
foi aí que fui me fechando...me fechando” (Entrevistado 6).;“Como moro com minha
sogra, eu tenho que agüentar muita coisa. Falam as coisas..., que eu não sei fazer comida
na frente de todo mundo. Não deixam eu fazer absolutamente nada” ( Entrevistada 10).
A maneira preconceituosa de categorizar e rotular a pessoa cega é mantida e
alimentada pela ideologia do déficit, num círculo vicioso que se mantém nas exigências
produtivas de uma “sociedade de consumo” que só reconhece o indivíduo na medida em
que ele produz. Ao mesmo tempo, essa mesma sociedade legitima sua isolação e justifica a
criação de instituições asilares. Incontáveis são as pessoas cegas, confinadas em si
mesmas, temerosas de “enxergar” a vida com suas próprias mãos, estagnadas em seu
desenvolvimento pelas demandas de uma certa dotação física: a visão.
Porém, existem aqueles que ousam desafiar as “leis”, ignorando supostas
“inaptidões” e mobilizam recursos no sentido de pleitear e tomar posse dos espaços
conquistados. Não se pode negar que é através da interação que estabelece com o outro que
o deficiente visual conquista um corpo seguro, ganhando confiança para a delimitação do
espaço físico em que convive.
O desenvolvimento da auto-estima acarreta desafios que precisam ser enfrentados,
pois a promoção da auto-estima passa pelo processo de desenvolvimento da aquisição de
autonomia. “Ah, eu me sinto feliz. Antigamente eu nem saía de casa. Eu me sinto assim,
que estou bem melhor. De fazer piscina. Aqui na Associação, a gente faz expressão
corporal, eu me sinto muito bem”.(Entrevistada 5); “Eu sou uma pessoa de bastante alto
astral.”(Entrevistada 10).
Normalmente, a auto-estima manifesta-se pela aceitação de si mesmo como pessoa
e por sentimentos de valor pessoal e de autoconfiança, constituindo-se em fator
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determinante para o bem-estar psicológico e do funcionamento social. “No meu trabalho


onde tem muita gente eu tenho que provar que eu tenho capacidade... não é porque eu não
enxergo que eu vou querer que a pessoa me dá um trabalho com pena de mim, da minha
cegueira”. (Entrevistado 10)
Muitos apresentam relatos de inibição quando se encont ram entre outras pessoas.
“Na hora assim... que eu tenho que pegar um ônibus, tem que estar perguntando toda hora.
As pessoas te ”olham” diferente...” (Entrevistado 2). “...Sinto medo quando como demais,
de bater nas pessoas...entrar num lugar errado” (Entrevistado 3).
A vergonha é um sentimento que pode desencadear uma série de reações pessoais e
sociais, havendo “remédios” que, no final, resumem-se a poucas medidas. Da vergonha, só
nos livramos aceitando-nos com nossos defeitos, o que significa aceitar-se sem esconder as
próprias faltas, falhas ou carências. A cura fica em torno de fortificar a auto-estima a ponto
de nos permitir suportar o olhar do outro sem nos sentirmos na obrigação de dissimular o
erro.
O medo é um sentimento que surge quando estamos diante de um perigo ou ameaça
real a nossa integridade física ou psicológica. É uma emoção essencial, já que possui uma
função protetora, pois prepara o corpo para enfrentar ou se esquivar do perigo. “ Eu tenho
medo de ser assaltado, quando ando sozinho”(Entrevistado 7); “ Sinto medo de eu
perder... algo que eu precise para sobreviver, por exemplo, a minha mãe”. (Entrevistado 9);
A aprendizagem, para lidar com os medos e dominar as preocupações e os receios é
longa, exigindo que o indivíduo com deficiência visual “se sustente em seus próprios pés”.
Dessa forma, deverá enfrentar suas fantasias e testá- las inúmeras vezes para verificar o
quanto são produtos de sua imaginação ou em que aspectos são relevantes, contendo sinais
reais e objetivos de perigos dos quais eles de fato precisam se proteger.
As emoções não são e não podem ser vistas como obstáculos a serem evitados. Nas
interações com o meio social e cultural criamos sistemas organizados de pensamentos,
sentimentos e ações que mantêm entre si um comple xo entrelaçado de relações. Assim
como a organização de nossos pensamentos influencia nossos sentimentos, o sentir
também configura nossa forma de pensar. A tristeza, por exemplo, pode ser originada da
perda de algo ou de alguém de muito valor ou importânc ia. Esta emoção pode ser
potencializada se aquele que sofre de tristeza passa a acreditar que poderia ter feito algo
para recuperar ou evitar a perda, mesmo que este algo a fazer seja na prática impossível de
se concretizar, e independe da vontade do triste. A tristeza pode ser a conseqüência de
emoções como insegurança, baixa auto-estima e desilusão.
Nos relatos transcritos, observamos que o sentimento de tristeza está presente no
dia-a-dia do indivíduo cego, principalmente quando ele se sente “abandonado” pelos
amigos, pelas pessoas de seu meio. “ O que me deixa triste é ser excluído” (Entrevistado
9); “Ah, me deixa triste o dia que não tenho meus amigos, que não me ligam...”
(Entrevistada 5).
A deficiência causa efeitos no desenvolvimento da personalidade e do processo de
adaptação social do indivíduo. O sentido da deficiência na vida de uma pessoa é o produto
do entrelaçamento de sua história pessoal com o meio social onde vive. Sobre o indivíduo
considerado deficiente, recairá o estigma da “incapacidade”, da “invalidez”.

4. PALAVRAS FINAIS
As dificuldades encontradas pelas pessoas com deficiência visual relacionadas à sua
percepção corporal, sua mobilidade e tudo que se relacione com suas ações são muitas.
Bem como poderia ser com a pessoa vidente. Porém, a falta de estimulação precoce, os
obstáculos encontrados no seu dia-a-dia dificultando sua acessibilidade, a pouca oferta de
espaços, para através do esporte e do lazer, desenvolver suas necessidades sócio-afetivas
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são maiores do que as demais pessoas. A carência dessas atividades pode levá-los a um
processo desencadeador de severos comprometimentos relacionados à independência,
segurança, aquisição e desenvolvimento de conceitos, integração com o meio e consigo
mesmo, assumir ou concluir tarefas de conhecimento e satisfação pessoal.
Essas relações entre imagem corporal, aspectos motores e de bem estar psico-social
são fundamentais para se compreender a complexidade do universo da imagem corporal,
auxiliando na melhor compreensão do desenvolvimento desse fenômeno e dos parâmetros
que determinam todo o julgamento de si. Além disso, pode-se levar a especulações sobre
trabalhos no sentido de fazer com que haja uma maior aceitação de si por parte do
indivíduo com deficiência visual.
Encontramos algo de profundo questionamento à sociedade, o meio em que vive
este público. A influência do social no pessoal é um fator existencial pouco considerado
numa sociedade individualista, mas determinante para se compreender as limitações e
possibilidades do indivíduo cego. Ao analisar o contexto das pessoas com deficiência
visual entrevistadas, não fica difícil perceber que estes indivíduos, carentes do sentido da
visão, não têm as mesmas condições e oportunidades de viver plenamente sem estímulos.
Ao fazer parte de uma sociedade, o ser humano quer ter direitos e deveres, para ter a
oportunidade de participar de modo efetivo do seu processo de construção, estabelecendo
relações de troca, como qualquer outro.
Através de atividades específicas e sua total interação com o meio, pessoas com
deficiência visual poderão ter mais oportunidades de conquistar seu espaço como cidadãos,
independente de sua deficiência. A afirmação da individualidade e o desenvolvimento de
uma identidade positiva dependem fortemente disto, contribuindo significativamente para
uma vida plena desses indivíduos.

REFERÊNCIAS

BRIKMAN, L. A Linguagem do Movimento Corporal. Trad. Beatriz A. Cannabrava.


São Paulo: Summus, 1989.
DIEHL, Rosilene Moraes. Jogando com as Diferenças. Jogos para Crianças e Jovens
com Deficiência. São Paulo: Phorte, 2006.
GALLAHUE, David L., OZMUN, John C. Compreendendo o Desenvolvimento Motor:
Bebês, Crianças, Adolescentes e Adultos. Trad. Maria Aparecida da Silva P. Araújo. São
Paulo: Phorte, 2003.
GANDARA, Mari. A Expressão Corporal do Deficiente Visual. Campinas: Gandara,
1992.
PORTO, E. A Corporeidade do Cego. Novos Olhares. Porto Alegre: Mennon,2005.
SAÚDE, Educação e Prevenção, Coleção. Psicologia para Leigo. Porto Alegre:
Conceito, 2001.
SCHILDER, P.A. Imagen do corpo: as energias construtivas da psique . São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
TAVARES, M.C.C. Imagem Corporal: Conceito e Desenvolvimento. São Paulo:
Manole, 2003.

Ms. Rosilene Moraes Diehl – professora do Centro Universitário UNILASALLE, Canoas,


RS
Paulo Peixoto – Acadêmico do Centro Universitário UNILASALLE, Canoas, RS
rosilenediehl@hotmail.com
Av. Mariland, 1471 Porto Alegre, RS CEP 90440 – 191
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OBJETOS DE REFERÊNCIA
Promovendo o desenvolvimento de conceitos e habilidades de
comunicação em crianças com deficiência visual e
dificuldades de aprendizagem.

Título Original: Objects of Reference


Royal National Institute for the Blind, 1993

Tradução: Sylvia Miguel - Projeto AHIMSA - HILTON PERKINS, 2002

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PREFÁCIO

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AGRADECIMENTOS

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FOTOGRAFIA: Robert Maidment-Evans, Linden Lodge School, Wandsworth.

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2. O que “Objetos de Referência” podem representar? 06
3. Por que usar “Objetos de Referência”?. 09
4. Quais crianças podem se beneficiar com “Objetos de Referência”? 09
5. Quais habilidades e critérios precisam ser desenvolvidos a fim de se colocar em
prática “Objetos de Referência”? 10
6. Como os “Objetos de Referência” podem ser apresentados a
uma criança 11
7. Colocando em prática. 12
a) Apresentando outros objetos de referência 20
b) Reduzindo e simplificando cada objeto 13
c) Separando o Objeto de Referência daquele ao qual se refere 16
d) Seqüenciando o uso dos Objetos de Referência;
montando esquemas 16
e) Apresentando mais informações com os objetos 18
f) Usando Objetos de Referência como linguagem expressiva. 19
8. Diferentes maneiras de usar Objetos de Referência 20
9. Usando Objetos de Referência para abrandar
o comportamento desafiador 21
10.Objetos de Referência e outras formas de comunicação 21
11.Encorajando uma criança a escolher um
novo objeto e seu significado 21
12.Rotulando objetos 22
13.Conclusão; a importância de cuidadoso planejamento e avaliação 22
14.Leitura complementar 23
Bibliografia 24

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1 O que são Objetos de Referência? Simplificadamente, Objetos de Referência


são objetos que têm significados especiais associados a eles. Eles estão para
alguma coisa, praticamente da mesma forma que as palavras. Por exemplo, se
uma criança parcialmente alfabetizada tomar um símbolo como este:

5:87: (A B 8

e uma criança cega tomar uma versão em braile desses pontos:

em cada caso, para querer dizer a mesma coisa, uma criança que não pode ler ou
escrever pegaria uma bola de plástico (da piscina de bolas) para se expressar.

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- Atividades. Neste ponto, os objetos irão freqüentemente coincidir com a


mesma coisa de um dado item utilizado em determinada atividade, como
no exemplo:

Bebida ..................................representada por uma caneca


Algo para comer...................representado por uma colher
Nadar................................... uma parte de uma toalha
Piscina de bola.................... uma bola de plástico

!
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- Horários. Este item tende a ser abstrato –pelo menos no que diz respeito
à compreensão infantil. Por exemplo, eu tenho utilizado um pequeno
relógio de plástico para querer dizer 16h00 (momento em que algumas
crianças vão para casa, outras tomam seu chá, e o resto sai para brincar).

- Qualificadores. Assim são chamados porque qualificam outros objetos.


Incluídos nesse grupo estão conceitos como sim e não; mais e acabou.
Vale lembrar que estes certamente são conceitos abstratos:

!
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- Lugares. Representados da seguinte forma:

Sala de aula........................................um pequeno sino, preso na porta


Casa...................................................a chave da porta da frente

- Pessoas. Para quem quer que seja representado, podemos, por exemplo,
tomar uma pulseira, ou um pedaço de material de que é feito um objeto
ou roupa.

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3 Por que usar ‘Objetos de Referência’? Objetos de Referência podem ser


utilizados em muitas formas que podem ser utilizadas ao ler e escrever. Três
principais razões acorrem à mente:

- Ajudar a lembrar coisas. As pessoas geralmente escrevem as coisas


como um meio de não esquecê-las. Pense numa lista de compras, por
exemplo, ou numa lista de endereços, diários e agendas. Nós os
utilizamos porque não somos capazes de confiar apenas na memória.

- Entender melhor as coisas. Você desenvolve idéias difíceis no papel?


Considere este estudo. O fato de ver o relato por completo e ser capaz de
ler e reler por si próprio, tornam os conceitos mais fáceis de entender do
que simplesmente ouvir alguém ler o texto em voz alta?

- Comunicar-se com outras pessoas. Desde um recado para o leiteiro a


um cartão postal enviado para casa, ser capaz de ler e escrever nos
possibilita comunicarmo-nos com outras pessoas.

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As crianças que mais deverão se beneficiar ao utilizar “Objetos de Referência” são
as:

- Crianças com deficiência visual – ou com problemas para interpretar o


que vêem;

ou aquelas as quais
- a escrita grande, o braile ou Moon (um sistema táctil alternativo de
leitura) não se apresentam como opções apropriadas – embora
aprender a usar objetos simbolicamente possam tornar esses métodos de
alfabetização mais accessíveis.
“Objetos de Referência” tem sido utilizado com jovens surdocegos durante algum
tempo e, cada vez mais, vem desempenhando um importante papel na educação de
!
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crianças com problemas de visão e que também são portadoras de outras deficiências.
O potencial para ajudar jovens que possuem conhecimentos de braile ainda precisa
ser avaliado propriamente. Além disso, pode ser que pessoas de qualquer idade que
apresentam condições degenerativas, como é o caso do mal de Alzheimer, possam ser
ajudadas a utilizar suas faculdades mais efetivamente através da apropriada e
suficientemente precoce introdução dos métodos de “Objetos de Referência”.
É importante ter em mente que crianças com relativamente boa visão possam ter a
capacidade de usar desenhos em vez de objetos, ou abstrair o desenho a partir do
objeto.

5 Quais critérios e habilidades precisam ser desenvolvidos a fim de colocar


em prática “Objetos de Referência”? A fim usar propriamente “Objetos de
Referência”, a crianças precisará desenvolver:

a. Habilidade de diferenciar objetos pelo toque (e talvez por meio de


limitada visão);

b. Uma avaliação, em certo nível, de que um objeto pode significar


determinada coisa;

c. A capacidade de lembrar que determinado objeto tem um


significado particular;

Ao se iniciar o uso de “Objetos de Referência”, esses aspectos não devem ser


colocados ou, devem existir apenas de forma rudimentar. No entanto, um programa
que utiliza símbolos de objetos irá promover ativamente a aquisição dessas
qualidades.

6 Como “Objetos de Referência” pode ser apresentado a uma criança? A


forma como o método pode ser apresentado depende do nível de
desenvolvimento da linguagem da criança.
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- Se a criança tem linguagem suficientemente receptiva, então uma


explicação verbal ou simbólica pode acompanhar a introdução dos primeiros
objetos. Por exemplo, a pessoa que trabalha com a criança deve dizer: “Esta
caneca significa ‘beber’’, depois do que, a caneca é apresentada e o gesto é
seguido imediatamente pela bebida. Tal explicação e ação complementar
devem ser repetidos quantas vezes necessário para que a criança faça a
conexão.

- Se um nível suficiente de linguagem ainda não foi adquirido, então o


professor ou acompanhante terá que contar com a sucessiva apresentação de
um objeto e aquilo que ele representa. Pode ser que se precise repetir esse gesto
muitas vezes, durante um longo período, antes que a associação seja feita na
mente da criança. Neste caso, a constância é particularmente importante.

Em ambos os casos, o objetivo principal é fazer com que a apresentação do objeto


dispare o pensamento sobre a atividade, lugar ou pessoa a que o mesmo está
associado. Assim, ele terá se tornado para a criança um “Objeto de Referência”.
Aqui estão algumas dicas para dar início:

- Conheça algo que a criança realmente tenha interesse ou


preferência. Se a coisa favorita da criança é milkshake de chocolate,
então você pode decidir que o primeiro “Objeto de Referência” estará
relacionado a isto.

- Selecione um objeto que seja tão característico quanto possível e que


a criança ache atraente. Escolha um objeto fácil de se reconhecer pelo
toque. É importante que a criança ache o objeto atraente, que queira
senti-lo e ‘possuí-lo’.

- Primeiramente, certifique-se de que exista a mais simples ligação


entre o objeto e seu significado. Poderá ser sábio iniciar com um
simples objeto ‘concreto’, que tenha uma conexão física direta com o

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objeto ao qual se refere. O que inclui, por exemplo, uma caneca para
‘bebida’ e uma colher para ‘comida’.

No entanto, este princípio não é apropriado para todos os casos. A forte


motivação para entender ou expressar um pensamento mais abstrato, como ‘hora
de ir para casa’, ou o particularmente prazeroso toque (ou talvez aparência) de um
objeto pode ser um fator muito mais importante no que diz respeito à compreensão
da criança.

7 Colocando em Prática. A bem-sucedida introdução dos primeiros Objetos de


Referência é demonstrada de diversas formas destacadas nos parágrafos que
seguem. Enquanto algumas das sugestões podem ser apropriadas para uma
criança em particular, o mesmo pode não ocorrer para outras crianças. O
progresso deve ser construído em diversas frontes de uma vez, ou em apenas
uma área de cada vez. As idéias podem ser adotadas em qualquer ordem, e não
necessariamente na apresentada aqui.

a) Apresentando outros objetos de referência. Uma vez que a criança tenha


apreendido o significado de um Objeto de Referência (algo que pode acontecer
quase instantaneamente ou levar meses de esforços), outros objetos devem ser
apresentados. Diversos fatores devem ser levados em consideração enquanto o
próximo passo é abordado. Por exemplo:

- Contraste. É uma sábia decisão selecionar, inicialmente, objetos que


apresentam fortes contrastes, tanto em textura, como em tamanho, cor
(quando apropriado) e significado. Assim, a possibilidade de confusão
com outros Objetos de Referência serão mínimos. Gradualmente, poderá
ser possível utilizar Objetos de Referência que são menos característicos
ao toque (aqueles cujas saliências são menos claramente definidas).

- Motivação. Até que um Objeto de Referência se torne uma fonte de


motivação em si mesmo --o que pode acontecer à medida que a criança
começa a gostar de sua nova descoberta e a controlar o mundo ao
redor—, os professores ou responsáveis devem sempre manter em mente
!
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-.
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alguma preferência ou aversão particularmente forte da criança. Sobre o


que a criança gostaria de pensar ou ler a respeito, ou que tipo de coisa
ela gostaria de nos comunicar?

- Grau de Abstração. Conforme a criança alcançar suficiente grau de


compreensão, objetos mais abstratos devem ser gradualmente
apresentados, os quais têm menos conexão física imediata com aquilo
que representam.

b) Reduzindo e Simplificando cada objeto. Pode ser possível reduzir ou


simplificar alguns ou todos os objetos que uma criança usa. Há duas razões pelas
quais isso pode ser desejável:

- Economizar espaço. Objetos de uso cotidiano podem ocupar muito


espaço e ser de difícil manuseio, especialmente se a criança construir um
vocabulário rico!

- Promover o aprendizado. Existem benefícios educacionais, os quais


estão descritos na página 13.

Os objetos poderão ser reduzidos no tamanho, simplificados, ou ambos.

- Redução. Tome, por exemplo, a bolinha da piscina de bolas mostrada na


página 2. Ela poderá ser substituída por uma outra ligeiramente menor e,
mais tarde, por uma outra ainda menor, e assim por diante. Esteja alerta,
no entanto, para a redução do tamanho dos objetos e pense na conexão
com seu equivalente, no caso de crianças visualmente debilitadas. Por
exemplo, para o toque, um pequeno modelo de carro tem pouca ou
nenhuma semelhança ao objeto real. A miniaturização, nesse contexto

(coisa que é muito mais visual), pode ser bastante inapropriada para
crianças cegas nos primeiros estágios de aprendizado. Poderá ser muito
melhor representar o transporte/viagem num automóvel usando-se parte
do veículo com a qual a criança tem contato corriqueiro. Assim, uma boa
forma de representar a ação ‘andar de micro-ônibus’, por exemplo, pode
ser com o uso de uma fivela de cinto de segurança.

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- Simplificação. Este processo em dois estágios principais. Primeiro,


aqueles que trabalham com a criança devem descobrir as características
que estão sendo usadas para identificar um objeto e, então, gradualmente
eliminar aquelas características julgadas como sendo de menor
importância. Por exemplo, uma criança pode ter uma caneca para
significar ‘bebida’. Mas como a caneca está sendo identificada? Pela
borda? Ou pela aba? Nesse caso, será que o resto da caneca não pode ser
removido e, ainda assim, ser aceito pela criança com o significado de
‘bebida’?

Mais tarde, poderá ser possível simplificar as características restantes. Por


exemplo, a aba da caneca poderia ser substituído por semi-círculo plano.

Conforme os objetos são reduzidos em tamanho e simplificados, será possível


gruda-los em cartões. Se esta é a meta, conforme os objetos são modificados com
o passar do tempo é sensível mudar para uma representação bi-dimensional.
Naturalmente, com alguns objetos nenhuma modificação será necessária.

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Ao construir cartões como este, os objetos representados poderão ser


dispostos como se fossem um livro, o que é uma forma conveniente para
armazenar novos objetos e manusear. Este formato também traz os Objetos
de Referência a um passo mais perto da leitura, em sua forma convencional.

Finalmente, os objetos, simplificados e reduzidos onde necessário, podem


ter suas formas copiados por processo térmico. Trata-se de um processo de
moldagem a vácuo, no qual uma fina lâmina de plástico é aquecida e sugada
sobre o objeto em questão, imitando cada contorno seu.

Dessa maneira, os Objetos de Referência podem ter, de forma relativamente


fácil, uma ‘produção em massa’ e, mais uma vez, trazem a criança mais
perto de ler pelo sistema braile ou Moon. Na realidade, não há razão pela
qual um objeto não deva ser, convenientemente, transformado em uma letra
em braile ou Moon. Por exemplo, uma forma simplificada da aba da caneca
mostrada na página 11 pode ser interpretada como um ‘b’, de ‘bebida’, no
alfabeto Moon.

Os benefícios educacionais ao se comprometer com programas de redução ou


simplificação podem ser enormes, com o discernimento que tais sistemas oferecem à
forma como a criança raciocina. Quanto uma bola de uma piscina de bolas pode ser
reduzida e ainda ser aceita como uma representação da original? Até que ponto
sucessivas reduções podem ser transformadas para que a equivalência de um objeto
seja mantida na mente da criança? Normalmente, isso acontece até o ponto onde as
coisas aparentemente se fragmentam (pode-se descobrir, por exemplo, que uma
criança não irá aceitar uma chave moldada pelo processo térmico como a
equivalente ao objeto original). Desta forma, nota-se que o processo de aprendizado
para professores e responsáveis está realmente começando e, assim, futuros
programas individuais de aprendizado poderão ser planejados com precisão.
Precisamos saber exatamente o estágio em que a criança se encontra para que
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tenhamos pistas para darmos os próximos passos durante o processo de


desenvolvimento e encorajar tal progresso.

c) Separando o Objeto de Referência daquele ao qual se refere. O Objeto de


Referência pode ser gradualmente separado cada vez mais daquele ao qual se
refere. Assim, a bola da ‘piscina de bolas’ pode ser apresentada juntamente com
uma indicação de “em um minuto/dentre em breve”, por exemplo. A atividade
(brincar na piscina de bolas), portanto, ocorrerá depois de passado o tempo
indicado, período que poderá, aos poucos, ser estendido conforme a criança
começa a aceitar o novo conceito. Desta forma, os objetos poderão, cada vez mais,
ser utilizados de maneira abstrata.

d) Seqüenciando o uso de Objetos de Referência; realizando esquemas. Ao ter


separado o objeto de referência daquele ao qual se refere, a criança, em seguida,
começa a antecipar seqüências de eventos, e isso pode incluir duas atividades. Por
exemplo:
“Depois da piscina de bolas, vamos ter uma bebida.”
Ou:

“Depois da natação, será hora de ir para casa.”


Sobre uma mesa, essas idéias podem ser apresentadas da esquerda para a direita,
como no processo de leitura. Se duas atividades podem ser apresentadas com sucesso,
então tente três. Por exemplo:

“Depois de nadar, vamos ter uma bebida e então será hora de ir para casa.”

Então, tente quatro, cinco atividades e assim por diante. Mais uma vez, será
importante avaliar o nível de desenvolvimento da criança nesta área. Quão longa
pode ser a cadeia de futuras atividades que uma criança pode apreender? Até quanto
esse número pode ser estendido? Entendendo como os eventos são seqüenciados,
uma criança pode começar a criar conceitos sobre o passar do tempo.

Uma escala de atividades pode ser construída por todo o período da manhã, para um
dia, uma semana ou até um período mais longo. Especialmente com portadores de
múltipla deficiência, é importante ter em mente que a ‘agenda’ deve ser válida para
todos os momentos do dia; assim, se a escala de atividades será usada, não deve parar
às 16h00, por exemplo, ou no momento em que termina o dia escolar. Imagine, como
professor, ter um relógio enquanto você estava na escola e, então, ter que lidar sem
ele durante o período noturno.

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A constância é um elemento vital na educação de crianças com dificuldades de


aprendizado; no entanto, o inesperado sempre pode acontecer e uma agenda palpável
(táctil) ajuda a esclarecer mudanças na escala de atividades. Por exemplo, se a piscina
não pode ser utilizada, esta atividade poder ser substituída na agenda por uma outra, e
a alteração poderá ser mostrada à criança. Assim, a criança poderá aceitar com mais
facilidade a mudança em uma atividade favorita do que aceitaria de outra forma.

A seqüência de objetos pode ser utilizada não apenas para antecipar futuros
acontecimentos, mas também para referir-se a eventos passados. Para a típica
pergunta:

“O que você fez esta manhã?”

a qual muitas crianças com dificuldades de aprendizado acham tão difícil, os objetos
poderão fornecer o necessário despertar para a memória. Para as crianças as quais a
apreensão da linguagem ainda encontra-se nos estágios iniciais –fase em que o
passado, presente e futuro são freqüentemente confundidos—, os Objetos de
Referência poderão ser de valor inestimável.
A escala de atividades mostrada abaixo é feita de uma série de caixas com tampas
que podem ser fechadas para indicar que uma atividade acabou. A intenção é que a
escala seja consultada no início do horário escolar e que seja atualizada, fechando-se
a tampa apropriada, a cada mudança de atividade. Momentos antes ao horário de ir
para casa, os eventos do dia poderão ser todos verificados. Estará sempre disponível
para consultas.

e) Apresentando mais informações com os objetos. Uma vez que a criança possa
entender, com os Objetos de Referência, que atividades básicas tais como ‘piscina de
bolas’, nadar, comer e outras, irão acontecer, e quando acontecerão, em relação a
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outras atividades, então a forma como essas informações são apresentadas podem ser
refinadas de diversas maneiras. Por exemplo, quem irá nadar? Nós iremos tomar
alguma coisa na sala de aula ou na sala de lanche? As quatro perguntas principais que
precisam ser respondidas provavelmente se resumem a:

O que?

Quando?

Onde?

Com quem?

O objeto que representa a atividade irá responder a primeira dessas perguntas e sua
posição em relação a outros objetos irá fornecer a informação questionada pelo
segundo objeto.

O que? Primeiro objeto P.E

Onde? Segundo objeto sala de ginástica

Com quem? Terceiro objeto Sr. King

Os objetos podem ser anexados com Velcro para facilitar a arrumação dos cartões de
acordo com as necessidades do momento.

f) Usando Objetos de Referência como linguagem expressiva. Uma vez que as


crianças tenham se familiarizado com o processo de receber informações por meio de
Objetos de Referência (como saber o que está prestes a acontecer, por exemplo), elas
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poderão ser encorajadas a usar objetos de referência de uma forma expressiva, a fim
de escolher por elas mesmas o próximo passo da ação ou, quem estará participando,
onde e quando.

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Esta idéia poderia ser apresentada oferecendo-se à criança a escolha de dois objetos,
representando, digamos, um copo de leite e um copo de limonada, e deixando a
criança escolher a opção preferida. Nessa situação de escolha ‘forçada’, a seleção
poderia ser feita entre três ou mais objetos.

Se uma agenda de atividades está em operação, um espaço poderia ser deixado para
ser preenchido pela criança com a atividade de sua escolha, talvez como recompensa
por ter realizado com êxito a tarefa anterior.

Frases poderiam ser completadas com objetos sobre uma mesa, possivelmente usando
um quadro de Velcro ou alternativa que se encaixe. Por exemplo, em resposta à
pergunta

“O que você fez esta manhã?”

a criança deverá selecionar e ordenar os objetos apropriados entre diversos outros


objetos apresentados como opção. Ao usar tais objetos, a criança poderá comunicar,
por exemplo, que:

“Nós tivemos música [representada por sinos] no ginásio [um apagador] com Anna
[bracelete de metal]”.

8 Diferentes maneiras de utilizar Objetos de Referência. A possibilidade de


usar Objetos de Referência para praticar seqüência da esquerda para a direita já
foi mencionada –potencialmente, uma forma mais significativa de ensaiar esta
habilidade do que o tradicional (?quadro enganchado na parede). Os objetos
também podem ser organizados em grupos. Por exemplo:

“Coloque todas as atividades de casa [objetos] dentro da caixa da esquerda e todas


as atividades escolares [objetos] dentro da caixa da direita”.

Vale repetir que as tarefas educacionais relativas à família assumem um significado


mais profundo para a criança. Ele ou ela não está escolhendo simplesmente uma série
de objetos impessoais, mas coisas que realmente significam alguma coisa, e isso
poderá talvez levar a uma linguagem e discussão complementares. Crianças que
utilizam os mesmos objetos de referência podem trabalhar juntas e interagir uma com
a outra, em atividades conjuntas de mesa.
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9 Usando objetos de referência para abrandar o comportamento desafiador.


Com sorte, a utilização de objetos de referência irá ajudar a criança a entender
melhor o seu mundo e aperfeiçoar sua habilidade para comunicar-se com
outras pessoas. Esses dois fatores por si poderão levar à redução de certas
formas do comportamento desafiador. Ao ser capaz de antecipar o que vai
acontecer em seguida, com quem e onde, e ao saber quando determinada tarefa
está terminada (através do uso de um objeto para significar ‘terminou’), os
sentimentos de incerteza e, conseqüentemente, ansiedade poderão ser
reduzidos consideravelmente. A capacidade de expressar suas necessidades
com mais exatidão às outras pessoas poderá amenizar os sentimentos de
frustração.

Além do mais, a dependência da criança em relação a um adulto sempre pronto a


interpretar o mundo tenderá a diminuir. Para saber o que irá acontecer esta tarde,
consulte a agenda de tarefas! Com o uso de objetos de referência, um
relacionamento interpessoal intenso de confiança pode ser amenizado, uma vez
que a criança aprende a receber mais informações do meio que a cerca. Assim, a
tendência ao comportamento desafiador poderá ser menor.

10 Objetos de Referência e outras formas de comunicação. Objetos de


referência não são um meio exclusivo de aprendizado; esse sistema pode ser
utilizado em conjunto com outras formas de comunicação tais como sinais e
fala. Se uma criança tem dificuldade com qualquer forma de interação de
significado, pode ser útil explorar todas as janelas que se abrem.

11 Encorajando uma criança a escolher um novo objeto de referência e seu


significado. Em uma caixa em que são apresentadas diversas possibilidades de
objetos de referência, uma criança pode ser “convidada” a escolher qual deles a
criança gostaria que representasse uma nova atividade, um novo horário, lugar
ou uma pessoa. Desta forma, o aprendiz verdadeiramente seria “dono” do
objeto como parte de sua linguagem pessoal. Esse sistema pode apresentar
dificuldades, no entanto, se diversas crianças estão sendo ensinadas ao mesmo
tempo; isso, do ponto de vista prático, já que um determinado objeto escolhido
pode variar de uma criança para outra. Imagine, por exemplo, ter seis
diferentes símbolos e todos significando “hora do almoço”! Rotular tais objetos
pode ser uma forma de aliviar este problema.
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12 Rotulando objetos. Todos os objetos deveriam ser rotulados para que todos
entendam imediatamente o que a criança quer dizer ou precisa. A idéia de
“significado duplo” não cessa somente ao se escrever seu significado. Os
objetos também podem ser rotulados em braile ou Moon, por exemplo. É até
possível relacionar os diferentes objetos, se os distintos símbolos envolvendo
uma atividade em particular, uma pessoa, lugar, ou horário, estejam ligados
entre si, interagindo juntos, como, por exemplo, uma placa de trânsito que é
indicada em duas línguas, digamos, em francês e inglês.

13 Conclusão: a importância de um planejamento cuidadoso e a avaliação.


Para finalizar, gostaria de ressaltar como é importante planejar muito
cuidadosamente antes de iniciar um esquema que utiliza Objetos de Referência.
O desenvolvimento de uma criança pode ser algo difícil de se prever e seria
desastroso iniciar com certos objetos e perceber que levarão a contradições
mais tarde e, assim, terão de ser abandonados. Por exemplo, um pedaço de
toalha, escolhido para significar “natação”, poderia ter sido melhor utilizado
para representar “tomar banho” ou até “secar-se”.

Da mesma forma, ao planejar uma agenda de tarefas para um tempo relativamente


longo, como uma semana, é aconselhável que o período se estenda por cinco ou
sete dias de uma vez, a fim de se eliminar possíveis obstáculos. É surpreendente as
coisas que podem ser deixadas de lado involuntariamente! Mesmo com essas
precauções, eu recomendaria que se tenha uma caixa de objetos “estepe”, ou de
sobra, prontos para que lhes sejam atribuídos novos significados. Uma situação
estranha e perturbadora pode subitamente aparecer, por exemplo, ou um adulto
não familiarizado com aqueles símbolos pode chegar inesperadamente; e tais
circunstâncias podem demandar a criação de novos Objetos de Referência no calor
do momento.

No estágio de planejamento para a utilização de objetos de referência, lembre-se


de envolver todas as pessoas que tenham contato com a criança, na escola e em
casa, se possível. Objetos de Referência não são criados com a mera intenção de
serem usados sobre uma mesa em que se apresentem atividades que preencham
meia hora, toda manhã, antes do recreio. Da mesma forma que temos constante
acesso à leitura e à escrita ajudando-nos a entender melhor as coisas, a nos
lembrar das coisas e a comunicarmo-nos com as pessoas, também os Objetos de
Referência podem informar tudo sobre a vida da criança, tanto na escola como
fora dela. Para que isso aconteça, é essencial que os objetos sejam usados
consistentemente, mesmo quando as pessoas e as circunstâncias mudam.
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Desde o princípio, é importante a cooperação de todos, e será preciso um padrão,


ou que todos cheguem a um acordo sobre como os objetos de referência serão
utilizados. Um treinamento será certamente necessário. Mantenha sob cuidadosa
atenção as abordagens que serão adotadas, de forma que, quando um orientador
sai, ou quando as situações mudam, a estrutura permaneça a mesma e o ambiente
de aprendizado da criança permaneça intacto.

Após os estágios iniciais, o progresso irá depender de registros e avaliações


sistemáticas, que irão possibilitar que os novos passos sejam mapeados com
segurança. Tenha metas claras, discutidas com todos os envolvidos, incluindo, na
medida do possível, a criança. Sempre busque melhorar: a criança irá progredir
tanto quanto nossas idéias, imaginação e perseverança permitirem.

14 Leitura Complementar. Existem muitos livros e artigos que tratam com


maior profundidade e amplitude alguns dos tópicos aqui introduzidos. Entre
eles, incluem-se:

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./
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BIBLIOGRAFIA

Confrontation between the Young Deaf-Blind Child and the Outer World
(Comparação entre a criança surdocega e o mundo exterior), de Mary Rose
Jurgens, com introdução de J. Van Dijk, publicado por Swets & zeitlinger B.V.,
Amsterdam e Lisse, 1977.

A Development Programme for Deaf-Blind Children (Um programa de


desenvolvimento para crianças surdocegas), de Tom Visser, em ‘Taking Sense’,
Vol 31, nº 3 (outono, 1985).

Objects of Reference (Objetos de Referência), de Laura Pease, Sue Ridler, Jon


Bolt, Sue Flint e Chris Hannah, em ‘Taking Sense’, Vol 34 (primavera, 1988)

Educating Fátima (Educando Fátima), de Jon Bolt e Sue Ridler, em ‘Taking


Sense’, Vol 35 (inverno, 1989)

Objects Symbols: A Communication Option (Objetos-símbolo: Uma escolha de


comunicação), de Ylana Bloom, publicado por North Rocks Press, (361-365 North
Rocks Road, North Rocks 2151, Austrália, 1990)
Este livro foi publicado pela
Royal National Institute for the Blind
RNIB oferece um vasto leque de services para crianças com deficiências visuais suas famílias e profissionais, incluindo:
- acompanhamento para crianças com deficiências visuais em escolas regulares
- escolas e colégios para crianças com deficiências visuais e jovens
- serviços de treinamento
- informações e publicações

Para mais detalhes, por favor, contate:


Educations Information Service
RNIB Education & Leisure Division
224 Great Portland Street
London W1N 6AA
Tel.: (071) 388-1266
Ou
RNIB National Education Centre
Garrow House
190 Kensal Road
London W10 5BT
Tel.: (081) 968-8600
Tradução: Sylvia Miguel - Projeto AHIMSA - HILTON PERKINS, 2002

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ARTIGOS
Perspectivas da atuação
fonoaudiológica diante do
diagnóstico e prognóstico
da surdocegueira

Brasília M. Chiari*
Eliane L. Bragatto**
Regiane Nishihata***
Carolina A. F. de Carvalho****

Resumo

A audição e a visão tratam de duas entradas sensoriais importantes para o desenvolvimento e a


conservação de uma plenitude na comunicação. Há enfermidades em que, além da observação clínica e
aplicação de testes empíricos, a avaliação qualitativa é imprescindível, como nas síndromes ou doenças
que acometem os sistemas auditivo e visual, simultaneamente. A surdocegueira na Síndrome de Cogan é
caracterizada por disacusia neurossensorial, alterações vestibulares e oftalmológicas, além de
complicações sistêmicas; é rara e de causa desconhecida, acometendo predominantemente indivíduos
adultos jovens, da raça branca e sem preponderância de sexo. Neste estudo de caso, avaliamos de forma
qualitativa um indivíduo com diagnóstico de Síndrome de Cogan, incluindo questões relativas aos aspectos
de vida pessoal, social e profissional, nos períodos pré e pós-diagnóstico, enfatizando as dimensões da
funcionalidade da sua comunicação. Discutimos critérios a serem estabelecidos pela equipe
multidisciplinar para tais casos particulares, quanto às condutas na avaliação e orientação familiar, e
apontamos diretrizes do processo de reabilitação, especialmente a terapia fonoaudiológica e a realização
da cirurgia de implante coclear.

Palavras-chave: surdez; cegueira; síndrome de Cogan; implante coclear; comunicação.

Abstract

Hearing and Vision are two important inputs for an individual to develop and keep full
communication. There are illnesses, whose treatment, besides the clinical observations, need the
application of qualitative assessment, such as illnesses and syndromes that affect hearing and vision
simultaneously. The Cogan Syndrome, a sort of deafblindeness, is characterized by sensorineural
hearing impairment, vestibular and ophthalmological alterations, in addition to systemic alterations.
It is a rare syndrome triggered by an unknown factor that affects white young-adults, irrespective of
gender. In this case study of a subject with Cogan Syndrome, we analysed qualitatively, social, personal
and professional aspects, with emphasis on the communication effectiveness, before and after diagnosis.

*
Professora Titular da Disciplina dos Distúrbios da Comunicação Humana do Departamento de Fonoaudiologia da
Unifesp/EPM. ** Mestre em Distúrbios da Comunicação Humana – Campo Fonoaudiológico pela Unifesp/EPM; especializada
em Neuropsicologia pela Unifesp/EPM. *** Especialista em Distúrbios da Comunicação Humana – Campo Fonoaudiológico pela
Unifesp/EPM. **** Especialista em Distúrbios da Comunicação Humana – Campo Fonoaudiológico pela Unifesp/EPM.

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 371-382, dezembro, 2006 371


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Brasília M. Chiari, Eliane L. Bragatto, Regiane Nishihata, Carolina A. F. de Carvalho
ARTIGOS

We propose criteria of assessment and family orientation to be establish by a multi-disciplinary team


in similar cases and suggest guidelines for rehabilitation, specially speech therapy intervention and
cochlear implant.

Key-words: deaf; blind; Cogan syndrome; cochlear implant; communication; comunication.

Resumen

La audición y la visión son de dos entradas sensoriales importantes para el desarollo y conservación
de una plenitud en la comunicación. Hay enfermedades donde, además de la observación clinica y
aplicación de examenes empíricos , la evaluación cualitativa es imprescindible, como en las síndromes
o enfermedades que acometen los sistemas auditivo y visual, simultáneamente. La sordoceguera en la
síndrome de Cogan es caracterizada por disacusia neurosensorial, alteraciones en el vestíbulo y
oftalmológicas, además de complicaciones sistémicas; es rara y de origen desconocida, acometiendo,
principalmente individuos adultos jóvenes, de etnia blanca y sin preponderancia de sexo. En este
estudio de caso evaluamos de manera cualitativa un individuo con diagnóstico de Síndrome de Cogan,
incluyendo cuestiones relativas a los aspectos de vida personal, social y profesional, en los períodos
antes y después del diagnóstico, enfatizando las dimensiones de la funcionalidad de su
comunicación.Discutimos criterios que serán establecidos por el equipo multidisciplinar para tales
casos particulares, cuanto a conductas en la evaluación y orientación familiar, y apuntamos directrices
del proceso de rehabilitación, especialmente la terapia fonoaudiológica y la realización de la cirugia
de implante coclear.

Palabras claves: sordera; ceguera; síndrome de Cogan; implante coclear; comunicación.

Introdução municação, desenvolvimento e educação, neces-


sitando de programas exclusivos para atendimen-
O desempenho comunicativo eficaz é depen- to em suas especificidades.
dente da integridade das funções sensoriais, essas, Na I Conferência Mundial Helen Keller, reali-
por sua vez, o portal de nossa percepção. Bruner zada em 1977, foi aprovada a definição
propôs que
São surdocegos os indivíduos que têm uma perda
[...] toda percepção é um processo ativo, inerente- substancial da visão e audição, de tal modo que a
mente complexo de classificar informações novas combinação de suas deficiências causa extrema di-
em categorias conhecidas, sendo um evento inti- ficuldade na conquista de habilidades educacionais,
mamente ligado às funções de abstração e genera- vocacionais, de lazer e sociais.
lização da linguagem. (Giacaglia, 1990)
O Grupo Brasil de Apoio ao Surdocego e ao
A surdez e a cegueira prejudicam duas im-
Múltiplo Deficiente Sensorial define:
portantes modalidades sensoriais. Há várias
doenças e síndromes cujas manifestações acome- É uma deficiência única, com graves perdas visual
tem o indivíduo com as deficiências visual e au- e auditiva combinadas. Essa combinação leva a
ditiva, simultaneamente. Profissionais de diver- pessoa surdacega a ter necessidade de formas espe-
sas áreas postulam que tais indivíduos não devem cíficas de comunicação, para ter acesso à educa-
ser considerados como portadores de deficiência ção, lazer, trabalho, vida social etc.
múltipla e sim de “surdocegos”, por se tratar não
apenas da somatória de perdas, mas de um fator Da mesma forma, o termo surdocego já se
multiplicador, em que a combinação da privação encontra definido nos Parâmetros Curriculares
de sentidos resulta em severos problemas na co- Nacionais/MEC, sob o conceito:

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Perspectivas da atuação fonoaudiológica diante do diagnóstico e prognóstico da surdocegueira
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ARTIGOS
A criança surdocega não é uma criança surda que escrita, a audição e as funções motoras orais/
não pode ver e nem um cego que não pode ouvir. deglutição (Giacheti, 2004). Ao mesmo tempo,
Não se trata de simples somatório de surdez e ce- outras ciências que atuam na prevenção, diagnós-
gueira, nem é só um problema de comunicação e tico e tratamento das síndromes, como, por exem-
percepção, ainda que englobe todos esses fatores e
plo, a Otorrinolaringologia, Oftalmologia, Psico-
alguns mais.
logia, Fisioterapia, Neurologia e Psiquiatria, tam-
A surdocegueira é classificada quanto ao tipo bém possuem uma relação com a Fonoaudiologia
em: cegueira congênita e surdez adquirida; surdez no trato desses e de outros diversos tipos de pato-
congênita e cegueira adquirida; cegueira e surdez logia. Assim, as intercorrências genéticas se confi-
congênita; cegueira e surdez adquirida; baixa vi- guram como exemplo claro da oportunidade e
são com surdez congênita; baixa visão com surdez necessidade da atuação de uma equipe transdisci-
adquirida. O surdocego pode ser pré-lingüístico ou plinar no caminho para a efetividade e eficiência
pós-lingüístico. As causas podem ser pré, peri ou clínica e terapêutica.
pós-natais. Desta forma, a Fonoaudiologia pode colabo-
Há mais de 70 enfermidades conhecidas cau- rar na importante identificação junto aos pacien-
sadoras da surdocegueira, entre síndromes e doen- tes de suas necessidades de comunicação e priori-
ças. Dentre estas, encontra-se a Síndrome de dades, estabelecendo metas realistas que efetiva-
Cogan, rara e de causa desconhecida, que acomete mente reduzam seus handicapes e, conseqüente-
predominantemente indivíduos adultos jovens, por mente, proporcionem uma melhor qualidade de
volta dos 25 anos, da raça branca e sem preponde- vida.
rância de sexo.
Na Síndrome de Cogan, há alterações otoneu- Objetivo
rológicas, com crises de vertigem, zumbidos,
desequilíbrio, náuseas e vômitos. A disacusia é Avaliar qualitativamente o desempenho comu-
do tipo neurossensorial, na maioria bilateral. A per- nicativo de um indivíduo com diagnóstico de Sín-
da auditiva pode ser flutuante e evoluir para sur- drome de Cogan, bem como contribuir para o es-
dez profunda e irreversível na maioria dos casos. clarecimento de como é a sua vida e de como é
As alterações oftalmológicas se evidenciam por constituída a compreensão de sua própria doença,
ceratite intersticial, caracterizada por dor, hipere- sugerindo a partir daí formas de avaliação e reabi-
mia ocular, fotofobia, visão turva e lacrimejamen- litação.
to. Outras manifestações sistêmicas incluem
febre, cefaléia e alterações músculo-esqueléticas, Material e método
gastrointestinais, cutâneas, cardiovasculares, gê-
nito-urinárias, vasculares e pulmonares (Grasland, Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Éti-
Pouchot, Hachulla, Blétry, Papo, Vinceneux, ca em Pesquisa da Universidade Federal de São
2004). Paulo, sob o CEP nº 01458/05.
A prática clínica tem demonstrado que, nos
processos de diagnóstico e intervenção referentes Sujeito
a síndromes e distúrbios da comunicação, há uma
integração das Ciências da Genética e Fonoaudio- Trata-se de indivíduo do sexo feminino, 28
logia; enquanto esta estuda a comunicação huma- anos de idade, da raça branca e procedente de São
na e seus distúrbios, aquela estuda a transmissão Paulo, SP. É casada, tem uma filha de 3 anos de
de características biológicas, as quais podem ser idade, cursou até a terceira série do ensino médio e
físicas, químicas, citológicas ou funcionais. Den- exercia o cargo de auxiliar administrativo, em uma
tro de uma equipe multidisciplinar, a Genética atua empresa privada, até o ano de 2002.
com os aspectos de diagnóstico, nosologia, acon- Compareceu ao ambulatório de oftalmologia
selhamento, prevenção, prognóstico, detecção de do Hospital São Paulo, em agosto de 2002, com
portadores, tratamento, entre outros. Já a Fonoau- a queixa de hiperemia ocular; desde então, refere
diologia tem como objetivo caracterizar dentre o piora progressiva da visão. Na mesma época, sur-
espectro clínico geral, as manifestações que envol- giram sintomas vestibulares: zumbido, tontura e
vem a linguagem em suas modalidades oral e vertigem; na seqüência, apresentou queixa auditiva.

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ARTIGOS

O diagnóstico da Síndrome de Cogan foi fechado audição da paciente se apresentou de forma pro-
em conjunto pelos setores de genética e oftalmolo- gressiva e flutuante; em 2002, havia uma perda
gia. Apresentou também um quadro de depressão, auditiva neurossensorial de grau leve apenas na fre-
com antecedentes familiares. qüência de 8000 Hz, na orelha direita; num prazo
Concomitantemente ao déficit auditivo, houve de 12 meses, evoluiu para uma perda profunda
aumento do zumbido e da vertigem, e o resultado bilateral. Os resumos dos limiares auditivos, no pe-
do exame otoneurológico foi sugestivo de síndro- ríodo de agosto de 2002 a julho de 2005, encon-
me vestibular periférica. O comprometimento da tram-se descritos abaixo:

Resumos dos limiares auditivos no período de agosto de 2002 a julho de 2005

Data Orelha Direita


250Hz 500Hz 1000Hz 2000Hz 3000Hz 4000Hz 6000Hz 8000Hz
01/08/02 v. aérea 10 15 10 15 15 20 20 30
v. óssea 15 10 15 15 20
17/06/03 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
08/07/03 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
22/07/03 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
12/08/03 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
25/11/03 v. aérea 100↓ 110↓ 105 110 120↓ 120↓ 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
15/03/05 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
19/07/05 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
Data Orelha Esquerda
250Hz 500Hz 1000Hz 2000Hz 3000Hz 4000Hz 6000Hz 8000Hz
01/08/02 v. aérea 10 5 10 15 15 10 10 10
v. óssea 5 10 15 15 10
17/06/03 v. aérea 85 90 85 70 100 110 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
08/07/03 v. aérea 100↓ 95 95 85 95 110 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
22/07/03 v. aérea 85 90 85 75 95 105 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
12/08/03 v. aérea 100↓ 100 95 90 105 110 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
25/11/03 v. aérea 85 85 80 75 85 100 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
15/03/05 v. aérea 100↓ 105 95 100 120↓ 120↓ 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓
19/07/05 v. aérea 100↓ 110↓ 120↓ 120↓ 120↓ 120↓ 110↓ 100↓
v. óssea 60↓ 70↓ 70↓ 70↓ 70↓

Faz uso de medicamentos corticosteróides e faz uso de lentes corretivas nem foram encontra-
antidepressivos. Está em processo de seleção e das outras referências sobre a avaliação funcional
adaptação de prótese auditiva e inserida no grupo da visão. Atualmente, é acompanhada pelos Am-
de candidatos à cirurgia de implante coclear. Não bulatórios de Reumatologia (Setor de vasculite),

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Perspectivas da atuação fonoaudiológica diante do diagnóstico e prognóstico da surdocegueira
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ARTIGOS
Oftalmologia (Setor da córnea), Otorrinolaringo- curso, que é o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC),
logia (Setor de implante coclear), Fonoaudiologia proposto por Lefèvre e Lefèvre (2000). Conforme
(Setor de prótese auditiva) e Psiquiatria do Hospi- os autores, o DSC é
tal São Paulo. Também está sendo encaminhada
para freqüentar uma instituição de apoio aos indi- [...] uma proposta de organização e tabulação de da-
víduos portadores de surdocegueira. dos qualitativos de natureza verbal, obtidos de depo-
imentos, artigos de jornais, matérias de revistas se-
manais, cartas, papers de revistas especializadas, etc.
Procedimento
A proposta do DSC consiste basicamente em
Para a descrição da experiência selecionada, analisar o material verbal coletado, extraindo-se de
o método de investigação empírica adotado foi o cada um dos depoimentos, as Idéias Centrais e as
estudo de caso. De acordo com Gil (1999), o es- suas correspondentes expressões-chave. A partir
tudo de caso disso, pode-se encontrar uma ancoragem que seria
o discurso-síntese do sujeito coletivo.
[...] se fundamenta na idéia de que a análise de uma No presente trabalho, utilizamos o DSC na
unidade de determinado universo possibilita a com-
forma de “estudo de caso”, aplicando-o em apenas
preensão da generalidade do mesmo ou, pelo me-
nos, o estabelecimento de bases para uma investi- um sujeito, visando a verificação de sua exeqüibi-
gação posterior, mais sistemática e precisa. lidade no que tange à avaliação qualitativa do de-
sempenho comunicativo do portador da Síndrome
A pesquisa de campo foi conduzida sob a for- de Cogan. Na perspectiva de que o resultado seja
ma de entrevista, permitindo que o sujeito fosse satisfatório, pretende-se a ampliação da amostra,
indagado tanto sobre os fatos quanto sobre a sua com a inclusão de outros sujeitos portadores da
opinião a respeito deles, corroborando possíveis mesma síndrome. Espera-se com isso auxiliar no
fontes de evidências. Godoy (1995) argumenta que desenvolvimento de estratégias terapêuticas que
a pesquisa qualitativa possam ser aplicadas, viabilizadas tanto na forma
de terapia individual como na terapia em grupo.
[...] envolve a obtenção de dados descritivos sobre
pessoas, lugares e processos interativos pelo conta- Resultados
to direto do pesquisador com a situação estudada,
procurando entender o fenômeno segundo a pers- Segundo relato do indivíduo, a comunicação
pectiva dos sujeitos.
no dia a dia é limitante, privativa e isoladora; a
O roteiro adotado na entrevista foi o semies- adaptação às limitações decorrentes da síndrome
truturado, contendo 28 questões relativas aos as- impõe uma mudança radical quanto à forma e uso
pectos de vida pessoal, social e profissional pré e da linguagem. A síndrome acomete a audição de
pós- diagnóstico, enfatizando as dimensões da fun- forma súbita e aguda e a visão de forma insidiosa;
cionalidade da comunicação (Anexo 1). as duas de forma crônica.
A entrevista foi realizada no Ambulatório de [...] comunicação, conversa, eu não tenho muito
Avaliação e Diagnóstico dos Distúrbios da Comu- não porque é difícil, é só o necessário, eu fico ima-
nicação Humana do Hospital São Paulo – Univer- ginando as coisas...
sidade Federal de São Paulo, sem estabelecimento [...] fico conversando comigo mesma só de pensa-
de limite de tempo para sua conclusão. Foi feita mento. Às vezes, vejo as pessoas conversando, fico
gravação magnética da entrevista. O sujeito se querendo saber... coisas que eu fazia antes quando
colocou prontamente disponível a participar do tra- eu escutava, conversar, ouvir, quero dar opinião,
balho, não havendo dificuldade em realizá-lo; as reclamar, achar o que gosta e o que não gosta...
É, o pior dos piores...
perguntas foram lidas em uma velocidade mais
Ah, é uma vida nova, uma experiência, uma expe-
reduzida e/ou repetidas, devido à surdocegueira do riência nova...
entrevistado. A entrevista durou 46 minutos.
Toda a entrevista foi transcrita literalmente. A síndrome limita as atividades de lazer, pro-
Para análise das informações obtidas nas respos- vocando o afastamento do convívio social; inca-
tas, foi utilizada uma modalidade de análise do dis- pacita a independência locomotora do indivíduo.

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ARTIGOS

Televisão, eu vejo as pessoas conversando. Às ve- sa?”... não... “Que foi, que você tem?”... aí eu falo...
zes eu não assisto muito televisão que minha vista “Nada”... “Ah, você quer conversar?”... e eles fi-
dói, então eu deito, cada três horas eu deito porque cam conversando aí... aí quando tem o tempo todo
eu sinto fraqueza, tontura, minha vista dói. Fico pra mim eu já fico sem assunto... (risos)... coisa
olhando pra televisão pra querer entender o que a espontânea...
pessoa fala quando ela tá mexendo a boca... Eu passo o final de semana na minha sogra, eu
“Sozinha não saio não que eu tenho tontura... morei com ela. Então fica uma coisa... é... eles não
Ah, sair! Nossa! Pelo menos eu pegava a minha sabem como se comportar. É que uns se sentem
filha e pegava o ônibus. Eu nunca fui de ficar den- culpado, outros não, fica um clima, é como se ti-
tro de casa, hoje eu tô mais em casa... e fulano vai vesse uma interrogação no ar. Mas ela mexe a boca
me levar, fico dependendo... “Ah, hoje eu não pos- pra falar comigo, mas não tem mais a conversa que
so sair com você”... “Você quer sair? Você quer a gente tinha antes...
sair?”... “Pode ser outro dia?”... “Aí eu falo pode, Eu vejo minha mãe, às vezes eu não quero falar
claro!”... (risos)...Você abre mão das coisas que pra ela, mas a gente procura falar de coisa do que
você quer na hora. É porque, como se chama aque- passou, mas tem hora que isso mexe um pouco co-
la pessoa que quer as coisas na hora? Não é fácil, migo. Tem dia que eu nem ligo, tem barulho no meu
se eu tivesse normal aí eu ia sair, ninguém impedia ouvido, eu não escuto a voz de ninguém, aí eu não
de eu sair, eu era pau pra toda obra, fazia tudo consigo lê lábio. Vou assisti televisão sem saber o
sozinha, ia em banco, loja, eu trabalhava, fazia tudo. que a pessoa tá falando, na hora que precisa você
Hoje eu vejo que eu tenho que pedir, é horrível. consegue, é questão de prática... é... eu fico muito
sozinha...
Após o diagnóstico da síndrome há um pre-
juízo na dinâmica familiar, tornando o portador im- Além dos cuidados já recebidos, a ajuda com-
produtivo, retraído e reprimido. A expressividade plementar mais desejada é uma maior divulgação;
no tocante à espontaneidade, emoções e desejos é a compreensão da síndrome pelo paciente porta-
afetada diretamente. Há a promoção da exclusão dor, cuidadores e população em geral ainda é insu-
social do indivíduo, restringindo o seu círculo de ficiente, acarretando diversas conseqüências como
amizades aos familiares. a discriminação, medo do “contágio”, dificuldade
para conseguir emprego, dentre outras. É também
Eu quase não tenho amigo, eu perdi (risos)... ficou necessário fomentar um maior intercâmbio entre
uma coisa... é... as pessoas ficam com dó mas não os portadores da enfermidade.
quer conversar não, principalmente quando come-
ça porque tudo começou com uma depressão. Mas Ah, eu não percebi não o médico é que falou... por-
não foi só por causa da depressão não, eu fiquei que eu nunca tinha ouvido falar em Síndrome de
ruim das vistas, ruim do ouvido, aí eu passo muito Cogan.
nervoso, fico muito nervosa. Aí hoje as pessoas, hoje O que eu sei é que atinge as vista e o ouvido... e dá
eu dou risada, mas a minha vontade de chorar é tontura...
muita, eu tenho vontade de chorar... Realmente é entender esse barulho que eu escuto
Ah... tinha conversa. Ah, mudou porque minha mãe no ouvido. Uma vez falei pro médico... “O tímpano
preparava as coisas, hoje em dia é assim... ahhh... virou pra dentro, eu tô escutando tudo de dentro”.
a inútil... Então não dá, tem hora que você quer captar da
Ah... o médico falou que eu não posso ficar nervo- onde, o que que você tá ouvindo. Será que quando
so porque muda dá ..atinge as vista ficar nervoso, faz assim o que tá captando? Sei lá, dá vontade de
ficar emocionada, atrapalha. enfiar um negócio, um microfone pra ver, fazer uma
...então eu já procurei mudar, a não conversar so- auto-avaliação. Tem um programa na Cultura que
bre o que me afeta, coisas que não me deixa com... fala de onde vem o vento, aí mostra, aí eu falo “Oh
não me deixa sofrer... então, eu sou firme... e enca- meu Deus, de onde vem esse barulho?”
rar o que tá acontecendo comigo, mas olha o trata- Eu vi numa revista um caso de uma mulher de ou-
mento até engraçado porque a família, a família é tro estado que o filho não escuta e tem problema
tudo é motivo de dar risada, um fica pro outro...
nas vistas, e que ele consegue com as cordas vo-
“Ah, fala pra ela”... “Ah, fala você”... “Ah, fala
cais ele sente a vibração, e ele entende aos poucos
você”... “Aí ela tá falando”... e começa a fazer gesto
o que a pessoa tá falando...
com a mão ... é... “Cala a boca!”... ou às vezes fala
“Pode ser depois?”... “Pode ser daqui a pouco,
você espera um pouquinho?”... ou então... “Ah, A síndrome promove a passividade no desem-
deixa pra lá, não é nada não, é coisa minha, nada penho comunicativo; o sujeito faz uso apenas dos
a ver, não esquenta a cabeça”... “Você tá nervo- recursos visuais da mídia, ainda que com restrições;

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Perspectivas da atuação fonoaudiológica diante do diagnóstico e prognóstico da surdocegueira
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ARTIGOS
impossibilita atividades que dependem só da audi- jogam futebol como hobby, e a leitura é o segundo
ção. Não há preferência explícita sobre o canal sen- hobby referidos pelos surdos (23,08%). 30,23% dos
sorial de maior dificuldade, se o auditivo ou o vi- cegos não possuem nenhum tipo de hobby, enquan-
sual. Há a declaração implícita da necessidade de to apenas 6,73% dos surdos referem este fato, sen-
otimização de seus potenciais sensoriais remanes- do constatada uma diferença estatisticamente sig-
centes. nificante. Em relação à carreira profissional,
44,44% dos surdos gostariam de seguir a carreira
Só quando tem legenda, aí quando não tem eu vejo militar, enquanto 87,10% dos cegos escolheram a
reportagem que às vezes dá pra entender... e a Fá- carreira de professor. A maior dificuldade diária
tima Bernardes fala bem... já o Boris Casoy já é
relatada pelos surdos foi a comunicação (51,85%)
velho... aí não dá pra entender... (risos).
Ai, rádio eu já nem... ainda existe a Nativa?... A e para os cegos o maior problema diário foi a loco-
rádio que eu ouvia, rádio e CD. Nossa! Era a mi- moção (44,19%). Os estudantes surdos (90,65%)
nha paixão, era música o dia inteiro, agora eu nem são, significativamente, mais independentes que os
ligo. Eu nem sei que música tá na moda... cegos (72,73%). O pai foi referido como “pessoa-
Ah, é ver, é pior... as duas... Ah, foi horrível! Que chave”, tanto para os indivíduos cegos quanto sur-
dificuldade essa resposta. Que o barulho é infer- dos. Em relação à satisfação com serviços institu-
nal, mas ficar com as vistas, é dói as vistas e eu cionais, todos os indivíduos cegos estavam satis-
fico deitada... mesmo sem ter sono... tenho que fi- feitos, 87,8% bastante satisfeitos e 12,2 moderada-
car deitada... mas o barulho é horrível...
mente satisfeitos. Já os indivíduos surdos, 28% re-
Sou linda! (risos)... Eu me acho... Eu sou gente que
sente que fala e quer ver e quer ouvir. Aí minhas lataram não estar satisfeitos com serviços institu-
dificuldade e você fala eu sou gente, eu falo, eu cionais. A análise das conseqüências oriundas da
sinto, eu cheiro... é, apalpo, imagino como é que é privação dessas duas vias sensoriais, quando ocor-
a sua voz, sua voz é grossa ou fina?... rem isoladamente, leva-nos a refletir sobre os efei-
tos possíveis nos casos em que a surdez e a ceguei-
Discussão ra acometem o indivíduo, simultaneamente. Nas
respostas fornecidas pelo sujeito do presente estu-
A descrição clínica da Síndrome de Cogan, do, fica nítida a sua exclusão social, demonstrada
combinada à análise das respostas da entrevista, pelo afastamento dos amigos e parentes; grande li-
ratifica a importância da atuação da equipe multi- mitação em desenvolver um hobby como a leitura
disciplinar, envolvendo profissionais da Genética, e/ou a música; perda da capacidade em exercer sua
Otorrinolaringologia, Oftalmologia, Fonoaudiolo- profissão, bem como a escassez de recursos para
gia, Psiquiatria, Psicologia e de outras áreas, de- aprendizagem e treinamento de uma nova ativida-
pendendo de cada caso específico. É importante de de trabalho; restrição na comunicação e na lo-
ressaltar o papel do profissional de saúde mental comoção; perda da independência; falta da divul-
como vital para se atingir uma compreensão glo- gação sobre serviços institucionais direcionados à
bal dos pacientes com Síndrome de Cogan. comunidade surdocega.
Há trabalhos publicados relatando as caracte- Na comunicação, a percepção auditiva envol-
rísticas psicossociais dos indivíduos cegos ou sur- ve a capacidade de receber e interpretar os estímu-
dos. Estudo realizado na Arábia Saudita por los sonoros através da audição. As habilidades en-
Abolfotouh e Telmesani (1993), com 152 estudan- volvidas, além dos processos de atenção e memó-
tes do sexo masculino, 44 cegos e 108 surdos, ria, são a detecção do som, sensação sonora, loca-
verificou a prevalência da depressão entre surdos e lização sonora, reconhecimento, discriminação e
cegos, de acordo com Children Depression Inventory compreensão (Katz, 1999). A surdez provoca a res-
(CDI) e caracterizou alguns aspectos psicossociais trição de estímulos do ambiente. Indivíduos ouvin-
dessa população por meio de um questionário. Os tes normais recebem inputs visuais, auditivos, pro-
resultados apontaram que 13,95% dos cegos e prioceptivos e táteis, enquanto os surdos possuem
6,54% dos surdos apresentaram depressão; 12,5% uma séria restrição na entrada sensorial auditiva,
dos indivíduos cegos e 6,06% dos portadores diminuindo o número de estímulos e oportunida-
de deficiência auditiva “não têm amigos”; 51,16% des de interagir com seus interlocutores (Chiari,
dos cegos têm como hobby a leitura, seguido Bragatto, Barbosa, Strobilius, Soares, 2002). As
por poesia (25,58%). Entre os surdos, 61,54% respostas da entrevista apontaram que a surdoce-

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Brasília M. Chiari, Eliane L. Bragatto, Regiane Nishihata, Carolina A. F. de Carvalho
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gueira pode levar o indivíduo a uma diminuição de uma das entradas sensoriais, como a visão ou a
brusca de sua interação com o mundo. Ao mesmo audição, levaria à precariedade deles na observa-
tempo, quanto menos estimulada a audição resi- ção das regularidades de comportamento do orga-
dual e treinados os canais sensoriais remanescen- nismo observado. Isso poderia explicar o fenôme-
tes, maior a chance de agravamento do problema. no que verificamos quando, por exemplo, um indi-
Portanto, para que não seja estabelecido um ciclo víduo cego aguça outros sentidos como os da audi-
em que um prejuízo “realimenta” o outro, a reali- ção, tato, olfato e paladar. Essa especialização aju-
zação da terapia fonoaudiológica é fundamental. daria na busca em suprir as condições para carac-
terizar objetos perceptivos. Examinando especifi-
Percepção camente o caso como da surdocegueira, a manu-
tenção desse “sistema observacional” demandaria
Para Luria (1990), a percepção é definida como um grande esforço, já que duas das principais en-
tradas sensoriais se encontram prejudicadas. A
[...] um processo complexo envolvendo complexas análise das respostas do sujeito do presente estudo
atividades de orientação, uma estrutura probabilís- indicou uma percepção quanto à sua fragilidade,
tica, uma análise e síntese dos aspectos percebidos imposta pela patologia. Por outro lado, demons-
em um processo de tomada de decisão.
trou uma consciência sobre os canais sensoriais re-
O autor propõe que, manescentes, valorizando-os, como alerta de que,
apesar de abalada a conservação da “congruência
[...] estruturalmente, a percepção depende de práti- estrutural” citada pelo autor acima, a desintegra-
cas humanas historicamente estabelecidas que po- ção é rejeitada pelo indivíduo e será evitada en-
dem ou não só alterar os sistemas de codificação quanto houver recursos.
usados no processamento da informação, mas tam-
bém influenciar a decisão de situar os objetos per- Avaliação
cebidos em categorias apropriadas. Podemos, por-
tanto, tratar o processo perceptual como similar ao Apesar dos surdocegos, como os portadores da
pensamento gráfico: ele possui aspectos que mu- Síndrome de Cogan, procurarem se utilizar dos
dam com o desenvolvimento histórico.
resíduos visuais e auditivos que possuem, torna-se
difícil a avaliação das suas reais potencialidades de-
Maturana (2001) conceituou o fenômeno que
vido aos impedimentos sensoriais. Há, portanto, pri-
conotamos com a palavra “percepção” como a as-
meiramente, uma demanda da conscientização
sociação, feita pelo observador, das regularidades
sobre a mudança de esquema, de estruturas tradicio-
notadas no comportamento do organismo observa-
nais, passando a um esquema funcional e flexível,
do. Ao contrário do que normalmente propõe a
utilizando um enfoque global orientado pelas neces-
neurofisiologia e a psicologia, o autor argumentou
sidades individuais do sujeito, e não apenas aplican-
que a percepção não pode ser apenas uma opera-
do um conjunto de técnicas específicas isoladas.
ção de captação de uma realidade externa, pois
A avaliação das capacidades/habilidades cog-
[...] os seres vivos são sistemas dinâmicos determi- nitivas e comunicativas deve incorporar outros fa-
nados estruturalmente, e tudo o que acontece neles tores, além dos etiológicos, como escolaridade, ní-
é determinado a cada instante por sua estrutura... vel socioeconômico, experiências sociais, compor-
o meio não pode especificar o que acontece num tamentos, interesses e estilo de aprendizagem de
sistema vivo – ele pode apenas desencadear em sua cada indivíduo surdocego. Além disso, seu conhe-
estrutura mudanças determinadas por sua estrutu- cimento sobre a síndrome, o grau de aceitação da
ra. Como resultado disso, constitutivamente, um enfermidade e, caso haja, o tipo de reabilitação em
sistema vivo opera sempre em congruência estru- curso ou já realizada anteriormente.
tural com o meio, e existe como tal somente na
Durante a avaliação cognitiva, observar seu
medida em que essa congruência estrutural (adap-
tação) for conservada. Caso contrário, ele se desin- modo de interação, exploração e compreensão do
tegra. meio ambiente, porque dessas estratégias depen-
derá a aquisição de novos recursos facilitadores que
De acordo com as idéias desse autor, a capaci- poderão mediar suas relações com as pessoas e com
dade de percepção dos indivíduos com supressão o mundo.

378 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 371-382, dezembro, 2006


Perspectivas da atuação fonoaudiológica diante do diagnóstico e prognóstico da surdocegueira
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ARTIGOS
Sobre a avaliação sensorial, investigar os re- bilidade, organização e flexibilidade; a atitude de-
síduos visuais e/ou auditivos, que apresentem les diante da deficiência e o compromisso que po-
algum tipo de funcionalidade e que muitas vezes dem estabelecer com o processo de reabilitação.
não são estimulados de forma adequada; explorar Estudo realizado com 19 famílias colombianas e
a forma de uso dos outros canais sensoriais rema- 40 indivíduos adultos portadores da Síndrome de
nescentes, além dos da visão e audição. Todas es- Usher (USH), patologia que, como a Síndrome
sas informações são ferramentas extremamente de Cogan, causa a surdocegueira, buscou investi-
úteis, no sentido de dirigir a comunicação e a gar as necessidades e o tipo de relação familiar dessa
aprendizagem por esse caminho, com maiores e população portadora de limitação sensorial dupla.
melhores possibilidades de êxito durante o futuro Os autores elaboraram um questionário, e as famí-
processo terapêutico do sujeito. A reabilitação lias foram visitadas em suas próprias casas por as-
estará centrada principalmente nas formas de co- sistentes sociais. A pesquisa buscou investigar a
municação possíveis para viabilizar sua autono- idade da detecção da deficiência auditiva e visual,
mia e inclusão social. tipo da USH, reações emocionais dos pais e filhos
Pesquisas experimentais sobre o desenvolvi- afetados, cobertura médica, estado civil, tipo de
mento de habilidades em modalidades sensoriais comunicação dentro da família, produtividade
remanescentes apontam para o papel da plasticida- econômica, tipo de reabilitação e informações so-
de cerebral. Lessard, Pare, Lepore e Lassonde bre a síndrome. Os resultados indicaram que, em
(1998) afirmaram que alguns cegos têm melhor 10% das famílias o pai rejeitou o filho afetado; 17%
habilidade de localização sonora que os indivíduos relataram problemas em se relacionar com os ir-
com visão normal. Indivíduos cegos são severa- mãos não-afetados; apenas 50% conseguiram se-
mente afetados, visto que a visão é essencial para o guir a escolaridade além do ensino fundamental;
desenvolvimento de conceitos espaciais. Uma for- 50% não possuem independência financeira; 87%
ma de compensação surgiria no desenvolvimento são solteiros ou separados. Os autores referiram a
de uma acurada percepção espacial pelo processa- importância da criação de um programa nacional
mento auditivo. Os autores constataram que os in- como ferramenta para detecção precoce, diagnós-
divíduos cegos desde a infância foram capazes de tico e acompanhamento desses indivíduos. Além
mapear o som ambiental com igual, ou melhor, disso, enfatizaram que a avaliação e o acompanha-
acurácia que os com visão, na condição de escuta mento psicológico devem fazer parte do progra-
binaural. Porém, ao contrário dos indivíduos com ma, pois as famílias necessitam de suporte para
visão, os portadores de cegueira total foram me- arcar com os problemas inerentes a essa doença
lhores na localização correta da fonte sonora, na para o estabelecimento de relações humanas posi-
condição de escuta monoaural; os indivíduos ce- tivas (Tamayo, Rodriguez, Molina, Martinez,
gos com visão periférica residual localizaram os Bernal, 1997).
sons com menor precisão do que os indivíduos com
visão normal ou aqueles totalmente cegos. Implante coclear
A avaliação da Linguagem, respeitadas as li-
mitações impostas por todos os fatores já citados, Na atualidade, uma das perspectivas mais efi-
provenientes da síndrome ou não, deve abranger o cazes na reabilitação dos indivíduos surdocegos,
exame cuidadoso da intenção comunicativa, fun- inclusive os portadores da Síndrome de Cogan, é a
ções comunicativas, estrutura do discurso, o meio cirurgia de implante coclear. Apesar da escassez
comunicativo utilizado e a compreensão do discur- dos relatos sobre tais casos, os já existentes apon-
so do falante. Os aspectos da motricidade oral, fun- tam para um prognóstico muito favorável em rela-
ções estomatognáticas e voz também são relevan- ção à audição, principalmente porque a síndrome
tes nesta avaliação, tendo a oralidade um lugar ainda acomete o indivíduo em uma idade adulta jovem,
de maior destaque na interação com o meio e se- ou seja, no período pós-língüístico; após a cirur-
melhantes, em virtude dos prejuízos visuais e au- gia, os pacientes foram capazes de conversar ao
ditivos presentes nos pacientes portadores da Sín- telefone sem a necessidade do uso de adaptador e
drome de Cogan. obtiveram altos índices médios nos testes de reco-
A dinâmica familiar deve ser pesquisada crite- nhecimento de palavra e de sentenças diárias, com-
riosamente, compreendendo a sua estrutura, esta- parados à quase nulidade dos escores encontrados

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 371-382, dezembro, 2006 379


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Brasília M. Chiari, Eliane L. Bragatto, Regiane Nishihata, Carolina A. F. de Carvalho
ARTIGOS

na avaliação pré-cirúrgica (Low, Burgess, Teoh, dos profissionais e cuidadores, com base em uma
2000; Pasanisi, Vincenti, Bacciu, Guida, Berghenti, perspectiva mais realista, valorizando as capaci-
Barbot et al., 2003). dades e necessidades mais prementes desses indi-
Algumas especificidades sobre essa síndrome víduos. Os resultados satisfatórios nesse tipo de
são alertadas e devem ser levadas em consideração análise apontam para a importância da ampliação
pela equipe multidisciplinar nas tomadas de deci- da amostra, o que nos permitirá a generalização
são nos momentos pré, peri e pós-cirúrgico: o fator dos resultados.
etiológico auto-imune da síndrome e o longo tem- Restabelecer um dos canais sensoriais pode ser
po de uso de esteróides provocam maior suscetibi- o melhor dos caminhos para a reabilitação do pa-
lidade às complicações cirúrgicas ao aparecimento ciente, ao lado da terapia fonoaudiológica nos
de infecções, dentre elas a otite média crônica; pos- períodos pré e pós o implante coclear. Avaliações
sibilidade da existência de obstrução intracoclear, prospectivas devem ser feitas para confirmar a qua-
necessitando-se de alterações nas técnicas cirúrgi- lidade de vida dos pacientes, passado o momento
cas; após a cirurgia pode haver recorrência aguda do estresse cirúrgico e obtidos os efeitos no seu
dos sintomas oftalmológicos da síndrome, possi- desempenho comunicativo, incluindo os ganhos na
velmente decorrente do estresse cirúrgico (Vincenti, discriminação auditiva, leitura labial e melhora da
Bacciu, Guida, Berghenti, Barbot et al., 2003; qualidade vocal.
Aschendorff, Lohnstein, Schipper, Klenzner, 2004)
Outra possível vantagem seria que as pesqui- Referências
sas apontam para os possíveis efeitos do implante
coclear na redução da intensidade, desconforto e Abolfotouh MAE, Telmesani A. A study of some psycho-social
characteristics of blind and deaf male studentes in Abha City,
duração do sintoma de zumbido (Miyamoto, Asir Region, Saudi Arabia. Public Health 1993;107: 261-9.
Bichey, 2003; Rubinstein, Tyler, Johnson, Brown, Aschendorff A, Lohnstein P, Schipper J, Klenzner T. Obliteration
2003; Mo, Harris, Lindbaek, 2002; Ruckenstein, der cochlea beim cogan-syndrome - implications for cochlear
Hedgepeth, Rafter, Montes, Bigelow, 2001). implant surgery. Laryngo-Rhino-Otol 2004;83: 836-9.
Cresce o interesse dos indivíduos candidatos à Chiari BM, Bragatto EL, Barbosa T, Strobilius RE, Soares TCB.
Avaliação da intencionalidade e funcionalidade da comunicação
cirurgia de implante coclear, bem como de seus em crianças deficientes auditivas e ouvintes entre 24 e 60 meses.
familiares e/ou cuidadores por informações mais Pró-Fono 2002; 14(2):187-98.
detalhadas acerca da doença e prognóstico. Fica Giacaglia LRA. Teorias da instrução e ensino por descoberta:
claro que o sujeito gosta de ser plenamente infor- contribuição de Jerome Bruner. In: Penteado WMA,
organizador. Psicologia e ensino. São Paulo: Papelivros; 1990.
mado. Isso pode e deve ser feito em uma lingua- p.42-58.
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nais que trabalharão de forma direta ou indireta no contemporâneos. In: Ferreira LP, Befi-Lopes DME, Limongi
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necessariamente, à área da saúde.
Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5.ed. São Paulo:
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Conclusões Godoy AS. Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. Rev Adm
Empresas 1995;35(3):20-9.
A comunicação é uma das necessidades bási- Grasland A, Pouchot J, Hachulla E, Blétry O, Papo TE,
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cas do ser humano, por pertencer a uma sociedade. and review of the literature. Rheumatology 2004;43(8):1007-15.
As pessoas surdacegas necessitam de formas espe- Katz J. Tratado de audiologia clínica. 4.ed. São Paulo: Manole;
cíficas de comunicação para terem acesso à educa- 1999.
ção, lazer, trabalho, vida social, etc. Lefevre FE, Lefevre AMC. Os novos instrumentos no contexto
da pesquisa qualitativa. In: Lefevre FE, Lefevre AMC, Teixeira
A entrevista permitiu a formulação de algu-
JJV, organizadores. o discurso do sujeito coletivo: uma nova
mas reflexões sobre o desempenho comunicativo abordagem metodológica em pesquisa qualitativa. Caxias do
e a compreensão da percepção de mudanças de Sul, RS: EDUCS; 2000. p. 1-138.
vida e suas relações interpessoais, após o diag- Lessard N, Pare M, Lepore FE, Lassonde M. Early-blind human
nóstico, do portador da Síndrome de Cogan. Mos- subjects localize sound sources better than sighted subjects.
Nature 1998;395(6699):278-80.
trou-se um instrumento capaz de promover con- Low WK, Burgess RE, Teoh CK. Cochlear implantation in a
dutas eficazes durante a avaliação e sugerir alter- patient with cogan’s syndrome, chronic ear disease and on
nativas de reorganização das estratégias de ação steroid therapy. Adv Otorhinolaryngol 2000;57:157-9.

380 Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 371-382, dezembro, 2006


Perspectivas da atuação fonoaudiológica diante do diagnóstico e prognóstico da surdocegueira
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ARTIGOS
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Pasanisi E, Vincenti V, Bacciu A, Guida M, Berghenti T, Barbot
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Otol Neurotol 2003;24(4):601-4.
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Recebido em novembro/05; aprovado em setembro/06.

Endereço para correspondência


Eliane Lopes Bragatto
Av. Dr. Altino Arantes, no. 1132, apto. 41, Vila Clementino,
São Paulo, CEP 04042-005

E-mail: eliane_bragatto@hotmail.com

Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 18(3): 371-382, dezembro, 2006 381


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Brasília M. Chiari, Eliane L. Bragatto, Regiane Nishihata, Carolina A. F. de Carvalho
ARTIGOS

Anexo 1

Protocolo de avaliação qualitativa do desempenho comunicativo


da surdocegueira (entrevista com o indivíduo portador)

Data: _____/_____/_____ Avaliadora: ________________________________________________

Nome: __________________________________________________________________________

Idade: _________ Data Nascim.: _____/_____/_____ Sexo: ( ) Fem. ( ) Masc.

Síndrome/ doença diagnosticada: _____________________________________________________

1. Como você se comunica no seu dia-a-dia?


2. Como e quando você percebeu a sua dificuldade para ouvir?
3. Como e quando você percebeu a sua dificuldade para enxergar?
4. O que você costuma fazer nas suas horas de lazer?
5. Você anda à pé sozinho? Como você faz para chegar no local onde precisa ir?
6. Você anda de ônibus sozinho? Como você faz para tomar o ônibus?
7. Você anda de metrô sozinho? Como você faz para tomar o metrô?
8. Como e quando você descobriu que tinha a Síndrome de Cogan?
9. Você sabe o que é a Síndrome de Cogan?
10. Depois que a doença foi diagnosticada pelo médico, o que mudou na sua rotina de casa?
11. O que mudou no relacionamento com a sua família?
12. O que mudou no relacionamento com os seus amigos?
13. O que mudou no seu ambiente de trabalho?
14. O que mudou nas suas atividades de lazer?
15. O que você gostaria de mudar ou de receber como ajuda, além do que você já tem agora?
16. Conhecer e conviver com outras pessoas que também tem a síndrome ajudou-o? Como?
17. O que você faz quando precisa de ajuda?
18. Você gosta de conversar?
19. Você gosta de assistir TV?
20. Você gosta de ouvir rádio?
21. Você gosta de ouvir som?
22. Você gosta de ler?
23. Você gosta de expressar seus sentimentos?
24. Você expressa seus desejos?
25. Você expressa seus gostos?
26. Dentre as suas dificuldades de visão e audição, qual você acha que é pior? Por quê?
27. Como você é?
28. Como você acha que as outras pessoas vêem você?
29. Como você gostaria de ser visto(a) pelas outras pessoas?

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“LEITURA MUSICAL NA PONTA DOS DEDOS:PRÁTICAS E DESAFIOS DA


EDUCAÇÃO MUSICAL INCLUSIVA.”

Fabiana Fator Gouvêa Bonilha .Instituto de Artes / Unicamp.


bonilha@iar.unicamp.br
Claudiney Rodrigues Carrasco. Instituto de Artes / Unicamp
carrasco@iar.unicamp.br
Apoio Fapesp

Palavras-chave: deficiência visual ; musicografia Braille ; educação musical

Essa comunicação visa problematizar aspectos referentes ao ensino da leitura e


escrita musical em Braille. Parte-se do pressuposto de que o acesso à notação
musical é um fator essencial para a inclusão de pessoas com deficiência visual no
campo da Música. Mediante a utilização de uma abordagem qualitativa, baseada no
método do Discurso do Sujeito Coletivo proposto por Lefèvre (2003) buscou-se
apreender a percepção de estudantes de Música com deficiência visual e de seus
respectivos professores acerca das condições atuais do ensino da Musicografia
Braille. A partir desse estudo, concluiu-se que alunos e professores reconhecem a
importância do aprendizado da notação musical por parte das pessoas cegas, mas
apontam para uma escassez de meios e recursos que facilitem o acesso a esse
código.

1
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Introdução
A Musicografia Braille consiste no sistema de leitura e escrita musical
convencionalmente adotado por pessoas com deficiência visual.
são representados pelo conjunto de 63 caracteres que formam o Sistema Braille. Os
fundamentos da Musicografia Braille foram concebidos pelo próprio Louis Braille, criador
desse sistema de escrita para cegos.
Não obstante o fato de Louis Braille ter consolidado as bases dessa notação musical,
foram posteriormente realizadas diversas convenções e acordos entre diferentes países,
no sentido de se aprimorar e de se adaptar esse código às especificidades de diferentes
formas de representaçãomusical.
As resoluções mais recentes acerca desse código encontram-se no “Novo Manual
Internacional de Musicografia Braille”, (1997).
Conforme aponta Silva(2003):
“Esta obra, de largo alcance para uso dos cegos de todo o mundo, é o
resultado de vários anos de estudo por parte do Subcomitê sobre Musicografia Braille da
União Mundial de Cegos e é a continuação do conjunto de manuais publicados após as
conferências de Colônia (1888) e Paris (1929 e 1954), contendo ainda as resoluções e
decisões tomadas pelo referido Subcomitê nas conferências e acordos celebrados entre
1982 e 1994”.
Nota-se, entretanto, que esse manual não constitui um material de caráter
essencialmente didático, através do qual alunos e professores possam assimilar os
fundamentos da Musicografia Braille.
Geralmente, os professores de Música são formados para lecionarem aos
alunos que aprendem a ler em tinta, e por isso, a metodologia de trabalho por eles
adotada se baseia nas especificidades desse código. Os livros didático-musicais são
também estruturados de acordo com as características peculiares da escrita musical
utilizada por quem vê.
Ao lecionar a um aluno com deficiência visual, o professor necessita
compreender os mecanismos do código em Braille, ainda que ele não precise ter fluência
na leitura dessa notação.
Faz-se necessário que ele conheça o modo como o aluno assimila a partitura,
a fim de que sejam trabalhadas as demandas requeridas na aquisição da proficiência em
Musicografia Braille.
O professor deve estar ciente das diferenças que existem entre esse código e
a notação em tinta. Tais diferenças se referem sobretudo à configuração linear do sistema
Braille. Isso implica que nesse sistema, não sejam utilizadas pautas e claves, de modo
que a altura das notas é representada por sinais de oitava, e os valores rítmicos são
grafados por meio de caracteres específicos, associados a cada altura.
Ao propor o estudo de uma peça, é importante que o professor saiba a
dimensão da tarefa que o aluno realizará ao lê-la em Braille.
É importante considerar que Uma partitura em tinta consiste realmente em
uma representação espacial da peça. Se há, por exemplo, uma escala ascendente, esse
movimento aparece concretamente na pauta. Muitos aspectos da partitura se mostram

2
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visualmente claros para seu leitor, tais como: A classificação da peça como monofônica,
polifônica ou homofônica, a densidade do trecho musical, a correspondência entre as
vozes, a simultaneidade das notas, os desenhos e padrões rítmicos mais recorrentes. O
mesmo não ocorre em uma partitura transcrita para o Braille. Em tal notação, essas
características da peça são inferidas após um processo de abstração, necessariamente
realizado pelo leitor. Levitin (2000), ao considerar aspectos sobre a formação da “mente
musical” aponta que uma das habilidades fundamentais ao seu desenvolvimento é a de
“captar a estrutura interna da música, análoga à maneira como os grandes enxadristas
têm uma compreensão estrutural profunda das jogadas de xadrez e das inter-relações das
peças no tabuleiro”. Para quem lê música por meio do sistema braille, essa compreensão
estrutural é indispensável, tendo em vista o nível de abstração requerido ao longo da
leitura.
Deve-se considerar que a alfabetização musical é um fator imprescindível
para a inclusão de pessoas cegas no campo da Música. Aos alunos, deve ser garantido o
direito ao aprendizado desse código, bem como o direito de acesso a material didático-
musical transcrito para o Braille.
Faz-se necessário, desse modo, que as pessoas com deficiência visual
tenham garantido o acesso a uma formação musical qualificada, que lhes permita
desenvolver suas potencialidades. Para tanto, conforme defende Smaligo (1998) torna-se
imprescindível que seja oferecida a essa população a possibilidade de acesso ao sistema
de leitura e escrita musical criado especificamente para seu uso.
Porém, observa-se uma escassez de meios e recursos que viabilizem a
concretização desse princípio, uma vez que poucas entidades se dedicam ao ensino e à
difusão da Musicografia Braille.
Na perspectiva da inclusão das pessoas com deficiência visual ao ensino de
Música regular, o ensino desse código deve ser oferecido sob a forma de um “atendimento
educacional especializado”, definido por Mantoan(2003) como uma modalidade de
atendimento que apóia e subsidia o ensino regular.

Objetivos
Esta pesquisa tem por objetivo problematizar o ensino da Musicografia
Braille, como um elemento facilitador da Inclusão de pessoas com deficiência visual ao
campo da Música.
O presente estudo também possui os seguintes objetivos específicos:
-Abordar a existência de espaços de formação através dos quais a
Musicografia seja difundida e estudada;
-Aprofundar a investigação acerca dos procedimentos e recursos existentes
para a produção de partituras em Braille, as quais, por sua vez, consistem em um material
que subsidiam a formação musical das pessoas com deficiência visual;
-Produzir um conhecimento consistente e aprofundado sobre o acesso a
Musicografia Braille, mediante a produção de um material que sirva de apoio ao processo
de formação musical das pessoas com deficiência visual.

Metodologia

3
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Esse estudo possui um enfoque qualitativo, pois através dele, buscou-se


compreender as percepções de alunos e professores acerca do aprendizado da
Musicografia Braille.
No intuito de se construir um panorama do ensino e difusão da Musicografia
Braille no Brasil, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com educadores musicais
e estudantes com deficiência visual. Também foram aplicados questionários contendo
perguntas abertas, visando complementar os dados das entrevistas, e coletar
depoimentos e relatos de experiências..
Tais entrevistas foram analisadas segundo o método do “discurso do sujeito
coletivo”, proposto por Lefèvre (2003), através do qual é possível apreender o pensamento
comum aos sujeitos abordados. Nesse sentido, foram extraídas, de cada depoimento,
idéias centrais, as quais, encadeadas, constituíram um discurso comum aos sujeitos, de
acordo com cada temática por eles abordada.
Foram encontradas algumas categorias de análise, a partir das quais pôde-se
inferir os níveis de contato que os professores e alunos estabelecem com a Musicografia
Braille.
Desse modo, os dados coletados por meio desses depoimentos, foram
divididos nas seguintes categorias:

Tema 1-Música e identidade


Subtemas:
A) Relações entre a Música e desenvolvimento pessoal;
B) Relações entre música e deficiëncia visual.

Tema 2: Leitura e escrita musical


Subtemas:
A) Acesso ao aprendizado da Musicografia Braille;
B) Uso de códigos não convencionais;
C) Concepções e crenças sobre a notação musical em Braille;
D) Avaliação da produção de material didático sobre o código musical em Braille;
E) Produção de materiais didático-musicais para pessoas com deficiência visual.

Tema 3: Aprendizado musical


Subtemas:
A) Acesso ao conhecimento musical consistente
B) Alternativas de acesso às partituras

Paralelamente à coleta de dados junto a alunos e professores, foi realizada


uma investigação acerca das ferramentas tecnológicas existentes para a transcrição de
partituras em Braille. Dessa busca, resultou a criação de um acervo de obras musicais
transcritas para esse sistema. Essa fase do trabalho contou com o apoio do Laboratório de
Acessibilidade da Unicamp, e com a participação de bolsistas do SAE (serviço de apoio ao
estudante) da mesma universidade. Esse acervo se constitui prioritariamente por peças
brasileiras. O objetivo de sua implantação se centrou sobretudo na formulação de
procedimentos que otimizassem a produção de partituras, buscando-se as ferramentas
tecnológicas mais adequadas a esse fim.

4
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Discussão e Resultados
Verificou-se que existe uma falta de informação acerca da Musicografia Braille.
Há professores que desconhecem a existência dessa notação e, por isso, adotam
maneiras “improvisadas” para o ensino da leitura musical, o que torna seus alunos
restritos a essas adaptações. Há também aqueles educadores musicais que sabem da
existência desse método de escrita, mas desconhecem os caminhos de acesso a ele, os
quais, aliás, são estreitos, visto a escassez de materiais didáticos e de cursos através dos
quais ele seja divulgado.
De fato, considerando-se sobretudo a realidade brasileira, o acesso à notação
musical em Braille, dentro das condições atuais, exige um grande empenho tanto por parte
dos professores de música, quanto por parte de seus alunos com deficiência visual. Os
professores necessitam despender grande quantidade de tempo e dedicação para
buscarem recursos adequados e para compreenderem os mecanismos de leitura e escrita
em Braille, e os alunos, por sua vez, precisam se dispor a assimilarem esses mecanismos
de um modo quase autodidata, através dos poucos métodos existentes para esse fim.
Através da coleta e da análise desses relatos, foi possível o contato com uma variedade
de experiências pessoais e profissionais, que revelaram a existência de diferentes formas
de relações estabelecidas pelos sujeitos com a notação musical em Braille. Ainda que os
entrevistados considerem que o aprendizado desse código seja fundamental, a maioria
deles enfrentou uma grande dificuldade para ter acesso a esse ensino. Embora todos
tenham se deparado com obstáculos da mesma natureza, cada sujeito desenvolveu suas
próprias estratégias de enfrentamento. Nesse sentido, é importante que a riqueza dessa
diversidade seja contemplada nas discussões acerca do ensino da notação musical em
Braille. Não existe uma única ou uma exclusiva forma de acesso a esse código, assim
como não há uma maneira mais correta para se aprende-lo. Ao se enfocar os métodos de
ensino dessa notação, deve-se levar em conta as particularidades de cada aluno, e deve-
se assegurar a ele o direito de ser protagonista do seu próprio aprendizado.
Mediante os relatos dos sujeitos, notou-se o reconhecimento por parte deles acerca da
importância da Musicografia Braille. A escassez de formas de contato com essa notação
levam os sujeitos acreditarem que a Musicografia Braille é um código de grande
complexidade e de difícil assimilação.
Não se pode negar a complexidade do código. Entretanto, essa crença
advém, como já dito, da falta de recursos que subsidiam seu aprendizado.
Ao se abordar o contexto que permeia o ensino da Musicografia Braille,
podem ser destacados alguns personagens.
Constata-se, primeiramente, a presença do educador musical. Fala-se, aqui,
de um professor de Música “genérico”, e não de uma pessoa especializada em lecionar
para os cegos. Está-se falando daqueles que comumente saem de conservatórios e
universidades de Música, rumo à docência.
É fato que, grande parte desses educadores musicais, ao se depararem com
um aluno cego, desconhecem os meios pelos quais esse estudante possa se apropriar da
leitura e escrita musical. A busca de informações sobre o ensino da Musicografia Braille,
por parte do professor, é imprescindível, e, sem dúvida, trata-se de uma tarefa árdua, visto
que atualmente (e sobretudo no Brasil), há uma grande escassez de profissionais e
instituições que difundem esse sistema de escrita.
Apesar dessa dificuldade, o professor precisa ser consciente de seu papel
junto a seu aluno com deficiência visual. Antes de tudo, ele é um educador musical, assim

5
<<-1->>

como o é para seus demais alunos. Sua responsabilidade é a de prover as condições para
que o estudante que lhe foi confiado venha a ter uma formação musical consistente. Logo,
ainda que o professor desconheça o código musical em Braille, ele tem o papel de ensinar
os fundamentos da Música, com base em sua formação profissional. Ele pode ensinar a
técnica de um instrumento, bem como os conceitos relativos à Teoria Musical, à
Harmonia, à História da Música, a aspectos estilísticos das obras, etc. Esses
conhecimentos de que o professor dispõe subsidiarão o aprendizado da Musicografia
Braille por parte de seu aluno.
Pode-se supor que o professor de Música não precise saber ler e escrever
partituras em Braille para lecionar a um aluno cego. Mas ele necessita, certamente,
entender os mecanismos desse sistema de grafia, para compreender os desafios a serem
enfrentados pelo estudante.
Dentre os “personagens” envolvidos nesse processo de ensino, , pode-se
também pensar na figura do “especialista”: aquele que realmente sabe ler e escrever
Música em Braille e que tem uma ampla vivência acerca da aplicação desse código em
diversos contextos musicais. Trata-se de um estudioso no campo da Musicografia Braille.
Ele tem o papel de apoiar as atividades pedagógicas realizadas por professores e alunos
em uma escola regular. Ele talvez atue como uma espécie de “consultor”, ou como
alguém que conheça em profundidade as convenções da leitura e escrita, as atualizações
do código e as várias formas de representação musicais possíveis , de acordo com as
especificidades do Sistema Braille.
Por fim, destaca-se a figura do próprio aluno, como alguém que se faz
protagonista de seu aprendizado, ao buscar uma formação musical consistente e ao se
engajar no processo de alfabetização musical.
É importante salientar que, embora esse estudo aborde especificamente o
ensino da Musicografia Braille, ele pode trazer contribuições ao campo da Educação
Musical, de maneira geral. Isso ocorre pois as questões levantadas nesse trabalho
suscitam reflexões acerca do ensino de Música, ou das diversas formas pelas quais os
indivíduos se apropriam do conhecimento musical.

Referências

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musicografia Braille na perspectiva de alunos e professores. 2006. 226 f. Dissertação
(Mestrado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, 2006.

LEFEVRE, F; LEFEVRE, A.M.C., TEIXEIRA, J.J.V. O discurso do sujeito coletivo: uma


nova opção em pesquisa qualitativa (Desdobramentos). Caxias do Sul, EDUCS, 2003.

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musical : ensaios sobre os processos cognitivos em música : da percepção à produção.
Curitiba : Ed. da UFPR, 2006. p.23-44.

MANTOAN, M. T. E. Inclusão escolar – o que é? Por quê? Como fazer? São Paulo:
Moderna, 2003.

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http://www.lerparaver.com/node/208
Acesso em: 13 jun. 2007.

SMALIGO, M. A. Resources for helping blind music students. Music Educators Journal,
v. 85, n.2, p 23-45. 1998.

UNIÃO MUNDIAL DOS CEGOS. Subcomitê de Musicografia Braille. Novo manual


internacional de musicografia braille. Brasília: Ministério da Educação.
Secretaria de Educação Especial, 2004. 310p.

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Psicologia: Teoria e Pesquisa <<-1->>
Jan-Abr 2005, Vol. 21 n. 1, pp. 007-015

Formação de Conceitos em Crianças Cegas:


Questões Teóricas e Implicações Educacionais1
Cecilia Guarnieri Batista2
Universidade Estadual de Campinas

RESUMO – A formação de conceitos depende da linguagem e do pensamento, que integram informações sensoriais. Postula-
se que mudanças no sujeito que conhece e nos objetos e eventos a serem conhecidos sugerem modelos flexíveis de ensino
de conceitos. Considera-se que os mesmos pressupostos se aplicam ao ensino de conceitos a alunos cegos. São discutidas
especificidades desse processo, incluindo o papel do tato como recurso, embora não como substituto direto da visão, e a noção
de representação, como fundamento da elaboração de recursos didáticos para o aluno cego.

Palavras-chave: formação de conceitos; educação de cegos; desenvolvimento de cegos.

Concept Formation in Blind Children:


Theoretical Questions and Educational Implications
ABSTRACT – Concept formation depends on language and thought, that promote the integration of information coming from
the senses. It is postulated that changes in the person, the objects and events to be known suggest flexible models of concept
teaching. It is assumed that the same considerations apply to teaching concepts to blind pupils. Specificities of this process are
discussed, including the role of touch as resource, although not as a direct substitute to vision, and the notion of representation
as a basis for the elaboration of pedagogical resources for the blind student.

Key words: concept formation; blind education; blind development.

Uma das preocupações constantemente apresentadas por Constata-se que, entre as falas dos educadores de cegos,
professores do ensino regular que recebem alunos cegos em são muito freqüentes as que se relacionam à busca de formas
suas classes refere-se ao modo de aprendizagem do aluno alternativas para apresentar objetos e eventos, que se assume
cego e, especialmente, aos recursos necessários para essa serem conhecidos normalmente através da visão. Fica, entre-
aprendizagem (Laplane & Batista, 2003). A resposta reside, tanto, a questão: O que é conhecer? Ver é conhecer? Sentir
em parte, na adoção de recursos alternativos para acesso ao sensorialmente é conhecer? Uma das respostas correntes na
texto escrito, tais como o sistema Braille. Entretanto, ficam psicologia e no meio educacional relaciona o ato de conhe-
muitas dúvidas: Como a criança vai entender as noções apre- cer à aquisição de conceitos. Propõe-se, então, no presente
sentadas nas aulas? Como vai, por exemplo, fazer distinções trabalho, discutir a questão da aquisição de conceitos, e suas
entre animais? Conhecer o funcionamento do corpo humano? implicações para o ensino de crianças cegas.
Compreender o que são acidentes geográficos?
De onde vêm essas dúvidas? Em parte, de uma concepção Concepções sobre Conceitos
de aprendizagem centrada no aporte sensorial e, basicamen-
te, na visão, conforme indicado na afirmação apresentada a A definição de conceito, no Dicionário Aurélio (Ferreira,
seguir, a propósito da questão do ensino de artes para cegos: 1975) apresenta nove itens, tendo o primeiro a seguinte
“Atestam as pesquisas mais recentes que os olhos são respon- acepção: 1. Filosofia: “Representação dum objeto pelo
sáveis por no mínimo 80% das impressões recebidas através pensamento, por meio de suas características gerais.” Nos
da sensibilidade. Habitamos um mundo que se manifesta de demais itens do verbete, são apresentadas acepções relativas
forma predominantemente visual” (Oliveira, 1998, p.7). a: definição, idéia, concepção, opinião, avaliação e máxima
ou provérbio. Assim, a primeira acepção, explicitamente, e as
1 Várias das idéias do presente texto foram desenvolvidas a partir de
demais, de forma implícita, trazem a idéia de generalização,
duas situações: encontros com professores da rede regular de ensino, de busca do que há de generalizável em diferentes elemen-
realizadas em conjunto com a colega de trabalho Profa. Dra. Adriana tos, de modo a permitir identificações e agrupamentos sob o
Lia Friszman de Laplane; e discussões com a psicóloga e doutoranda mesmo nome ou rótulo.
em Psicologia Educacional, Maria Eduarda Silva Leme, que atua em A psicologia vem se dedicando ao estudo dos conceitos,
reabilitação profissional e educação de jovens cegos. Este trabalho e, para isso, tem adotado diferentes concepções, dentre as
contou com o auxílio da FAEP-Unicamp: processo 1.534/2003.
2 Endereço: Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências quais foi considerada hegemônica, até recentemente, a cha-
Médicas, Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação, Rua Tessália mada concepção tradicional ou clássica. Lomônaco, Caon,
V. de Camargo, 126, CP. 6111, Bairro Barão Geraldo, Campinas, SP, Heuri, Santos e Franco (1996), em uma revisão de literatura,
Brasil 13084-971. E-mail: cecigb@fcm.unicamp.br apresentam quatro concepções presentes nas teorias de inves-

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C. G. Batista <<-1->>

tigação psicológica sobre conceitos: clássica, probabilística, processo que os produz e modela. Nesse sentido, dado que a
dos exemplares e teórica. experiência está permanentemente em aberto, eles não podem
ser definidos por condições necessárias e suficientes.
Concepção clássica Kitcher (1990) apresenta, ainda, duas outras implicações
da crítica de Kant às definições de conceitos empíricos
A concepção clássica, cujas origens remontam ao rea- através de condições necessárias e suficientes (concepção
lismo aristotélico, é apresentada por Medin e Smith (1984) clássica). A primeira ataca a noção de que a aprendizagem
como uma concepção que “sustenta que todos os exemplos de conceitos ocorre em um período relativamente curto de
de um conceito compartilham propriedades comuns, que tempo. Para ser coerente com a presente crítica, a aquisição
se constituem em condições necessárias e suficientes para de conceitos precisa ser concebida como uma experiência
a definição do conceito” (p. 115). Medin (1989) dá como que continua ao longo da vida. A segunda implicação su-
exemplo a categoria “triângulo”, que atende aos critérios gere que a própria noção de conceitos não seria adequada
de possuir uma lista de propriedades individualmente ne- às mudanças no ambiente, e deveria ser substituída pela de
cessárias e coletivamente suficientes para inclusão de uma protótipos conceituais, em constante mudança ao longo do
figura geométrica nessa categoria. No caso do triângulo, os tempo. Dessa forma, seria preservada a principal suposição
critérios são: ser uma figura geométrica fechada, possuir teórica sobre conceitos empíricos: eles são centrais para a
três lados e a soma de seus ângulos internos totalizar 180 cognição por serem moldados pela experiência.
graus. Essa concepção é também apresentada por Oliveira e
Oliveira (1999), que destacam sua natureza binária, do tipo Concepção prototípica ou probabilística
“tudo-ou-nada”, de modo que “se duas entidades quaisquer
são exemplares de um conceito, elas o são a igual título, A primeira alternativa à concepção clássica, segundo
ou seja, um conceito não se aplica mais ou melhor a uma Lomônaco e cols. (1996), foi a concepção prototípica ou pro-
entidade que a qualquer outra” (p. 18). babilística, proposta por Eleanor Rosch (Rosch, Simpson &
Lomônaco e cols. (1996) consideram que, embora a Miller, 1976). A autora afirmou ter se baseado em Wittgenstein,
concepção clássica tenha sido predominante na psicologia que sugeriu o princípio de semelhança entre categorias, for-
por mais de meio século, várias dificuldades foram sendo evi- mando famílias, de modo que cada item tivesse um ou mais
denciadas. Essas dificuldades foram apresentadas por Medin elementos em comum com alguns outros, mas que nenhum
e Smith (1984), a primeira sendo o fracasso na especificação elemento precisasse ser comum a todos os itens. Rosch sugeriu,
de propriedades definidoras. Esses autores consideram que então, a organização de categorias em torno de um conjunto
décadas de análises por lingüistas, filósofos, psicólogos e de propriedades ou conjuntos de atributos correlacionados que
outros falharam na definição da maioria dos conceitos rela- são característicos ou típicos, rejeitando, assim, a noção de
tivos a objetos. Uma outra dificuldade apontada refere-se à atributos definidores. Oliveira e Oliveira (1999) comentam que
existência de casos cuja inclusão é incerta ou duvidosa, pois a concepção prototípica, da mesma forma que a clássica, iden-
os limites das categorias não são delimitados com precisão. tifica conceitos com conjuntos de propriedades. A diferença
Como exemplo, Medin e Smith (1984) trazem a dúvida sobre é que, nesse caso, as propriedades “constituem um protótipo,
se um tapete deve ser considerado como parte da mobília. de tal maneira que a aplicabilidade de um conceito a uma
Ainda outro argumento contra a concepção clássica refere-se entidade depende do grau de similaridade que existe entre a
ao fato de que alguns exemplos são mais típicos que outros. entidade e o protótipo do conceito” (p. 22). Assim, não se tem
Nesse sentido, o conceito de ave seria melhor representado uma situação de enquadramento do tipo “tudo ou nada”, mas
por uma andorinha3 do que por avestruz. Os autores citam, de exemplares mais ou menos próximos do protótipo, com
ainda, outros argumentos, também destacando a diferença limites pouco definidos.
de representatividade de diferentes exemplares colocados Entre as críticas a essa concepção, estão as de Medin e
sob a mesma designação conceitual, e consideram que é o Smith (1984). Eles consideram que a mesma pode não cap-
conjunto desses argumentos que acaba trazendo dificuldades tar adequadamente todo o conhecimento das pessoas sobre
para a concepção clássica. conceitos. Consideram que as pessoas, além de conhecerem
A concepção clássica foi também criticada por Kitcher propriedades características, também parecem conhecer o
(1990), uma autora interessada nas contribuições de Kant conjunto de propriedades de um conceito, bem como as
para a psicologia, especialmente nas colocações do filósofo relações entre elas, o que não estaria contemplado por essa
sobre conceitos empíricos. Kitcher faz uma crítica à visão concepção. Além disso, sugerem que essa concepção pode
clássica sobre conceitos, que supõe definições baseadas em ser excessivamente aberta e flexível.
condições necessárias e suficientes, e demonstra como Kant
dá apoio a essa crítica. Afirma que, para Kant, os conceitos Concepção dos exemplares
empíricos podem ser considerados como regras que nos per-
mitem unir materiais que são apresentados separadamente à A terceira concepção destacada por Lomônaco e cols.
nossa percepção. Assim, conceitos empíricos são adquiridos, (1996) é a concepção dos exemplares, que guarda seme-
refinados, rejeitados, ou mantidos com base na experiência. lhanças com a concepção prototípica. Também se opondo à
Isso é o que os legitima: serem justificados4 pelo próprio concepção clássica, esta concepção “assume que, pelo menos

3 O exemplo original cita “robin”, cuja tradução seria “tordo”, passarinho


bastante comum nos EUA. 4 Warranted, no original.

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Conceitos em crianças cegas <<-1->>

em parte, um conceito consiste em descrições separadas de da ciência”, existem alguns indicadores úteis. Conceitos de-
alguns de seus exemplares” (Medin & Smith, 1984, p. 118). monstram a unidade sistemática que vai permitir a hierarquia
Para eles, os modelos de exemplares têm em comum a idéia de gênero e espécie quando um conceito de gênero indica:
de que a categorização de um objeto se baseia em compara- a) propriedades ou b) forças que governam, elementos que
ções daquele objeto com exemplares conhecidos da mesma explicam os poderes ou propriedades do fenômeno indicado
categoria. Esses autores consideram como uma vantagem pelo conceito da espécie.
em relação à concepção prototípica o fato de que exemplares Kitcher (1990) considera que essa proposta de Kant é
podem trazer informações sobre todo o conjunto de valores melhor que a concepção teórica de conceitos, pois não ne-
de uma propriedade, bem como informação sobre correla- cessita da atribuição de teorias a crianças e adultos leigos.
ções entre propriedades. Criticam, por outro lado, o fato de A heurística subjacente à teoria de Kant sugere a adoção de
se ter uma falta de restrições em relação a propriedades que conceitos que indicam algumas relações de dependência entre
devem ser incluídas em conceitos, ou mesmo, quanto ao que atributos. Conceitos seriam apoiados apenas em fragmentos
constitui um conceito. de teorias. A autora destaca, assim, as contribuições teóricas
e heurísticas da visão de Kant sobre conceitos empíricos, que
Concepção teórica contesta frontalmente a concepção clássica e propõe uma
alternativa à concepção teórica, especialmente quando não se
A quarta e última concepção destacada por Lomônaco trata de teorias científicas. Busca uma caracterização dos con-
e cols. (1996), proposta como alternativa para superar as ceitos empíricos como inacabados, em processo de alteração,
limitações acima apontadas, é a concepção teórica. Segundo melhor caracterizados por relações parciais de dependência
esses autores, baseia-se na idéia de que, ao formar novos entre gênero e espécie, do que por sistemas fechados de
conceitos, o sujeito traz pressuposições sobre “como as coisas definição por condições necessárias e suficientes.
estão dispostas no mundo: como elas são, qual o seu modo de
funcionamento e como se relacionam entre si. Estas pressu- Conceitos em Piaget e Vygotsky
posições são denominadas ‘teorias’ ou ‘modelos’” (p. 53). É
enfatizado o fato de que cada conceito se relaciona com outros Com um foco mais voltado para a aquisição, Piaget e
conceitos, dentro de domínios de conhecimento, sendo cada Vygotsky também abordam a questão dos conceitos. Em
domínio organizado por uma teoria, não necessariamente uma relação a Piaget, é possível afirmar que, em sentido amplo,
teoria científica. Murphy e Medin (1985) esclarecem que, toda a sua epistemologia genética guarda relação com o tema
quando argumentam que os conceitos são organizados por “conceitos”. Flavell (1975), autor de tradição piagetiana, dis-
teorias, o termo “teoria” é usado para significar um grande cute a aquisição de conceitos em vários domínios: o mundo
número de “explicações” mentais, e não um relato científico lógico e matemático (classes, relações e número), o mundo
completo e acabado. O termo indica “um conjunto complexo natural (objetos; quantidade – conservação de peso, subs-
de relações entre conceitos, geralmente com uma base cau- tância e volume; espaço; tempo, movimento e velocidade;
sal” (Murphy & Medin, 1985, p. 290), de forma semelhante causalidade e conceitos afins) e o mundo social.
às teorias usadas em explicações científicas, embora não se Na maioria desses domínios, Piaget representou um
confunda com estas. Lomônaco e cols. (1996) ressaltam a marco teórico e empírico, e sugeriu etapas, ou fases de
diferença dessa concepção em relação às demais, pelo fato de evolução dos mesmos, ao longo da vida. O autor postulou
os conceitos passarem a ser vistos sempre como relacionados que as aquisições humanas seguem estádios de desenvol-
a outros conceitos, constituindo domínios de conhecimentos, vimento (Piaget, 1964/1967), com características bastante
articulados por teorias. definidas. Esses estádios representam etapas ou marcos no
desenvolvimento, a partir da primeira forma de inteligência,
Concepção defendida por Kitcher, baseada em Kant a sensório-motora, passando pelo início do uso do símbolo,
das operações concretas e, finalmente, das operações formais.
Depois de criticar a concepção clássica sobre conceitos, Sua epistemologia genética parte do modelo de conhecimento
Kitcher (1990) traz a pergunta sobre os mecanismos mentais completo, presente no adulto, e se pergunta sobre a origem
envolvidos em nossa habilidade de classificar com base em desse conhecimento, desde o início da vida do bebê. Busca
conceitos, já que foi rejeitada a noção das condições neces- as respostas por meio de investigações sobre as formas de
sárias e suficientes. Lembra a sugestão de Kant quanto ao construção de cada categoria de conhecimento, em cada es-
emprego de conceitos empíricos que se relacionem como tádio, propondo um modelo de desenvolvimento humano que
gênero e espécie, entendendo-se “gênero” como categoria seria classificado de organicista, de acordo com os critérios
mais ampla, e “espécie” como subcategoria de “gênero”. As apresentados por Lewis (1999).
características podem se coordenar entre si, ou constituir sé- Por sua vez, Vygotsky (1934/1989) aborda a questão da
ries parciais de características hierarquizadas, que ascendem a aquisição de conceitos, fazendo distinção entre conceitos
gêneros mais altos e/ou descem para espécies mais baixas. espontâneos e conceitos científicos, os primeiros adquiridos
Segundo Kitcher (1990), Kant considera que essas rela- na experiência pessoal da criança, e os científicos, em sala
ções de coordenação e subordinação não se constituem em de aula. O autor descreve etapas na formação de conceitos
uma “essência”, mas apenas indicam relações de dependência (sincretismo, complexo, conceito). Relata que, nos estudos
entre as propriedades conhecidas a serem associadas ao con- realizados por seu grupo de pesquisa, o pensamento por con-
ceito. Embora, pelos motivos já explicitados, não se possa ter ceito só foi observado a partir da adolescência, com gradual
uma lista completa das relações de dependência antes do “fim aparecimento dos verdadeiros conceitos e permanência das

Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Jan-Abr 2005, Vol. 21 n. 1, pp. 007-015 9


C. G. Batista <<-1->>

formas mais elementares em muitas áreas do seu pensamento. abordada pelos teóricos do desenvolvimento, é importante
Traz um enfoque menos linear que Piaget, considerando que salientar que, ao longo da vida, as pessoas se envolvem em
“a adolescência é menos um período de consumação do que diferentes tipos de interação, que levam a diferentes níveis
de crise e transição” (p. 68). Sua abordagem ao processo de de aprofundamento de diferentes conceitos. Assim, ao longo
desenvolvimento pode ser classificada como contextualista, das experiências de uma pessoa, e dos conhecimentos que
segundo os critérios de Lewis (1999). O autor dá ênfase ao adquire, muda o nível de compreensão de cada conceito.
papel da linguagem, ao considerar que o processo de forma- Por exemplo, o conceito de Poder Legislativo é diferente
ção de conceitos consiste em operação intelectual, “dirigida para uma criança de 8 anos, um adolescente que fez uma
pelo uso das palavras como o meio para centrar ativamente visita a uma Casa Legislativa, um adulto que trabalha como
a atenção, abstrair determinados traços, sintetizá-los e sim- escriturário em uma Câmara de Vereadores, um deputado,
bolizá-los por meio de um signo” (p. 70). um leitor assíduo de jornal e um cientista político. O mesmo
Vygotsky (1934/1996) critica a noção da psicologia tra- pode ser pensado em relação a quaisquer outros exemplos,
dicional, baseada na lógica formal, de que o conceito é uma tais como, “casamento”, “maternidade e paternidade” ou
estrutura mental abstrata, muito distante de toda a riqueza da “carreira profissional”.
realidade concreta. Ao invés disso, afirma que É importante lembrar, também, que as coisas a serem
conceituadas (objetos, eventos, instituições, costumes) estão
O verdadeiro conceito é a imagem de uma coisa objetiva em sua em mudança, o que é mais acentuado em uma sociedade
complexidade. Apenas quando chegamos a conhecer o objeto tecnológica como a atual. Entre outros exemplos, podem ser
em todos os seus nexos e relações, apenas quando sintetizamos mencionadas as alterações recentes no conceito de “telefone”:
verbalmente essa diversidade em uma imagem total mediante os modelos com fio e sem fio, os conjugados a aparelhos de
múltiplas definições, surge em nós o conceito. (Vygotsky, fax e secretária eletrônica, e os celulares, com suas múltiplas
1934/1996, p. 78) funções. Outros exemplos: TV tradicional versus interativa;
teatros tradicionais versus Centros Culturais; os computa-
Ao longo da presente revisão sobre concepções relativas a dores pessoais dos anos 1980, os dos anos 1990, e os atuais
conceitos, destaca-se a tendência por visões dinâmicas, ade- notebook e palmtops. Observam-se, ainda, alterações nos
quadas à captação de uma realidade mutável e multifacetada. significados das palavras, alterações mais rápidas e efêmeras
A partir das mesmas, são sugeridas as seguintes decorrências na gíria, mas também observadas nas formas cultas da língua
para o processo educacional: e nas variações dialetais.
a) Com base na concepção teórica, conceitos vistos como Assim, ao longo da vida, o processo de aquisição vai
relacionados a outros conceitos, são organizados em assumindo formas cada vez mais individualizadas e típicas
sistemas, que variam de acordo com teorias e objetivos de pessoas e de grupos: mudam as coisas, muda o nível
específicos. Desse modo, o mesmo elemento a ser concei- de conhecimento das coisas, definem-se áreas de domínio
tuado pode fazer parte de diferentes sistemas conceituais, conceitual preferencial (dependendo, entre outros fatores,
não existindo, portanto, uma definição única e exclusiva da atividade profissional e de interesses pessoais). Não tem
para um determinado conceito (ex: “cachorro” tem uma sentido, portanto, falar em “conceito adquirido” em situação
definição enquanto componente do sistema de classifi- escolar como algo definitivo.
cação dos seres vivos pela Biologia, outra no âmbito da
discussão sobre animais de estimação, e outra, ainda, Aquisição de Conceitos por Pessoas Cegas
como possível vetor de doenças).
b) A partir das colocações de Kitcher (1990), uma proposta A questão da aquisição de conceitos por cegos passa,
de caracterização de conceitos empíricos como relações em primeiro lugar, por tudo o que se refere à aquisição de
entre “gênero” e “espécie”, de modo aberto, ao invés de conceitos por qualquer pessoa, com ou sem alterações sen-
definições fechadas, por condições necessárias e suficien- soriais. Aplicam-se, portanto, as observações e conclusões
tes. apresentadas anteriormente, acrescidas de tópicos específicos
c) Também a partir de Kitcher (1990), a noção de que a relativos ao tema. Nesse sentido, será apresentada uma breve
aquisição de conceitos deve ser concebida como uma revisão sobre aquisições de pessoas cegas, e apresentados e
experiência que continua ao longo da vida, não podendo discutidos os resultados de um levantamento sobre concep-
ser pensada, exclusivamente, como aprendizagem a curto ções de professores a respeito do ensino de conceitos para
prazo. alunos cegos. Serão discutidos, a seguir, as questões centrais
d) Com base nas colocações de Vygotsky (1934/1989, destacadas nesse levantamento, a saber, o uso do tato como
1996), uma concepção de aquisição de conceitos voltada recurso no ensino de cegos e a noção de representação no
para processos de mediação por signos, particularmente planejamento de material didático para cegos.
a mediação pela linguagem, e, assim, colocando o foco
nas interações entre pessoas, objetos e situações, como Aquisições de pessoas cegas
integrantes ativos de contextos sociais e culturais, ao
longo do processo contínuo de apropriação do significado Estudos recentemente realizados no Brasil mostraram
de conceitos. exemplos de competências dos cegos na aquisição de
Tendo em vista essas considerações, fica claro que o conceitos. Leme (1999) investigou a compreensão do sig-
mesmo objeto pode ser conceituado em diferentes níveis, nificado de palavras que se supõe terem uma base visual
dependendo de diferentes fatores. Além da questão evolutiva, (como “arco-íris” e “transparente”), em relação a quatro

10 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Jan-Abr 2005, Vol. 21 n. 1, pp. 007-015


Conceitos em crianças cegas <<-1->>

adolescentes do sexo feminino com cegueira congênita. Os de diferenças dentro de uma população, com principal atenção
resultados indicaram significados corretos para a maioria das para os casos de alta aquisição. Warren (1994) considera que
palavras, para quase todas as jovens, em geral com alto grau um caso de alta aquisição nos diz mais que a informação sobre
de generalização e abstração das respostas. resultados médios, pois já é suficiente para indicar que as pos-
Passos (1999) estudou a compreensão de metáforas por síveis dificuldades não são inerentes à cegueira, e, ao mesmo
dois meninos cegos congênitos, com idade entre 12 e 13 tempo, instiga à identificação dos processos que favoreceram
anos. A intervenção envolveu a explicação do significado essas aquisições. O autor critica propostas de aconselhamento
de algumas das metáforas. Os resultados indicaram que de pais e profissionais, que descrevem aquilo que, “em média”,
os dois meninos mostraram aumento na compreensão das uma criança cega pode adquirir, por acreditar que tendem a
metáforas cujo significado foi explicado, e também para as reduzir expectativas de aquisição. Essas colocações de Warren
metáforas não explicadas, embora com diferenças no nível sugerem novas formas de investigação, e colocam sob suspeita
de desempenho entre eles. os estudos comparativos que concluem sobre incapacidades
Ormelezzi (2000) pesquisou a aquisição de representa- ou atrasos na aquisição de diferentes habilidades por cegos,
ções mentais por cegos adultos. Constatou que a formação incluindo a questão de conceitos.
de imagens e conceitos dos participantes se dava pelas ex- Por sua vez, Lewis (2003) apresenta revisão de literatura
periências de tipo tátil, auditiva e olfativa, inter-relacionadas sobre o desenvolvimento de crianças cegas, concluindo que
com a linguagem das pessoas com quem interagiam. E, no a cegueira não impede o desenvolvimento, mas que este
caso de conceitos pouco ou nada acessíveis à percepção, difere, de diversos modos, do apresentado pelas crianças
verificou significados consistentes, cuja aquisição foi atri- videntes. Considera, assim, que o estudo de crianças cegas
buída à linguagem. pode ser significativo para as teorias de desenvolvimento, e
Nunes (2002) propôs o ensino de quatro grupos de con- sugere três implicações teóricas desses estudos. A primeira se
ceitos (coisas tateáveis pequenas, coisas tateáveis grandes, refere à necessidade de identificação de rotas alternativas de
conceitos não tateáveis e conceitos abstratos), para três desenvolvimento. Lewis (2003) argumenta que, se as crianças
crianças cegas com idades entre 9 e 10 anos. Os resultados cegas apresentam uma quantidade relativamente pequena de
indicaram que todos os participantes apresentaram desem- problemas de desenvolvimento, isso indica que este pode ocor-
penho apreciavelmente melhor após a intervenção. rer na ausência do input visual. E aponta a linguagem como a
Nunes (2004) apresentou seis histórias (elaboradas por principal fonte de informação para a criança cega, e possível
Keil, centradas na concepção teórica de conceitos, e adap- substituto para muito do que ela perde pela falta de visão. Em
tadas para o Brasil por Lomônaco) para sete crianças cegas relação a esse tópico, considera-se que cabe uma discussão
entre 8 e 13 anos. Verificou que as crianças basearam-se, na sobre relações entre input sensorial e processos cognitivos, que
maioria das vezes, em atributos definidores, considerados remete à pergunta epistemológica sobre a origem do conheci-
superiores aos atributos característicos. Também solicitou aos mento. Hessen (1925/2000), em texto clássico publicado no
sujeitos a definição de 15 conceitos, concretos e abstratos, e início do século XX, apresenta e discute possíveis respostas a
analisou as categorias de respostas. Dessa forma, identificou essa pergunta, colocando as posições do empirismo e raciona-
formas diferenciadas de definição e de utilização de recursos lismo clássicos, o primeiro enfatizando o papel dos sentidos,
perceptivos para a elaboração dos conceitos. o segundo, a importância da razão. O autor também apresenta
Quanto à literatura internacional, a recente revisão de como formulações mais recentes, representando tentativas de
Nunes (2004) buscou as principais bases de dados, no período conciliação: o intelectualismo, mais próximo do empirismo,
de 1980 a 2004. A autora encontrou um número relativa- e o apriorismo, mais próximo do racionalismo. A discussão
mente pequeno de estudos, a maioria publicada no Journal continua, e o que importa enfatizar é que não se concebe
of Visual Impairment and Blindness. A tendência geral dos mais o empirismo ou racionalismo puros. No mesmo sentido,
resultados foi de indicar capacidades conceituais dos cegos, embora com grandes variações, a Psicologia tende a pensar
semelhantes às dos videntes, sendo as diferenças discutidas no conhecimento como fruto de interação entre informações
como relacionadas a modos alternativos de processamento provenientes dos sentidos e processos cognitivos, em que a
cognitivo das informações sensoriais. linguagem assume papel relevante, embora com variações
De modo geral, as revisões mais recentes sobre o desen- nos diferentes quadros de referência teórica. Assim, quando
volvimento de pessoas cegas (Lewis, 2003; Warren, 1994) Lewis fala na linguagem como possível substituto do que a
não trazem mais a dúvida sobre presença de capacidades, criança cega perde pela falta de visão, é importante lembrar
e sim, questionamentos sobre aspectos em que diferem, e que a linguagem é importante para qualquer pessoa, e que é
implicações teóricas e práticas dessas diferenças. difícil falar em um único substituto para a visão. O que se
De uma forma abrangente em relação às capacidades dos coloca, no caso do cego, é a pergunta sobre como se organi-
cegos, com implicações para o tópico em questão, Warren zam e se integram as informações provenientes dos sentidos
(1994) critica o que ele denomina de abordagem comparativa remanescentes, e qual o papel da linguagem e do pensamento
ao estudo dos cegos, em que capacidades e características de nessa organização.
crianças cegas são avaliadas em relação às capacidades cor- A segunda implicação teórica apresentada por Lewis
respondentes de crianças videntes, sempre em relação à idade (2003) refere-se à busca de explicações para problemas no
cronológica. O autor afirma ter utilizado essa abordagem em desenvolvimento de crianças cegas, nos casos em que aparen-
seus livros anteriores de revisão da literatura sobre o desen- temente não existem problemas cerebrais que os justifiquem.
volvimento de crianças cegas. E propõe, como alternativa, a Sugere que essas crianças podem não ter recebido, ao longo
abordagem diferencial, definindo-a como busca da explicação de seu desenvolvimento, inputs apropriados em quantidade,

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qualidade ou variedade, de modo a permitir convergência de suas classes, em municípios do interior de São Paulo. Foram
informações e redundância das mesmas. A autora aponta, identificadas e discutidas algumas de suas crenças sobre o
portanto, para a importância de se investigar influências am- planejamento de ensino para esses alunos, sistematizadas em
bientais, ao longo da história do desenvolvimento da criança, quatro categorias, apresentadas a seguir.
deslocando o foco do limite orgânico, como fator único de 1) A discriminação tátil constitui-se em habilidade básica,
produção de dificuldades. que deve ser bem treinada em crianças cegas.
A terceira implicação refere-se às teorias evocadas para Considera-se, assim, o tato como a principal forma de ob-
explicar diferenças observadas. Lewis (2003) discute o fato tenção de informação para o cego. Sugere-se que o tato deve
de que a teoria de Piaget prevê relações entre o aparecimento ser treinado extensivamente na discriminação de diferentes
de diferentes manifestações (ex: reação à separação dos pais, materiais e de diferentes aspectos desses materiais, tais como
noção de permanência de objeto, linguagem, compreensão de forma, textura e peso. Muitas vezes, essas atividades são
causalidade e jogo), como reflexo da habilidade subjacente de propostas de forma de exercícios específicos, com amostras
representação mental do ambiente. Lembra exemplos de estudos variando ao longo de uma dimensão, como forma ou textu-
com crianças cegas, em que foram observadas discrepâncias ra, a serem discriminadas fora de contextos significativos.
entre essas manifestações, estando algumas atrasadas e outras Revivem, assim, a estratégia pedagógica do exercício de
ocorrendo no mesmo período que para as crianças videntes. E habilidades isoladas, que tem sido bastante criticada pela
as discute sugerindo a necessidade de formulações teóricas que pedagogia contemporânea.
não sejam baseadas apenas no estudo do desenvolvimento de 2) O que não é apreendido pelos olhos, deve ser ensinado
crianças videntes. Cabe comentar que a teoria de Piaget não é por meio de modelos táteis.
a única que discute o desenvolvimento infantil, e que se trata As professoras demonstram grande preocupação com a
de uma teoria que seria classificada por Lewis (1999) como falta de material adequado, e parecem crer que esses recursos
organicista, com ênfase no estabelecimento de etapas claramente táteis, per se, permitiriam as aquisições de conhecimento
delimitadas no desenvolvimento. Lewis (1999) discute a questão pelos alunos cegos. As autoras do estudo discutem a crença
das abordagens ao desenvolvimento infantil e critica modelos subjacente a essa afirmação, de que a formação de conceitos
de desenvolvimento que ele denomina organicistas. Propõe depende, basicamente, de informações primárias, prove-
que os mesmos sejam substituídos por modelos contextualistas nientes dos sentidos, e de que o tato é o principal substituto
de desenvolvimento, que enfatizam: a) a descontinuidade no da visão.
desenvolvimento, opondo-se à noção de continuidade; b) uma 3) Deve-se oferecer à criança cega uma grande quantidade
visão da criança como participante ativo de sua socialização e de objetos, que a ajudarão a construir conceitos.
desenvolvimento, contrapondo-se a uma visão passiva, depen- As professoras pensam que deveria ser usada uma pro-
dente de imperativos biológicos e do ambiente social; c) uma fusão de objetos, em tamanho real ou miniatura, e assumem
concepção da história do desenvolvimento como narrativa, como que o ensino vai ser mais efetivo, quanto mais objetos forem
representação de eventos passados passível de reconstrução, oferecidos. As situações não facilmente apresentáveis ao tato
oposta à noção de história como fotografia. Assim, com relação provocam dúvidas e insegurança quanto à possibilidade dos
às colocações de Lewis (2003), considera-se que são bastante alunos de ter acesso a esses conhecimentos, incluindo: a)
relevantes quando sugerem que as formulações teóricas sobre elementos não facilmente miniaturizáveis, e/ou que perdem
desenvolvimento não sejam baseadas exclusivamente no estudo muitas de suas características nessa situação. Exemplos:
de crianças videntes. Entretanto, não apenas porque as explica- conjunto de edifícios, acidentes geográficos (lago, monta-
ções não se coadunam com as colocações da teoria de Piaget nha, etc); b) elementos que são inacessíveis ao toque, como
sobre estágios de desenvolvimento, mas também porque outros bolha de sabão, fenômenos atmosféricos (nuvem, raio, arco-
modelos podem ser propostos para o estudo do desenvolvimento íris), entre outros; c) elementos que são perigosos ao toque:
de todas as crianças, com ou sem alterações orgânicas. animais agressivos ou peçonhentos, objetos quentes, etc; d)
Verifica-se que diferentes autores, sob diferentes pers- elementos cujo toque é proibido ou pouco convencional,
pectivas, trazem dados sobre as possibilidades de desenvol- como é o caso de certas partes do corpo, certos animais
vimento de crianças cegas e buscam elucidar processos de (sapo), entre outros.
aquisição, enfatizando a contribuição de fatores ambientais A idéia é que se deveria ter um acervo, o mais completo
e apontando implicações teóricas e metodológicas do estudo possível, de objetos, miniaturas e ampliações. Lamenta-se
dessas crianças. a impossibilidade de o cego ter acesso aos elementos não
reprodutíveis em modelos tateáveis. As autoras do estudo
Concepções de professores sobre ensino de conceitos consideram que a questão a ser discutida é a da representa-
para cegos ção, e levantam as seguintes questões: Será que todo objeto
representa a noção que se pretende trazer para o aluno? Que
Abordando-se a questão de outro ângulo, o dos profes- preocupações deveriam estar presentes, ao se planejar um
sores em sala de aula, pode-se perguntar o que eles pensam objeto como representante de outro objeto ou fenômeno?
sobre o ensino de crianças cegas, especialmente quando 4) Representações visuais devem se converter em represen-
está em implantação a política de inclusão de alunos com tações táteis, para ensejar a formação de conceitos.
deficiência no sistema regular de ensino. Um estudo foi Aqui, as professoras se referem, principalmente, a re-
realizado por Laplane e Batista (2003), com 25 professoras presentações bidimensionais: figuras, fotografias, desenhos,
do ensino regular (pré-escola e primeiras séries do Ensino mapas, esquemas. No caso do aluno cego, alguns recursos
Fundamental) que tinham alunos com deficiência visual em já foram desenvolvidos, e muito resta a fazer. Há questões

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Conceitos em crianças cegas <<-1->>

importantes a discutir, para balizar a elaboração desses re- corpo, pernas, sente suas garras, percebe a maciez do pelo,
cursos. Nesse sentido, Masini (1994) retoma formulações de ouve seus miados, sente seu cheiro e, ao mesmo tempo, está
Chauí que, em obra sobre “o olhar”, conclui que conhecer sempre vendo a imagem do gato todo. A autora afirma que
não é ver, mas que o ver permanece como condição para o isso é diferente do caso da criança cega, que pode passar
conhecer. Masini comenta que, no caso, “se está falando da por várias experiências isoladas (ouvir um miado, tocar uma
‘maioria’ dos seres que aí estão, existindo como videntes e parte do corpo do gato, levar um arranhão, entre outras) sem
percebendo pela predominância da visão sobre os demais ter a facilidade de integrar todas essas experiências como
sentidos” (p. 81). E lança a pergunta: “Não seria possível provenientes de um gato.
pensar de uma outra maneira? (...) Porque não perguntar É inegável o papel da visão ao trazer informações sobre
como é o pensar daquele que aí está e não é vidente?” elementos colocados em diferentes distâncias, possibilitan-
(p. 81). Nesse sentido, a autora analisa e critica “propostas, do percepção global e noção de profundidade, bem como
instrumentos e fundamentações para trabalhos com o D.V., a análise dos elementos que compõem a cena. Entretanto,
cujo referencial básico era exatamente o que não é próprio podem ocorrem dois tipos de erro ao se valorizar o papel da
dele, isto é, a visão” (p. 75). visão: um é o de confundir o papel da percepção visual global
Considera-se, assim, que a partir da pesquisa de Laplane com o dos processos mentais superiores na compreensão de
e Batista (2003), emergem questões relativas ao papel do tato conceitos; outro, é o de subestimar o valor de informações
no ensino do cego e à noção de representação no planeja- seqüenciais. Em relação ao primeiro aspecto, é importante
mento de recursos didáticos. lembrar o que já foi destacado sobre aquisição de conceitos.
Aplicando essas considerações ao exemplo do gato, uma
O uso do tato como recurso no ensino de cegos criança não vai ter a noção de gato por ver um gato, mas por
integrar dados sensoriais e explicações verbais que lhe per-
Dentre os autores que discutem a questão do papel do mitam identificar e descrever um gato, estabelecer distinções
tato para o cego, destacam-se Ochaita e Rosa (1995), que entre gato, cachorro e rato, e, no processo de educação formal,
apresentam o sistema háptico ou tato ativo como o sistema adquirir noções cada vez mais profundas e complexas sobre
sensorial mais importante para o conhecimento do mundo seres vivos e suas propriedades.
pela pessoa cega. Para esses autores, é necessário diferenciar Quanto ao segundo ponto, sobre o valor das informações
entre tato passivo e tato ativo ou sistema háptico. Enquanto seqüenciais, é oportuno lembrar que, na vida, estão presentes
no primeiro a informação tátil é recebida de forma não in- muitas modalidades de informação seqüencial: a música, o
tencional ou passiva, no tato ativo a informação é buscada de texto longo (romances, dissertações, entre outros), a exibição
forma intencional pelo indivíduo que toca. Assim, segundo de um filme ou de uma peça de teatro. Nesses casos, não se
eles, no tato ativo encontram-se envolvidos não somente os considera que haja perdas ou dificuldades, pela impossibili-
receptores da pele e os tecidos subjacentes (como ocorre no dade da captação global e simultânea de todos os elementos
tato passivo), mas também a excitação correspondente aos que vão sendo apresentados em seqüência.
receptores dos músculos e dos tendões, de maneira que o Ainda um outro aspecto, em geral pouco ressaltado, é o
sistema perceptivo háptico capta a informação articulatória, fato de que videntes se baseiam muito mais em informações
motora e de equilíbrio. conjugadas a partir de vários sentidos, do que unicamente na
Ainda segundo Ochaita e Rosa (1995), existem impor- visão. Às vezes, tarefas são descritas como basicamente visu-
tantes diferenças entre a percepção e o processamento da ais, quando não é o caso, pois vários sentidos participam da
informação mediante o tato e a visão. Afirmam que a cap- mesma, além, é claro, do papel predominante dos processos
tação da informação mediante o tato é muito mais lenta que cognitivos. Podem ser citadas várias situações em que é clara
a proporcionada pelo sistema visual, e lembram que essa a participação do tato e do sentido proprioceptivo, além da
informação tem caráter seqüencial. Consideram que isto dá visão: localizar objetos em uma bolsa; acionar equipamentos
lugar a uma maior carga na memória de trabalho, quando com teclas, como telefone, teclado de computador, ou con-
os objetos a serem explorados são grandes ou numerosos trole remoto; tocar instrumentos; vestir-se (lembrar de como
(exemplo: exploração tátil de uma mesa, em comparação com se coloca um cinto nos passadores ou se puxa um zíper nas
sua exploração visual). Além disso, enquanto o tato somente costas); localizar alguns dos comandos de um carro, espe-
pode explorar as superfícies situadas no limite que os braços cialmente os dos pés. Assim, reitera-se que, para um cego,
alcançam, a visão é o sentido útil por excelência para perceber não se trata de substituir a visão por outros sentidos, normal-
objetos e sua posição espacial a grandes distâncias. mente inativos, mas de acioná-los de uma forma diferente
Assim, o tato constitui um sistema sensorial que tem do vidente, que parece usar a visão para “guiar” os demais
determinadas características e que permite captar diferentes sentidos. O tato constitui-se em recurso valioso no ensino de
propriedades dos objetos, tais como temperatura, textura, alunos cegos. Entretanto, não pode ser visto como substituto
forma e relações espaciais. Essa captação tem caráter seqüen- da visão, nem pensado de forma independente dos processos
cial e funciona a curta distância, correspondendo ao alcance cognitivos envolvidos na apropriação de conhecimentos.
da mão. Ao mesmo tempo, difere da visão, que permite a
obtenção de informação simultânea e à distância. A noção de representação no planejamento do material
Outros autores que escrevem sobre a cegueira também didático para cegos
exaltam o caráter totalizador ou global da visão. Ferrell
(1996) dá o exemplo de como uma criança passa a conhecer Uma representação pode ser entendida como um elemento
um gato: ao explorar o animal, a criança toca sua cabeça, colocado no lugar de outro. Em sala de aula, professores

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lançam mão de representações para trazer alguns dos ele- da mesma forma que para alunos videntes. A especificidade
mentos do mundo, relevantes para determinada explicação. fica por conta da elaboração de recursos auxiliares na com-
Quando se trata do ensino de videntes, para os quais já existe preensão de diferentes conceitos e sistemas de conceitos. Para
uma longa tradição bem estabelecida, os professores utilizam tanto, é relevante redefinir o papel do tato, como importante
meios bidimensionais (gravuras, fotos, esquemas, mapas, recurso, embora não como substituto direto da visão. É também
filmes) e tridimensionais (objetos reais ou miniaturas). Mui- relevante pensar a noção de representação, como base para
tas convenções vêm sendo estabelecidas, de tal forma que, o planejamento de recursos didáticos, a serem elaborados e
algumas vezes, deixa-se de entendê-las como convenções. apresentados de forma interligada aos sistemas conceituais já
É o caso, por exemplo, dos esquemas (ex: célula, átomo, adquiridos e em fase de aquisição pelos alunos.
sistema solar) e dos mapas, que parecem auto-evidentes
para os iniciados em sua interpretação. No caso de gravuras, Referências
é importante lembrar as convenções para indicar formas,
incidência de luz, texturas e distâncias relativas, que vão Ferreira, A. B. H. (1975). Novo dicionário Aurélio. Rio de Janeiro:
mudando ao longo da história da arte e da história do desenho Nova Fronteira.
pedagógico e das ilustrações infantis. Ferrell, K. A. (1996). Your child’s development. Em M. C. Holbrook
Uma vez que se trata de representações, a tarefa, em (Org.), Children with visual impairments: A parents’ guide
relação ao aluno cego, é de buscar as melhores formas de (pp. 73-96). Bethesda: Woodbine House.
representação para esse aluno. É um desafio interessante para Flavell, J. H. (1975). O desenvolvimento de conceitos. Em P. H.
o professor, paralelo ao trabalho de estabelecer representa- Mussen (Org.), Carmichael: Psicologia da Criança. (M. H. S.
ções para o aluno vidente, embora mais instigante e criativo, Patto, Trad.) (pp. 1-130). São Paulo: EPU, EdUSP.
devido à menor oferta de modelos disponíveis. Dessa forma, Hessen, J. (2000). Teoria do conhecimento. (2ª ed.). São Paulo:
começam a ser equacionados os problemas explicitados Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1925).
pelas professoras na pesquisa anteriormente mencionada, Kitcher, P. (1990). Kant’s transcendental psychology. New York &
em relação a formas de trazer “o mundo” (objetos, veículos, London: Oxford University Press.
acidentes geográficos, animais peçonhentos) para a sala de Laplane, A. L. F. & Batista, C. G. (2003). Um estudo das concepções
aula. Assim, a diferença entre alunos videntes e cegos fica de professores de ensino fundamental e médio sobre a aquisição
centrada nos modos de representação a serem utilizados de conceitos, aprendizagem e deficiência visual [Resumo]. Em
como auxiliares na explicação de diferentes conceitos, o que Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial
é mais promissor que a discussão centrada na constatação (Org.), Anais do I Congresso Brasileiro de Educação Especial,
das dificuldades trazidas pela cegueira, sempre comparadas IX Ciclo de Estudos sobre Deficiência Mental, (pp. 14-15). São
com a ausência dessas dificuldades nos videntes. Carlos: UFSCar.
Um exemplo refere-se à compreensão da idéia de “trem Leme, M. E. S. (1999). Investigação de conceitos em cegos
com 45 vagões”. Para tanto, é necessário saber o que é trem, congênitos. Cadernos Cepre, 1(1), 33-36.
vagão e ter noção de número. Trata-se de vários conceitos, Lewis, M. (1999). Alterando o destino: Por que o passado não
cuja aquisição envolve múltiplas situações de ensino- prediz o futuro. Campinas: EdUnicamp & Moderna.
aprendizagem, tanto no caso do aluno cego, como do vidente. Lewis, V. (2003). Development and disability (2a ed.). Oxford, UK:
No caso do aluno cego, não é preciso, como freqüentemente Blackwell.
postulado, levá-lo a percorrer um trem com esse número Lomônaco, J. F. B., Caon, C. M., Heuri, A. L. P. V., Santos, D. M.
de vagões ou apresentar-lhe uma miniatura desse trem. A M. S. & Franco, G. T. (1996). Do característico ao definidor:
oferta de recursos pedagógicos para o ensino do conjunto de Um estudo exploratório sobre o desenvolvimento de conceitos.
conceitos envolvidos na referida expressão dependerá dos co- Psicologia: Teoria e Pesquisa, 12(1), 51-60.
nhecimentos anteriores do aluno, e não se dará em uma única Masini, E. F. S. (1994). O perceber e o relacionar-se do deficiente
aula. Outro exemplo refere-se ao conceito de relâmpago, em visual. Brasília: Corde.
séries mais avançadas do ensino. Nesse caso, as explicações Medin, D. L. (1989). Concepts and conceptual structure. American
envolvem noções de eletricidade, dispensando-se o uso de Psychologist, 44(12), 1.469-1.481.
recursos tangíveis, ou a capacidade de ver um relâmpago, Medin, D. L. & Smith, E. E. (1984). Concepts and concept
como requisito para compreensão. formation. Annual Review of Psychology, 35, 113-138.
Murphy, G. L. & Medin, D. L. (1985). The role of theories in
Conclusão conceptual coherence. Psychological Review, 92(3), 289-316.
Nunes, I. M. (2002). A aquisição de conhecimentos sobre diferentes
Concepções recentes sobre conceitos apontam para pro- conceitos em crianças cegas totais com diferentes histórias de
cessos de mudança, interação entre elementos e relatividade vida: Uma investigação. Dissertação de Mestrado, Universidade
de sistemas de classificação. Mudanças se referem tanto ao Federal de São Carlos, São Carlos.
sujeito que conhece como aos objetos e eventos a serem Nunes, S. S. (2004). Desenvolvimento de conceitos em cegos
conhecidos. Essas concepções sobre conceitos apontam congênitos: Caminhos de aquisição do conhecimento. Dissertação
para a importância dos processos cognitivos, especialmente de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo.
linguagem e pensamento, na elaboração e integração das Ochaita, E. & Rosa, A. (1995). Percepção, ação e conhecimento nas
informações provenientes dos sentidos. crianças cegas. Em C. Coll, J. Palácios & A. Marchesi (Orgs.),
No que se refere ao ensino de conceitos para alunos cegos, Desenvolvimento Psicológico e Educação. (M. A. G. Domingues,
as decorrências dessas concepções devem ser levadas em conta, Trad.). (pp. 183-197). Porto Alegre: Artes Médicas.

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Oliveira, M. B. & Oliveira, M. K. (Orgs.). (1999). Investigações publicado em 1934).
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Imagem corporal e sexualidade de adolescentes com cegueira,


alunos de uma escola pública especial em Feira de Santana, Bahia

Dalva Nazaré Ornelas França*


Eliane Elisa de Souza e Azevedo**

Resumo
Seis adolescentes com cegueira congênita, alunos da Fundação Jonathas Telles de Carvalho, em Feira de Santana,
concordaram em participar da presente pesquisa respondendo questionários e outros instrumentos de entrevista sobre
imagem corporal e sexualidade. Os resultados demonstram que os adolescentes com cegueira têm fiel percepção de sua
imagem corporal, que é construída a partir do que lhe dizem e pelo toque do próprio corpo. Em todos os adolescentes foi
observado elevado nível de auto-estima e autopercepção como sexualmente atraentes. Existe consciência das transforma-
ções corporais da adolescência, embora com desinformação e receio sobre as mesmas. Todavia prevalece o desejo de
construir uma relação afetivo-sexual, desejo esse semelhante ao dos adolescentes videntes. A ausência no país de um
modelo pedagógico especial para educação sexual de portadores de deficiência visual agrava os desafios desta fase da vida
e predispõe a preconceitos por parte da sociedade.

Palavras-chave: Imagem corporal. Sexualidade. Cegueira. Adolescente.

INTRODUÇÃO construção da imagem corporal, a qual favorece


Na adolescência, intensifica-se a consciên- a construção da identidade. Neste processo,
cia da identidade em função das modificações quais os recursos que busca o adolescente com
que, de forma radical, ocorrem no corpo e le- cegueira para auxiliar a construção da auto-ima-
vam os jovens a compararem-se com padrões gem corporal?
estabelecidos em seu meio social (SCHOEN- Tiba (1986), ao se referir à construção do
FELD, 1968). Os adolescentes, de maneira ge- esquema corporal, reconhece que o adolescente
ral, buscam identificar em outras pessoas, atra- enfrenta duas situações básicas: aquela do corpo
vés da visão, um modelo para ajudá-los na re- diante de si mesmo e a do corpo em relação ao
construção da própria imagem corporal. A opor- dos outros. O esquema corporal é a representa-
tunidade de ver outros corpos facilita a idéia de ção mental do corpo. A cada modificação do
como ficará o seu, após as modificações da pu- corpo, admite-se que também se modifica o es-
berdade. quema corporal. Na adolescência, porém, as
Nas pessoas com cegueira, existe a perda sucessivas alterações corporais, tanto na forma
do sentido de fundamental importância para a quanto em conteúdo, ocorridas em um tempo

*
Professora de Educação Sexual. Departamento de Ciências Biológicas. UEFS.
**
Professora de Bioética. Departamento de Ciências Biológicas. UEFS.
Núcleo Integrado de Educação Sexual
Departamento de Ciências Biológicas
Universidade Estadual de Feira de Santana
Km 03 BR 116 - Feira de Santana Bahia Brasil
E-mail: sdfranca@gf.com.br

R. Ci. méd. biol., Salvador, v. 2, n. 2, p. 176-184, jul./dez. 2003


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177

relativamente curto, nem sempre são acompa- Antes da aplicação dos instrumentos da pesqui-
nhadas de modificação do esquema corporal. sa, o Termo de Consentimento Livre e Esclare-
Assim, as sensações sinestésicas do adolescente cido (Resolução 196/96, CONEP/CNS/MS),
e sua aparência física não coincidem, ou mesmo foi apresentado (lido), individualmente, a cada
conflitam, com o seu esquema corporal. adolescente, tornando-os conhecedores de to-
Os poucos estudos que enfocam a imagem dos os procedimentos da pesquisa, deixando-os
corporal e a sexualidade do adolescente com ce- livres para aceitar, recusar ou desistir em qual-
gueira respaldam, teoricamente, o interesse à quer momento dos trabalhos.
reflexão sobre o tema, reconhecendo que o ado-
lescente com cegueira passa por conflitos e de-
sejos semelhantes aos do adolescente vidente,
RESULTADOS E DISCUSSÃO
todavia inexistem, no Brasil, pesquisas sobre o
tema. Foram identificados e estudados seis ado-
Considerando este conjunto de observa- lescentes com cegueira congênita, sendo três do
ções, o presente trabalho se propõe a estudar gênero masculino e três do gênero feminino, com
como o adolescente com cegueira constrói sua idades de 12, 14, 19 e 10, 15, 18 anos, respec-
imagem corporal e como lida com as manifesta- tivamente.
ções da sexualidade nesta fase da vida. O Quadro 1 demonstra que, ao informa-
rem sobre sua auto-imagem, por consulta se-
guida de oferta de alternativas, os adolescentes
MATERIAL E MÉTODO com cegueira demonstraram possuir fiel percep-
ção sobre sua aparência pessoal. As respostas fo-
Por tratar-se de amostragem intencional, à ram compatíveis com o observado pela Pesqui-
qual somente interessavam adolescentes com sadora, exceto em dois dos adolescentes, que não
cegueira congênita e que estivessem freqüentando se revelaram seguros em suas respostas. Um de-
a escola, buscou-se a Fundação Jonathas Telles les achava-se confuso entre o que ele se imagi-
de Carvalho, por ser a instituição que oferece nava e o que sua genitora dizia em relação à sua
um serviço de apoio pedagógico a todos os alu- etnia. Curiosamente, a sua opinião era a corre-
nos com cegueira que estão na rede pública de ta. Um outro auto-identificou-se como sendo
ensino da cidade de Feira de Santana, Bahia. negro, quando sua aparência era de mulato.
Nesta instituição, foram selecionados todos os Elevada auto-estima foi observada em to-
adolescentes com cegueira congênita, com ida- dos os entrevistados, uma vez que, sem exceção,
des entre 10 e 19 anos. todos afirmaram considerarem-se bonitos e sim-
Para avaliação da auto-imagem, foram uti- páticos. Uma das adolescentes afirmou que, além
lizados os seguintes instrumentos: 1) Questio- de considerar-se bonita, reconhecia-se como
nário com questões voltadas para auto-imagem, “maravilhosa”. Esta mesma adolescente portou-
modificações corporais e manifestação da sexua- se de forma inquieta durante todo o tempo da
lidade. 2) Complementação de frases, com vis- entrevista, demonstrando-se preocupada com os
tas a analisar o sentimento em relação ao corpo cabelos e com sua aparência geral. Interpretou-
e a sua relação como sexualidade. 3) Escala de se esta atitude como uma característica de vai-
autovaloração, com o objetivo de mensurar o dade, presente nos adolescentes em geral.
grau de auto-estima. Os Quadros com os resul- Os resultados do Quadro 2 demonstram
tados demonstram o conteúdo dos instrumen- que os adolescentes com cegueira dispensam
tos. atenção e preocupação especial ao próprio cor-
Anteriormente à coleta de dados, o proje- po e às modificações que estão acontecendo ou
to fora aprovado pelo Comitê de Ética em Pes- que já aconteceram. Esta constatação reafirma
quisa do Hospital São Rafael, Salvador, Bahia. que os adolescentes com cegueira enfrentam os

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Categoria de Grupos intracategorias centes pesquisados sugeriu mudar os olhos, o


auto-imagem número observado que implica em aceitação de sua realidade.
Etnia Branco Mulato Negro Estas observações corroboram a afirmação
1 4* 1** de Vigotsky (1995), de que “a cegueira não se
revela uma desgraça enquanto defeito biológi-
Estatura Alto Médio Baixo
co, mas assim se transforma, devido ao meio social
2 2 2
onde se estabelece”. Em especial para as pessoas
Peso Gordo Médio Magro com cegueira congênita, não existem parâme-
3 2 1 tros objetivos de avaliação da intensidade da
Aparência etária Jovem Meia-idade Idoso deficiência. Não fora o contato social com os
5 1 0 videntes e/ou os preconceitos deles advindos, a
Timbre de voz Grossa Média Fina situação limitante seria menos trágica. A aceita-
0 3 3 ção das variabilidades da espécie humana, como
variedades inerentes à própria natureza biológi-
Aparência estética Feia Bonita Outra***
ca da espécie, sem o discriminante rótulo de
0 5 1
“anormalidades” é o fundamental ético para o
Carisma Simpático Antipático Outro
convívio social sem traumas e moralmente jus-
6 0 0
to.
Quadro 1 - Distribuição dos tipos de auto-imagem em O toque e a voz são a “visão” dos indiví-
seis adolescentes com cegueira, alunos da duos com cegueira. Foram explorados estes dois
Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira
aspectos essenciais à pessoa com cegueira, como
de Santana, Bahia
se vê no Quadro 4. Os resultados indicam que
* Um desses adolescentes referiu-se como “mulato”, acres-
centando que sua mãe o identifica como “moreno claro”. os adolescentes gostam de tocar várias partes do
** Identificou-se como “negro”, embora seja “mulato”. corpo e gostam de ser tocados em partes consi-
*** O termo usado pela adolescente foi: “Maravilhosa”. deradas mais erotizantes, como pescoço, ge-
nitais, seios, nádegas, costas e rosto. Na adoles-
cência, estas partes surgem como pontos de
mesmos conflitos que os demais adolescentes, maior prazer devido à maturação biológica e à
independentemente da deficiência visual. Ob- produção de hormônios sexuais estimulando a
serva-se uma certa preocupação com a imagem libido. Observa-se, nos resultados, que esta
que os outros constroem sobre eles (3/3), o que mudança fisiológica é independente do estado
é comum à fase da adolescência nos videntes. de cegueira. Não é raro, todavia, perceberem-se
Novamente, confirma-se o elevado nível de auto- abordagens, por videntes, aos portadores de ce-
estima, quando 5/6 afirmaram que não gosta- gueira, sob o pressuposto de serem estes “pes-
riam de ter aparência diferente da que têm, e soas assexuadas”, sem vida ou desejos sexuais.
todos eles (6/6) sentem-se sexualmente atraen- De acordo com Davis (1991), os indiví-
tes. duos com cegueira são capazes de formar a ima-
Os adolescentes estudados foram, de al- gem de uma pessoa ao tocar o rosto da mesma.
guma forma, informados sobre as mudanças Poucos videntes têm desenvolvido esta capaci-
corporais que iriam acontecer, porém de modo dade. Assim, o tato é um dos sentidos mais im-
não sistemático (QUADRO 3). Todos têm cons- portantes para os deficientes visuais. A quanti-
ciência das partes do seu corpo e têm preferên- dade de informações que podem ser transmiti-
cias por partes específicas, incluindo os órgãos das por meio do toque, inclusive a leitura, é ex-
genitais e os seios, partes estas que mais se evi- traordinariamente imensa e complexa, tornan-
denciam durante a puberdade. A maioria deles do-se difícil de ser adequadamente avaliada pe-
gostaria de mudar pontos específicos de sua apa- los videntes.
rência física, demonstrando, assim, a vaidade A voz, para os que são cegos, revela até
característica desta fase. Nenhum dos adoles- mesmo a personalidade. No Quadro 4, o elen-

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Questões pré-formuladas sobre percepção do corpo Sim Não Sem Total


com resposta Sim/Não resposta
Você pensa em seu corpo? 5 1 -- 6
Você pensa sobre as partes do seu corpo? 4 2 -- 6
Alguma parte de seu corpo o/a preocupa? 3 3 -- 6
Você se preocupa com as mudanças que ocorreram/ocorrem 5 1 -- 6
em seu corpo?
Você gostaria que alguém tivesse lhe falado sobre as 2 1 3 6
mudanças em seu corpo?
Você gostaria de ter a aparência diferente da que tem? 1 5 -- 6
Você se importa com o que as pessoas pensam sobre 3 3 -- 6
sua aparência?
Você acha que as mudanças em seu corpo podem 1 5 -- 6
interferir no seu relacionamento com as pessoas queridas?
Você acha que pode perder alguém querido devido a estas 0 6 -- 6
modificações?
Você se sente atraente sexualmente? 6 0 -- 6
Você acha que mudou como pessoa depois que seu corpo se 4 2 -- 6
transformou?
Você acha que mudou como pessoa depois da primeira menstruação 2 3 -- 6
ou ejaculação?

Quadro 2 - Distribuição do modo de percepção do próprio corpo por seis adolescentes com cegueira, alunos da
Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de Santana, Bahia

Quem lhe Qual a parte De que parte Qual a parte Se você tivesse
falou sobre N do corpo N do corpo N que você acha N que mudar algo N
as mudanças em que mais mais gosta? mais bonita? no seu corpo
em seu corpo? pensa? o que mudaria?

Professor 1 Partes íntimas 1 Mãos 1 Cabeça 1 Cabelo 1


Colegas 2 Cabelo 1 Pés 1 Cabelo 2 Mais alto 1
Irmão 1 Todo o corpo 2 Pênis 1 Pernas 2 Menos gordo 1
Mãe 3 Seios 1 Cabelo 2 Olhos 1 Nada 1
Ninguém 1 Pernas 1 Mãos 1 Seios 2
Bigode 1 Barriga 1
Rosto 1

Quadro 3 - Distribuição das respostas dadas às perguntas sobre sexualidade por seis adolescentes com cegueira,
alunos da Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de Santana, Bahia*
*Alguns adolescentes deram mais de uma resposta.

co de palavras usadas para traduzir o que a voz da capacidade de extrair informações através da
revela, leva-nos a admitir que muito do que não voz excede em muito o que os videntes normal-
pode ser visto com os olhos pode ser percebido mente contemplam através da voz.
através da voz. Aqui também, o aprimoramento

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Que parte do corpo Em que parte do corpo


N N Que coisa a voz pode revelar? N
você gosta de tocar? você gosta de ser tocado?

Mãos 2 Costas 1 Bonito 1


Rosto 1 Pescoço 1 Feio 1
Cabelo 3 Genitais 1 Tristeza 1
Pernas 3 Seios 1 Alegria 1
Braços 1 Nádega 1 Homem 1
Nenhuma 1 Mulher 1
Rosto 1 Simpático 2
Todo o corpo 1 Nada 1
Pernas 1 Amor 1
Jeito de ser 1
Falsidade 1
Verdadeira 1
Zangada 1
Satisfação 1
Grosseria 1

Quadro 4 - Parte do corpo que os seis adolescentes com cegueira, alunos da Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de
Santana, Bahia, informaram gostar de tocar e de ser tocado, e o que eles, por resposta espontânea, percebem através
da voz*
*Alguns adolescentes deram mais de uma resposta.

O Quadro 5 apresenta os resultados dos 19 anos, que está namorando pela primeira vez,
testes por complementação espontânea de fra- que disse: “Desconhecido, sei que tenho muito
ses. Admite-se que essas complementações re- a descobrir. É um mar que pretendo navegar”.
velam o sentimento que os adolescentes nutrem Observou-se a falta de informação acerca
em relação ao seu corpo e como se relacionam dos processos naturais da puberdade, como a
com a própria sexualidade. Os resultados per- ejaculação: dos seis adolescentes, somente três
mitem concluir que existe, entre os adolescen- responderam alguma coisa, mesmo assim, após
tes cegos entrevistados, uma forma positiva de uma rápida explicação; os demais preferiram se
relacionamento com o próprio corpo, expressa, omitir. Com relação à menstruação, dois dos
invariavelmente, de forma positiva, com pala- adolescentes não deram nenhuma resposta.
vras tais como bonito, muito bonito, lindo e fonte
Ao falarem sobre as manifestações da sexua-
de prazer. Em relação às modificações da puber-
lidade, como o sexo, o ser tocado, o namoro e o
dade, observa-se uma variação de sentimentos
casamento, os adolescentes expressaram curio-
que vai desde normalidade a insatisfação. Estes
sidade, boa aceitação e, inclusive, o desejo de
tipos de comportamento são também caracte-
construir uma família, desejos esses reconheci-
rísticos da fase da adolescência nos videntes.
damente semelhantes aos da maioria dos jovens
Em relação ao corpo do sexo oposto, mes- videntes. A grande diferença consiste, todavia,
mo para aqueles que ainda não conhecem, exis- na forma como a sociedade encara a sexualidade
te uma busca por formas de expressar o que da pessoa com cegueira, e não na maneira como
imaginam, a exemplo da adolescente nº 1, de o deficiente visual vivencia sua sexualidade.

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Adolescentes
Frases para No1 No2 No3 No4 No5 No6
complementação

Meu corpo... Sentir e dar Bonito Bonito Lindo Muito Bonito


prazer bonito
Gostaria que... Família feliz Mais magro Nada Amor Mais Enxergasse
mudasse bonito
Me tocar... Desejo No rosto --- Muito Todo ---
Gosto de... Beijar Jogo Passear Tudo Dormir Música
Minha aparência... Boa Bonita, Maravilhosa Simpático Bonita Boa
simpática
A menstruação... Normal Não ligo É ruim --- Não gosto ---
A ejaculação... Uma --- --- Às vezes --- Bom
conseqüência
Gosto de falar... Coisas boas Muito --- Muito Coisas De futebol
bonitas
Os seios crescem... Ótimo Ruim --- Coisa que Ligeiro ---
menos
gosto
Os pêlos aparecem... Normal Bom --- Admiro Muitos Sim
O corpo masculino... Desconhecido* Bom Não gosto Simpático Muito Bom
muito bonito
O corpo feminino... Sem mistério Maravilhoso Feio, horrível, Bonito Muito Bonito
não gosto bonito
O sexo... Amor Bom, eu --- Amor Não sei Bom
gosto, apesar
de não ter
praticado
Namorar... Bom, ótimo Gosto muito, É bom. Muito Nunca Muito bom
apesar de Nunca
algumas experimentei
dificuldades
O casamento... União, Bonito e bom Bom, ótimo Casar e ter Nunca É bom
com sexo, filhos também
com tudo
Ser tocado... Desperta No rosto Mais ou Gosto Por toda Bom
alguma coisa. menos minha
É bom, família
a gente sente
uma coisas
boas

Quadro 5 - Resultado da complementação de frases feita pelos seis adolescentes com cegueira, alunos da
Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de Santana, Bahia
*A adolescente complementou: “Sei que tenho muito a descobrir. É um mar que pretendo navegar”.

Atenção especial merece o comportamento da relação ao corpo masculino, como também ao


adolescente nº 3, que, no conjunto das frases, feminino e à menstruação, isto é, àquilo que a
deixou de completar seis itens e, nos demais, confirma mulher. Porém, em sua auto-imagem,
apresentou negatividade, principalmente em ela se qualifica como “maravilhosa” (QUADRO

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3). Esta mesma adolescente, durante o contato inteligentes, alegres, bonitas, amadas e entur-
pesquisador/pesquisado, comportou-se de for- madas. Este resultado é indicativo de bom rela-
ma impaciente e inquieta, afirmando que não cionamento com a própria sexualidade, pois a
era cega, apesar de se locomover de forma igual auto-estima é de fundamental importância para
à dos seus companheiros e de constar na avalia- se estabelecer uma vida afetivo-sexual prazero-
ção médica, registrada na ficha escolar, que a sa. Evidencia-se, assim, que a falta da visão não
mesma é portadora de cegueira congênita. Esta interfere na percepção positiva sobre si mesmo.
observação corrobora a afirmativa de Gil (2000) A auto-estima permite ao indivíduo crescer
de que, na fase da adolescência dos indivíduos emocionalmente, ter segurança, ser alegre, li-
com cegueira, alguns manifestam, de forma acen- vre, otimista e com capacidade de dar e receber
tuada, sentimentos de revolta contra a deficiên- afeto. Concluiu-se que essas qualidades inde-
cia, por não aceitarem as limitações e a discri- pendem de deficiência visual.
minação social. Há grande influência da socie- Finalmente, o estudo da literatura perti-
dade no padrão de beleza que o adolescente nente e os dados coletados revelaram a inexis-
busca para si, o que pode levar à angústia e à tência de informações sistemáticas sobre educa-
insegurança quando o assunto é o corpo ção sexual para adolescentes com cegueira, o que,
(SUPLICY; EGYPTO, 1995). além de ser uma violação aos direitos dos não-
A fim de melhor explorar o aspecto da au- videntes, torna mais desafiadora a experiência
tovaloração nos adolescentes com cegueira, cons- de vida nesta fase. No sentido de contribuir para
truiu-se um instrumento em arte plástica, que o tema, uma das Autoras (FRANÇA, 2002)
constava de um corte vertical em uma escada, desenvolveu e testou entre educadores especiais
com seis degraus, passível de ser percebida com um modelo pedagógico de educação sexual para
as mãos, por tato, em alto-relevo. Os adolescen- adolescentes com cegueira, reconhecendo ser este
tes eram solicitados a indicar, com os dedos, o primeiro modelo proposto no Brasil.
subindo os degraus, em qual altura eles se reco-
nheciam em relação a cada uma das dez pala-
vras ditas pela Pesquisadora. Na Figura 1, apre-
senta-se o resultado da aplicação desta escala de CONCLUSÕES
autovaloração. Nota-se a confirmação da eleva- O estudo realizado direciona para as se-
da auto-estima entre esses adolescentes com ce- guintes conclusões:
gueira: eles se percebem como pessoas fortes, a) Nos adolescentes com cegueira, a ado-

Figura 1 - Resultado da aplicação do teste de autovaloração em seis adolescentes com


cegueira, alunos da Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de Santana,
Bahia

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lescência se caracteriza da mesma forma que nas fundamentais de informação para a construção
pessoas dotadas de visão, isto é, com deslum- da imagem corporal nos adolescentes com ce-
bramentos, inseguranças, desejos e sonhos. gueira.
b) Existe notória auto-estima nos adoles- e) Não existem modelos pedagógicos es-
centes com cegueira. peciais orientando adolescentes com cegueira
c) Não obstante a visão ser o principal sobre as modificações corporais da puberdade e
meio para construção da imagem corporal, os a sexualidade.
adolescentes com cegueira conseguem a cons- f ) É urgente a implantação de programas
trução dessa imagem através do tato e da audi- pedagógicos para orientação sexual dos porta-
ção, principalmente. dores de cegueira, assim como para desfazer pre-
d) O toque do próprio corpo e a forma conceitos em relação à manifestação da sexuali-
como outras pessoas os descrêem são as fontes dade nessas pessoas.

Self body image and sexuality in young blind students of a special public school
in Feira de Santana, Bahia

Abstract
Six congenital blind adolescents, who attend the Jonathas Telles de Carvalho Foundation, in Feira de
Santana, Bahia, Brazil, agreed on participating in this research project, by answering questions on their
self corporal image. The results showed that blind adolescents have true perception of their body image that
is built up by listening to others and by touching their own bodies. In every blind adolescent interviewed,
high self-esteem and self-perception of being sexually attractive were observed. In spite of being poorly
informed about body changes in adolescence, the blind students are aware of those alterations. Similar to
any young boy or girl who can see, the blind students hope to have a sexual and affectionate relationship
with a partner. The lack of special pedagogical models in Brazil to develop their sexual education stresses
their adolescence challenges and predispose them to more social prejudice.

Keywords: Body image. Sexuality. Blindness. Adolescence.

REFERÊNCIAS
GIL, M. (Org.). Caderno da TV escola: Deficiência visual.
DAVIS, P. K. O poder do toque. São Paulo: Best Seller,
Brasília, DF: MEC, Secretaria de Educação à Distância,
1991.
2000. p.55-62.
FRANÇA, D. N. O. Imagem corporal e sexualidade em
SCHOENFELD, W. A. El cuerpo y la imagen corporal
adolescentes com cegueira em escolas públicas de Feira
en los adolescentes. In.: CAPLAN, G. (Comp.). El
de Santana. 2002. 98f. Dissertação (Mestrado em
desarrollo del adolescente. Buenos Aires: Paidós, 1968.
Educação Especial) - Departamento de Educación,
p.27-41.
Centro de Referencia Latinoamericano para la Educación
Especial, La Habana, 2002. Dissertação defendida na SUPLICY, M. ; EGYPTO, A. C. Sexo se aprende na
Universidade Estadual de Feira de Santana. escola. São Paulo: Olho d’Água, 1995.

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184

TIBA, I. Puberdade e adolescência: desenvolvimento VIGOTSKY, L. S. Obras completas. La Habana: Pueblo


biopsicossocial: esquema corporal. 3. ed. São Paulo: Ágora, y Educación, 1995. v.5, p.41-48.
1986.

Agradecimentos
Aos entrevistados, por aceitarem colaborar conosco nesta pesquisa, e à Fundação Jonathas Telles
de Carvalho, por disponibilizar as informações necessárias para que fosse possível conhecer uma
vivência diferente.

R. Ci. méd. biol., Salvador, v. 2, n. 2, p. 176-184, jul./dez. 2003


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XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM)
Brasília – 2006

Leitura musical na ponta dos dedos: o ensino da musicografia Braille

Fabiana Bonilha
Mestre e Doutoranda em música pelo Instituto de Artes da UNICAMP
e-mail: fbonilha@iar.unicamp.br

Claudiney Carrasco
Docente do Departamento de Música – Instituto de Artes da UNICAMP
e-mail: carrasco@iar.unicamp.br

Sumário:
O presente estudo foi motivado pela experiência pessoal de sua autora, enquanto musicista com
deficiência visual. Ele aborda aspectos referentes ao ensino de Musicografia Braille. A partir de um
enfoque qualitativo, buscou-se investigar a percepção de estudantes de Música com deficiência visual
e de seus respectivos professores acerca das condições atuais de aplicação da Musicografia Braille ao
campo da educação musical.

Palavras-Chave: musicografia braille – deficiência visual – inclusão educacional

Introdução
Existe uma estreita relação entre a Música e as pessoas com deficiência visual e,
notoriamente, as atividades musicais têm um papel muito importante na vida de muitas dessas
pessoas.
Há, inclusive, um pensamento bastante difundido segundo o qual as pessoas com
deficiência visual tendem a ser bem-sucedidas no campo da Música, caso se dediquem ao estudo
dessa manifestação artística. Tal raciocínio se apóia na tendência desses indivíduos a possuírem
habilidades ligadas sobretudo à percepção e memória musical.
Deve-se notar que, as pessoas desprovidas de visão recorrem a outros sentidos, sobretudo à
audição, para que possam perceber o ambiente que as cerca de forma eficaz e adequada. E isso pode
justificar em parte o grande interesse delas pela música.
Através de um estudo realizado por Belin et al (2004), buscou-se investigar se a
superioridade das habilidades auditivas das pessoas cegas ultrapassava o domínio da orientação
espacial. Para tanto, os sujeitos foram submetidos a uma tarefa que envolvia habilidades musicais
específicas.
A partir desse estudo, concluiu-se que as pessoas cegas desde a primeira infância tiveram
um desempenho muito superior à performance dos indivíduos pertencentes aos outros dois grupos
na atividade proposta.
Encontrou-se, assim, uma correlação negativa entre a idade em que os indivíduos ficam
cegos e o nível de desempenho nessa tarefa. Isso pode ser explicado considerando-se que, na
infância, há uma maior plasticidade do cérebro, em relação às idades mais avançadas.
Assim, uma vez que, de maneira geral, a capacidade auditiva seja mais amplamente
desenvolvida por essas pessoas, a música, por conseguinte, acaba se tornando uma rica fonte de
expressão para elas.
Nesse sentido, Figueira (2002) aponta que, ao longo da história, podem ser encontrados
inúmeros exemplos de pessoas com deficiência visual que se dedicaram à Música e que obtiveram
reconhecimento nessa área.

Trabalho aceito pela Comissão Científica do XVI Congresso da ANPPOM


- 52 -
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XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM)
Brasília – 2006

Considerando a arte como um instrumento de inclusão social, o autor cita diversos casos
em que os deficientes visuais se fizeram presentes em manifestações artísticas distintas, dentre as
quais a música aparece como predominante.
Oliveira (1995), também discorre sobre o papel que a música desempenha na vida das
pessoas deficientes visuais. Em seu trabalho, ele utiliza a memória de quatro músicos cegos e, dessa
forma, reconstrói suas histórias de vida, à luz do pensamento de Deleuze. Em sua análise dos
depoimentos colhidos, o autor considera que a música aparece como um eixo condutor dos relatos
de vida dos sujeitos, e assim, afirma o papel dessa arte na construção da identidade desses
indivíduos.
Faz-se necessário, desse modo, que as pessoas com deficiência visual tenham acesso a uma
formação musical qualificada, que lhes permita desenvolver suas potencialidades. Para tanto,
conforme defende Smaligo (1998) torna-se imprescindível que seja oferecida a essa população a
possibilidade de acesso ao sistema de leitura e escrita musical criado especificamente para seu uso.
Esse código de notação musical, que é universalmente adotado por pessoas cegas,
denomina-se Musicografia Braille. Seus primeiros fundamentos foram criados, em 1828, pelo
próprio Louis Braille (1809 - 1852), inventor do sistema de escrita destinado a deficientes visuais,
segundo biografia editada pela Unesco (1975). Antes disto, os estudantes cegos aprendiam a ler
música através de um sistema em que a simbologia da notação em tinta era impressa em alto relevo.
Esse sistema, evidentemente, impedia que os alunos tivessem uma leitura fluente, assim como
dificultava o processo em que eles próprios pudessem escrever música. Tem-se registro de que, em
1829, foi realizada a primeira edição da obra intitulada "Método de palavras escritas, Músicas e
canções por meio de sinais, para uso de cegos e adaptados a eles".
A escrita musical em Braille é composta dos mesmos 63 caracteres usados no sistema
Braille em geral. Essa escrita é feita somente em sentido horizontal, diferentemente do código em
tinta, em que se pode escrever também verticalmente. Não se usam claves nem pentagramas, e a
altura das notas se representa por sinais de oitavas. Os acordes são representados por sinais de
intervalos correspondentes. Nota-se que é imprescindível que o leitor decore a partitura para que a
execute, e isso requer que ele tenha um bom conhecimento musical para que realize uma leitura
eficiente.
Deve-se considerar que, desde a criação da Musicografia Braille, foram realizadas diversas
reformulações e melhorias ao código musical, até que se chegasse aos padrões concebidos na
atualidade. Apesar do empenho constante na consolidação desse método de escrita, deve-se notar
que o ensino dessa notação sempre foi muito pouco difundido, sobretudo devido à falta de
capacitação de professores, e devido à grande escassez de partituras e materiais didáticos transcritos
para esse código.
Nesse sentido, no presente trabalho, tencionou-se problematizar o ensino de música para
pessoas com deficiência visual, e analisar as condições que garantam o acesso desses indivíduos a
uma formação qualificada. Partiu-se do pressuposto de que o aprendizado da Musicografia Braille é
um elemento imprescindível na formação musical de pessoas cegas, do mesmo modo como o
aprendizado do Sistema Braille é essencial para que elas tenham acesso à informação e ao
conhecimento.
Deve-se destacar que a experiência pessoal da autora dessa pesquisa, enquanto musicista
com deficiência visual, consistiu em uma motivação para que ela se dispusesse a produzir um
conhecimento relacionado a essa área. Seu contato com a Musicografia Braille e suas dificuldades
enfrentadas durante a formação musical a impulsionaram a discutir aspectos relevantes acerca do
ensino de Música para pessoas com deficiência visual.

Objetivos
A presente pesquisa teve por objetivo geral investigar junto a alunos de música com
deficiência visual e a seus respectivos professores, aspectos ligados ao aprendizado de leitura

Trabalho aceito pela Comissão Científica do XVI Congresso da ANPPOM


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XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM)
Brasília – 2006

através da musicografia Braille, tendo em vista a elaboração de um material de caráter reflexivo,


que tenha aplicabilidade a esse processo.
A pesquisa também teve os seguintes objetivos específicos:
a) Investigar, junto a estudantes de música deficientes visuais e a seus professores,
aspectos referentes às estratégias pedagógicas adotadas no aprendizado musical através do sistema
Braille, bem como a disponibilidade de recursos que os auxiliem na utilização desse sistema.
b) Investigar a existência de ferramentas tecnológicas produzidas até a atualidade, que
auxiliem no processo de leitura e escrita musical em Braille, e analisar em que medida esses
recursos favorecem tal processo.
c) Produzir um material que sirva como subsídio para educadores musicais que atuem
junto a alunos deficientes visuais e para os que, de alguma forma, utilizam-se da Musicografia
Braille.

Metodologia
Esse estudo foi realizado segundo um enfoque qualitativo, uma vez que nele se buscou
compreender a percepção de alunos e professores de música acerca do ensino de Música para
pessoas cegas. Os dados foram coletados mediante o uso de entrevistas semi-estruturadas e de
questionários contendo perguntas abertas. Após a aplicação desses instrumentos, os dados coletados
foram subdivididos nas seguintes categorias e subcategorias de análise.
Após a formulação dessas categorias, os depoimentos foram analisados segundo a
metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo, proposta por Lefevre (2003). Essa ferramenta de
análise possibilita que se construa um único discurso representativo da amostra estudada, através do
levantamento de idéias centrais e do encadeamento das falas dos sujeitos. Assim, é possível que se
apreenda o pensamento comum aos sujeitos abordados, e isso facilita a elaboração de reflexões e
conclusões relevantes para a pesquisa.
Paralelamente à coleta de dados junto a alunos e professores, foi realizada uma
investigação acerca das ferramentas tecnológicas existentes para a transcrição de partituras em
Braille. Dessa busca, resultou a criação de um acervo de obras musicais em Braille. Essa fase do
trabalho contou com o apoio do Laboratório de Acessibilidade da Unicamp, e com a participação de
bolsistas do SAE (serviço de apoio ao estudante) da mesma universidade.

Resultados
A partir dos depoimentos coletados, foi possível estabelecer um panorama das condições
de ensino de Música para pessoas com deficiência visual, sobretudo no que se refere ao contato com
a leitura e escrita musical em Braille.
Verificou-se que existe uma falta de informação acerca da Musicografia Braille. Há
professores que desconhecem a existência dessa notação e, por isso, criam formas “improvisadas”
para o ensino da leitura musical, o que torna seus alunos restritos a essas adaptações. Há também
aqueles educadores musicais que sabem da existência desse método de escrita, mas desconhecem os
caminhos de acesso a ele, os quais, aliás, são estreitos, visto a escassez de materiais didáticos e de
cursos através dos quais ele seja divulgado.
De fato, o acesso à notação musical em Braille, dentro das condições atualmente oferecidas
no Brasil, exige um grande empenho tanto por parte dos professores de música, quanto por parte de
seus alunos com deficiência visual. Os professores necessitam de um alto grau de motivação para
buscarem recursos adequados e para compreenderem os mecanismos de leitura e escrita em Braille,
e os alunos, por sua vez, precisam se dispor a assimilarem esses mecanismos de um modo quase
autodidata, através dos poucos métodos existentes para esse fim.
Dessa falta de informação e dessa escassez de meios que viabilizam o acesso à
Musicografia Braille, decorrem a formação de diversas crenças que as pessoas com deficiência

Trabalho aceito pela Comissão Científica do XVI Congresso da ANPPOM


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XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM)
Brasília – 2006

visual e seus respectivos professores possuem acerca de tal notação. Em geral, esse código é
concebido como algo bastante complexo, e quase inatingível, cujo aprendizado demanda um longo
tempo e esforço. Entretanto, os professores e alunos abordados reconhecem a importância da
Musicografia Braille como uma ferramenta que possibilita a autonomia das pessoas com deficiência
visual, em seu processo de formação.
De fato, a partir do aprendizado desse código, o aluno adquire independência para escrever
e ler partituras, por meio de uma linguagem convencionada especificamente para o uso de pessoas
desprovidas da visão. Isto possibilitará que essa população freqüente espaços de formação musical,
comuns a todas as pessoas, o que remete à idéia de se conceber uma educação musical inclusiva.
Em outras palavras, o acesso à Musicografia Braille se torna um elemento imprescindível para a
inclusão dos alunos com deficiência visual em escolas de músicas regulares.
Deve-se notar, entretanto, que tais escolas não oferecem apoio e condições para que os
alunos com deficiência visual estabeleçam contato com a leitura e escrita musical em Braille. Disto
decorre a necessidade de que se viabilize o atendimento educacional especializado a esses alunos,
através do qual eles possam ter acesso a esse ensino. Essa modalidade de atendimento, tal como é
concebido por Mantoan (2002), consiste em uma forma de apoio ao processo pedagógico,
capacitando o aluno com deficiência para que ele seja inserido em ambientes educacionais
inclusivos.

Conclusão
A partir desse estudo, foram suscitadas reflexões acerca do ensino de Música para pessoas
com deficiência visual. Mas pode-se considerar que as idéias nele apresentadas também se aplicam
de alguma forma ao ensino de Música para qualquer pessoa, já que foram levantados aspectos sobre
o aprendizado da leitura e escrita musical, sobre o papel do professor na formação do aluno e sobre
a abordagem as diferenças individuais no campo da música.
O assunto tratado nessa pesquisa foi muito pouco contemplado em outros trabalhos
acadêmicos. Por isso, ainda há muitas questões que podem ser problematizadas em novas pesquisas
dentro dessa área.

Referências Bibliográficas
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early blind. Nature, v.15, n.430, p.309-? Disponível em:
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portuguesa. Brasília-DF, MEC. [Publicação em Braille].
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Mantoan, M.T.E. (2002) O direito de ser, sendo diferente na escola. (Mimeografado).
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em: http://www.deficientesvisuais.org.br/Braille.htm#apresentacao . Acesso em: 28 jun. 2006.

Trabalho aceito pela Comissão Científica do XVI Congresso da ANPPOM


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Modos de intervir com jovens deficientes visuais:


dois estudos de caso

Modos de intervir com jovens deficientes visuais


Marcia Moraes

Resumo

Este trabalho investiga as relações entre corpo e cognição entre jovens deficientes visuais. Dois estudos de caso são apresentados, fundamentados em
contribuições da pesquisa ação-crítica e da teoria ator-rede. Os dois sujeitos eram cegos congênitos, ambos os alunos inscritos na Oficina de Teatro do
Instituto Benjamin Constant (IBC), no Rio de Janeiro. Estes alunos eram também membros da Oficina de Expressão Corporal do IBC, que tinha como
finalidade promover experimentações corporais lúdicas que facilitassem a construção das personagens. As ações propostas baseavam-se nos impasses
e nas dificuldades vivenciadas pelos sujeitos durante os ensaios da peça. Os resultados indicam que a noção de corpo implica um certo modo de relacionar
humanos e não-humanos. Constatou-se ainda que intervir sobre o corpo implica produzir novos universos cognitivos. Com tais resultados, problematizam-
se as relações entre psicologia e educação.
Palavras-chave: cegueira; estudo de caso; cognição.

Ways of research with visual handicapped youths: two case studies


Abstract

This study investigates the relations between body and cognition among visual handicapped youths. Two case studies are presented based on
contributions from critical action research and from actor network theory. The subjects were born blind, both regular students enrolled at Benjamin
Constant Institute’s Theatre Troupe, in Rio de Janeiro. These students were also members of Benjamin Constant Institute’s Body Expression Group that
aimed to promote ludic body experimentations to easy the character building. The activities proposed were based on the difficulties experimented by
the subjects when they were rehearsing the play. The results underlines that the notion of body implies connection between humans and non-humans
and that to change body gestures is the same of creating new cognitives experiences. These results show the relevance of the relation between
psychology and education.
Keywords: blind; case study; cognition.

Formas de intervenir con jóvenes deficientes visuales: dos estudios de caso


Resumen

El trabajo investiga las relaciones entre cuerpo y cognición entre jóvenes deficientes visuales. Son presentados dos estudios de caso fundamentados en
contribuciones de la investigación acción crítica y de la teoría actor-red. Los dos sujetos eran ciegos congénitos y alumnos inscriptos en el Taller de Teatro
del Instituto Benjamín Constant (IBC), en Rio de Janeiro. Estos alumnos también eran miembros del Taller de Expresión Corporal del IBC, que tenía como
finalidad promover experimentaciones corporales lúdicas que facilitasen la construcción de los personajes. Las acciones propuestas se basaban en las
dificultades vividas por los sujetos durante los ensayos de la obra. Los resultados presentados indican que la noción de cuerpo implica una cierta forma
de relacionar humanos y no humanos. Todavía, se constató que intervenir sobre el cuerpo implica en producir nuevos universos cognitivos. Con esos
resultados se discuten las relaciones entre psicología y educación.
Palabras clave: ceguera; estudio de caso; cognición.

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Introdução platéia? De um lado, era preciso criar dispositivos que


levassem os cegos a elaborarem seus personagens.
Este trabalho tem o objetivo de apresentar alguns De outro lado, era necessário fazer com que a peça
resultados obtidos através do estudo de caso desen- pudesse ser inteligível também para a platéia. Assim,
volvido a alguns anos no Instituto Benjamin Constant refletiu-se sobre os modos de intervenção com este
(IBC), um centro de referência sobre deficiência vi- grupo de teatro que pudessem agir no espaço entre
sual, com mais de 150 anos de existência, situado no o ver e o não ver, isto é, modos de intervir que pu-
bairro da Urca, no Rio de Janeiro. Além disso, este dessem levar em conta os referenciais que o cego
trabalho apresenta algumas reflexões acerca das rela- utiliza para construir o seu universo cognitivo e, ao
ções entre Psicologia e Educação, considerando em mesmo tempo, produzissem efeitos inteligíveis e ca-
particular o modo como o saber psicológico produz pazes de afetar tanto cegos quanto videntes. De saí-
conhecimento em suas interfaces com o campo da da, seguindo as indicações de Masini (1994) buscou-
Educação. se modos de intervir imanentes – isto é, cujos
A pesquisa desenvolvida no Instituto Benjamin referenciais partissem dos membros da oficina de
Constant foi elaborada numa parceria que envolveu teatro. Este desafio implicava, portanto, em
pesquisadores ligados à psicologia1, a professora de problematizar as relações entre a psicologia e a edu-
teatro do IBC2 e os alunos desta instituição regular- cação uma vez que o trabalho era muito mais um
mente inscritos nas oficinas de teatro. mapeamento dos referenciais cognitivos dos mem-
De início o trabalho consistia em observar as bros da oficina de teatro do que a “aplicação de uma
atividades de teatro, as quais incluem jogos e experi- teoria” sobre a aprendizagem ou sobre o desenvolvi-
mentações lúdicas com a finalidade de promover a mento cognitivo. É certo que este mapeamento era
encenação de uma peça ao final de cada ano letivo no condição para que se pudesse planejar e organizar
IBC. A encenação da peça no final do ano é um grande modos de agir e intervir naquele grupo.
momento para toda a instituição, uma grande festa da Após um ano de observação delimitou-se uma pro-
qual participam alunos e professores. Nas primeiras posta de trabalho conjunto que consistia em atrelar à
observações foi delimitado o interesse em seguir a oficina de teatro uma oficina de expressão corporal
construção das personagens, isto é, havia interesse cuja finalidade era criar dispositivos e experimenta-
mais pelo processo do que pelo produto final, ainda ções corporal-sensoriais que levassem os alunos a
que não se desconhecesse a importância do produto construírem as suas personagens.
– a peça encenada – para todos os envolvidos naque- O trabalho foi desenvolvido adotando alguns
le trabalho. Neste processo de observação das ofici- referenciais da perspectiva metodológica da pesqui-
nas de teatro notou-se que havia naquela atividade um sa-ação crítica que se diferencia em alguns pontos da
ponto relevante e que seria central nas reflexões pos- pesquisa-ação, tal como proposta por Lewin (1965)
teriores. no final dos anos 60. Seguindo a argumentação de
O grupo de teatro era formado por crianças e jo- Rocha e Aguiar (2003), pode-se afirmar que o traba-
vens com diferentes resíduos visuais e a platéia para a lho de Lewin é de fundamental importância no senti-
qual a peça era encenada era também formada por do de reformular os métodos de investigação em
pessoas com e sem deficiência visual. Esta Psicologia. Foi Lewin quem ressaltou a importância
heterogeneidade da condição visual tanto dos mem- da implicação do pesquisador no processo de inves-
bros do grupo quanto da platéia produzia uma série tigação, desestabilizando a noção de neutralidade e
de questões: Como levar os alunos cegos a construí- objetividade que marcaram as pesquisas experimen-
rem personagens que seriam representados para tal tais e, ao mesmo tempo, abriu o campo de investiga-

1
A equipe de pesquisadora era coordenada pela autora. Dela participavam as seguintes alunas da graduação em Psicologia da Universidade Federal
Fluminense: Luciana de Oliveira Pires Franco, Ana Gabriela Rebelo dos Santos, Aline Alves de Lima, Carolina Cardoso Manso.
2
Professora Marlíria Flávia Coelho da Cunha.

312 Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes
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ção em psicologia para além dos muros do laborató- Ainda adotando as indicações da teoria ator-rede,
rio. O enfoque lewiniano foi decisivo para a inserção proposta por Latour (1994) e de algum modo, segui-
dos grupos e coletivos sociais no campo de investiga- da por Despret (1999), considera-se que as inter-
ção da psicologia. No entanto, ainda que a pesquisa venções em psicologia produzem unidades de medi-
de campo lewiniana tenha constituído uma nova for- da imanentes, ou seja, os referenciais de medida da-
ma de ação no contexto social, “a ordem social é [neste quilo que é produzido pelas intervenções são pactua-
enfoque] naturalizada e as crises e os conflitos são dos e negociados com o grupo. Como já ressaltado,
interpretados como desordens, efeitos disfuncionais, as ações realizadas com os participantes da pesquisa
cujas resistências à mudança são alvos de interven- eram circunscritas nos limites entre o ver e o não-
ção” (Rocha & Aguiar, 2003, p.65). Diferentemente ver. O desafio era encontrar modos de agir que fizes-
desta abordagem a pesquisa ação - crítica, proposta sem sentido e fossem pertinentes aos modos de co-
por Thiollent (2000), está ligada a projetos nhecer e viver daquele grupo. Assim, as ações que
emancipatórios e autogestionários que visa a cons- eram levadas a cabo eram retificadas, negociadas. Al-
truir coletivamente o conhecimento, promovendo, gumas ações planejadas e executadas não produziam
portanto, uma imbricação inequívoca entre sujeito e efeitos – pelo menos não aqueles efeitos que eram
objeto de pesquisa, de tal modo que o conhecimento esperados. Despret (1999) sublinha que a produção
produzido pelas ações implementadas pelo pesquisa- de conhecimento em psicologia implica em risco: não
dor é co-construído e partilhado entre pesquisador e o risco de ser desmentido, mas sim o risco de não
pesquisado. formular a boa pergunta para os sujeitos que partici-
Segundo Rocha e Aguiar (2003, p.65) pam da pesquisa. E a boa pergunta é aquela que faz
derivar o conhecimento, colocando em análise e vari-
entendida como uma ação que visa mudanças na re- ação as versões do conhecimento que estavam em
alidade concreta com uma participação social efetiva, pauta. Desse modo, considera-se que este trabalho
a pesquisa ação crítica está centrada no agir, através conduz a um modo de tratar das relações entre cor-
de uma metodologia exploratória, tendo seus po e cognição entre jovens deficientes visuais e, ao
objetivos definidos no campo de atuação pelo pes- mesmo tempo, a problematizar as relações entre
quisador e pelos participantes (...) Tais experiências psicologia e educação. Porque se de um lado, as ações
caminham no sentido da articulação entre teoria/prá- executadas eram em certa medida, planejadas, de
tica e sujeito/objeto, na medida em que conheci- outro lado, elas eram modificadas pelo grupo. Assim
mento e ação sobre a realidade se fará na investiga- os sujeitos da pesquisa não são passivos, submissos
ção das necessidades e interesses locais (...). às ações da pesquisadora. Ao contrário, eles são ativos,
são co-participantes, talvez fosse possível dizer, co-
autores do trabalho. Adotando esta postura
Com relação aos pontos destacados, pode-se di-
metodológica, considera-se a ética um exercício da
zer que o trabalho encontra ressonâncias com a pes-
imanência, isto é, um modo de considerar o não-ver
quisa ação-crítica. No entanto, reconhece-se que esta
seguindo os referenciais do não-ver, um modo de
aproximação tem alguns limites. Isso porque, instruí-
pactuar com o grupo os limites entre o ver e o não-
dos com as propostas de Latour (1994) e Despret
ver. Limites que eram efetivamente pactuados quan-
(1999), buscou-se refletir acerca das relações entre
do se procurava elaborar um personagem que fizes-
humanos e não-humanos na construção do conheci-
se sentido para um cego e para um vidente.
mento, o que não é de modo algum tematizado na
perspectiva da pesquisa ação-crítica. Se forem segui-
das as pistas destes autores, pode-se afirmar que a
Questões epistemológicas: pensar longe
construção do conhecimento se faz em rede (Latour,
das visões e afirmar as versões
Em seu livro sobre as emoções, Despret (1999)
1994), isto é, num plano de conexões híbrido no qual
estabelece uma interessante distinção entre visão e
se articulam humanos e não-humanos.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 11 Número 2 Julho/Dezembro 2007 • 311-322 313
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versão no que diz respeito à construção do conheci- peito ao sentido dado ao termo herdeira: Ao se con-
mento. Um conhecimento que se propõe como vi- siderar de algum modo, herdeiros da psicologia do
são do mundo se impõe de fora, “[a visão] invade o século XIX, que sentido atribui-se a esta idéia de he-
campo” e o desvela sob o modo da evidência e da rança? A segunda ressalva diz respeito ao estatuto
revelação. Assim, uma visão exclui outras. Neste sen- conceitual da noção de corpo como suporte da
tido, o trabalho não se propõe a afirmar uma visão cognição: Considera-se como eixo deste trabalho a
sobre o papel do corpo como suporte da cognição noção de corpo-máquina, fundada na física mecanicista
entre jovens deficientes visuais, isto é, não se preten- e retomada pela fisiologia experimental do século XIX
deu revelar o que são e como funcionam o corpo e a ou estabeleceu-se novos referenciais teórico-práticos
cognição em um jovem cego. No estudo pretendeu- para tratar desta noção?
se produzir uma versão desta relação entre cognição
e corpo. A propósito do termo versão, Despret A herança como vetor de transformação
(1999, p. 37) afirma que ele “parece melhor do que Despret (1999) apresenta uma concepção de he-
qualquer outro para dar conta desta coexistência rança que se afasta das idéias de continuidade históri-
múltipla de saberes, de definições contraditórias e de ca e de origem na história. Para afirmar esta idéia a
controvérsias”. autora baseia-se na conhecida fábula árabe sobre os
12 camelos, que é apresentada por Tahan (1955) numa
A versão não se impõe, ela se constrói. Ela não se versão um pouco diferente, mas que serve aos mes-
define no registro da verdade ou da mentira e da mos propósitos: um homem muito velho, próximo
ilusão, mas naquele do devir: devir de um texto in- da morte, reúne seus três filhos para dividir com eles
cessantemente retrabalhado e revirado, devir de um os seus únicos bens que são onze camelos. Ao
mundo comum, devir das reviravoltas e das tradu- primogênito, deixa metade dos bens; ao filho do meio,
ções. A versão não desvela o mundo nem o vê-la, a quarta parte e ao mais novo a sexta parte. Quando
ela o faz existir num modo possível. A versão não é o pai morre, os filhos ficam atônitos. Como dividir
o feito de um homem sozinho, ela é fonte e fruto da esta herança? 11 camelos não são divisíveis por dois,
relação, ela é trabalho, no seio da relação, ela é ne- por quatro nem por seis, como podiam os filhos par-
gociação que se desvia, se transforma, se traduz tilhar a herança conforme a vontade do pai? Atônitos,
(Despret, 1999, p.44). os filhos decidem procurar ajuda recorrendo aos con-
selhos de um sábio. Este lhes diz que a única coisa
Um dispositivo pode se definir em termos de oca- que pode fazer é dar-lhes o seu velho camelo, des-
siões para uma versão, isto é, um dispositivo se cons- dentado, magro, mas muito valioso uma vez que ele
titui como uma oferta de oportunidade feita a um fe- irá ajudar os jovens na divisão da herança. Com o pre-
nômeno. Por esta via, foi proposta uma reflexão so- sente recebido do sábio os filhos somam 12 camelos
bre o trabalho na oficina de expressão corporal com e podem finalmente dividir a herança segundo a von-
jovens deficientes visuais como um dispositivo que tade do pai: o mais velho recebe seis camelos, ou a
faz existir uma certa relação entre o corpo e a cognição metade dos bens; o do meio fica com três, o que
e, ao mesmo tempo, um certo modo de tematizar equivale à quarta parte; e o mais novo herda dois ca-
esta relação. É neste sentido que se entende que tal melos, ou seja, a sexta parte dos 12 camelos. Ao final
dispositivo implica uma relação de co-produção en- da divisão o camelo desdentado é devolvido ao velho
tre o objeto e o sujeito da pesquisa. sábio como forma de reconhecimento e gratidão.
O trabalho se situa numa linha de investigação her- Esta fábula permite levantar a questão acerca da
deira da psicologia do século XIX, já que a atenção transmissão através da herança. Os filhos recebem
dirigiu-se para a cognição em suas articulações com o do pai algo que não pode ser transmitido sem se trans-
corpo. No entanto, neste ponto é necessário estabe- formar. A herança não está dada, antes deve ser
lecer duas ressalvas fundamentais. A primeira diz res- construída a partir do 12º camelo. Este por si só não

314 Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes
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é a solução do problema, mas sim aquilo que transfor- na filosofia. O paradigma visuocêntrico (Belarmino,
ma o problema de modo a que ele possa ser solucio- 2004) marcou as pesquisas no campo da psicologia
nado. Segundo Despret “uma herança se constrói e cognitiva, em particular nos estudos acerca da per-
tudo o que participa desta construção torna-se um cepção. Por outro lado, deslocaram-se as alianças te-
devir possível desta herança” (1999, p.28). Desse órico-práticas que se estabeleceram para definir a psi-
modo, se de um lado os filhos são produtos de uma cologia. Os aliados não são mais os instrumentos da
herança, de outro lado, eles são os vetores de trans- psicofísica, nem a bancada do laboratório de pesquisa
formação desta herança. experimental. Propõe-se estabelecer uma aliança en-
Entender, portanto, a herança como vetor de devir tre a psicologia e as artes, em particular as artes cênicas.
e de transformação leva a uma reflexão que diz res- Daí, o interesse em seguir um grupo de teatro forma-
peito ao problema desta pesquisa, isto é, através dos do por jovens cegos e portadores de baixa visão a fim
estudos de caso, analisar as relações entre a cognição de acompanhar os impasses corporal-cognitivos que
e o corpo, temática de certo modo herdada da psico- são produzidos a partir dos jogos teatrais. Neste per-
logia do século XIX. No entanto, herdaram-se os curso, impõe-se como tarefa seguir as marcas, os ves-
impasses, as controvérsias, não as soluções prontas e tígios, os rastros que estes jogos teatrais produzem
definitivas. Neste sentido, considera-se o corpo a par- nos corpos dos deficientes visuais levando-os a co-
tir daquilo mesmo que aparecia como o seu limite na nhecer diferentemente o mundo a sua volta.
psicologia do século XIX: a sua labilidade, sua parciali- A experiência do teatro com cegos e portadores
dade. Se a cognição enraíza-se no corpo, que desenho de baixa visão permite acompanhar o modo como a
da cognição pode-se esboçar se são consideradas pessoa utiliza os sentidos para a elaboração do mundo
como positivas as noções de labilidade e parcialidade e do universo do personagem. O espaço cênico cria
do corpo? A psicologia experimental do século XIX um campo de aprendizagem que engloba diversos
investigava a cognição a partir de sua articulação com pontos fundamentais no desenvolvimento cognitivo da
o corpo considerado como referencial de objetividade, criança cega: a orientação e a locomoção, as relações
de quantificação e de controle. A aliança entre a psico- interpessoais, a orientação do corpo no espaço etc.
logia e a fisiologia experimental foi neste sentido uma O trabalho de construção dos personagens bem como
aliança em torno de uma certa concepção de ciência. a memorização do texto implica, portanto, um dispo-
Ciência positivista cujo modelo era representado pe- sitivo cognitivo que leva à criação e a produção de um
las ciências da natureza. Definiu-se este trabalho como universo cognitivo cujos efeitos são incorporados pela
herdeiro do século XIX na medida em que esta he- criança em seu dia-a-dia. O ponto central a ser desta-
rança implica um vetor de devir e de transformação: cado neste processo é aquele que diz respeito ao pa-
o que interessa não é seguir o corpo entendido como pel que a arte assume na construção do mundo
extensão e movimento, mas sim, acompanhar as suas cognitivo/perceptivo das crianças. Isso significa dizer
derivas, as suas errâncias, as suas variações a partir que as percepções e aprendizagens que o teatro
das múltiplas conexões que estabelece com o mundo. viabiliza passam a ser incorporada à vida da pessoa
Trata-se, portanto, de uma herança que levará ao mes- deficiente visual, ao seu cotidiano.
mo tempo a definir um outro objeto para a psicologia Masini (1994) comenta que a educação do cego e
e a entender de outro modo as relações entre a da pessoa com baixa visão é, na maior parte das ve-
cognição e o corpo. zes, centrada em padrões adotados pelos videntes.
Por esta via, neste trabalho operou-se um duplo Segundo a autora, educar deficientes visuais de acor-
deslocamento. Por um lado, deslocou-se a centralidade do com padrões dos videntes produz um desconhe-
da visão nos estudos sobre a cognição quando se per- cimento das especificidades do ser deficiente visual.
guntou o que é o conhecer sem o ver. A relação entre Isso significa que conhecer o modo como estas pes-
o conhecer e o ver estabelece um referencial de in- soas conhecem o mundo é fundamental para a elabo-
vestigação bastante forte tanto na psicologia quanto ração de estratégias pedagógicas voltadas para o cego

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 11 Número 2 Julho/Dezembro 2007 • 311-322 315
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e o portador de baixa visão. Outros autores que in- ção de tais articulações do corpo com o mundo. A
vestigam o tema da cegueira seguem a mesma argu- partir destas articulações são produzidos tanto o cor-
mentação de Masini (1994) no que toca à necessida- po, com sua fala e gestos próprios, quanto ao mundo
de de buscar conhecer os modos singulares e pró- conhecido. Corpo e mundo são co-construídos a partir
prios pelos quais o deficiente visual conhece e se re- de tais articulações.
laciona com o mundo a sua volta. Assim, Belarmino Partindo destas contribuições teóricas, este tra-
(2004) analisa historicamente a centralidade da visão balho de pesquisa pretendeu investigar o papel da arte
nas pesquisas sobre o conhecer e chama a atenção cênica como recurso pedagógico voltado para o en-
para a necessidade de se investigar outras modalida- sino do deficiente visual, focando principalmente na
des de conhecimento, em particular aquela que se relação entre corpo e cognição. Para alcançar este
centra na percepção tátil. Para a autora, o tato é um objetivo geral foram estabelecidos dois objetivos es-
órgão de conhecimento que se estende por todo o pecíficos: elaborar e executar intervenções que vi-
corpo. Belarmino (2004) sublinha a importância de sassem produzir as posturas, gestos e cognições dos
na educação da pessoa com deficiência visual se to- personagens a serem interpretados na peça. Desta-
mar como referência a mundividência tátil, isto é, a ca-se que para a realização deste objetivo era funda-
construção da cognição por meio do exercício da mental levar em conta as demandas do grupo; anali-
percepção tátil. sar dois casos a fim de acompanhar os efeitos que
Caiado (2003) apresenta várias entrevistas com de- estas intervenções produziram.
ficientes visuais a fim de investigar os impasses vividos
por estas pessoas durante suas vidas escolares. Muitos
dos relatos apresentados indicam a importância de en- Método
raizar o ensino nas experiências corporais do deficiente
visual, buscando assim mobilizar a experiência corporal Participantes
do deficiente visual a fim de promover a aquisição de As oficinas de expressão corporal aconteceram
conhecimentos. Batista (2005) também aponta consi- durante todo o ano de 2005, uma vez por semana,
derações que vão nesta mesma direção quando analisa a com duração de uma hora e meia cada encontro. Tais
formação de conceitos em pessoas cegas. oficinas eram coordenadas pelas pesquisadoras e dela
No teatro, a elaboração de cada personagem pas- participaram 10 alunos do IBC que fazem a oficina de
sa por diversas etapas e o que se pode notar é o pro- teatro. Dentre estes alunos 3 tinham cegueira
gressivo envolvimento da criança com o universo da congênita e 7 eram portadores de baixa visão, com
personagem. Merece destaque o papel que o corpo graus variados de resíduos visuais, com idades entre
assume na construção e elaboração das personagens. 9 e 16 anos.
Falar da importância do corpo na construção da per- Para a definição de cegueira adotou-se o critério
sonagem não traz em si nenhuma novidade. O que funcional ou educacional referido por Amarilian
significa, portanto, dizer que entre as crianças defici- (1997). Segundo este referencial é considerado cego
entes visuais é o corpo o suporte das elaborações e o sujeito que faz uso exclusivamente do Sistema Braille
do trabalho de construção das personagens? Qual- para a leitura e a escrita e é considerado portador de
quer ator poderia afirmar o mesmo, sem dúvida. O baixa visão aquele que, através de recursos óticos e
que nos interessa circunscrever com esta afirmação outros, lê e escreve fazendo uso de material impres-
é que não se trata do corpo-máquina, mas sim de um so em tinta. Assim, sabe-se que alguns dos sujeitos
corpo construído, elaborado a partir das múltiplas cegos possuíam algum resíduo visual – por exemplo,
conexões que estabelece com o universo teatral: o a capacidade de distinguir luz e sombra, capacidade
texto, o cenário, o figurino, o espaço do palco, os para perceber alguns obstáculos. Os sujeitos que fi-
outros atores, a música etc. O processo de constru- caram cegos antes dos 5 de idade são considerados
ção e elaboração das personagens engloba a produ- cegos congênitos.

316 Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes
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Os estudos de caso foram realizados por meio tada por Tsallis (2005, p.20-23) ao afirmar que a
das notas e observações do que se passou na Oficina “recalcitrância acontece no terreno do vínculo, da
de Expressão Corporal com dois dos seus partici- relação. Ela explicita (...) um acontecimento singular
pantes. Todos os alunos que eram membros do gru- [e pode ser utilizada como] uma medida para estabe-
po de teatro faziam parte também das Oficinas de lecer os possíveis mapas sobre a movimentação dos
Expressão Corporal que eram organizadas em torno vínculos”.
dos impasses que os jovens vivenciavam na constru- A recalcitrância colocava então todo o dispositivo
ção dos seus personagens. A proposta de interven- em análise, fazendo a reformulação das ações. Deste
ção implicava um processo de construção recíproca modo, os efeitos cognitivos iam sendo criados, inven-
no qual as ações eram constantemente renegociadas tados ao mesmo tempo em que o conhecimento so-
com o grupo, modificadas, colocadas em risco. Ao bre tais efeitos era articulado. Os grupos eram coor-
mesmo tempo, observou-se que os jovens denados por duas pesquisadoras, enquanto as outras
problematizavam suas experiências, seus modos de três tomavam notas em um caderno e faziam registros
conhecer o mundo a partir dos trabalhos na Oficina através de fotos. As notas eram digitalizadas e reunidas
de Expressão Corporal. num único documento. Alguns encontros foram
registrados em gravador e depois transcritos. Os res-
Descrição dos sujeitos dos estudos de caso ponsáveis pelos jovens que participaram da Oficina de
Caso 1- Participante – menina de 11 anos, cega Expressão Corporal assinaram o termo de consenti-
congênita que estava participando do grupo de tea- mento livre e esclarecido autorizando a realização dos
tro pela primeira vez. A menina fazia outras atividades estudos de caso e a publicação dos resultados.
artísticas como canto e piano. No entanto, até aquele
momento nunca havia realizado nenhum trabalho que
envolvesse atividades de experimentação corporal. Resultados e Discussão
Caso 2- Participante – rapaz de 16 anos, cego
congênito, participava pela primeira vez do grupo de Os resultados foram discutidos em parceria com
teatro. Este rapaz apresentava em seu cotidiano mo- a professora de teatro do IBC. Na análise dos resul-
vimentos estereotipados de balançar as mãos e o cor- tados consideraram-se pertinentes alguns eixos: o
po. O rapaz não se locomovia com o auxílio da ben- papel dos não-humanos, as transformações do cor-
gala, andava sempre amparado pelos colegas, pelo res- po, as transformações no modo de conhecer o mun-
ponsável ou tateando. O rapaz ainda não tinha feito do, as negociações dos limites entre o ver e o não-
nenhuma atividade voltada para a orientação e a mo- ver no dispositivo do grupo de expressão corporal.
bilidade, comuns entre os deficientes visuais de sua
faixa etária e não estava envolvido em nenhuma outra Caso 1: Corpo de bailarina
atividade artística. Partiu-se de uma questão levantada pelo grupo de
teatro durante os ensaios da peça A Loja da Alegria
Procedimento (Cunha, 2005) encenada no IBC em novembro de
Cada encontro era construído em torno dos 2005. A peça contava a história de uma loja de brin-
impasses que os alunos experimentavam na constru- quedos onde estes ganhavam vida sempre que o dono
ção dos seus personagens. A cada impasse relatado de loja dela se ausentava. Havia vários personagens-
pelos alunos, uma estratégia de ação era proposta. brinquedos: um motociclista, um corredor, um luta-
Algumas vezes tais estratégias eram redimensionadas dor, uma bailarina. Na análise do caso 1 acompanhou-
pelos alunos, algumas apareciam como intervenções se a construção desta última personagem.
fracas, com as quais os alunos não se articulavam, com Durante os ensaios da peça e nas oficinas de ex-
relação às quais eles eram recalcitrantes. A noção de pressão corporal havia um impasse no que diz res-
recalcitrância proposta por Latour (1997) é comen- peito à personagem bailarina: aqueles alunos com re-

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síduos visuais tinham uma concepção do ser bailarina um deslocamento, um desvio de rota, uma media-
inteiramente desconhecida da menina cega que faria o ção ou invenção de uma relação antes inexistente
personagem porque muitos tinham memórias visuais que de algum modo modifica os atores nela implica-
envolvendo bailarinas. dos. Tradução não se confunde com interação (...) O
Esta menina não conseguia entender o que os cole- sentido de tradução envolve ao mesmo tempo um
gas diziam acerca da bailarina: “ela é leve, dança levan- desvio e uma articulação de elementos díspares e
tando as mãos, gira em torno do próprio corpo”. heterogêneos (Moraes, 2004, p.326)
Embora entendesse o sentido das palavras, a menina
não conseguia “encarná-las”, isto é, não conseguia devir- Desse modo, a primeira atividade proposta foi
bailarina, ter um corpo-bailarina. O impasse que tal experimentar as roupas da bailarina: uma saia feita de
dificuldade produzia atingiu todo o grupo e fez apare- plumas e outra de um tecido bem leve foram tateadas
cer um problema: O que é ter um corpo-bailarina? O pelos alunos. As saias passaram de mão em mão, fo-
que pode um corpo-bailarina? Tais questões nortearam ram cheiradas, alisadas e os alunos constataram que
o trabalho do grupo por vários encontros e foram ela era bem diferente de uma saia feita com tecido
deslocadas, traduzidas para uma outra questão: Como grosso como o jeans. Os alunos vestiram as roupas
produzir um corpo-bailarina numa menina cega da bailarina e solicitaram que as pesquisadoras colo-
congênita? Como fazê-la afetar-se pelo mundo da bai- cassem música para que eles pudessem perceber
larina levando-a a inventar o seu corpo-bailarina? como a saia podia ser movimentada ao som das músi-
Num primeiro momento, as psicólogas explicaram o cas. As pesquisadoras decidiram colocar dois tipos
que é ser bailarina. Tal estratégia mostrou-se pouco arti- de música: valsas e músicas brasileiras cujas letras fa-
culada, a menina não era afetada pelas palavras, não se lavam de bailarinas. Ao som das músicas os alunos
modificava a partir do que lhe era dito. Tal situação pro- começaram a dançar: “como se dança na ponta dos
duziu um deslocamento nas intervenções propostas. pés?”- perguntou uma aluna cega. E concluiu ela mes-
Foi planejada uma série de atividades que tinha ma: “a bailarina dança e anda na ponta dos pés, com
como finalidade produzir um campo de experimenta- passos de formiga que quer guardar um segredo, anda
ções, um mundo-bailarina. Primeiramente, foi pergun- sem fazer barulho”.
tado ao grupo de alunos o que cada um conhecia da Outras experiências foram trabalhadas: o som da
bailarina. Algumas posturas corporais da bailarina fo- música, o tatear de outras peças do vestuário da bai-
ram destacadas pelo grupo: larina. Uma poesia sobre bailarinas, de autoria de
· a bailarina fica toda esticadinha; Meireles (1996), foi lida para o grupo e cada um pôde
· a bailarina pula alto, “quase voa”; comentar o que era indicado naquela poesia sobre o
· parece que ela é leve, leve, como se fosse uma corpo da bailarina, o mundo da bailarina.
pluma; Uma questão, no entanto, permanecia em aberto
· ela usa roupas leves, a saia da bailarina é toda para a menina que iria interpretar o personagem: “a
leve e é bem diferente de uma saia feita de jeans, leveza, o que é isso, como fazer para que o corpo
por exemplo. pareça leve?”
Estas e outras características foram apontadas pelo A fim de dar conta desta questão, as pesquisado-
grupo. A partir deste levantamento, foram propostas ras propuseram duas atividades que envolviam um
experiências corporais e sensoriais que mobilizassem enorme balão de gás. Dentro do balão de gás foram
o corpo todo e que pudessem fazer conexão com o colocados grãos de arroz de modo que quando o balão
que era dito sobre a bailarina. Portanto, buscavam-se era movimentado os grãos de arroz produziam um
mecanismos de tradução que produzissem um deslo- som suave. Optou-se pelo uso deste material e não
camento do universo das palavras para aquele dos de guizos, muito comuns, por exemplo, no jogo de
sentidos e das experiências corporais. Destaca-se que futebol com cegos. Por que o arroz e não o guizo?
por tradução entendia-se Considerou-se que o guizo produzia um som

318 Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes
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descontínuo, quando a intenção era que o som tam- dia-a-dia no IBC era comum que ele balançasse repe-
bém pudesse transmitir a continuidade dos movimen- tidamente as mãos, coçasse as pernas, pulasse, movi-
tos da bailarina. mentos que também se faziam notar tanto durante os
A primeira atividade, com o balão de gás consistiu ensaios da peça quanto nos encontros da Oficina de
em articulá-la aos movimentos dos braços da bailari- Expressão Corporal. Tais movimentos não faziam par-
na. Desse modo, as pesquisadoras pediam que a me- te do contexto corporal do seu personagem na peça:
nina segurasse o balão e diziam: “a bailarina abraça um velhinho, um pouco distraído, dono da loja de
este balão na frente do corpo, depois o levanta até o brinquedos.
alto da cabeça, depois o leva para o lado”. Com estes Do mesmo modo que no caso da construção da
movimentos dos braços articulados ao balão, a meni- bailarina, observou-se que não era suficiente dizer ao
na ia construindo os movimentos dos braços da baila- rapaz que ele devia parar de balançar as mãos ou de
rina que sobem ao ar arqueados, depois descem para coçar as pernas. A professora de teatro sugeriu que
um lado e depois para o outro. Todas as crianças, in- o personagem fizesse uso de uma bengala, um objeto
clusive aquelas com baixa visão, fizeram estes movi- que muitas pessoas velhas utilizam para auxiliar o ca-
mentos com a mediação do balão. A segunda atividade, minhar. O objetivo era “ocupar” as mãos do rapaz de
com o balão consistiu em colocá-lo sobre um enor- modo a que as estereotipias fossem deixadas de lado.
me lençol que era segurado pelas pesquisadoras. As Destaca-se que este rapaz, embora cego congênito,
crianças ficaram sob o lençol e empurravam o balão. nunca havia sido treinado para o uso de bengala. Por-
Esta experiência produziu comentários: “como a bola tanto, duas questões devem ser sublinhadas. Em pri-
é leve, ela voa alto, basta um toquinho e ela já voa”, meiro lugar, o rapaz embora soubesse que muitas
foi o que disse uma menina com baixa visão. Ao final pessoas cegas usam bengalas, não tinha, ele próprio,
destas experiências a menina cega finalmente concluiu: a experiência corporal com o uso deste instrumento
“a bola é leve e a bailarina também é leve” e em segui- já que se locomovia com a ajuda de outros colegas ou
da disse: “meu corpo pode ficar leve como esta bola”. tateando a sua frente para evitar os obstáculos. Em
Interessante notar que estas intervenções produ- segundo lugar, e na mesma direção, o rapaz sabia que
ziram um grupo-bailarina, com o qual a menina se ar- existem no mundo pessoas chamadas de “velhinhas”,
ticulava. Naquele grupo-bailarina não havia mais a dis- mas ele não tinha nenhuma vivência corporal que pu-
tinção entre cegos e portadores de baixa visão, baila- desse auxiliá-lo na construção dos gestos e das pos-
rinas e não-bailarinas. Ali havia um grupo, um coletivo, turas do velhinho que iria interpretar.
no sentido proposto pela teoria ator-rede, ou seja, A fim de conhecer o modo como o rapaz conhecia
uma articulação de humanos e não-humanos que pro- os usos de uma bengala, as pesquisadoras pergunta-
duzia efeitos, inventando um mundo bailarina único, ram a ele: “Para que serve uma bengala?” E ele respon-
singular. Considerou-se relevante ressaltar que o gru- deu: “para ver se tem obstáculos no caminho”. E as
po de expressão corporal funcionou como um dispo- pesquisadoras: “então mostre como se pode usar a
sitivo, no sentido afirmado por Despret (2004), isto bengala para ver se tem obstáculo”. O rapaz colocou o
é, um dispositivo que produz novas formas de falar, braço esticado para o alto e a bengala suspensa no ar
novas formas de articular humanos e não-humanos e, sendo agitada de um lado para outro. Tais movimentos
ao mesmo tempo, novas formas de interrogar o que indicavam que ele desconhecia o habitual modo como
é a cognição e o corpo. um cego utiliza a bengala, isto é, à frente do corpo,
sendo levada de um lado para outro e com uma de
Caso 2: Articulando ritmos musical e corporal suas extremidades em contato com o chão. As pesqui-
As posturas corporais deste rapaz eram marcadas sadoras então perguntaram: “Você sabe por que pes-
por vários movimentos estereotipadas os quais, con- soas velhas usam bengalas?” O jovem não sabia.
forme informado pelo seu responsável, apareceram Após estas experiências, uma das pesquisadoras
quando ele tinha entre 7 ou 8 anos. Nas atividades do sugeriu ao rapaz que, ao invés de usar a bengala, o seu

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 11 Número 2 Julho/Dezembro 2007 • 311-322 319
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personagem tocasse um tambor. As pesquisadoras No grupo observado, os não-humanos foram


sabiam que ele tinha uma enorme capacidade de pro- actantes importantes que, ao se articularem com os
duzir ritmos com pandeiros, tambores e quaisquer corpos das crianças cegas, produziram universos
outros objetos que pudesse batucar. A articulação do cognitivos que não foram dados, anteriormente. Em
corpo com o tambor produziu efeitos interessantes. outras palavras, parece que se pode considerar que,
O ritmo das batidas que ele dava no tambor pareci- no caso da bailarina, o corpo-balão foi um actante que
am se coadunar com o ritmo de suas estereotipias. O produziu efeitos que não foram dados anteriormente
resultado era uma produção sonora bastante rica que e nem previstos. A articulação corpo-balão produziu
algumas vezes parecia um samba, outras vezes um uma bailarina única, singular, própria daquela menina
som circense. A partir deste momento, o trabalho que experimentou esta articulação. Na perspectiva
foi o de articular o som produzido com as falas do da teoria ator-rede, proposta na atualidade por Latour
personagem que o menino interpretava. Um univer- (1997), entre outros autores, pode-se dizer que o
so de novas questões abriu-se a partir desta articula- corpo-balão é um híbrido, um actante, que não se
ção: corpo-tambor-música-fala do personagem. Que reduz nem a um sujeito puro, entendido como pura
sons poderiam ser produzidos para cada um dos per- abstração, nem a um corpo, entendido como pura
sonagens da peça? Em que momentos batucar e em materialidade. A cognição foi produzida na interface
que momentos silenciar o tambor? Eram questões corpo-balão. Foi esta articulação que produziu por
trabalhadas em grupo. Merece destaque ainda que a um lado, um conhecimento de si, do seu corpo, do
presença do tambor foi crucial para que se desenvol- que ele pode fazer em termos de gestos, movimen-
vesse um traço cômico do personagem. Como ele tos, etc. e por outro lado, um conhecimento do mun-
era um velhinho meio distraído, o rapaz inventou um do, do mundo da bailarina, com a música, as suas rou-
certo modo de desafinar: o velho batucava, cantava, pas, a sua leveza. A cognição neste caso, longe de ser
mas desafinava um pouco, tossia e engasgava no meio atributo de um sujeito isolado, é efeito de conexões
das músicas, errava as letras das músicas. que se estabelecem em rede: numa rede que articula
Estas intervenções mobilizavam todo o grupo por- actantes díspares.
que os outros alunos da Oficina de Expressão Corporal Do mesmo modo, na experiência corpo-tambor
participavam das decisões acerca do quando batucar, observa-se a produção de uma articulação entre o
quando silenciar o tambor, além de opinarem também ritmo do corpo e o ritmo da música. Dito em outras
quanto à escolha das músicas que deveriam ser tocadas palavras, parece que a articulação corpo-tambor pode
para marcar a interação do velhinho com os demais ser entendida como um híbrido que produziu como
personagens. Assim, ao interagir com a bailarina, o velhi- um de seus efeitos outros sentidos para as
nho cantava e batucava uma música muito diferente da- estereotipias. Assim, pode-se dizer que a articulação
quela que era dirigida a outro personagem, por exem- estereotipia-música-tambor modifica a estereotipia.
plo, ao motociclista, ou ao lutador. Era o grupo todo Na perspectiva das redes, seguiram-se alianças entre
que se articulava com o tambor e seus sons e músicas. os actantes, seus rastros, suas transformações. Lon-
ge de considerar cada elemento isoladamente,
enfocaram-se as conexões entre os actantes e os efei-
Considerações Finais tos que tais conexões produziram.
O trabalho de campo levou, portanto, a redefinição
Estes resultados indicam a necessidade de reto- do corpo como suporte da cognição. Para isso, busca-
mar o tema do corpo como suporte da cognição. ram-se alianças não no enfoque experimental, mas em
Nos casos observados, considera-se o corpo, não ferramentas conceituais que permitissem refletir so-
como corpo-máquina, mas como algo que é produzi- bre corpo e suas redes. No campo da filosofia reto-
do, que é efeito de conexões entre actantes díspares mam-se algumas contribuições do filósofo Michel Ser-
e heterogêneos, humanos e não-humanos. res, que entende o corpo como variação, como dife-

320 Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes
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renciação que implica na construção do mundo e de si. novas ferramentas para pensar o que é a própria psi-
Assim, o trabalho de campo leva a concluir que o sujei- cologia, para construir uma psicologia em ação. Nes-
to e o mundo são co-construídos através das atividades te sentido, a relação entre a psicologia e a educação
do teatro. Nas palavras do filósofo, “o corpo é o su- são também relações de construção recíproca, de
porte da intuição, da memória, do saber, do trabalho invenção e criação de modos de agir que podem pro-
e, sobretudo, da invenção” (Serres, 2004, p.36). duzir modos de ensinar distintos dos tradicionais
Na atualidade, Bruno Latour (1999) afirma que ter modelos centrados na repetição e na imitação. As-
um corpo é ser afetado, movido e efetuado por co- sim, de um lado este trabalho pode oferecer subsídi-
nexões com outros homens e com não-humanos. Isso os aos profissionais de educação que lidam com defi-
significa dizer que o corpo é o efeito de redes de cientes visuais para refletirem sobre suas práticas; de
articulação que ligam humanos e dispositivos técni- outro lado, ele também levanta questões que levam a
cos os mais heterogêneos e díspares. Foram estas perguntar sobre o modo como a psicologia produz
afetações que foram acompanhadas por meio das conhecimento, sobre quais são os seus alcances e li-
observações no campo pesquisado. Tais observações mites. Em última instância, seguindo os termos de
permitiram ainda levantar dois pontos relevantes: Despret (1999), pode-se dizer que a interface entre
No trabalho desenvolvido com os deficientes vi- psicologia e educação produz derivas, transformações
suais foi extremamente relevante considerar o em ambos os domínios.
referencial que estas pessoas têm do mundo, os seus
modos singulares de conhecer. O ponto de partida
das atividades observadas eram as questões Referências
vivenciadas pelo grupo. Percebe-se que de nada adi-
antava dizer ao rapaz cego para usar a bengala: ele
Amarilian, M. L. T. (1997). Compreendendo o cego: uma visão
não conhecia a bengala do mesmo modo que os vi-
psicanalítica da cegueira por meio de desenhos-estórias. São Pau-
dentes a conhecem. O mesmo ocorria com a menina lo: FAPESP.
cega: ela não conhecia os movimentos típicos de uma
Batista, C. (2005). Formação de conceitos em crianças cegas:
bailarina, portanto, era inútil apenas dizer para ela: le-
questões teóricas e implicações educacionais. Psicologia: Teo-
vante os braços, ande na ponta dos pés. Tais palavras,
ria e Pesquisa, 21(1), 7-15.
centradas nas experiências cognitivas dos videntes
careciam de sentido para a menina cega. Portanto, Belarmino, J. (2004). Aspectos comunicativos da percepção tátil:
conclui-se que, como indicado por Masini (1994), a a escrita em relevo como mecanismo semiótico da cultura. Tese
educação da pessoa com deficiência visual deve ser de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo.
guiada pelos referenciais que o deficiente visual pos-
sui do mundo. Caiado, K. (2003). Aluno Deficiente Visual na Escola: lembran-
A construção do conhecimento ocorre numa rede ças e depoimentos. Campinas: Autores Associados.
que articula humanos e não-humanos. Trata-se de uma Cunha, M. F. (2005). A Loja da Alegria. Roteiro de peça teatral
cognição distribuída por diversos actantes, cognição não publicado.
que ocorre numa articulação com o corpo, com os
Despret, V. (1999). Ces émotions que nous fabriquent. Paris:
não-humanos. Nos casos observados, os não-huma- Lês empecheurs de penser en rond.
nos foram actantes fundamentais para a produção do
Latour, B. (1994). Jamais fomos modernos. (C. I. Costa, trad.).
conhecimento. Sem o balão de gás, o tambor, a músi-
Rio de Janeiro: Editora 34.
ca, as roupas da bailarina, não seriam produzidos os
efeitos cognitivos que levaram aquelas pessoas a co- Latour, B. (1997). Des sujets recalcitrants. La Recherce, 301, 88-90.
nhecerem o ser bailarina e o ser velho. Por esta via, é Latour, B. (1999). How to talk about the body? The normative
necessário a buscar novas ferramentas conceituais dimension of science studies. [On line]. Disponível: http://
para definir o que é a cognição e, conseqüentemente, www.ensmp.fr/~latour/articles/article/077.html.

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 11 Número 2 Julho/Dezembro 2007 • 311-322 321
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Lewin, K. (1965). Teoria de Campo em Ciência Social. (C. M. Serres, M. (2004). Variações sobre o corpo. (E. A. Carvalho,
Bori, trad.). São Paulo: Pioneira. trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Masini, E. (1994). O perceber e o relacionar-se do deficiente Tahan, M. (1955). Os trinta e cinco camelos. Em M. Tahan
visual. Brasília: Coordenadoria Nacional para a integração da (1955) Seleções – Os melhores contos. Rio de Janeiro: Con-
pessoa portadora de deficiência. quista.
Meireles, C. (1996). A bailarina. Em C. Meireles (Ed.), Ou isto Thiollent, M. (2000). Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo:
ou aquilo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Cortez.
Moraes, M. (2004). A ciência como rede de atores: ressonân- Tsallis, A. (2005). Entre terapeutas e palhaços: a recalcitrância
cias filosóficas. História, Ciência e Saúde – Manguinhos, 11(2), em ação. Tese de doutorado, Universidade do Estado do Rio
321-333. de Janeiro, Rio de Janeiro.
Rocha, M., & Aguiar, K. (2003). Pesquisa intervenção e a pro-
dução de novas análises. Psicologia: Ciência e Profissão, 23(4),
64-73.
Recebido em: 28/05/2007
Revisado em: 03/12/2007
Aprovado em: 29/01/2008

Sobre a autora:

Marcia Moraes (mmoraes@nitnet.com.br ou mmoraes@vm.uff.br) - Professora do Programa de Pós-graduação strito senso em Psicologia da
Universidade Federal Fluminense. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC / SP. Consultora Científica no Centro de Estudos sobre Subjetividade, Cegueira
e Baixa Visão do Instituto Benjamin Constant.

Endereço para correspondência: Rua Desembargador Cesínio Paiva 15


São Francisco - Niterói - RJ - CEP: 24360 – 530

Nota da autora:

O trabalho contou com o apoio financeiro dos programas de iniciação científica (PIBIC) da Faperj e do CNPq. Agradeço à professora de teatro do
Instituto Benjamin Constant (IBC) Marlíria Flávia Coelho da Cunha, por ter permitido que o trabalho de campo fosse realizado. Agradeço também aos
profissionais do IBC que me acolheram naquela instituição, aos responsáveis pelas crianças que autorizaram a realização da pesquisa. Por fim, agradeço
de modo especial às alunas de graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense que estiveram vinculadas a esta pesquisa através do
programa de iniciação científica: Luciana de Oliveira Pires Franco, Ana Gabriela Rebelo dos Santos, Aline Alves de Lima, Carolina Cardoso Manso.

322 Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes
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Lucia Reily

MÚSICOS CEGOS OU CEGOS MÚSICOS:


REPRESENTAÇÕES DE COMPENSAÇÃO SENSORIAL
NA HISTÓRIA DA ARTE

LUCIA REILY*

RESUMO: A representação de músicos cegos foi tema recorrente entre


os artistas desde a Antiguidade. O presente estudo descreve historica-
mente as concepções sobre a figura do músico cego baseado nas obras
que atravessam os séculos. A análise da concentração de harpistas na
Antiguidade, de tocadores de viola de roda na Idade Média até o Bar-
roco, de violinistas e violonistas entre os séculos XVII e XIX e o apareci-
mento do acordeão a partir do século XIX permite falar do flutuante
papel do músico cego na sociedade. O estudo mostra que na Era Cris-
tã predominava o papel de cego músico, trabalhando na marginalidade
e na miséria, onde sua performance musical legitimava a mendicância.
Palavras chave: Música. Cegueira. Mundo do trabalho. História da
Arte. Representação.

MUSICIANS THAT ARE BLIND OR BLIND MUSICIANS:


REPRESENTATIONS OF SENSORY COMPENSATION IN ART HISTORY

RESUMO: Representations of blind musicians have been a recurring


theme among artists since Antiquity. A survey of artworks uncovered
nearly 160 portrayals of visual impairment, of which 25 represented
blind musicians. This paper presents a historical description of con-
ceptions of blind musicians based on these depictions covering several
centuries. The analysis of the concentration of harpists in Antiquity,
hurdy-gurdy players from the Middle Ages to the Baroque, violinists
and guitar players from the 17th to the 19th century and the emer-
gence of the accordion by the mid 19th century enables us to reflect
on the fluctuating role of blind musicians in society, depending on

* Doutora em Psicologia e docente da Faculdade de Ciências Médicas (CEPRE) da Universida-


de Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: lureily@terra.com.br/lureily@fcm.unicamp.br

Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008 245
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Músicos cegos ou cegos músicos...

prevailing stereotypes. Analyzing visual cues in artwork shows how


musicians that are blind often play the role of blind musicians, work-
ing in poverty, on the fringe of society where their musical perfor-
mance makes begging a legitimate business. The conceit of sensory
compensation for loss of sight through heightened hearing is also ex-
plored.
Palavras-chave: Music. Blindness. Work. Art history.

Introdução
filme documentário A pessoa é para o que nasce, do diretor
Roberto Berliner, coloca em evidência uma figura social que faz
parte do cenário rural e urbano ocidental há séculos: o músico
cego. Maria, Regina e Conceição são três irmãs cegas que se sustentam
com esmolas, cantando e tocando ganzá em feiras e portas de igreja no
Nordeste. Quando eram meninas, a família de camponeses sem terras
acompanhava o pai alcoolista que buscava trabalho temporário nas gran-
des propriedades rurais. A mãe contribuía fazendo artesanato. Depois que
o pai faleceu, a família toda passou a viver com o dinheiro que as irmãs
arrecadavam cantando e tocando ganzá. Residindo numa pequena vila
em Campina Grande, Paraíba, o primeiro curta-metragem realizado so-
bre essa história tirou-as do anonimato, e o documentário posterior re-
flete sobre as conseqüências da fama na vida das três. O filme retrata uma
realidade brasileira, na qual deficiência, miséria e música se entrelaçam.
A referência ao documentário tem a função de introduzir o recor-
te do presente texto, qual seja, o músico cego, visto à luz de representa-
ções de cegos instrumentistas em obras da História da Arte. O título in-
verte as posições das palavras cego e músico para deixar transparecer desde
a abertura do texto a fragilidade do lugar social ocupado pelo cego mú-
sico, que carrega historicamente a bagagem do assistencialismo, da
marginalidade e da miséria, por um lado, e do mito da superação do
infortúnio e da compensação da perda visual pela hipersensibilidade au-
ditiva de outro.

Fundamentação teórica
As concepções de deficiência são construções sociais, mesmo que,
segundo os argumentos de Linton (1998, p. 143),

246 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Lucia Reily

(...) o significado geralmente atribuído à deficiência seja de condição pes-


soal mais do que questão social, de sofrimento individual mais do que
uma condição política. Quando indivíduos deficientes fracassam na es-
cola, no trabalho ou no amor, o fracasso é atribuído à deficiência, ela
própria vista com um obstáculo ao bom desempenho, ou à fragilidade
psicológica do deficiente, ou à sua falta de resiliência, sua incapacidade
de “superar” os infortúnios.
Para Linton, as artes têm um papel importante ao “desmontar es-
tereótipos por meio da análise de metáforas, de imagens e de todas as
representações de deficiência nas culturas acadêmicas e populares” (idem,
ibid., p. 142). Ela explica que a compreensão dos sentidos e das funções
das representações simbólicas e metafóricas da deficiência tem o objetivo
de subverter o seu poder. “É preciso traçar os padrões de uso de metáfo-
ras e dos usos simbólicos da deficiência para determinar onde e como
emergem, e como funcionam nos diferentes gêneros artísticos, nas cul-
turas e nos períodos históricos” (idem., ibid., p. 129).
Do ponto de vista de produção de conhecimento, podemos afir-
mar com razoável grau de segurança que estudos sobre a temática do
músico cego são muito mais numerosos que estudos sobre artistas visu-
ais surdos, a despeito do movimento relativamente recente da comuni-
dade surda de desencavar biografias de artistas surdos do passado e de
estudar as produções plásticas da comunidade surda como evidências de
afirmação e resistência no presente (Lang & Meath-Lang, 1995). O lei-
tor que queira fazer um inventário de cegos ou deficientes visuais profis-
sionais que se destacaram na música popular brasileira e internacional
não terá nenhuma dificuldade em lembrar de referências como Stevie
Wonder, Ray Charles, os Cantores de Ébano, Sivuca, Hermeto Pascoal,
dentre outros, sem conseguir desempenho equivalente para profissionais
surdos no campo das artes visuais. Percebe-se, assim, que a produção ci-
entífica reflete o que poderíamos denominar de uma sólida tradição cul-
tural, que atravessa espaços e tempos, da possibilidade de desenvolvimen-
to profissional no campo da música para o cego – tradição que não se
estende às habilidades artísticas em outras áreas de deficiência.

Pesquisas sobre música e deficiência visual


Os estudos recentes sobre música e cegueira se inserem em
diversos campos de conhecimento, incluindo medicina, psicologia,

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antropologia, música e educação musical, entre outros. Na medicina, en-


contram-se trabalhos que estudam neuroimagens de funções cerebrais de
músicos cegos congênitos como evidência da plasticidade cerebral, par-
tindo principalmente das competências de discriminação de tonalidade
(ouvido absoluto, ou capacidade musical de reconhecer e identificar
notas ou tonalidades ao ouvir um tom ou acorde musical). Hamilton,
Pascual-Leone e Schlaug (2004) estudaram 46 cegos que perderam a vi-
são precocemente, dos quais 21 tinham formação musical, comparados
a um grupo controle de músicos videntes. A despeito de o treinamento
musical dos cegos ter se iniciado mais tardiamente do que a formação
musical dos não cegos, 12 sujeitos cegos (57,1%) relataram ter ouvido
absoluto, quando tal habilidade se encontra em apenas 20% de músicos
videntes, segundo os autores.
Na mesma linha, Ross, Olson e Gore (2003) realizaram um es-
tudo de caso; comparando os resultados de exames de neuroimagem
(ressonância magnética funcional) do seu sujeito cego com formação
musical e ouvido absoluto aos de cinco músicos videntes com ouvido
absoluto, os pesquisadores puderam demonstrar que as mesmas áreas
cerebrais no córtex auditivo direito haviam sido ativadas em grau se-
melhante como resposta ao processamento musical. Os resultados mos-
traram também ativação adicional no músico cego das regiões corticais
parietais associativas e de regiões extra-estriados do lobo occipital (ao
lado do córtex visual). Os autores consideraram que seu estudo fornece
apoio para a explicação da plasticidade cortical como base para habili-
dades musicais especiais e também justifica a metodologia do estudo
de caso para “fenótipos raros”.
Amedi et al. (2005) também investigaram, a partir de técnicas
avançadas de neuroimagem, as mudanças e adaptações neuroplásticas
corticais a partir das exigências e de processamentos sensoriais vividos
por sujeitos deficientes visuais, sugerindo que o cérebro responde à ce-
gueira, realocando regiões que processam informações visuais para ou-
tras funções necessárias para as sensações preservadas, como memória,
linguagem e habilidade musical.
Um estudo do campo da psicologia investigou os contatos iniciais
com a música oferecidos e/ou incentivados na infância. Preocupados com
o desenvolvimento das habilidades musicais de crianças cegas, a psicólo-
ga Linda Pring, pesquisadora inglesa conhecida por seus estudos sobre

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as altas habilidades de pessoas do espectro autista, e Adam Ockelford


realizaram um levantamento exploratório comparativo (Pring & Ockel-
ford, 2005) com 32 famílias de crianças com displasia septo-óptica, ten-
do como grupo controle 32 famílias de crianças sem deficiência visual
ou qualquer outro tipo de problema de saúde. O objetivo do estudo foi
investigar os interesses e habilidades musicais das crianças, a partir das
oportunidades oferecidas a elas de iniciação musical, bem como conhe-
cer os benefícios que a música poderia trazer para o seu desenvolvimento
e desempenho escolar. Os resultados levantaram diversas implicações do
ponto de vista da educação especial. Segundo os autores, a literatura já
vinha indicando que crianças com diagnóstico de displasia septo-óptica
apresentam altos níveis de interesse e habilidade musical, mas no estudo
desenvolvido, contraditoriamente, as crianças videntes tiveram maior
acesso às oportunidades de educação musical oferecidas que seus pares
deficientes visuais, enquanto poucas crianças do grupo com displasia
septo-óptica puderam desfrutar precocemente da aprendizagem ou tera-
pia musical. Inesperadamente, o fator do resíduo visual parece ter influ-
enciado o desenvolvimento musical mais do que outros fatores, como a
compensação sensorial (auditiva).
Há diversos estudos de músicos cegos adultos desenvolvidos no
campo da antropologia (especificamente na etnomusicologia), muitos
dos quais trabalham em abordagens etnográficas, bastante distintas dos
procedimentos empíricos dos estudos da medicina e da psicologia cita-
dos acima. Um trabalho interessante foi desenvolvido por Simon
Ottenberg (1996) em Serra Leoa, onde conheceu três músicos cegos
tocadores de um instrumento chamado kututeng, também denominado
em outras regiões da África de mbira, e conhecido no Ocidente como
piano de polegar. Analisando as condições sociais destes homens, verifi-
cou que os três eram pobres, solteiros, e não tinham filhos, uma grande
desvantagem agregada à condição de cegueira na sociedade Limba, onde
o status aumenta conforme o número de filhos. O autor investiga o pa-
pel da profissão de músico para esses cegos, e como a história de vida de
cada um foi constitutiva do seu estilo distinto de performance, os con-
textos onde tocavam e a relação da linguagem musical com outros as-
pectos da cultura Limba. O leitor interessado poderá encontrar outros
interessantes trabalhos de etnomusicologia sobre músicos cegos em
Kubik (1964), Kidula (2000) e Tsuge (1981).

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Apesar da variedade de objetivos, enfoques, abordagens e


metodologias, esses trabalhos iluminam alguns pontos que merecem re-
flexão. Do ponto de vista médico, as evidências dos estudos neurológicos
sugerem que a plasticidade cerebral leva a uma reorganização de funções
mentais superiores de modo a valorizar a linguagem, a memória e a
musicalidade como modalidades para constituição de sentidos. Para
antropólogos o que interessa é o lugar social do músico, enquanto a psi-
cologia se preocupa com os mecanismos de compensação. Assim, profis-
sionais dos campos da medicina, da psicologia e da antropologia inter-
pretam a capacidade musical das pessoas com deficiência visual de
diferentes maneiras, mas concordam que a música na vida de uma pes-
soa com cegueira pode ter uma dimensão especialmente significativa. A
implicação óbvia seria que as oportunidades de iniciação musical deveri-
am ser priorizadas para crianças com cegueira congênita ou que perdem
a visão precocemente. No entanto, parece que não é isso que acontece.
Os estudos citados mostram que a formação musical de pessoas cegas
tem início mais tardio do que ocorre na população no geral, mesmo na
Inglaterra, onde a música é disciplina obrigatória para todos nos ensinos
fundamental e médio. Algumas hipóteses podem ser levantadas que me-
recem ser investigadas a fundo para explicar as razões para a demora na
iniciação musical de crianças cegas:
• não se oferece uma formação musical o mais cedo possível por-
que se conta com a propensão inata do cego para a música;
• as famílias com filhos cegos vivem em condições socioeco-
nômicas mais prejudicadas, dificultando a provisão de recur-
sos para compra ou aluguel de instrumento e pagamento de
professores de música;
• poucos professores de música se sentem habilitados para en-
sinar alunos com deficiência visual;
• a música não é entendida como uma profissão, e sim como um
meio de sensibilizar o público para jogar moedas num chapéu
ou caneca; para isso, não é preciso estudar música, basta tocar
alguma coisa.
Fundamentada em autores da sociologia da arte, como Bourdieu
e Darbel (2003), Brown (2007) traz uma reflexão que contribui para
elucidar a posição ambivalente do músico cego. Para esta estudiosa dos

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músicos do norte da Índia, no império Mughal (c. 1658 a 1858), os


músicos profissionais da maioria das sociedades possuem um status
limítrofe. Considera que a ocupação do músico é ao mesmo tempo
uma profissão de serviço e de trabalho cultural. O capital cultural pro-
veniente do produto de sua labuta – sua música – permite aos músi-
cos atravessar para espaços de status mais elevados, para se relaciona-
rem em pé de igualdade com seus patronos, e no momento da
performance, é possível exercer poder sobre eles. Para aqueles que mais
se destacam, essa mudança de lugar social poderá se tornar permanen-
te. Mas a autora alerta que, em muitas sociedades, não interessa aos
patronos permitir aos músicos escapar de seu lugar nas bordas e, para
mantê-los subservientes, são capazes de utilizar sanções sociais.
A discussão desenvolvida por Brown sugere que, de um lado, os
músicos cegos ficam muito mais vulneráveis às sanções sociais que os
músicos videntes, encontrando ainda mais dificuldade para conseguir
que o seu capital cultural seja reconhecido como um bem simbólico, e
de outro, ao menos nas sociedades que professam o cristianismo, a mo-
eda de troca talvez não seja propriamente a música. A performance
musical do deficiente oferece ao público a oportunidade de admirar a
espantosa capacidade que o cego tem de superar a sua condição, de
compensar o seu defeito, enquanto se sente satisfeito por fazer o bem,
dando uma “ajudinha”; assim redime sua própria culpa e vacina-se con-
tra a possibilidade de vir a se tornar deficiente (Gilman, 1994).

Retratos de cegueira
O presente estudo é um desdobramento de um levantamento
imagético desenvolvido a partir da pesquisa “Retratos de deficiência e
doença mental: intersecções da educação especial e da história da arte”,
que teve como objetivo mapear retratos de deficiência e doença mental
na história da arte, para investigar raízes do preconceito em obras de arte
ocidental. Partiu-se da premissa de Gilman (1994) de que os artistas ex-
pressam estereótipos coletivos vigentes na sociedade, mas que estas ima-
gens consolidam as atitudes perante a deficiência, estabelecendo um mo-
vimento iconográfico de escritura e leitura de sentidos visuais.
Ao analisar as representações da deficiência visual em obras da
história da arte, o pesquisador logo se dá conta do grande desafio que

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o artista enfrenta para mostrar que o seu tema é a cegueira, já que o


“não ver” é ausência de função, uma abstração, não um traço físico de-
finido. O desenhista ou pintor, então, lançará mão de alguns sinais
constituídos por artistas que estabelecem uma tradição iconográfica
para auxiliar o público na leitura da sua mensagem. Em se tratando de
deficiência física, há muitos sinais pictóricos disponíveis ao artista. Ca-
deiras de rodas, muletas, tutores ou suportes amarrados às pernas, per-
na de pau, membros mecânicos, próteses, bengalas, membros ausen-
tes, deformidades e outros elementos são fáceis de identificar.
Para representar a cegueira numa imagem de natureza visual, no
entanto, a dificuldade é maior. Os olhos são pequenos, meros detalhes
numa pintura; um olhar ausente, vago, pode ser equivocadamente in-
terpretado como alguém com pensamento distante, em vez de alguém
que não enxerga. Elencamos diversas soluções utilizadas pelos artistas
nos seus retratos de cegos que foram constituindo uma tradição
iconográfica da cegueira, de tal forma que o público fosse aprendendo
a ler esses detalhes em desenhos, pinturas, gravuras e esculturas.
Para começar, o título da obra pode conter referência explícita à
cegueira ou pistas a serem confirmadas na própria imagem. Algumas
obras não figurativas modernas e contemporâneas do século XX, como a
pintura de Max Ernst “Nadador cego” ou a escultura de Louise
Bourgeois “Um cego guiando o outro”, sem a menção de cegueira no
título, seria impossível ao público, tanto aos leigos quanto aos especia-
listas em arte, identificar a representação da deficiência visual.
Muitos artistas contam com os subtextos para auxiliar os leitores
da imagem na interpretação dos sentidos. Quando o público sabe da
cegueira de alguns personagens mitológicos, de figuras bíblicas e de
personagens históricos, este conhecimento prévio servirá de suporte
para a interpretação da obra. Os artistas medievais, preocupados que
foram com a leitura das imagens que ilustravam (iluminavam) textos
religiosos de toda natureza, mostraram-se muito inventivos na criação
de pistas visuais para a leitura das imagens, as quais foram revisitadas
por muitos artistas ocidentais que se seguiram. Dessa forma, colabora-
ram com a construção de uma iconografia sobre a cegueira.
No decorrer da história da arte, vemos a cegueira representada
figurativamente por meio dos seguintes elementos:

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• olhos fechados/abertos após a cura; olhos esbranquiçados, ór-


bita vazia, olhos feridos ou disformes, olhos de vidro, direção
do olhar assimétrico, olhar ausente, vazio;
• uso de vendas, de óculos escuros, de lentes grossas, de recursos
ópticos;
• indicação pelo apontar, mostrando ou tocando os olhos;
• pistas posturais, como a cabeça erguida, braços estendidos di-
ante do corpo, mão aberta varrendo o ar, passo inseguro, com
um pé à frente, mapeando o terreno a procura de obstáculos
ou buracos;
• corpo prostrado, figura deitada na cama, figura sentada deso-
cupada ao lado de outra pessoa trabalhando a seu lado;
• presença de bengala, vara ou instrumento musical;
• tamanho das mãos proporcionalmente aumentadas; mãos to-
cando, sentindo algo;
• presença de auxiliar, guia, criança ou cachorro levando o cego;
• presença de tigela ou chapéu para o público colocar moedas.
Analisando as obras no seu conjunto, constataram-se raros exem-
plos de deficientes mostrados como pessoas capazes de fazer parte do
mundo do trabalho. Algumas exceções merecem menção. Artistas com
deficiência pintaram seus auto-retratos (Francisco de Goya – surdo;
Henri de Toulouse-Lautrec – deficiente físico; Frida Kahlo – deficiente
física) e pintaram representações idealizadas de personagens históricos
que tiveram papel destacado na sociedade. Retratos do filósofo Homero
(cego), do general romano Belisário (cego) e do poeta inglês Milton
(cego) são temas recorrentes. Também há diversas representações de
militares incapacitados, que se tornaram deficientes por mutilação no
campo de batalha, no entanto estes geralmente aparecem como men-
dicantes, aposentados ou inúteis.

Cegos músicos
As representações de músicos cegos na história da arte atraves-
sam tempos e espaços. Em nosso levantamento, encontramos 25 obras

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sobre tal temática. Na impossibilidade de reproduzi-las, um breve su-


mário poderá auxiliar o leitor a se situar em meio ao conjunto de re-
presentações.
São vários os instrumentos representados, com algumas menções
nos títulos sobre o canto como acompanhamento. Nos tempos mais dis-
tantes, na arte do Egito e da Mesopotâmia, a harpa é a preferência, en-
quanto a viola de roda (hurdy-gurdy), instrumento de corda que soa como
uma gaita de fole e funciona girando uma manivela, é comum nas obras
da Idade Média até o Barroco. Surgem no século XVII cegos tocando ins-
trumentos de corda (violão, violino e viola da gamba); o acordeão faz sua
primeira aparição nas mãos de uma cega música no Romantismo. Já no
século XX, vemos representações de blues e jazz, com músicos negros to-
cando pandeiro e violão na pintura de William Johnson e piano, sax,
trompete e bandolim em “Jazz Wall”, de Marisol.
A maioria das obras retrata cegos solitários, mas alguns trazem
uma criança como acompanhante, cuja função é guiar o deficiente ou
coletar moedas num chapéu ou tigela. Também há cães em cena, com
funções parecidas às das crianças, em desenhos como a iluminura me-
dieval e a gravura em metal de Rembrandt. Os conjuntos apresentam
diversas composições: grupos de músicos, dentre os quais um instru-
mentista é cego; duplas de cegos; grupos em que todos os integrantes
são cegos.
O público é retratado em poucos trabalhos. A obra mais conheci-
da, “O violonista cego” de Goya (Museo del Prado em Madri), traz uma
cena bucólica onde o músico cego é o centro das atenções, alegrando o
convívio social do grupo que se aproximou para ouvi-lo. Outros traba-
lhos europeus trazem o músico como “vendedor de canções”, tocando
para um público restrito em residências humildes. Nos séculos XVII, XVIII
e XIX, o violino, a viola e o violão são os instrumentos preferidos pelos
cegos ambulantes, tocados muitas vezes a céu aberto ou em espaços do-
mésticos. É interessante notar que as representações do final do século
XX mostram que os instrumentos mudaram, a mendicância ficou me-
nos escancarada, mas o músico cego ainda é representado nas bordas
da sociedade.
Analisando os trabalhos numa dimensão cronológica, pudemos
perceber alguns fatores de relevância para a nossa discussão, principalmen-
te sobre as representações do músico cego em condições sociais diversas.

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Harpistas cegos retratados na Arte Antiga

Na Arte Antiga egípcia, assíria e mesopotâmica, as representa-


ções encontradas de cegos tocando harpa aparecem predominantemen-
te na arte mural, como detalhes em baixo-relevo em pedra decorando
construções públicas. Como exceção, temos uma placa em terracota da
Mesopotâmia que sobreviveu apesar de sua fragilidade (hoje no British
Museum) e um harpista num mural pintado no interior do túmulo do
escriba e sacerdote Nakht, no Cemitério dos Nobres em Tebas, no Egi-
to. A identificação da cegueira é difícil na maior parte das imagens
antigas, devido ao tamanho das reproduções digitais, porque o detalhe
disponível on-line não permite ver outras pessoas na cena que serviri-
am de comparação. Sabemos que os harpistas são cegos pela descrição
fornecida nas fontes de busca (como o Art Resource/New York) e em
obras de referência descritivas das obras em questão.
O harpista cego do mural egípcio faz parte de uma cena festiva
onde moças dançam, enquanto um banquete é preparado. Os egípcios
acreditavam que a morte seria uma etapa alterada da vida, daí a necessi-
dade de prover tudo que fosse necessário para o conforto e bem-estar do
morto durante toda a eternidade. Representações em tamanho menor e
imagens bastavam para cumprir tal função; não era preciso sepultar ob-
jetos e pessoas reais dentro das tumbas, segundo Brock (2006). A pre-
sença de um harpista cego pintado na parede de calcário da tumba de
Nakht sugere que um músico cego trabalhava na corte deste nobre. Ao
incluir sua imagem no mural, pretendia-se que a sonoridade da harpa o
acompanhasse na nova etapa de sua viagem após a morte.
Já o harpista esculpido no baixo-relevo fixado nas paredes do Pa-
lácio de Nineva nos jardins de Senaqueribe provavelmente está mais
relacionado ao gênero apoteótico militar do que ao ritualístico religio-
so. Esse músico faz parte do friso decorativo que cobria boa parte das
paredes internas e externas do palácio. Senaqueribe mandou esculpir
dois tipos de inscrições para enfeitar o edifício: 1) desenhos decorati-
vos de procissões cuja intenção era enaltecer os seus feitos e 2) compo-
sições narrativas, sobre as várias campanhas militares do rei.
Diferentemente do harpista egípcio, que trabalha ajoelhado, em
posição estável, a figura assíria é ambulante. Produz música enquanto
marcha. É interessante notar que, em muitas obras encontradas na Era

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Músicos cegos ou cegos músicos...

Cristã, o cego músico aparecerá tocando de pé ou como ambulante,


portando seu instrumento consigo, o que facilita o encontro de novos
públicos de um lado, mas, de outro, exige um guia, pois ele não pode
usar uma bengala se caminha enquanto toca seu instrumento.

Figura 1
Anônimo: Um harpista nos jardins de Senaqueribe
Baixo relevo em pedra do palácio de Nínive, século VII a.C. Neoassírio

Fonte: British Museum, Londres, Reino Unido).


Foto: Erich Lessing/Art Resource, NY

Cegos instrumentistas e a viola de roda


Na Idade Média, aparece um novo instrumento que não se ouve
mais na atualidade: a viola de roda, ou hurdy-gurdy em inglês. Segundo
Green (1995), uma certa confusão decorre do fato de que o mesmo
termo hurdy-gurdy se refere a dois instrumentos: “primeiro existe o ór-
gão mecânico, que tem um mecanismo muito parecido com a pianola,

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e era tocado no começo do século por imigrantes que pediam esmolas


com seus macacos e canecas de latão nas esquinas das cidades america-
nas”. No Brasil, conhecemos este instrumento como o realejo; os fran-
ceses o chamam de orgue de barbarie.
Menos conhecido é um instrumento cujo som é produzido por uma
roda coberta de resina que esfrega várias cordas, assim como o arco de
um instrumento de cordas. A roda gira por meio de uma manivela. Al-
gumas cordas têm uma função melódica e outras fazem a base, dando ao
instrumento uma sonoridade parecida com uma gaita de fole. (Green,
op. cit., p. 1)
Na França, este instrumento é denominado de vielle; em portu-
guês o termo usado é viola de roda. O instrumentista aprendia a contro-
lar o vibrato da roda nas cordas para criar uma sonoridade expressiva que
lembrava o canto. Não é possível variar a pressão da roda sobre as cor-
das, como se faz passando o arco num instrumento de cordas como o
violino ou o violoncelo, de modo que a expressividade é conseguida alte-
rando a velocidade com que a manivela é virada (Green, 1995).
Figura 2
Jehan de Grise e ateliê, Bas-de-page – Músicos (e músico cego com seu cachorro e
tigela de esmolas toca uma viola de roda) – 1338-1344 dC
Bodleian MS 264 part I fol. 180v. Iluminura do “Romance de Alexandre” em
pergaminho

Fonte: Bodleian Library, Oxford, Reino Unido.

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Na iluminura de bas-de-page do manuscrito “Romance de Alexan-


dre”, do acervo do Bodleian Library, o cego tocador de viola de roda faz
parte de um grupo de músicos de rua. A cegueira é indicada pela ausên-
cia de olhos e pelo cachorro que leva sua tigela para juntar as esmolas.
Segundo Green (1995), nenhum instrumento musical passou por
uma perda de status tão marcante quanto a viola de roda. No século XI
na Alemanha, era usada em música sacra. No século seguinte, o instru-
mento migrou para a corte, onde fez sucesso entre os nobres. Mas daí
em diante, começou a perder prestígio. “Já no século XIV, era associada às
classes baixas e no século XV havia se associado aos mendigos cegos” (idem,
ibid., p. 1). Segundo o autor, como a cegueira era vista com repulsa, por
ser concebida como manifestação física resultante de uma cegueira mo-
ral, a viola de roda tornou-se um instrumento desprezado que serviria
apenas para os mendigos deficientes.

Figura 3
Francisco Herrera o Velho (c.1576-1656) – Cego tocador de viola de roda, 1640.
Óleo sobre tela, 71,5 x 92 cm

Fonte: Kunsthistorisches Museum, Viena, Áustria. Foto: Erich Lessing/Art


Resource, NY

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A obra de Herrera expressa claramente esta situação. O cego mú-


sico maltrapilho está acompanhado de um rapaz que segura sua bengala
e estende o chapéu para coletar as esmolas. Os semblantes de ambos es-
tão tristes e desesperançosos, coerentes com as tonalidades escuras, com
predomínio de marrom. O músico está tocando ou está em compasso
de espera? Nada no quadro sugere o clima de alegria que a música cos-
tuma despertar nas pessoas.

Sentidos expressos nos retratos de músicos cegos


Os temas miséria e mendicância são constantes nos retratos dos ce-
gos músicos da Era Cristã. Rembrandt van Rijn, Pablo Picasso, Georges
de La Tour e vários outros utilizam a coloração sombria, a composição
de figura em primeiro plano, com a postura de ombros caídos, a expres-
são triste do rosto, para falar da condição precária desta figura urbana,
cujo trabalho é ao mesmo tempo ganha-pão e manifestação de súplica.
A dualidade esperança desesperança também é expressa simbolica-
mente, principalmente a partir dos artistas do Romantismo. John
Everett Millais, pintor romântico inglês, desenvolveu diversos estudos so-
bre a menina cega nos quais a temática em questão ganha uma dimen-
são moralizante, de lição de vida.
No famoso quadro de Millais, a jovem cega está com sua sanfo-
na no colo; a cabeça erguida permite que seu rosto tranqüilo seja ilu-
minado pelo sol que saiu por detrás das nuvens, agora que a chuva pas-
sou. A pista é o arco-íris no alto do quadro sobre um céu ainda
escurecido pela chuva que agora se distancia. A criança que acompa-
nha a cega se volta para olhar para este sinal de esperança. Mas a cega
tem outros meios de saber que o sol saiu, que a vida pode ser boa, pois
ela sente o calor no próprio rosto.
Abordando a cegueira como uma situação possível de ser supe-
rada, Millais inclui elementos para apresentar a idéia da compensação
pela perda da visão: a luz e o calor do sol que tocam o rosto da jovem,
o signo da capacidade musical indicado pela presença da sanfona. Cer-
tamente o artista não fala só da condição de deficiência. Como pintor
do Romantismo, sua mensagem tem um teor mais abrangente, e pre-
tende atingir a sociedade de maneira geral. Millais utiliza a cegueira
como metáfora para falar de quaisquer infortúnios e da possibilidade
de superação, da chegada de tempos melhores.

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Figura 4
John Everett Millais (1829–1896) – Menina cega, 1856
Óleo sobre tela, 82,5 x 62,2 cm

Fonte: Birmingham Museums & Art Gallery,


Birmingham, Reino Unido

Refletindo sobre esta mesma temática a partir da figura do mú-


sico que não pode ver, George Watts trabalha explicitamente com o re-
vés deste tema. Numa pintura sombria denominada de “Esperança”,
Watts coloca uma figura feminina de olhos vendados, com uma túnica
que revela sua condição social desfavorecida, sobre um globo. Sua har-
pa não pode soar, porque as cordas romperam. É interessante que num
mesmo signo, música e cegueira se associam para abordar esperança ou
desesperança. Ambos os quadros foram favoritos da sociedade inglesa
quando foram expostos no século XIX.
Desenvolver-se como músico afirma a validade do conceito de
compensação da perda visual. Esta é a idéia que alinhava todas as obras

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encontradas que abordam a temática do músico cego: quem não enxer-


ga, verá com outros olhos, os olhos de dentro. Para quem perdeu a visão,
a audição será seu caminho de luz.
Ninguém acentua essa representação da cegueira com maior elo-
qüência que Ben Shahn. A sonoridade da música produzida pelos defici-
entes representados não pode ser traduzida pelos elementos de linguagem
visual e composição disponíveis para os artistas plásticos, então outros re-
cursos são criados para falar das outras dimensões sensíveis do homem.

Figura 5
Shahn, Ben (1898-1969) – O cantor cego, 1945
Têmpera, 64,7 x 97,1 cm, Coleção Particular

Foto: Scala/Art Resource, NY; Licenciado por AUTVIS, Brasil, 2008. © VAGA, NY

Ben Shahn, pintor e litogravurista de família imigrante lituana que


pintou nos Estados Unidos em meados do século XX, transmite a idéia
da compensação ao exagerar a dimensão das mãos do cantor cego. Os
dedos sobre o teclado e os conjuntos de botões de seu acordeão revelam
a sua familiaridade com o instrumento e o seu domínio técnico. Con-
trasta com a expressão de competência o fundo da pintura, onde árvores
mortas e secas no horizonte a distância recolocam a idéia de penúria. Os
múltiplos sentidos da figura da sequidão permitem ao intérprete pensar

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Músicos cegos ou cegos músicos...

nos olhos que secaram ou na sociedade que relega às margens aqueles


que perderam alguma função, mesmo quando demonstram que são ca-
pazes. Conhecendo Ben Shahn, militante, comunista “de carteirinha”,
que utilizou sua arte para realizar críticas sociais ao capitalismo, defensor
da classe trabalhadora, dos pobres, negros e excluídos, desiludido com o
sonho americano, nossa aposta é que ele utiliza a terra desgastada do fun-
do para enfatizar a idéia do cego músico cantando nas bordas da socie-
dade. Como explica Dijkstra (2003, p. 117):

A obra dos expressionistas americanos é impulsionada pela compaixão e


empatia, pelo respeito pela dignidade dos derrotados, por uma compre-
ensão de que as experiências pessoais, mesmo daqueles entre nós que são
menos favorecidos, ajudam a definir as verdadeiras qualidades da socie-
dade na qual vivemos.

Figura 6
William H. Johnson (1901-1970) – Músicos cegos (ou “Músicos de Rua”),
circa 1940-45.

Foto: Smithsonian American Art Museum, Washington, DC/


Art Resource, NY. © Copyright

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Lucia Reily

Figura 7
Marisol (Marisol Escobar) – Parede de Jazz, c. 1962
Papel, tinta e objetos encontrados em madeira, 241.3 x 271.8 x 35.6 cm
Coleção Museum of Contemporary Art, Chicago, doação parcial de Ruth Horwich

Foto: Museum of Contemporary Art, Chicago; Licenciado por AUTVIS, Brasil,


2008 © VAGA, NY

As duas últimas obras comentadas também apresentam o músico


cego na marginalidade, mas os elementos tristeza e dependência se dissi-
pam em ambos os trabalhos – uma pintura e uma escultura. Coinciden-
temente, o gênero representado nessas obras é da família do blues e do
jazz. Músicos – cegos – negros – pobres. Por todas essas condições, esses
músicos são vulneráveis ainda, mas de certa forma tiveram êxito na tra-
vessia para espaços de status mais elevado, ao menos durante a perfor-
mance, conforme Brown (2007). Não se trata de uma conquista indivi-
dual; estes músicos fazem parte de uma minoria de resistência negra do
sul dos Estados Unidos que conseguiu o reconhecimento do valor do seu
“capital cultural” na sociedade de brancos que os perseguiu e injustiçou.

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Músicos cegos ou cegos músicos...

Pela mobilização política e social e pela qualidade musical, a vocalização


provocativa e a característica fugidia das improvisações que escapavam a
qualquer dominação por partitura – assim sobreviveram os músicos, as-
sim mudaram a história da música popular americana, com repercussões
internacionais. A este contexto se somaram os cegos músicos, que ali pu-
deram mudar de papel. Os músicos de Marisol tocam num bar e têm
até um piano!
Para finalizar, um alerta. Se este artigo termina em “tom maior”,
mostrando que as condições de trabalho dos músicos cegos representa-
das por artistas visuais da Era Cristã evoluíram, não nos deixemos enga-
nar. As concepções de dependência, incapacidade e supercompensação
pela perda da visão ainda permeiam as representações sociais da defici-
ência visual. As precárias condições de vida continuam prejudicando as
possibilidades de acesso de crianças cegas à educação em geral e à educa-
ção musical em específico, perpetuando a mendicância de um lado e o
assistencialismo do outro – lugares sociais que coloriram a visão da soci-
edade e dos artistas plásticos sobre a figura do cego músico durante toda
a Era Cristã.
Recebido em março de 2008 e aprovado em julho de 2008.

Referências

A PESSOA é para o que nasce. Direção Roberto Berliner. São Paulo:


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1

O PROCESSO DE INCLUSÃO ESCOLAR DE CRIANÇAS COM CEGUEIRA


CONGÊNITA E SUA INTERFACE COM A RELAÇÃO FRATERNA: ESTUDO
DE DOIS CASOS
BAZON, Fernanda Vilhena Mafra∗ – UEL e USP
MASINI, Elcie Aparecida F. Salzano – USP
GT-20: Psicologia da Educação

Introdução

A inclusão escolar é um tema de grande importância para a educação nacional ao


ter sido adotada a inserção do indivíduo com deficiência nas escolas regulares. Estudos
sistematizados sobre este tema poderão auxiliar educadores, coordenadores e familiares
a ampliarem seus conhecimentos sobre o que pode favorecer o processo de participação
escolar e social da criança com deficiência.
Este trabalho focaliza a inclusão escolar de duas crianças com cegueira
congênita e o papel desempenhado por sua irmã gêmea neste processo, este tema
contempla diversas questões visto que a vida escolar é de grande importância para o
desenvolvimento de um indivíduo e propicia a oportunidade para refletir sobre itens
diversos. Que situações favorecem a inclusão escolar de crianças com cegueira? Como a
companhia do irmão sem deficiência influencia a inclusão? A inclusão, influencia a
relação fraterna? Como esses irmãos se sentem ao freqüentar a mesma escola? Como
esses irmãos se sentem ao freqüentar a mesma classe?
A inclusão escolar representa valores simbólicos importantes que dizem respeito
à igualdade de direitos e oportunidades educacionais para todos os indivíduos, mas
ainda encontra sérias resistências que se referem principalmente ao acesso de todos os
alunos à escola comum. (Cf. BRASIL, 2001).
Segundo Mazzotta (2002) é de grande importância para todos os indivíduos
profissionais ou não, estar atento à questão da inclusão, não apenas escolar, mas
também no âmbito mais amplo que compreende a sociedade. Referindo-se à integração,
movimento que teve início na década de 70 e visava criar classes especiais em escolas
regulares para atender a crianças com deficiência em período integral ou parcial de
forma concomitante à sala comum (Cf. ANGELOTTI, 2004), Mazzotta (2002, 2003)
afirma que este movimento já vem sendo entendido como algo ultrapassado, falando-se


Instituição de Vinculação dos Autores:
Fernanda Vilhena Mafra Bazon (Universidade Estadual de Londrina / Universidade de São Paulo).
Elcie F. Salzano Masini (Universidade de São Paulo).
E-mail de contato: febazon@live.com
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hoje em inclusão. Chama a atenção ainda para a imprecisão conceitual que envolve a
utilização do termo integração e inclusão, que ora são empregados com o mesmo
significado, ora dispostos em contraste ou ainda propondo a superação da integração
pela inclusão. Uma das várias conseqüências desta indefinição é a contribuição para a
cisão dos profissionais que defendem a integração e dos que defendem a inclusão, como
se o sentido da educação em si não fosse a busca de integração ou inclusão social. Para
este autor a inclusão “é a base da vida social onde duas ou mais pessoas se propõem a,
ou têm que, conviver; já que muitas vezes o convívio não depende da vontade
individual. E conviver implica a presença de duas ou mais pessoas” (MAZZOTTA,
2002 p. 10).
Na Conferência Mundial que ocorreu em Jomiten (Tailândia) em 1990,
representantes de diversos países assinaram a Declaração Mundial sobre a Educação
para Todos e Plano de Ação para Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem,
comprometendo-se a buscar a inclusão de todas as crianças na escola, a partir do
respeito à diversidade e da garantia do ensino básico universal e de qualidade. Mazzotta
(2002) afirma que nesta declaração além da educação ser reconhecida como direito
fundamental de todos, foi explicitado o sentido dado às necessidades básicas de
aprendizagem, que compreendem os instrumentos essenciais para a aprendizagem e os
conteúdos indispensáveis para a sobrevivência do indivíduo e seu desenvolvimento
visando à participação ativa na vida social.
Porém a assinatura deste documento garante a inclusão escolar? Todas as
crianças encontram-se realmente na escola? Se sim, como está ocorrendo o processo
educacional? Se não, quem são elas e porque evadiram ou foram excluídas do ambiente
escolar?
Diversos organismos internacionais preocuparam-se em discutir o direito à
educação para todos, em especial nesta conferência na Tailândia em 1990 e na
Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais em 1994 na Espanha, na
qual foi elaborada a “Declaração de Salamanca”. Nesta última reunião, foi reafirmado o
direito de pessoas com deficiência à educação (Cf. MARTINS, 2003).
A escola para todos pressupõe que a educação especial ocorra de forma
integrada à educação regular. Sendo assim, a escola torna-se aberta à diferença e busca
atender às necessidades de todos os alunos ao invés de excluir os que requerem práticas
e atenção diferenciadas (Cf. JIMÉNEZ, 1997).
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3

O modelo de escola para todos pressupõe uma mudança de


estruturas e de atitudes e a abertura à comunidade; deve mudar o
estilo de trabalho de alguns professores que deverão reconhecer
que cada criança é diferente das outras, tem as suas próprias
necessidades específicas e progride de acordo com suas
possibilidades (JIMÉNEZ, 1997, p. 21).

Quanto ao conceito de deficiência visual, a partir da resolução adotada pelo


Conselho Internacional de Oftalmologia em Sidnei, Austrália, em 20 de abril de 2002, e
considerando a falta de clareza sobre a correta utilização do termo cegueira que originou
confusões acerca de sua prevalência e incidência, ficou definida a seguinte definição:
Cegueira – somente em caso de perda total de visão e para condições nas quais os
indivíduos precisam contar predominantemente com habilidades de substituição da
visão (Cf. CONSELHO BRASILEIRO DE OFTALMOLOGIA, 2002).

A cegueira congênita por sua vez, pode ser entendida como aquela que se
manifesta no nascimento ou logo após a ele, estando geralmente relacionada com
pigmentação difusa atípica, diminuição dos vasos da retina e atrofia do nervo óptico
(Cf. REY, 1999; TABER, 2000).

Ouvir pessoas com deficiência visual pode ajudar e nortear a compreensão das
mesmas, não mais a partir da falta ou prejuízo da visão, mas, sim, do uso dos sentidos
que propiciam seu contato e apreensão do mundo. Sob essa perspectiva, nessa
investigação os dados foram analisados a partir do que as criança cegas realizaram em
diferentes situações sem comparação entre crianças com deficiência visual e videntes,
respeitando assim a singularidade das primeiras.

Pode-se assinalar que a não comparação entre crianças com deficiência visual e
videntes é um ponto relevante desta pesquisa. É significativa esta observação porque, a
escola muitas vezes torna-se um ambiente que propicia a comparação entre crianças e
sob a ótica da inclusão escolar está o respeito à diferença. A comparação entre as
habilidades adquiridas por uma criança com deficiência visual e uma vidente ao fazer
uso do referencial da vidente, acarretará uma interpretação pautada no déficit, no que
falta à criança com deficiência visual. Esta comparação pode ser ainda maior quando
um irmão sem deficiência estuda na mesma escola, atribuindo qualquer falha,
dificuldade ou atraso à deficiência visual. O estudo do que a criança cega realiza em
diferentes situações e momentos estará considerando suas possibilidades e maneiras
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4

próprias de aprender. Esta pesquisa, ao focar-se no respeito à diferença, pode trazer


contribuições para a atuação dos profissionais de educação e saúde que trabalham com
pessoas com deficiência visual.

Quanto à relação entre irmãos, pode-se destacar que em nossa sociedade, a


família ocupa um lugar de extrema importância no desenvolvimento e na vida dos
indivíduos. As relações entre irmãos são parte significante do sistema familiar e
interdependente das outras relações presentes nesse sistema.

Vash (1988), ao falar da família com um membro com deficiência, assinala que
a descoberta da deficiência quebra o equilíbrio homeostático da unidade familiar,
havendo a necessidade de uma reestruturação dos papéis atribuídos aos membros da
família. Isso requer que as expectativas, os sonhos e as prioridades do grupo familiar
sejam, então, revistos. Todos vivenciam a perda, que provoca um choque e ainda o
medo das conseqüências futuras que a deficiência pode trazer.

A influência que uma criança com deficiência exerce sobre seus irmãos foi
menos estudada do que com relação aos seus pais. Freqüentemente, as necessidades dos
irmãos de uma criança com deficiência são negligenciadas por pais e professores.
Irmãos mais novos sem deficiência, muitas vezes, relutam em ir conversar com seus
pais sobre seus problemas e sentimentos. Seus problemas são, geralmente, deixados de
lado devido àqueles apresentados por seus irmãos com deficiência. Irmãs de crianças
com deficiência aparentemente são mais vulneráveis a dificuldades emocionais do que
irmãos. Os pais, com freqüência não estão aptos para ajudar os irmãos normais a
prepararem-se para o futuro em relação ao seu irmão com deficiência. Na maior parte
das famílias, as necessidades da criança com deficiência são colocadas em primeiro
plano (Cf. VADASY et al., 1984).

Dunn (1985) corrobora com esta afirmação, asseverando que quando um dos
irmãos possui uma deficiência, o irmão saudável tende a assumir responsabilidades que
não teria, caso a deficiência não estivesse presente. Especialmente quando se tratam de
irmãs mais velhas, elas têm a responsabilidade de tomar conta de seu irmão com
deficiência, e essa responsabilidade, pode provocar graves conseqüências para as
crianças normais. Estas crianças são, particularmente, vulneráveis a problemas
emocionais. Para que se compreenda quais as conseqüências para os irmãos sem
deficiência é necessário o entendimento de como a família, como um todo, lida com o
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stress de ter um membro com deficiência. De qualquer forma, ter um irmão com
deficiência, certamente, causa algumas dificuldades, e as crianças precisam de alguma
forma carregar o estigma de ter um irmão “diferente” que pode comportar-se de forma
estranha aos padrões habituais. Esta autora frisa, ainda, que pouco se sabe do
relacionamento entre irmãos quando um deles apresenta cegueira ou surdez.

Villela (1999), em uma pesquisa sobre irmãos de crianças com deficiência


visual, refere-se ao grande sofrimento psíquico causado pela repressão da hostilidade e
pelo afastamento das reais necessidades de afeto da própria criança. Conclui, então, que
essas crianças fazem parte de uma população de risco no que se refere ao sofrimento
emocional. Esses dados diferem dos encontrados por Powell e Ogle (1992) referentes
aos mecanismos psíquicos utilizados por essas crianças com a finalidade de preservar a
relação amorosa com o irmão com deficiência, o que estes autores interpretam como
evidência de níveis elevados de altruísmo, empatia e responsabilidade nos irmãos de
crianças com deficiência.

A partir desta breve exposição teórica, percebe-se que tanto a relação entre
irmão quanto sua interface com a inclusão escolar que já vem ocorrendo nas escolas
brasileiras necessitando de subsídios para auxiliá-las, nota-se a carência de maiores
estudos, apontando assim a relevância deste trabalho.

Foi realizado um levantamento bibliográfico nas Bibliotecas do Centro Latino


Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME) e no banco de
dados eletrônico (Dedalus) da Universidade de São Paulo (USP) referente ao
relacionamento de irmãos e foi encontrada uma dissertação de mestrado sobre a relação
entre irmãos de crianças com deficiência visual, um artigo científico sobre o mesmo
tema, um livro e dezenove artigos científicos sobre a relação entre irmãos sem
deficiência. Destes trabalhos apenas dois eram de pesquisas realizadas no Brasil. Bank e
Kahn (1982), McKeever (1993) e Villela (1999) apontam para a mesma questão ao
enfocarem a pouca quantidade de trabalhos acerca da relação fraterna. Cabe assinalar
que não foi encontrado nenhum trabalho que tenha como objetivo a compreensão da
inclusão escolar de crianças com cegueira e como um irmão sem deficiência que estude
na mesma escola pode ou não colaborar para a mesma. A pouca literatura encontrada a
respeito dificulta e ao mesmo tempo estimula o questionamento sobre a importância da
relação fraterna na vida dos indivíduos com deficiência visual e para a inclusão dos
mesmos em ambiente escolar.
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Além disto, como apontado anteriormente, a influência que a criança com


deficiência exerce sobre seu irmão foi menos estudada do que com relação aos seus
pais. Uma criança doente ou com alguma deficiência necessita de atenção e cuidado
especial, e, diversas vezes, seus irmãos saudáveis são chamados a ajudar ou mostrar
consideração especial devido à condição de seu irmão com deficiência (Cf. COLONNA
& NEWMAN, 1983).
A originalidade e relevância desta pesquisa está no pioneirismo de seu tema:
focalizar e buscar compreender a inclusão de duas crianças com cegueira frente a sua
relação com a irmã gêmea sem deficiência com quem estuda na mesma escola e na
mesma classe.

Objetivos:
Buscar compreender a concepção, sobre a inclusão escolar, de duas crianças
com cegueira congênita e de suas mães, ressaltando o papel que a irmã sem deficiência
desempenha no processo de inclusão. E ainda, compreender como as irmãs se
comportam na escola, se compartilham situações de aprendizado e lazer ou não.

Método:
Esta pesquisa foi pautada modalidade da pesquisa qualitativa voltada para a
descrição de um fenômeno buscando desvelar seu sentido. Bogdan e Biklen (1982)
afirmam que a pesquisa qualitativa encontra no ambiente natural uma fonte direta de
informações, sendo o pesquisador seu principal instrumento. Pressupõe, assim, o
contato prolongado e direto do pesquisador com o ambiente e a situação investigada.
Participantes:
Foram participantes da pesquisa:
• Duas crianças com cegueira congênita que possuíam irmãs gêmeas sem
deficiência;
• As mães das crianças com cegueira congênita.
Instrumentos:
• Roteiro de entrevistas que contemplavam temas relacionados com o foco da
pesquisa;
• Gravador para registro das entrevistas;
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• Termo de consentimento livre esclarecido, carta de informação à instituição e ao


sujeito de pesquisa.
Procedimentos:
Inicialmente foi realizada uma entrevista com as mães das crianças para
exposição dos objetivos da pesquisa e assinatura do termo de consentimento livre e
esclarecido. Nesta oportunidade também ocorreu a entrevista semi-estuturada com o
objetivo de conhecer a percepção das mães acerca da inclusão de sua filha com cegueira
e qual o papel da irmã sem deficiência neste processo, bem como da dinâmica de
relacionamento estabelecida entre as irmãs.
Posteriormente procedeu-se uma entrevista com as crianças com cegueira para a
coleta de dados sobre sua inclusão escolar e seu relacionamento com a irmã gêmea.
Em seguida a cada entrevista foi feita a transcrição da fala tanto da mãe quanto
da criança.

Resultados:
Neste tópico serão enunciados os resultados do estudo de caso, tanto referentes à
entrevista com a mãe quanto com a criança com cegueira. Cabe destacar que todos os
nomes utilizados são fictícios para assegurar o sigilo dos participantes desta pesquisa.
1. Caracterização dos participantes: identificação pessoal

Quadro 1: Identificação pessoal

Nome Meio de Sexo Mãe Pai Irmãos


Idade escolarização
Karina Escola regular. F Maria João Kelly (16
(9 anos) Atendimento (52 anos); (43 anos) anos);
especializado. do lar. coordenador de Karen (9anos)
tráfego da – irmã gêmea.
Dersa.
Luiza Escola regular. F Carmem Antônio (37 Alex (20
(10 anos) Atendimento (36 anos); anos); anos);
especializado. doméstica. motorista de Lúcia (10
ônibus, anos).

2. Entrevista com a mãe:


A seguir serão apresentados os dados referentes à entrevista realizada com Maria,
mãe de Karina e com Carmem, mãe de Luiza. Os dados forma esquematizados em três
tabelas por entrevistada, a primeira com as informações acerca da composição da
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família, a segunda com informações prévias relevantes e a terceira que expõe a


percepção das mães acerca da vida escolar e das atividades de lazer da criança com
cegueira congênita.

1)MARIA
CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA
Filhos Pais
Karina (9 anos), cegueira total, sensível à luz. Maria (52 anos), separada do primeiro
Causa: retinopatia da prematuridade. marido e casada com João; era assistente
Karen (9 anos), irmã gêmea de Karina. social, mas não trabalhava no momento da
Kelly (16 anos), irmã mais velha de Karina e pesquisa devido ao cuidado de Karina.
Karen, filha do primeiro casamento de Maria. João (43 anos), coordenador de tráfego da
Dersa.

INFORMAÇÕES PRÉVIAS
• Maria engravidou das gêmeas com 42 anos apresentando pressão alta durante a gravidez
o que acarretou no parto prematuro (6 meses de gestação).
• Ambas ficaram na UTI, e Maria acreditava que a cegueira de Karina se devia a isto
• Contou que Karina teve outras complicações além da deficiência visual como, por exemplo,
uma parada cardíaca.
• A retinopatia foi descoberta na alta de Karina do hospital, e já ficou marcada a cirurgia
devido ao descolamento da retina.

PERCEPÇÃO DA MÃE ACERCA DA VIDA ESCOLAR E DAS ATIVIDADES DE LAZER


ESCOLA LAZER
Karina utilizava-se do Braille para ler e Às vezes quando a Karen e a Karina
escrever e do Soroban para a matemática. brincavam de professora e a Karen era a
Freqüentava uma escola regular (estava na professora ela espezinhava a Karina (falava:
mesma sala de Karen. Maria disse que quando “ai sua tonta, você é burra”).
precisava, a Karen ditava a lição para Karina ou A Karina e a Kelly gostavam de ouvir som e
alguma outra amiga da classe fazia isto). a Karen gostava mais de desenhar e assistir
Na escola, em 2004, Maria disse que televisão (alguns programas a Karen e a
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separaram alguns gêmeos de classe (Karina Karina gostavam de assistir juntas, como o
disse que iria falar com a professora, pois não Chaves, e outros programas, como Malhação,
queria ser separada de Karen ao que Maria a Kelly também assistia com as duas).
respondeu que era importante pensar em sua Karen e Karina brincavam muito de
independência). professor ou de encenação (por exemplo de
Karen e Karina faziam a lição juntas personagens do Chaves).
(Karina ajudava Karen quando tinha lição de A Karina e a Karen tinham tipos de
matemática, especialmente na tabuada). brincadeira diferentes (a Karen gostava mais
A Kelly estudou na mesma escola da Karina de brincar com boneca e a Karina de
até o colegial. brinquedos que emitiam som).

2) CARMEM
CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA
Filhos Pais
Luiza (10 anos), cegueira total, sem percepção Carmem (36 anos), viúva do primeiro
de luz. Causa: retinopatia da prematuridade. casamento e separada do segundo marido, pai
Lucia (10 anos), irmã gêmea de Luiza. das gêmeas. Trabalhava como empregada
Alex (20 anos), filho do primeiro casamento de doméstica.
Carmem. Não morava com a mãe e as irmãs. Antônio, não mantinha relação próxima com
as filhas, era motorista de ônibus.
Freqüentemente estava embriagado ao visitar
as filhas e então era impedido por Carmem de
vê-las.

INFORMAÇÕES PRÉVIAS
• Os pais estavam separados há aproximadamente 10 anos na época da pesquisa.
• Carmem falou que quando descobriu que Luiza era cega já estavam separados e o pai não a
ajudou.
• As gêmeas nasceram de 7 meses e precisaram ficar na UTI, segundo a mãe, tomaram
muitos antibióticos fortes, pois nasceram com icterícia.
• Carmem afirmou que o médico disse que a cegueira de Luiza foi devido ao excesso de
exposição ao oxigênio.
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• Disse ainda que foi erro médico, pois um dos profissionais que a atendeu disse isso a ela, só
que se negou a testemunhar a seu favor em caso de processo, porque não prejudicaria um
colega. Carmem comentou que foi até o juiz e a um advogado, mas que ambos disseram que
ela precisava de provas para entrar com um processo.
• Percebeu o problema visual de Luiza em casa por volta dos 4 meses de idade, quando
levou-a ao médico, este sugeriu que poderiam ser colocados dois olhos de vidro no lugar dos
olhos de Luiza afirmando que não havia possibilidade de recuperação. Carmem não aceitou a
sugestão.
• Contou que não se conformava por ter uma filha com cegueira, falou que a situação era
muito difícil, mas que tinha que aceitar, pois a situação não iria mudar de qualquer forma.
• Disse que chorou muito quando descobriu o problema de Luiza.

PERCEPÇÃO DA MÃE ACERCA DA VIDA ESCOLAR E DAS ATIVIDADES DE LAZER


Escola Lazer
Luiza não estudava na mesma escola de Irmãs não brincavam muito juntas (Luiza
Lúcia, pois lá não tinha professora brincava mais sozinha, pegava uma boneca e
especializada, nem sala de recursos então falava sozinha. Lúcia por sua vez andava mais
não foi aceita. de bicicleta e brincava de bola, mas não com a
Luiza estava bem na máquina Braille, mas Luiza).
tinha dificuldade com a reglete (tinha Luiza preferia brincar com um primo do
problemas com a mão, as mãos dela enchiam de que com Lúcia (pois, quando elas começavam
bolhas que depois ressecavam, formando a brincar logo brigavam).
feridas). A única atividade de lazer que faziam
A professora disse que talvez Luiza precise juntas, segundo Carmem era assistir
repetir de ano. televisão.
(Carmem pareceu concordar com a posição da Só brincavam juntas quando Carmem
professora, disse: “não pode é a menina ir para levava uma amiguinha delas para passar o
a quinta série sem saber de nada”) fim de semana (brincavam as três juntas e
Lúcia fazia a lição de escola antes que mais uma menina que era vizinha deles).
Carmem chegasse do trabalho, mas Luiza a
esperava (mesmo se Carmem avisasse que ia
demorar Luiza a esperava. As irmãs nunca
faziam a lição juntas).
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3. Entrevista com Karina:


Os dados coletados na entrevista com Karina E Luiza foram divididos em três
categorias: identificação da criança, atividades que gostava de fazer com a irmã,
atividades que não gostava de fazer com a irmã e as atividades que não compartilhavam.
1) KARINA:
DADOS DA CRIANÇA
Gostava de:
1) Brincar de carrinho.
2) Ouvir música.
3) Jogar snooker (jogava sozinha).
4) Andar de bengala (tinha duas bengalas uma para sair e outra para todo dia).
5) Ouvir história.
6) Assistir novela (Assistia à novela “América” na época da pesquisa, e comentou que tinha
duas pessoas com deficiência visual na novela e que a mãe da menina não deixava que ela
saísse na rua, deixando-a presa quando saía para trabalhar. Contou que seu tio disse que ia
entrar uma menina com deficiência visual de verdade e que ela ia dançar ballet.).
7) Fazer imitações de pessoas como artistas da TV.
8) Zoar (“não sou uma pessoa séria, gosto muito de zoar!”, referindo-se às brincadeiras que
fazia com a Kelly e o ex-namorado dela).
Não gostava de: brincar de boneca; jogar baralho ou dominó; assistir a novela Como uma Onda.
Pegou pelo colarinho uma menina que riu dela na escola, na aula de educação física e disse a ela:
“quem ri por último ri melhor, sabia? Você faz isso de novo que vai se ver comigo, eu sou
deficiente visual, mas não sou tonta não!”.
Tinha responsabilidades em casa como lavar, enxugar e guardar sua caneca depois de usá-la.

ATIVIDADES QUE GOSTAVA DE ATIVIDADES QUE NÃO GOSTAVA DE


FAZER COM O(A) IRMÃO(Ã) FAZER COM O(A) IRMÃO(Ã)
1) Brincava com a Karen que eram 1) Era brava com as irmãs quando elas
adolescentes (na brincadeira namorava começavam a irritá-la (como, por exemplo,
o vizinho e a Karen namorava o irmão quando colocavam açúcar na carne que estava
do vizinho, os namorados tinham ainda comendo, contou que quando isso acontecia
um irmão mais novo que: “é um pouco ela saía e batia a porta de raiva).
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pirralho, mas é bonzinho, né?”). 2) Não gostava de brincar com a Karen de


2) Assistir TV com a Karen (como Will criança (sem ser de adolescente, mas disse
Smith, Chaves e Caillou). que a Karen também não gostava e que
3) Cantar e zoar com a Kelly e o ex- brincavam mais de ser adolescente).
namorado dela. Disse que, às vezes, 3) Não gostava quando a Kelly falava para que
zoava a Karen e a chamava de ganso ou ela fosse cuidar de sua vida (isso acontecia
caniço e ela não reagia: “ninguém faz quando Karina falava algo que a Kelly não
nada para mim não, não faz”. gostava).
4) Assistir a novela Laços de Família 4) Preferia ter só a Kelly de irmã (disse que a
com as duas irmãs. Karen era muito chata e que as pessoas
5) Comentou que seus amigos eram os confundiam as duas; disse que até a mãe, às
mesmos da Karen e que todos ficavam vezes, as confundiam e que isso era chato.
juntos na escola e disse que tinha Falou que não eram tão parecidas, mas que
amigos com deficiência visual e que eles tinha gente que achava).
eram amigos da Karen também.
6) Na segunda feira quando ela ia para a
instituição de atendimento
especializado, a Karen assistia ao
Chaves para contar para ela depois.

ATIVIDADES QUE NÃO COMPARTILHAVA COM A IRMÃ (AO)


1) Não brincava com a Kelly porque ela não gostava muito e também não gostava de suas
amigas, tirando seu ex-namorado.
2) Algumas vezes ela queria assistir malhação e a Karen não; então, cada uma ia para um
quarto.

3) LUIZA
DADOS DA CRIANÇA
Gostava de:
Gostava:
1) dos irmãos, (só não gostava quando eles brigavam com ela, comentou que Alex brigava
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menos do que Lúcia).


2) de assistir teletubes na televisão.

ATIVIDADES QUE GOSTAVA DE ATIVIDADES QUE NÃO GOSTAVA DE


FAZER COM O(A) IRMÃO(Ã) FAZER COM O(A) IRMÃO(Ã)
1) Brincar com a Lúcia (mas disse que 1) Brigar (Lúcia brigava quando Luiza estava
durante a brincadeira, a irmã brigava cansada e queria parar de brincar. Quando
com ela). brigava com Luiza, Lúcia gritava, batia e
2) Gostava de brincar de mercadinho e jogava suas coisas no chão. Luíza juntava tudo
banco (porque assim elas não brigavam e pedia que Lúcia não fizesse mais isso, mas,
e que só brigavam quando a Lúcia às vezes, descontava e também batia nela).
queria mexer no boneco de Luiza). 2) Quando comiam salgadinhos juntas, pois a
3) Assistir TV juntas Lúcia não dividia salgadinho ou
4) De ter irmão (“porque, às vezes, refrigerante (contou que pedia e Lúcia dizia
quando ela quer brincar nós brinca, não e aí quando estava no finalzinho Lúcia
quando ela quer sair a gente sai”. Iam à resolvia dividir com ela e aí ela não queria
casa da avó juntas, pois esta morava mais porque só tinha um restinho)
perto). 3) Quando Luíza tinha alguma coisa ela
5) De brincar de bola com o irmão emprestava já Lúcia, quando tinha um boneco
(quando ele morava junto com ela. ou uma bolsa não emprestava para ela.
Comentou que ele dava as coisas para 4) Não gostava quando o irmão carregava a
ela e não brigavam tanto). Lúcia na bicicleta e não a carregava (até que
6) De andar na rua com o irmão (às um dia a mãe mandou que ele carregasse
vezes a Lúcia ia junto, mas nem sempre, também a Luíza e ele carregou).
pois ele não agüentava carregar as duas
na bicicleta).

ATIVIDADES QUE NÃO COMPARTILHAVA COM A IRMÃ (AO)


1) Disse que não brigavam tanto porque a Lúcia quase nunca queria brincar.
2) Luiza brincava sozinha.
Achava que a relação com a irmã era pouco importante para ela, pois Lúcia brigava muito e
falou, então, que tinha hora que cansava das brigas.
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Reflexões sobre os resultados:

Com relação ao caso de Karina, ficou claro o papel que as irmãs representavam
quando: Karina, embora tenha falado que preferia ter apenas a Kelly como irmã, relatou
as brincadeiras que fazia com a Karen (irmã gêmea) de forma prazerosa. A esse respeito
percebe-se que, independente da presença de ciúme e rivalidade, a criança encarava sua
relação com os irmãos como uma fonte de prazer em algum grau.

Quanto à Luiza, quando questionada sobre como é ter um irmão, verbalizou:


“Ah, é bom, porque as vezes quando ela quer brincar nós brinca, quando ela quer sair
a gente sai. Nós vai na casa da minha vó que mora perto, eu gosto de ir lá. E também
vou na rua com a Lúcia aí nós brinca de castelinho de areia”. Expressou, então,
sentimentos positivos acerca de possuir uma irmã apesar de ter relatado uma relação
conflituosa com a mesma. Estes dados reiteram Furman e Burhmester (1985), que
apontam a extrema importância da relação entre irmãos para o desenvolvimento social
da criança, sendo uma fonte freqüente de companheirismo, ajuda e suporte emocional.
Afirmam ainda que, muitas vezes, irmãos mais velhos cuidam de seus irmãos mais
novos e também podem ser modelos de identificação como fica claro, por exemplo, no
caso da relação entre Karina e Kelly.

A relação de irmãos, por ser a primeira relação intensa entre pares, é um


importante agente de socialização, sendo que esse relacionamento auxilia o
desenvolvimento social. Através da convivência com os irmãos as crianças
desenvolvem suas habilidades sociais que serão, posteriormente, utilizadas em outras
relações (Cf. POWELL e OGLE, 1992). Também aqui, esta afirmação pode ser
corroborada pelas entrevistas de Maria e Karina que contaram que esta brincava muito
com as irmãs e que, apesar de não ter os mesmos amigos que Karen, por fazerem parte
do mesmo grupo social, compartilhavam muito tempo. Deve-se ressaltar, ainda, que
através de uma das brincadeiras relatada por Karina, na qual ela e a irmã gêmea
encenam situações da vida adolescente, estão adquirindo habilidades sociais e de
adequação ao mundo. Luiza também, ao contar que brincava com sua irmã encenando
situações de compra (mercearia) ou de banco pode, através da imitação da vida adulta
estar recorrendo a habilidades sociais e adquirindo-as.

Uma outra questão a ser notada nos dados levantados pela pesquisa é a
delegação de responsabilidade aos irmãos. Maria relatou que Karen costumava fazer
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tudo o que Karina pedisse e nas situações escolares Karen muitas vezes
responsabilizava-se pelo cuidado e assistência à Karina, como por exemplo,
acompanhá-la ao banheiro ou ajudá-la no horário do recreio. Carmem, por sua vez,
falou que Lúcia fazia tudo por Luiza quando ela não estava, como servir o almoço para
a irmã.

Dunn (1985) afirma que quando um irmão possui uma deficiência os irmãos
saudáveis tendem a assumir responsabilidades que não teriam, caso a deficiência não
estivesse presente.

No que se refere à aquisição de independência, Karina expressou que era capaz


de fazer as coisas sozinhas. Karina comentou: “Sabia que eu lavo a caneca, enxugo e
guardo?”. Neste caso parece importante demonstrar suas habilidades e a capacidade de
fazerem sozinhos, sem ajuda, buscando adquirir sua independência, o que está de
acordo com Burlingham (1961) que afirma que assim como qualquer outra criança, a
criança com cegueira busca sua independência. Essa busca pode, muitas vezes,ser
constatada através de protestos do tipo “eu quero fazer isso sozinha”. Quando falou
acerca de sua vida escolar também destacou situações em que consegue desenvolver
atividades sozinhas e que nem sempre tinha as mesmas amigas de sua irmã gêmea,
apesar de estarem na mesma classe. Isto demonstra a busca por sua independência e
também pela formação de sua identidade.

Também na entrevista de Maria percebe-se a preocupação em estimular a


aquisição da independência, e pode-se exemplificar este fator com a situação comentada
por Maria que este ano na escola vários gêmeos foram separados e que Karina disse que
não iria se separar de Karen: “Na escola comum, ano passado trocaram alguns gêmeos,
de sala, aí a Karina: ‘Ah eu vou falar com a dona Vera, porque não é para mudar a
gente de sala’ Eu falo que a independência, porque ano passado ficou definido que as
crianças ficaram este ano e o ano que vem, que aí cada uma vai fazer sua aula de
música etc e tal”. Maria parece ter consciência da grande vinculação à qual irmãos
gêmeos estão expostos e procura estimular a independência de cada uma, tendo então
decidido preparar Karina para que estudasse em sala separada de Karen no ano seguinte
à pesquisa.

Ainda relacionado à aquisição da independência, pode-se destacar o


relacionamento de Lúcia e Luiza que foi relatado tanto por Carmem quanto por Luiza
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como repleto de brigas e desacordos. Há que se chamar atenção para o fato de que
Luiza, apesar do relacionamento conturbado com a irmã, não buscava em seu ambiente
social companheiros de brincadeira preferindo brincar sozinha. Carmem frisou, ainda,
em sua entrevista, que Luiza falava muito sozinha e que isso a preocupava, tendo levado
a filha a um psicólogo que a tranqüilizou, afirmando ser este um comportamento
normal. Pensando nestes dados pode-se citar a obra de Warren (1994), na qual considera
a família como uma unidade social repleta de relações complexas entre as crianças e os
adultos, sendo esperável que o desenvolvimento social da criança varie de acordo com
as características presentes em sua estrutura familiar. Sobre este assunto Lairy e
Harrison-Covello (1973, apud WARREN, 1994) afirmam que a socialização das
crianças é, em grande parte, determinada pelo seu ambiente familiar, e o bom
ajustamento da família para com sua deficiência tende a proporcionar um
desenvolvimento social próspero.

Referindo-se diretamente à inclusão, Karina e Maria consideraram que Karina


estava bem incluída, participando das atividades escolares, e tendo um bom
desempenho. Também evidenciou - se uma relação de cooperação entre as irmãs
gêmeas, não apenas de Karen para Karina (quando a ajudava em atividades na escola)
mas também de Karina para Karen, pois segundo Maria muitas vezes Karina ajudava
Karen na lição escolar, em especial com matemática e as duas estudavam juntas em
casa.

No caso de Luiza, tanto a mãe quanto a criança ressaltaram que não havia
compartilhamento das atividades escolares por parte das irmãs e que Luiza estava
encontrando dificuldades para acompanhar a escola regular, levantando-se a hipótese de
que ela ficasse retida. Lúcia não foi considerado um fator facilitador da inclusão escolar
de Luiza, ao contrário do constatado nas entrevistas de Maria e Karina, já que ambas
consideravam que a presença de Karen em sala de aula foi um grande facilitador do
processo de inclusão escolar.

Considerações Finais:
Esta pesquisa preocupou-se em ouvir o depoimento de duas crianças com cegueira
congênita e de suas mães a respeito da inclusão, com o objetivo de registrar a concepção
das mesmas acerca da inclusão e de como a relação fraterna permeou esse processo.
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Ficou claro que em um dos casos estudado (Karina) a irmã sem deficiência
auxiliou a inclusão da irmã com cegueira, tanto na vida escolar quanto nas atividades de
lazer com amigos e familiares. Este auxílio aparentemente gerou uma sobrecarga de
tarefas na criança sem deficiência relatada por sua mãe. Esta sobrecarga da irmã sem
deficiência já foi relatada na pesquisa de Villela (1999).
A sobrecarga também foi notada por Carmem na relação entre Luiza e Lúcia,
porém não no que estava relacionado às atividades escolares, mas sim em questões do
dia-a-dia.
Houve diferenciação também no que tange a busca por independência, já que
Karina demonstrava o desejo por adquirir independência e Luiza não. Constatou-se
também que em ambos os casos havia o compartilhamento de atividades de lazer, porém
quanto às atividades escolares apenas Karina era acompanhada por Karen.

Constatou-se que a relação entre irmãos é de grande riqueza e importância na


vida do indivíduo, tanto na convivência familiar quanto escolar. Contudo, não foi
possível esgotar a investigação da inclusão de crianças com cegueira e a influência de
seu irmão sem deficiência na mesma, por se tratar de estudo de dois caso. Tentou-se,
então, a partir das informações coletadas delinear características percebidas pelas
crianças com cegueira e suas mães sobre este tema.

Cabe assinalar a importância da continuidade de pesquisas para aprofundar


conhecimentos a respeito de famílias com uma criança com deficiência e sua interface
na inclusão. Espera – se que a ampliação de estudos e conhecimentos possam auxiliar
aqueles que se preocupam com a educação da criança com deficiência visual tanto
profissionais como familiares.

Referências:
ANGELOTTI, A.P. Inclusão nas escolas municipais de São Paulo: um olhar dos
professores, 2004. 101 p. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade de São Paulo.
São Paulo.
BANK, S.P.; KAHN, M.D. The sibling bond: the first major account of the powerful
emotional connections among brothers and sisters throughout life. Nova York: Basic Books,
1982. 363 p.
BOGDAN, R.C.; BIKLEN, S.K. Qualitative research for education: an introduction to
theory and methods. 2. ed. Boston: Allyn and Bacon, 1992. 262 p.
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18

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Conselho Nacional de Educação, Câmara


de Educação Básica (2001). Diretrizes nacionais para a educação especial na educação
básica. http://www.mec.gov.br/cne/pdf/CEB017_2001.pdf. Acesso em: 10 ago. 2005.
BURLINGHAM, D. Some notes on the development of the blind. The Psychoanalytic Study
of the Child, Nova York, v. 16, p. 121-145. 1961.
COLONNA, A.B.; NEWMAN L.M. The psychoanalytic literature on siblings. The
Psychoanalytic Study of the Child, Nova York, v. 38, p. 285-309, 1983.
CONSELHO BRASILEIRO DE OFTALMOLOGIA. (2002)
www.cbo.com.br/publicacoes/jotazero/ed90/comunicado.htm. Acesso em: 13 abr. 2005.
DUNN, J. Sisters and brothers. Cambridge: Harvard University Press, 1985. 178 p.
FURMAN, W.; BUHRMESTER, D. Children´s perceptions of the qualities of sibling
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MAZZOTTA, M.J.S. Deficiência, educação escolar e necessidades especiais: reflexões
sobre inclusão socioeducacional. Cadernos de Pós-Graduação, São Paulo, Universidade
Presbiteriana Mackenzie, n. 7, p. 15-24, 2002.
MAZZOTTA, M.J.S. Identidade dos alunos com necessidades educacionais especiais no
contexto da política educacional brasileira. Movimento: revista de educação da
universidade federal fluminense. educação especial e inclusiva. n.7 (maio 2003) p.11- 18.
http://intervox.nce.ufrj.br/~elizabet/identidade.htm. Acesso em: 01 ago 2005.
MCKEEVER, P. Siblings of chronically ill children: a literature review with implications
for research and practice. American Journal of Orthopsychiatry, Washington, v. 53, n. 2, p.
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POWELL, T.H.; OGLE, P.A. Irmãos especiais: técnicas de orientação e apoio para o
relacionamento com o deficiente. São Paulo: Editora Maltese, 1992. 281 p.
VADASY, P.F.; FEWELL, R.C.; MEYER, D.J.; SCHELL, G. Siblings of handicapped
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Minneapolis, v. 33, p. 155-167, 1984.
VASH, C.L. Enfrentando a deficiência. São Paulo: Pioneira, 1988. 286 p.
VILLELA, E. M. B. As repercussões emocionais em irmãos de deficientes visuais, 1999.
191 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia) Universidade de São Paulo. São Paulo.
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OUVIDOS CEGOS
Christiane Reis Dias Villela Assano
Há cegueiras que não se referem necessariamente à ausência de visão. Mesmo para
aqueles que possuem a visão considerada “normal”, existe um “ponto cego”, ou seja, um
ponto em que, na ausência de cones, bastonetes e receptores visuais, não se pode ver.
(Foerster, 1996, p.60). Mas existem outras tantas cegueiras.
Como professora de música, tenho refletido sobre a cegueira dos ouvidos - daqueles
que ouvem, mas não escutam. Há pontos cegos na escuta, ou melhor, há escutas que, por se
limitarem a pontos fixos, se tornam cegas. Castro (1988) as denominou “ponto de escuta”,
conceito que pode ser entendido ao misturarmos suas palavras às de Boff: todo ponto de
escuta é a escuta de um ponto. Escutar de um ponto significa limitar a escuta ao que se está
acostumado a ouvir, não mover a escuta, fixá-la em determinado lugar, imobilizá-la. A
escola de música tradicional, ao valorizar e limitar a escuta ao repertório dos séculos XVIII
e XIX, cega o ouvinte. Por esta razão, muitos professores e professoras formados por
escolas que “se orientam pelas normas e pelos critérios em que estavam baseados os
programas e currículos dos conservatórios europeus do século passado”, parecem não
compreender obras contemporâneas (Kollreuter apud Freire, 1992, p.187). Da mesma
forma que só se pode ver o que se compreende, também só se pode ouvir o que se pode
compreender.
Foerster (op.cit.), baseado nas pesquisas de Maturana e Frenk, reafirma que
“devemos crer para ver” pois “a retina está sujeita a um controle central que faz com que só
possamos ver aquilo em que cremos” (p.71). Garcia e Alves (1997) trazem o caso de um
homem que continuava cego mesmo após uma operação que traria de volta sua capacidade
de ver as coisas. O homem que teria agora a possibilidade de ver, não via. Seu cérebro teria
de aprender a ver...
Uma das inúmeras lendas do Conde Drácula também pode ilustrar bem o que
significa compreender para ver. Diz-se que um conde romeno apaixonou-se por uma
cantora de ópera em Paris que morreu subitamente. O conde amargurado voltou ao seu
castelo, mantendo sua amada viva todas as noites ao ouvir árias gravadas por sua suave voz
e ao admirar, também todas as noites, a estátua de mármore de sua amada. Mas enquanto
para o conde aquele era um meio de superar a ausência da amada, para os camponeses que
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habitavam em sua propriedade, a visão denunciava a “verdadeira” identidade do conde. Por


não conhecerem a possibilidade de gravar a voz, os camponeses não poderiam supor que a
voz feminina que preenchia as noites do conde era produzida por uma engenhoca mecânica
chamada fonógrafo, e não, por uma mulher morta. Entretanto, ao associarem a visão da
estátua à audição de uma voz feminina, imaginaram os camponeses que o conde era um
drácula que, em romeno, quer dizer, diabo. Viam um drácula que ressuscitava os mortos.
Viam o que compreendiam.
Ao alargarmos o conceito de visão, podemos afirmar que também só se ouve o que
se compreende. Em algumas das oficinas de música e teatro de minha escola, ao pedir que
meus alunos pesquisassem sobre o silêncio, tornava-se claro que cada um poderia ou não
ouvir o silêncio, de acordo com sua compreensão musical do entorno sonoro.

2
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Vanessa parece dizer em seu trabalho que, como acredita na inexistência do silêncio
absoluto, também seu ouvido não pode encontrá-lo. No entanto, Andressa encontrou
facilmente o silêncio, como revela seu sucinto parágrafo. Tanto Andressa como Vanessa
ouviram o que podiam “ver”.

E para “ver melhor com os ouvidos”, temos de ampliar nossos pontos de escuta,
tentando desenvolvê-los de modo a distinguir figura de fundo sonoro (Schafer, 1991), de
modo a estranhar o que é tão “natural” ou “óbvio” que nossos ouvidos simplesmente
ignoram. Diria Stravinsky: “o verdadeiro criador pode ser reconhecido por sua capacidade
de sempre encontrar à sua volta, nas coisas mais simples e humildes, detalhes dignos de
nota” (1996, p.57).
É nessa perspectiva que venho trabalhando com Márcio, um aluno que, como cego,
“não pode ver”, e por “não poder ver” tem provocado em mim muitas reflexões sobre o que
pode ser a cegueira do olhar de quem vê, mas não captura, sobre o que pode ser a cegueira
de quem ouve, mas não escuta.

3
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Olhos aprisionados

Embora a atividade musical seja baseada no som, muitas escolas de música


acreditam que para ensinar música é necessário começar pelo ensino da leitura e da escrita
musicais, fazendo com que a representação musical tenha mais importância que o “fazer
música” (Castro, op. cit.). O compositor Villa-Lobos já denunciava tal prisão quando
alertava os compositores para os perigos do encarceramento na “música-papel” e do
esquecimento da “música-som”.
Duas pinturas de artistas famosos retratam a
prisão ao papel já denunciada por Villa: “A lição de
piano” de Henri Matisse e “Duas meninas jovens ao
piano” de Pierre-Auguste Renoir.
Na obra de Matisse, uma criança aparece
sentada ao piano junto a um metrônomo e de frente
para uma partitura, denunciando talvez a atrofia que
a música sofre ao ser aprisionada no papel. Tempo
medido e leitura musical: duplo aprisionamento.
Na tela de Renoir, duas meninas
acompanham atentamente a partitura escrita apoiada
sobre a estante do piano fazendo-nos trazer as
palavras de Penna (1994) ao descrever algumas
cenas cotidianas nas escolas de música: “De olho na partitura a menina ‘cata’ as teclas do
piano, ‘tirando’ uma nova música”. Sobre as pinturas de Renoir e Matisse, bem como na
cena descrita por Penna, Hermeto Pascoal possivelmente diria que os personagens em
questão podem ser leitores de música, mas não, musicistas. A atividade musical aprisionada
nos olhos atrofia também os ouvidos que deveriam estar sendo sensibilizados pelos sons do
instrumento que esses jovens tocam nas pinturas. A relação do instrumentista com o
instrumento empobrece-se porque se prende à condição visual-motora, tratando os sons
como “cadáveres imóveis”, diria Schafer (1991, p.123).
Numa das cenas mostradas pelo filme iraniano “O silêncio”, Korshed, o menino
cego que “não pode ver”, mostra a prisão dos olhos de quem “vê”. Num trajeto de ônibus,
duas estudantes tentam decorar uma lição. Tentam inúmeras vezes em vão, até que

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Korshed, que estava sentado bem próximo, mas não


havia ainda sido notado por elas, fala de uma só vez
todo o texto que teria de ser decorado. As meninas,
surpresas, então, questionam: “Como você
conseguiu?” E Korshed singelamente responde que,
“às vezes, os olhos nos distraem”. Após esse filme
marcante, pude refletir mais sobre o porquê do
incômodo que me causavam os olhos abertos dos
alunos quando eu pedia para que reconhecessem
sons ou cantassem. O hábito de pedir que os alunos
fechassem seus olhos para ouvir a fim de que
pudessem “limpar os ouvidos”, era sutilmente
explicado por Korshed. Mas, pensar que podemos
fechar os olhos por alguns instantes e abri-los em segundos para tornar a ver o mundo, é
diferente de se colocar no lugar de Korshed. Com Korshed, seria diferente.
Com Márcio a história foi, ou melhor, tem sido outra.

Texturas musicais

Como professora de teclado na Escola de Música do Centro de Ensino Técnico e


Profissionalizante de Niterói – RJ, tenho olhado de forma diferente para o ensino da música
desde que Márcio nos procurou. Márcio freqüenta o Curso de Musicalização que
oferecemos nessa Instituição.
Desejava que Márcio também freqüentasse as aulas coletivas de Canto Coral, mas o
professor da disciplina disse-me que a aula de Márcio teria de ser diferente e, por isso,
achava melhor que Márcio fizesse o Curso de Musicalização em Teclado, ou seja,
permanecesse matriculado somente na aula de instrumento, por enquanto. Não pretendo
julgar qualquer atitude do professor, mas ressaltar a dificuldade de nós, professores e
professoras, introduzirmos o “diferente” em nossas salas de aula.
Como começar? Por onde começar? Como se ensina música a quem não pode ver?
Essas eram perguntas que passavam a habitar meu cotidiano.

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Haveria sim, uma escrita musical em Braille, mas eu não a conhecia.


Primeiro dia. Márcio chega com muitas expectativas e começamos a conversar. Pedi
a ele que tocasse, sentisse o teclado, colocando suas mãos sobre as teclas até que elas
afundassem como um navio que navega sobre o mar aberto. O cluster, forma de tocar muito
utilizada pelo norte-americano Henry Cowell em que o músico pode utilizar os punhos,
antebraços ou pulso para tocar blocos sonoros, também foi utilizado por nós para produzir e
reconhecer os sons. Comecei a questionar Márcio sobre as diferenças entre os sons do
teclado, a fim de que ele pudesse descobrir as diferentes alturas, os sons agudos e graves.
Introduzimos, então, as subidas e descidas possíveis dentro desse novo mar em que
entrávamos sem bússola.
Navegamos pelas teclas pretas. Por intuição, já que jamais tive em minhas mãos
qualquer material de música produzido para um deficiente visual, pensei que seria mais
interessante começar pelas teclas pretas já que elas se destacam no teclado por se
localizarem em parte mais alta. Após muitas experimentações, pedi a Márcio que
inventasse pequenos trechos, pois, como o compositor Stravinsky, penso que é importante
formar “inventores” de música. Márcio criou alguns trechos que foram tomando forma de
frases que se completavam para formar uma peça musical. Finalmente, pedi a Márcio que
escrevesse a sua partitura e mais uma vez, meu porto seguro de professora desmoronava.
Márcio rapidamente anotava em Braille a sua música – idéia sua, pois não determinei como
ele deveria registrar. Agora era eu quem “não podia ver”, simplesmente porque não
compreendia o que ele escrevia. Márcio explicava-me, então, que inventara a seguinte
forma de escrever aquela música: para cada oitava, utilizava uma fração. Desta forma, a
primeira oitava seria representada com a fração 1/8, a segunda, 2/8, e assim por diante. Já
as teclas pretas escolhidas seriam representadas por um número. Como cada oitava possui
teclas pretas (escala pentatônica), Márcio decidiu utilizar os números após indicar a oitava
desejada. E, conversando sobre partituras, pois Márcio já havia tido algum contato com
pessoas da área de música, perguntei se ele queria uma “ver” uma partitura que eu
escreveria para ele. Foi assim que terminou nosso primeiro encontro.
Mas como continuar a navegar sem bússola? Que caminho escolher sem o auxílio
de um mapa? Por que eu que condenava a “música-papel” optava por este caminho da
partitura tão cedo?

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Talvez eu tenha optado por me desafiar, por tentar dar a Márcio a sensação que
meus alunos poderiam ter ao observar a beleza de uma partitura, a beleza de um
manuscrito, mesmo que, ao vê-los, meus alunos não pudessem ainda “ver” tudo o que podia
estar escrito naquele pedaço de papel, mas pudessem construir a sua leitura. Mesmo que eu
não compreenda os hieróglifos egípcios, nada me impede de lê-los à minha maneira quando
vou a um museu. Da mesma forma, embora eu não pudesse compreender a partitura de
Márcio, não havia impedimento para que eu pudesse fazer a minha leitura de seu registro.
Por que então não fazer um outro movimento?
Mas no encontro seguinte, Márcio questionou-me sobre as notas musicais, pois uma
amiga com quem conversava lhe falara sobre isso. Perguntei se Márcio já ouvira falar dos
nomes dados às sete notas musicais e como ele as conhecia, toquei-as no teclado para que
ele pudesse ouvi-las. Ao mesmo tempo, recuperamos um pouco as subidas e descidas que
trabalhamos na aula anterior. As notas das quais ele falava foram facilmente encontradas
por ele no teclado devido às teclas pretas que ele já conhecia. Teria eu acertado?
Tomávamos, eu e ele, a melhor decisão?
Olhando outros pontos do mapa, lembro-me que, ao ler meu diário de bordo,
esqueci-me de relatar o processo de construção da partitura de Márcio. Embora soubesse da
existência, mesmo sem conhecer, da linguagem musical em braille, não havia tempo para ir
até o Instituo Benjamin Constant, muito menos para conhecer essa nova linguagem
profundamente. E agora? Como fazer?
Pensei que deveria explorar diferentes texturas, pois me lembrava de uma menina
cega que estudava no Curso de Iniciação Musical da Escola de Música da UFRJ na época
em que eu era estagiária do Curso de Licenciatura. O professor parecia esquecê-la dentro da
sala, ou talvez não pudesse se relacionar de forma diferente. Ela se apegara a mim, apenas
uma estagiária que não sabia nem mesmo o que fazer com as crianças ditas normais. Mas,
certo dia, o professor ensinava às crianças como fazer a Clave de Sol e me surpreendeu
quando levou para a menina uma clave de sol grande desenhada num papel, bem como um
rolo de barbante e cola para que a sua clave de sol pudesse ser reconhecida pelo toque.
Lembrei-me desse aprendizado quando tinha à minha frente o desafio de escrever a
partitura de Márcio. Mas eu não tinha barbante em casa e fui à procura de outros materiais.
Pensei em areia. Mas também não havia areia em minha casa. Foi então que me sentei ao

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computador e fiz umas tabelas bem grandes de sete colunas compridas que representavam
as teclas brancas de uma oitava. E as teclas pretas, como destacá-las? Tinha algumas fichas
em casa que cortei em pequenos pedaços para que Márcio pudesse identificar as teclas
pretas. Colei os cinco pedaços de cada oitava. É importante ressaltar que a música já havia
sido feita antes da criação da partitura.
Pensei em identificar as notas que seriam tocadas com uma outra textura. Colei
papel em forma de pequenas bolinhas nas teclas que seriam utilizadas, mas, na segunda
frase da música, havia uma nota que após a subida dos sons, retornava. Tentei indicar o
retorno com um pedaço de palito de dente colado sobre a nota (não é preciso dizer que até o
dia em que levei a partitura para Márcio o palito já havia caído...). Entretanto, faltava um
detalhe importante: como indicar de que lado Márcio deveria começar a tocar, já que eu
havia criado uma música que tanto começava de um lado como do outro? Resolvi grampear
o lado em que Márcio começaria a tocar a música. Quase tudo pronto...
Escrever esta partitura era mais que simplesmente criar uma nova forma de registrar
a música, era criar uma partitura onde eu teria de sair da minha lógica para entrar numa
outra, onde eu teria de me colocar por um momento no lugar do outro.
Durante nosso encontro, pedi para que Márcio tocasse, sentisse a partitura e aos
poucos, mostrava-lhe as diferentes texturas nela existentes. Construímos uma “legenda”
com essa conversa inicial. Márcio não só pôde executar a música, como também duas
semanas depois completou a minha partitura. Disse-me ele que na hora de tocar não
utilizou uma única oitava, pois eu não havia indicado isso na partitura. Foi então que ele me
sugeriu que, na próxima partitura, nós poderíamos colocar as frações que ele havia
inventado para identificar as oitavas.
Na semana seguinte, um grande susto. Márcio faltou à aula e o que num aluno dito
normal eu pensaria num pequeno problema de navegação, em Márcio o problema tomava a
proporção de um maremoto. Entretanto, na aula seguinte, Márcio voltou. Mas a falta de
Márcio causara em mim uma profunda reflexão sobre como ensinar-aprender música. Foi
justamente nesse período que eu pensara que o toque, tão excluído da escola, seria de
grande importância no meu contato com Márcio. O que a muitos eu dizia com o olhar, a
Márcio eu falaria com um singelo toque.

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Mas a pergunta de um navegador perdido retornava. Questionava a mim mesma


como deveria prosseguir nessa viagem. Foi Márcio quem me mostrou a latitude mais
aproximada. Falava ele sobre dois alunos que tinham aula de teclado após a sua, pois
algumas vezes chegou a “assistir” a aula desses alunos, que eram irmãos. Márcio falava das
músicas que Walquíria e Vanderson tocavam, do reconhecimento de algumas músicas
interpretadas por eles, do desejo de tocar um dia aquelas músicas... Eureca!
Por que não tocarmos uma música já conhecida?
Da mesma forma que eu nunca aprendi a “tirar uma música de ouvido” pois como
Penna (op. cit.) relata em uma das cenas musicais cotidianas das escolas de música, esse
tipo de conhecimento é excluído da escola, não é visto como saber; da mesma forma que
“aprendi a aprender” a tirar de ouvido na minha prática como professora, poderia aprender
a utilizar o ouvido nada cego de Márcio. Perguntei sobre o estilo de sua preferência e ele
me respondeu que gostava de tudo. Aprendemos “Cai, cai balão”. Íamos rascunhando em
nossos ouvidos alguns trechos e, à medida que cantávamos, íamos percebendo se o som
subia ou descia, até que pudéssemos realizar o mesmo movimento no teclado. Apenas
orientava Márcio no dedilhado a ser utilizado. E nessa construção coletiva, percebi que
mesmo sem bússola poderia encontrar algumas rotas.
Não perder a capacidade de criar rotas parece ser a vida da poetisa Virginia
Vendramini. Embora tenha perdido a visão aos 16 anos, Virginia não perdeu a
possibilidade de “pensar por imagens”. Sua cegueira não é branca, como os novos cegos de
Saramago. Sua “cegueira” é colorida e cheia de formas, como o arco-íris que costumava
observar nas tardes de sua infância. Sua cegueira tem as cores das “flores bonitas” que
encontrava na estrada, já que seu pai fazia questão de parar e interromper a viagem para
que Virginia pudesse apreciar melhor a natureza. Hoje, a poetisa e artesã cria belos tapetes
em seu “cinema mental”, uma rota construída por ela.
Calvino, no ensaio intitulado visibilidade, fala da importância das cenas/imagens
mentais. Pede ele que nós transformemos as cenas/imagens que lemos/vemos em “outras
cenas e imagens”, como num “cinema mental”. E é com a idéia de “cinema mental” que
pretendo continuar trabalhando com Márcio a fim de que, com as imagens sonoras que
circulam em seu entorno, ele possa criar outras imagens sonoras, tornando-se um inventor
de sons, “transvendo” através da imaginação, pois como diz Manoel de Barros:

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“O olhar vê, a lembrança revê e a imaginação transvê”.


Ainda tenho muito a aprender, pois se “o poeta é aquele que encontra uma
moedinha perdida” como diz Quintana, tenho de continuar a navegar em busca de uma
moedinha que pode estar perdida entre os muitos baús existentes no fundo do oceano.
Caminhos complexos, incertos, mas não insensíveis para acreditar que Márcio ainda
tocará as músicas que deseja, pois é com o nosso desejo que estamos construindo alguns
caminhos possíveis. Como os rascunhos de artistas que apontam inúmeros caminhos, pois
que “a obra verdadeira consiste não em sua forma definitiva, mas na série de aproximações
para atingi-la”, diria Calvino, muitas vezes nossos contatos têm me obrigado a “ver” outras
trajetórias que, antes, estavam em meu ponto cego.

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Referências Bibliográficas

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CARDOSO, Carlos Eduardo, GONÇALVES, Mário. Vivendo Música - Entrevista com


Hermeto Pascoal. Revista Backstage, Rio de Janeiro, fev. 98, ano 4, no 39, p. 46 - 59.

CASTRO, Antônio Jardim de. A produção musical e o ensino de música – um estudo


filosófico. Rio de Janeiro, 1988. Dissertação (Mestrado em Educação Musical) -
Conservatório Brasileiro de Música.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994.

FOERSTER, Heinz von. Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem. In:


SCHNITMAN, D. F. (org.). Novos paradigmas e subjetividade. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1996.

FREIRE, Vanda Lima Bellard. Música e Sociedade - uma perspectiva histórica e uma
reflexão aplicada ao ensino superior de música. Rio de Janeiro, 1992. Tese (Doutorado
em Educação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro.

GARCIA, Regina Leite, ALVES, Nilda. Uma infinidade de mundos possíveis – fragmentos
de um discurso em construção. Caxambu: XX Reunião Anual da ANPEd, 1997.

GARCIA, Regina Leite, VALLA, Victor Vincent (org.). A fala dos excluídos. Caderno
CEDES - 38. Campinas: Papirus, 1996.

GRIFFITHS, Paul. A música moderna - de Debussy a Boulez. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1994.

PENNA, Maura. O desafio necessário: por uma educação musical comprometida com a
democratização no acesso à arte. Educação Musical, São Paulo, Atravez, n. 4/5, p. 15-
29, 1994.

QUINTANA, Mário. Nova antologia poética. São Paulo: Globo, 1994.

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MEC: Museu Villa-Lobos, 1991.

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Sou cego e pianista profissional

Diz que a cegueira lhe reforçou o ouvido e que, por isso, o


ajudou na música.

Diz que a cegueira lhe reforçou o ouvido e que, por isso, o ajudou
na música. Mas não relaciona o facto de ter perdido a visão com a
circunstância de ter vindo a tornar-se pianista. Gosta sobretudo dos
barrocos do século XVIII, mas também dos românticos do século
XIX – e até da música popular contemporânea, desde que boa. Se o Imagem
comparam a Ray Charles ou Stevie Wonder, outros pianistas cegos,
torce o nariz. Admira-os pelo que conseguiram na música, não necessariamente pela
cegueira. Senhores e senhoras, eis outra força da natureza.

Perder a visão foi uma das melhores coisas que me aconteceu na vida”, diz Jorge
Gonçalves. Surpreendente? Só para quem não se senta numa tarde de sol a conversar
com ele. Cego desde os cinco anos, Jorge tornou-se entretanto pianista profissional.
Diz que “A Paixão Segundo São João”, de Johann Sebastian Bach, é a sua peça
preferida. Explica que foi a polifonia, tanto quanto a possibilidade de dispensar a
partitura, que o fez optar pelo piano em vez da trompa, que a certa altura
experimentou. Fala dos tempos de Paris e de como, apesar de tudo, a competitividade
entre jovens candidatos a músicos foi muitas vezes intercalada por inesperados
momentos de solidariedade – e fala de cada uma dessas coisas com um discurso
articulado, um léxico rico, ideias reflectidas para além da forma perfeita. Tem 23 anos
e uma licenciatura em piano. Toca em concertos com orquestra, recitais a solo por
todo o País, galas de alerta para os problemas dos deficientes. E é invisual. “Como
Ray Charles ou Stevie Wonder”, podia dizer-se. “Como muitos outros, músicos ou
não”, diz ele.

“Enquanto tive visão, vivia num inferno. Tinha dores fortíssimas nos olhos, sobretudo
quando olhava para o sol, e passava imenso tempo internado. Quando perdi a visão,
aos cinco anos e tal, pude finalmente livrar-me disso”, explica. Com um glaucoma
congénito, patologia que se centra no atrofiamento no nervo óptico, Jorge Gonçalves
tem na verdade dois olhos capazes de ver, mas já não consegue que a informação
chegue ao cérebro e seja efectivamente processada em visão. A irmã, mais velha
quatro anos, sofre do mesmo problema, embora veja alguma coisa – e a coincidência
da deficiência nos dois irmãos significa necessariamente que ambos os progenitores
são portadores da doença, embora vejam os dois normalmente. “Se a cegueira levou à
música, isso já não posso dizer em absoluto”, explica Jorge. “Talvez sim, talvez não.
É difícil separar uma coisa da outra, pois todos nós vimos de um determinado
con-texto. Como cego, tenho o ouvido mais desenvolvido e isso naturalmente ajudou.
Mas a verdade é que foi a minha irmã quem começou por aprender piano e foi
ouvindo-a tocar que eu me interessei. E, de qualquer forma, tenho a necessidade
básica de exprimir-me como artista, não como deficiente.”

Incentivado pelos pais, uma efermeira e um tenente-coronel com especial apreço pela
cultura, Jorge Gonçalves tomou pela primeira vez contacto com o piano aos seis anos.
Aos nove, quando vivia com os pais em Tancos (o pai estava destacado na respectiva
Base Aérea), tentou entrar para o Conservatório Regional de Tomar. “Não me

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aceitaram logo. Foram esses os primeiros problemas com que me deparei: não
quererem aceitar-me como aluno. Aconteceu em Tomar e aconteceu depois em
Coimbra: rejeitavam-me, ouviam-me tocar e, então sim, aceitavam-me”, conta. “Na
verdade, não levo a mal. As pessoas têm todas muito medo da diferença. São
preconceitos naturais. Mas é preciso lutar contra eles, de qualquer forma.” E os
estudos prosseguiram, de Tomar ao Conservatório de Música de Coimbra, deste à
École Normale de Musique de Paris Alfred Cartot. Iniciado nos estudos em 1992,
Jorge Gonçalves concluiu o Curso Geral em 2001, em regime articulado com o ensino
secundário, o Diploma de Ensino em 2002 e o Diploma Superior de Ensino em 2004.

Desde então, é pianista profissional. Realizou recitais em locais tão diversos como o
Porto ou o Fundão, Castelo Branco ou Sintra, entre muitos outros. Tocou como
solista do Concerto de Grieg em três ocasiões diferentes, nomeadamente com a
Banda Sinfónica da Guarda Nacional Republicana e com a Banda de Música da
Força Aérea Portuguesa. Foi a programas de televisão e à Gala de Abertura do
Pirilampo Mágico, em 2005, de cuja campanha foi um dos rostos. “Faço sobretudo
concertos. Ou tenho feito concertos, o que é mais bem dito. Sou um prestador de
serviços, no fundo, e só espero poder continuar a sê-lo”, explica. “Vivo com
dificuldades, mas sobrevivo. Se quisesse ganhar dinheiro, não escolhia esta profissão.
Às vezes os meus pais têm de ajudar-me. Mas mantenho-me à tona de água. E faço o
que gosto. Nunca me arrependi da opção que fiz.”

Recentemente, e depois de uma experiência a viver sozinho em Lisboa, voltou para


Coimbra. Tinha saudades dos pais, dos amigos, das rotinas, dos lugares, dos objectos.
Em Paris, chegou a ter a mesma sensação de solidão e abandono – mas nesse caso
resistiu. “Estive lá três anos sozinho, o que foi ao mesmo tempo enriquecedor e
difícil. Primeiro porque a vida de emigrante é cheia de solidão e de sofrimento.
Depois porque o curso era exigente, cheio de competitividade, com um grupo de
colegas que incluía alguns dos melhores pianistas do mundo da minha idade. Foi
preciso dar um salto qualitativo muito grande”, explica. “Mas acabei por fazer
grandes amigos, que permanecem até hoje. Vivia numa residência de músicos e, a
certa altura, começámos a ajudar-nos uns aos outros. Para além disso, conheci muitos
portugueses.”

Hoje, em Coimbra, ensaia uma média de seis horas por dia, sete dias por semana. E
embora goste dos românticos, nomeadamente de Grieg, explica que é Bach o seu
favorito. “Passo 60 por cento do meu tempo a tocar Bach. Os outros 40 é que são
para os românticos. Gosto muito do Barroco e acho que Bach é o sol da música, o seu
centro gravitacional, o homem que trouxe à música uma visão mais elevada,
universal. Mais: como ele escreveu sobretudo para órgão, cravo e clavicórdio, os
recursos do piano moderno permitem-nos quase reinventar a sua obra,
valorizando-a”, diz. Tem sobretudo quatro referências entre os grandes intérpretes do
mundo: Sviatoslav Richter, que considera “o manual da interpretação”; Maria João
Pires, que diz ter “o som mais bonito”; Glenn Gould, em quem encontra a perfeita
“reivenção do ordenamento” e Rosalyne Tureck, que gostou de ver “separar as
harmonias”. Em Bach, gosta principalmente das ‘Paixões’, entre elas de São João. A
‘Arte da Fuga’ ou os ‘Concertos de Brandenburgo’ são outras das suas obras
predilectas.

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“Ninguém toca piano com os olhos, mas com a cabeça. E cabeça todos nós temos”,
diz. Se o comparam a Ray Charles ou Stevie Wonder, fica indiferente. Admira-os
sobretudo pela música, muito mais do que pela cegueira. Principalmente Ray Charles.
“Foi uma pessoa que viveu numa América difícil, cheia de contrariedades, e que
conseguiu apesar disso encantar multidões. Mas não me refiro especialmente à
cegueira. As pessoas cegas podem fazer as mesmas coisas do que as outras”, explica.
E apesar da sua propensão para a música erudita, faz questão de vincar que também a
música popular o encanta. Desde que boa, claro. “Aquilo de que gosto é da
qualidade. E há música boa em todos os estilos. O Ray Charles, por exemplo, foi de
facto um grande músico. Pôs grande humanidade na música. É admirável.”

A PAIXÃO DA TROMPA

Jorge Gonçalves passa metade do dia a ler em Braille, de literatura diversa às


partituras de música, e a outra metade a tocar. Em 1995, quando estudava há já três
anos, decidiu alargar a sua acção do piano à trompa. “Precisava de ter a noção do
canto, porque essa é a essência da música, a expressão mais natural do ser humano
sob a forma de música. Os grandes instrumentistas são aqueles que conseguem
sublimar a voz humana noutras realidades e a trompa, como outra expressão da voz
humana, podia dar-me uma noção do sopro e da respiração, por exemplo”, explica.

“É o meu instrumento preferido, aquele que tem o timbre mais bonito. Ainda hoje,
quando ensaio com uma orquestra, peço sempre aos trompistas que toquem um pouco
para mim. Mas a questão é que, ao contrário do piano, a trompa exige partitura para
se poder tocar numa orquestra. O piano toca-se de cor, mas a trompa não: tem de se
ler e tocar ao mesmo tempo. E isso, naturalmente, é uma coisa impossível para um
cego”, explica.

Garante, porém, não estar arrependido da opção pelo piano. A polifonia


(possibilidade de extrair vários sons em simultâneo, inexistente na trompa) é a grande
vantagem.

Fonte:Correio da Manhã
[Fim de Notícia]

Notícias » Destaque
13 / 09 / 2006 - 14 : 55

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Redesenho da identidade visual de uma associação de deficientes visuais


Redesign of the visual identity of one nonprofit organization enabling blind

HEIDRICH, Regina,
Doutora, Centro Universitário Feevale
BLUM, Arina,
Especialista, Centro Universitário Feevale

Palavras-chave : deficiência visual, comunicação, design gráfico

Este artigo relata a experiência de um projeto para redesenho da identidade visual de uma Associação de Deficientes
Visuais. Com o objetivo de fortalecer a identidade frente ao público vidente e, ainda, comunicá-la a deficientes visuais,
este projeto aborda a metodologia de criação para desenvolvimento de um trabalho embasado na inter-relação dos
sentidos de tato e visão no design impresso. A percepção sob o ponto de vista do design gráfico é, em geral, fortemente
atrelada a fatores visuais. Na grande maioria dos projetos de design impresso, o sentido da visão é explorado como
forma de comunicação, enquanto os sentidos de tato, olfato e audição praticamente não são abordados.

Key-Words: visual impairments , comunication, graphical design

This paper tells the experience of a project for redesigns of the visual identity of one nonprofit organization enabling blind or
visually impaired people to achieve equality and access. With the objective to fortify the identity front to the people without
vision problem and, still, to communicate a people with visual impairments. This project approaches the methodology of
creation for development of a work based in the interrelation of the sense touch, and vision in design printed matter.
The perception in the point of view of graphical design is in general connected to the visual factors. In the great majority of
the projects of design printed matter, the direction of the vision is explored as communication form, while the senses like
touch, olfact and audition are not boarded.

1- Introdução

Este artigo relata a experiência de uma equipe de designers desenvolvendo um projeto gráfico para cegos.
Constata-se o desconhecimento, pelos integrantes da equipe, de aspectos ligados a deficiência visual e baixa
visão. Segundo a OMS-Organização Mundial de Saúde, cerca de 1% da população mundial apresenta algum
grau de deficiência visual. Mais de 90% encontram-se nos países em desenvolvimento. Nos países
desenvolvidos, a população com deficiência visual é composta por cerca de 5% de crianças, enquanto os
idosos são 75% desse contingente. Dados oficiais de cada país não estão disponíveis.

Observamos que a percepção sob o ponto de vista do design gráfico é, em geral, fortemente atrelada a fatores
visuais. Na grande maioria dos projetos de design impresso, o sentido da visão é explorado como forma de
comunicação, enquanto os sentidos de tato, olfato e audição praticamente não são abordados.

Segundo a revista eletrônica Saúde e Vida Online, desenvolvida pelo Núcleo de Informática Biomédica da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é considerado cego aquele que apresenta desde ausência
total de visão até a perda da percepção luminosa. Sua aprendizagem se dá através da integração dos sentidos
remanescentes preservados. O principal meio de leitura e escrita é o sistema Braille. O deficiente visual, no
entanto, precisa ser incentivado a usar seu resíduo visual nas atividades de vida diária sempre que possível.

Pessoa com baixa visão ou visão subnormal é aquela que possui resíduos visuais em grau que permitam ler
textos impressos à tinta, desde que se empreguem recursos didáticos e equipamentos especiais, excluindo as
deficiências facilmente corrigidas pelo uso adequado de lentes (BRASIL. Ministério da Educação e do
Desporto, 1993). Sua aprendizagem se dá através dos meios visuais, mesmo que sejam necessários recursos
especiais.
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Tanto a cegueira total quanto a visão subnormal pode afetar a pessoa em qualquer idade. Bebês podem
nascer sem visão e outras pessoas podem tornar-se deficientes visuais em qualquer fase da vida. A perda de
visão pode ocorrer repentinamente de um acidente ou doença súbita, ou tão gradativamente que a pessoa
atingida demore a tomar consciência do que está acontecendo. Ela também ocorre independentemente de
sexo, religião, crenças, grupo étnico, raça, ancestrais, educação, cultura, saúde, posição social, condições de
residência ou qualquer outra condição específica.

A deficiência visual interfere em habilidades e capacidades e afeta não somente a vida da pessoa que perdeu
a visão, mas também dos membros da família, amigos, colegas, professores, empregadores e outros.
Entretanto, com tratamento precoce, atendimento educacional adequado, programas e serviços
especializados, a perda da visão não significará o fim da vida independente e não ameaçará a vida plena e
produtiva.

2- Sistema Braille de Leitura e Escrita

O Braille é um dos códigos de apoio da língua, e sua importância está no fato de habilitar o ser humano a
compreender o mundo através de um sistema organizado de símbolos, substituindo o alfabeto convencional
por um alfabeto de pontos em relevo, o que possibilita ao deficiente visual a escrita e a leitura.

As primeiras tentativas de criar um método de acesso à linguagem escrita aos cegos datam do século XVI e
XVII. Entre eles estava a gravação de letras e de caracteres em madeira ou metal (usando parte da idéia da
imprensa de Gutenberg), sistemas de nós em cordas, caracteres recortados em papel e até mesmo alfinetes de
diversos tamanhos pregados em almofadas.

Até 1829, os portadores de deficiência visual aprendiam a ler através desses e de outros complicados
métodos de leitura. Naquele ano um jovem francês de 15 anos cego desde os 3 anos de idade, chamado Luis
Braille, desenvolve o sistema que é até hoje o mais efetivo recurso para a educação de cegos. Braille era
aluno da escola Haüy, a primeira escola para cegos do mundo e foi influenciado por um método de
transmissões de mensagens sigilosas criadas pelo oficial de exército francês Charles Barbier, que consistia na
combinação de 12 pontos em relevo com valor fonético.

O Braille é composto por 6 pontos, que são agrupados em duas filas verticais com três pontos em cada fila
(cela Braille). A combinação desses pontos forma 63 caracteres que simbolizam as letras do alfabeto
convencional e suas variações como os acentos, a pontuação, os números, os símbolos matemáticos e
químicos e até as notas musicais. Para os cegos poderem ler números ou partituras musicais, por exemplo,
basta que se acrescente antes do sinal de 6 pontos um sinal de número ou de música.

3 - Metodologia de desenvolvimento

Para o redesenho da identidade visual desta instituição, levou-se em consideração a necessidade de uma
assinatura que abordasse fatores não somente visuais, mas também táteis. A equipe envolvida no projeto foi
constituída por 4 estagiários e um assistente gráfico do Centro de Design Feevale, além do professor
responsável pela orientação ao trabalho. Notou-se, no primeiro contato com o projeto, que a equipe
necessitava de preparação para entender os aspectos não-visuais. Até então, todos os trabalhos desenvolvidos
pelo grupo seguiam padrões fortemente visuais.

Nota-se, inclusive, que os termos utilizados pela equipe permaneceram conforme indicativos visuais
comumente utilizados em design gráfico, quando “identidade visual” e “assinatura visual” são expressos para
designar o trabalho realizado. Os termos, utilizados pela equipe de designers nos projetos diariamente
desenvolvidos, são destacados de STRUNCK (2003:52) que faz uma interessante abordagem a respeito da
criação de identidades corporativas, mas privilegia a visão nos aspectos de percepção, afirmando que “este
sentido, o mais imediato, rico e independente do tipo de cultura que tenhamos, é indispensável a nossa
comunicação”.
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Desta forma, a metodologia utilizada para desenvolvimento deste projeto, baseou-se primeiramente numa
etapa de preparação da equipe para lidar com aspectos da comunicação não visual. A intenção foi buscar
conhecimento para interação junto ao público de deficientes visuais. Posteriormente seguiu-se com a
metodologia já utilizada pela equipe em outros projetos anteriormente realizados, sendo as etapas definidas
como: levantamento de dados; desenvolvimento de estudos; definição da identidade visual. Ressalta-se,
porém, que a abordagem de todas as etapas acabou por permear aspectos não-visuais, visto a necessidade de
aplicação dirigida ao público de deficientes visuais.

A primeira etapa do projeto, a interação com aspectos não visuais, foi conduzida sob a orientação de uma
professora com experiência junto ao público em questão. Através de uma oficina para apresentação da escrita
Braille, a equipe de design gráfico pôde entender como se dá a comunicação escrita junto aos cegos. Nesta
mesma oficina, a equipe fez uso de softwares utilizados por deficientes visuais, podendo vivenciar a
experiências táteis e sonoras.

Os principais questionamentos da equipe eram: Como se fazer entender sobre design gráfico para pessoas
cegas e como ter certeza de que este entendimento realmente estava ocorrendo? Os conceitos de semiótica e
percepção passaram a reorganizar as idéias da equipe. Segundo HEIDRICH e FLORES (2002) a Semiótica
estuda os efeitos do sentido. Ela investiga o significado em relação às diferentes culturas. O signo é cultural,
porque representa um determinado conceito e nunca aparece isolado, mas sempre dentro de um sistema de
signos, contextualizado. A percepção visual é semiotizada embora seja algo que ocorra automaticamente e
sem esforço, desde o momento em que abrimos os olhos e tomamos consciência dos objetos e que estes
passam a ter algum significado para nós.

Ao observarmos uma imagem, primeiramente, temos a percepção global, que visualiza o todo, mas destaca
os elementos pop-out . Posteriormente passamos à percepção analítica que é mais detalhada, dirigida pela
atenção que é intencional e cultural. Considera-se a primeira percepção, a mais global, que chama atenção
pelo todo. Destaca os elementos pop-out, que são os alvos que nos saltam aos olhos. Segundo TREISMAN
(1999:143), “os traços que permitem o pop-out na pesquisa visual são extraídos por módulos autônomos,
onde, cada um estabelece sua própria série de “cartas” topográficas codificando a disposição no espaço de
traços particulares cuja análise lhes retorna”. O elemento perturbador denominado por TREISMAN como
estímulos não alvo, também faz parte da percepção visual inicial dividindo a atenção do observador em
relação ao pop-out.

Foi constatado que os estudos sobre percepção e semiótica abrangem aspectos possíveis de serem analisados
por videntes. Como tornar a comunicação efetiva numa relação de designer-cliente se este é cego?

A partir deste primeiro estudo acerca da percepção e da linguagem visual para não-visuais, a equipe partiu
para um etapa de pesquisa, onde levantou-se dados para fundamentação de um trabalho permeado por
aspectos não-visuais. A leitura de artigos e textos abordando o tema foi a base para o início desta etapa.
Ainda, a realização de um levantamento de identidades visuais em instituições similares, permitiu uma visão
da área a ser abordada. Buscando maiores informações sobre processos de impressão e materiais específicos
para deficientes visuais, recorreu-se a reuniões junto à profissional responsável pelo atendimento pedagógico
aos deficientes visuais na Associação dos Deficientes Visuais de Novo Hamburgo. Estes encontros
permitiram a compilação e entendimento acerca de possibilidades técnicas para produção de material gráfico
dirigido ao público em questão.

Através das etapas anteriores, interação com aspectos não-visuais e levantamento de dados, a equipe pôde
iniciar os primeiros estudos para desenho do símbolo. Tendo como pressuposto tratar-se de um redesenho,
levou-se em consideração que a estrutura geral do símbolo seria mantida, porém aspectos formais seriam
revistos a fim de promover melhor leitura do desenho. Nesta etapa, identificou-se os principais problemas do
desenho até então utilizado pela instituição (Fig. 1), sendo eles: desestruturação, desproporção e
descontinuidade formal.
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Fig. 1 – Assinatura visual utilizada pela instituição antes do projeto de redesenho.

A reformulação do desenho seguiu para a busca de solução que estruturasse a forma do ícone, a fim de que a
proporção e a continuidade formal fossem características presentes. O desenho do corpo e a posição da
bengala foram arranjados de maneira a permitir uma leitura mais continuada do símbolo (Fig. 2).

Fig. 2 – Evolução no redesenho do símbolo

Para o logotipo (Fig. 3), buscou-se aspectos essencialmente de equilíbrio, dando-se destaque maior a
abreviatura “ADEVIS-NH”, nome pelo qual a associação é mais conhecida. A tipografia escolhida tem
aspectos de proporção em relação ao símbolo, sendo as letras de espessura similar à moldura do símbolo.

Fig. 3 - Logotipo

A junção entre símbolo e tipografia apresentou-se de maneira horizontal e vertical (Fig. 4), respeitando-se
um módulo geométrico para definir posicionamentos e espaçamentos. A preocupação em dividir o espaço de
forma geométrica, facilitaria a etapa seguinte do trabalho, quando a assinatura visual deveria apresentar-se
dirigida ao público de deficientes visuais.
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Fig. 4 – Junção do símbolo e logotipo: vertical e horizontal

Destaca-se, ainda, que enquanto estruturava-se o desenho visual, paralelamente já se traçavam os esboços
referentes ao desenho em relevo (Fig. 5). A similaridade do desenho em relevo com o desenho visual deveria
refletir a identidade da assinatura. Com esta premissa, o estudo da assinatura em relevo contou com o apoio
da professora responsável pelo ensino do Braille na Associação. Foram necessárias diversas tentativas até se
chegar à aplicação ideal em relevo, observando fatores como tamanho, proporção e facilidade de leitura
pelos deficientes visuais. Segundo PIERON (2003) sobre a superfície cutânea total do corpo “somos levados
a admitir cerca de trezentos e cinqüenta mil sinais táteis locais distintos. Graças à presença de uns trinta
destes receptores táteis individualizados num centímetro quadrado da polpa dos dedos, a discriminação dos
pontos, cujo número e disposição caracterizam as letras no alfabeto Braille e asseguram a leitura tátil, torna-
se possível para cegos”.

Tanto a tipografia quanto a linha de moldura do símbolo foram adaptados para serem representados através
de uma fileira de pontos. Esta observação, informada pela professora de Braille, revela a melhor adaptação
dos deficientes visuais para identificar letras e desenhos expressos em linhas e formas mais simplificadas.
Linhas duplas apresentariam empecilhos de leitura, tal como a dificuldade de identificação da forma.

Fig. 5 – Imagem em pontos, compondo o desenho em relevo. Espaçamentos seguiram a proporção permitida pela
impressora Braille.

A última etapa metodológica consistiu das aplicações da assinatura em material gráfico (Fig. 6). A
necessidade de produzir material específico para cegos e com custo reduzido, dependeria de grande interação
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entre os designers, a Associação e uma gráfica. Esta troca de informações e serviços permitiria o andamento
das aplicações onde, cada um dos envolvidos, teria a participação numa parte do processo.

Fig. 6 – aplicação em material de expediente básico

O material de expediente básico (cartões de visita, papel de carta, envelope e pasta) seguiu com a utilização
das cores institucionais. Dentre estes materiais, destaca-se o cartão de visita que receberia impressão sobre
papel apropriado para registro do Braille, respeitando a seguinte ordem de produção: na gráfica, o papel
receberia a impressão em tinta; ainda sem corte, a gráfica repassaria a impressão para associação que, em
impressora especial, adicionaria o Braille; os papéis já impressos em tinta e relevo retornariam à gráfica para
corte. Este esquema permitiu produção com base nos recursos disponíveis, além de dispensar a fabricação de
matriz para relevo, oportunizando maior facilidade para inclusão de informações Braille.

4 - Considerações Finais

Encontra-se em estudo, no momento, os demais materiais gráficos, tais como uma capa para apostila de
alfabetização Braille e capas para livros da biblioteca. Neste último, observa-se a importância de privilegiar a
possibilidade dos próprios deficientes visuais localizarem os livros na estante, abrindo espaço para inclusão e
independência dos mesmos.

O trabalho ainda não está finalizado, mas os resultados são otimistas, na medida que o próprio
desenvolvimento do projeto permitiu a interação dos designers com um aspecto pouco abordado no design
gráfico: a percepção não visual. Nota-se que a integração com o público em questão, os cegos, foi
fundamental para entender a comunicação por meio do tato, bem como permitiu que limitações técnicas
fossem sanadas através de um trabalho conjunto entre designers e profissionais acostumados a lidar com
deficiência visual.

A possibilidade de rever os conceitos de apresentação de projeto, privilegiando a comunicação pelo tato, foi
de fato o aspecto mais interessante deste trabalho. Pensando que, sob o ponto de vista do design gráfico
impresso, a percepção é, geralmente, fortemente atrelada a fatores visuais, este estudo contribuiu para uma
abordagem diferenciada, verificando-se que a comunicação impressa pode se dar de maneira mais completa,
à medida que os conceitos de design são perpassados para além do sentido da visão.
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Bibliografia

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DESPORTOS PARA CEGOS - ABDC. Legislação. Disponível em:


http:// www.abdcnet.com.br. Acesso em: 11 abr. 2005.
BOZZINI, A. C. A.; MALAVIDA, L. M. S.; POLONIO, L. M. Prevenção: a única solução. APAE:
CAPELL, 1991.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria da Educação Especial. Subsídios para a
formulação da política nacional de educação especial. Brasília, 1993.
CAVALCANTE, A. M. M. Educação visual: atuação na pré-escola. Revista Benjamin Constant, Rio
de Janeiro, n.1, p.11-30, set. 1995.
CIDADE, R. E.; FREITAS, P. S. Introdução à educação física e ao desporto para pessoas portadoras
de deficiência. Curitiba: Ed. da UFPR, 2002.
CRAFT, D. H.; LIEBERMEAN, L. Deficiência visual e surdez. In: WINNICK, J. P. Educação física e
esportes adaptados. Barueri: Manole, 2004. p.181-205.
FUGITA, M. A percepção do próprio nadar, de nadadores deficientes visuais e nadadores videntes.
2002. 81f. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Educação Física, Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo, 2002.
HEIDRICH, R. O., FLORES, M. B., SANTOS, S. C. Análise Semiótica do quadro “Lãs Meninas” a
partir de viagem em mundo virtual In: I Congresso Internacional de Pesquisa em Design e 5º
Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design, 2002, Brasília.
INTERNATIONAL Blind Sports Association-IBSA. Manual. Disponível em:
http://www.ibsa.es. Acesso em: 01 abr. 2005.
KIRK, S. A.; GALLAGHER, J. J. Educação da criança excepcional. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
MUNSTER, M. A. VAN; ALMEIDA, J. J. G. Atividade física e deficiência visual. In: GORGATTI,
M. G.; COSTA, R. F. Atividade física adaptada: qualidade de vida para pessoas com necessidades
especiais. São Paulo: Manole, 2005.
NABEIRO, M. Atividade física e o deficiente visual. In: SIMPÓSIO PAULISTA DE EDUCAÇÃO
FÍSICA ADAPTADA, São Paulo, 1992. Anais. São Paulo: EPESUSP, 1992. p. 99-102.
PIÉRON, Henri. A Sensação. Portugal: Publicações Europa-América, 2003.
STRUNCK, Gilberto Luiz Teixeira Leite. Como criar identidades visuais para marcas de sucesso.
Rio de Janeiro: Rio Books, 2003.
TREISMAN, ANNE. A percepção, os traços e a percepção dos objetos. In: Introdução às Ciências
Cognitivas de Daniel Andler, tradução de Maria Suzana Marc Amoretti, editora UNISINOS, 1998.

Regina de Oliveira Heidrich rheidrich@feevale.br


Arina Blum arina@feevale.br
(Microsoft Word - Redesenho da identidade visual de uma associa\347\3... http://74.125.77.132/search?q=cache:vAv4XeZ36tMJ:www.anpedesign.o...

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Esta é a versão em html do arquivo http://www.anpedesign.org.br/artigos


/pdf/Redesenho%20da%20identidade%20visual%20de%20uma%20associa%E7%E3o%20de%20defici%85.pdf.
G o o g l e cria automaticamente versões em texto de documentos à medida que vasculha a web.

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Redesenho da identidade visual de uma associação de deficientes visuais


Redesign of the visual identity of one nonprofit organization enabling blind

HEIDRICH, Regina,
Doutora, Centro Universitário Feevale
BLUM, Arina,
Especialista, Centro Universitário Feevale

Palavras-chave : deficiência visual, comunicação, design gráfico

Este artigo relata a experiência de um projeto para redesenho da identidade visual de uma Associação de Deficientes
Visuais. Com o objetivo de fortalecer a identidade frente ao público vidente e, ainda, comunicá-la a deficientes visuais,
este projeto aborda a metodologia de criação para desenvolvimento de um trabalho embasado na inter-relação dos
sentidos de tato e visão no design impresso. A percepção sob o ponto de vista do design gráfico é, em geral, fortemente
atrelada a fatores visuais. Na grande maioria dos projetos de design impresso, o sentido da visão é explorado como
forma de comunicação, enquanto os sentidos de tato, olfato e audição praticamente não são abordados.

Key-Words: visual impairments , comunication, graphical design

This paper tells the experience of a project for redesigns of the visual identity of one nonprofit organization enabling blind or
visually impaired people to achieve equality and access. With the objective to fortify the identity front to the people without
vision problem and, still, to communicate a people with visual impairments. This project approaches the methodology of
creation for development of a work based in the interrelation of the sense touch, and vision in design printed matter.
The perception in the point of view of graphical design is in general connected to the visual factors. In the great majority of
the projects of design printed matter, the direction of the vision is explored as communication form, while the senses like
touch, olfact and audition are not boarded.

1- Introdução

Este artigo relata a experiência de uma equipe de designers desenvolvendo um projeto gráfico para cegos.
Constata-se o desconhecimento, pelos integrantes da equipe, de aspectos ligados a deficiência visual e baixa
visão. Segundo a OMS-Organização Mundial de Saúde, cerca de 1% da população mundial apresenta algum
grau de deficiência visual. Mais de 90% encontram-se nos países em desenvolvimento. Nos países
desenvolvidos a população com deficiência visual é composta por cerca de 5% de crianças enquanto os

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(Microsoft Word - Redesenho da identidade visual de uma associa\347\3... http://74.125.77.132/search?q=cache:vAv4XeZ36tMJ:www.anpedesign.o...

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August 2008 www.bestcityevents.com
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DE JAH
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COVER STORY
Tribo De Jah brings “Brazilian Reggae” to South Florida
Tribo De Jah para o Sul da Flórida

A
Tribo de Jah trará sua marca

T
ribo de Jah will bring their unique
brand of “Brazilian Reggae” to fans exclusiva do “Reggae Brasileiro”
-
in South Florida this summer. aos fãs do sul da Flórida neste verão.
Presented by Nubia Rose Magazine, MW Apresentados pela Revista Nubia Rose,
Star Productions and Best City Events, this Estilo de Vida Brasileiro, MW Star
group will perform in English, Portuguese Productions e o Jornal Best City Events, este
and Spanish for a one night engagement at grupo se apresentará em inglês, português e
Club Cinema, 3251 N. Federal Highway, espanhol para um encontro de uma noite no
Pompano Beach on Friday, August 1 at 9 Club Cinema, 3251 N. Federal Highway,
p.m. Pompano Beach, na sexta-feira, dia 1º de
agosto, às 21 horas.
Tribo de Jah is a six-member band of
musicians who met at the School for the A Tribo de Jah é uma banda formada por
Blind in São Luís, capital of the state of seis músicos que se conheceram na Escola
Maranhão, in northern Brazil. para Cegos em São Luís, capital do estado
do Maranhão no norte do Brasil. Essa região
That region has been called the “Brazilian é chamada de “Jamaica Brasileira”. Uma
Jamaica.” Another unique feature of Tribo outra característica exclusiva da Tribo de
de Jah is that five of the six members of the Jah é que cinco dos seis membros são cegos
group are blind (one has only partial vision SHOW INFORMATION/ (um possui apenas visão parcial e os outros
while the other four are totally without sight). INFORMAÇAO DO SHOW quatro são totalmente cegos).

When the group later met up with vocalist


and broadcaster Fauzi Beydoun, a native of Tribo de Jah Quando o grupo mais tarde conheceu o
Sao Paulo who had just returned to Brazil vocalista e comunicador Fauzi Beydoun,
from the Ivory Coast in Africa, he brought Friday, August 1 at 9 p.m. natural de São Paulo, que havia acabado
with him a love of the reggae rhythms. They Na sexta-feira, dia 1º de agosto, de retornar ao Brasil vindo da Costa do
then fused their “reggae” music with às 21 horas. Marfim, na África, trazendo com ele o amor
messages of political and social issues, Club Cinema, 3251 N. Federal pelos ritmos do reggae. Eles então
spiritual love and peace. Highway, Pompano Beach combinaram seu “reggae” com mensagens
de conteúdo político e social, amor espiritual
The style of Tribo de Jah includes many Tickets are $25 in advance and $30 at the e paz.
elements of Brazilian culture blended with door. For more information or to purchase
original Jamaican reggae to create “Brazilian tickets, please call 954-684-6421or visit O estilo da Tribo de Jah inclui muitos
Reggae.” www.bestevents.com. elementos da cultura brasileira mesclada
com o reggae jamaicano para criar o
Their energetic performances and onstage Os ingressos custam $25, se comprados com “Reggae Brasileiro.” Suas apresentações
expression are quite impressive and have antecedência ou $30 na hora do show. Para dinâmicas e presença de palco são
delighted audiences around the world. mais informações ou para comprar extraordinárias e têm deliciado as platéias
ingressos, ligue para 954-684-6421 ou
em todo o mundo.
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For more than ten years of performance,
Tribo de Jah has performed throughout Brazil Places to purchase tickets/ Durante mais de dez anos de espetáculos, a
and internationally. Estabelecimentos para comprar os tickets: Tribo de Jah se apresentou em todo o Brasil
e internacionalmente. Sua turnê atual
Their current tour takes them from their Brazil USA Sandalfoot Plaza, 561-483-2618 continua depois da apresentação no sul da
A Brazilian Hair, Atlantic Blvd.,
engagement in South Florida to Orlando on Flórida, levando-os para Orlando, no dia 2
Pompano Beach, 954-678-8714
August 2. de agosto.
Best City Events/Melhores Eventos da Cidade www.bestcityevents.com 3
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Visão e Trabalho com Cegos

A Visão

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

Mensagem do P.I. Al Brandel


(Partes do seu Programa)

9Quero celebrar os serviços Lionísticos comunitários, renovar o


orgulho do significado de ser Lion…

9Ajudarmos as pessoas que perderam a visão a se ajustarem à


sua nova condição.

9Divulgar a mensagem Milagres Através do Serviço e Heróis de


Todos os Dias, com:
• Trabalho em equipe
• Serviços humanitários
• Apoio total/captação de recursos.

9“O companheiro Lion mais importante é o sócio do clube. O


que é vital são as pessoas que servimos e os Lions que as
servem.”

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

Objectivos
1. Implementar um Programa para instruir o público sobre
a cegueira

2. Evitar e combater a cegueira evitável

3. Organizar a recolha de armações e óculos usados

4. Incentivar a realização de rastreios visuais

5. Comemoração do Dia Mundial da Visão

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

Programa
1. Identificar e caracterizar os deficientes visuais segundo
as várias patologias.

2. Promover e melhorar a qualidade de vida dos


deficientes visuais.

3. Fomentar a criação, em todos os Clubes Lion do


D115CN, de um grupo de trabalho “Comissão para a
Visão”.

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

Caracterização do Programa
Incidência e Prevalência

ƒ A OMS calcula que nos próximos 25 anos a população invisual


poderá duplicar.

ƒ 1 em cada 4 crianças não consegue ver sem óculos e há cerca


de 40 milhões de cegos em todo o mundo.

ƒ Portugal com 130 a 140 mil invisuais.

ƒ Cerca de 500 milhões de pessoas melhoraria com uns simples


óculos de graduação mínima.

ƒ A OMS estima que 153 milhões de pessoas têm erros de


refracção não corrigidos.

ƒ Em 2.000 havia cerca de 15 milhões de pessoas portadoras de


Oncocercose.

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

Referências estatísticas

- A reciclagem de óculos custa menos de 10 cêntimos a unidade.

- Óculos colectados em 2005/2006 75.898 Centro de Reciclagem

- Óculos distribuídos em 2005/2006 18.186 Espanha

- Em 2004/2005 recolheram-se cerca de 5 milhões de óculos


- Foram distribuídos mais de 3 milhões a nações em desenvolvimento.

- Os Lions de todo o mundo recolhem cerca de 20 milhões de óculos por


ano.

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

Referências estatísticas
Caracterização segundo o grau de incapacidade
45000
40969
Fonte: INE – Censos 2001
40000
N = 59.125
35000

30000

25000

20000

15000

10000
4733 5183 4119 4121
5000

0
S/grau < 30% 30 - 59% 60 - 80% > 80%
atribuído

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

Referências estatísticas
Distribuição Nacional e Glaucoma

PAÍS NORTE %

P. Residente 10.599.095 3.744.341 35,3%

Deficientes visuais 163.569 59.125 36,0%

Glaucoma 72.519 0,7%


Fonte: INE – Censos 2001

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Visão e Trabalho com Cegos

Referências estatísticas
Distribuição - áreas geográficas - Lions Clubes
Clubes Lion Nº. D V Clubes Lion Nº. D V

Arouca 420 Porto / Foz / Boavista 5.161


Barcelos 1.705 Póvoa de Varzim 1.218
Braga 3.521 Santa Maria da Feira 1.576
Bragança 511 Santo Tirso 1.286
Espinho 372 São João da Madeira 306
Esposende 673 Tarouca 52
Fafe 706 Trofa 510
Guimarães 2.082 Vale de Cambra 464
Macedo de Cavaleiros 284 Viana do Castelo 2.479
Maia 1.727 Vila do Conde 1.447
Matosinhos 3.202 Vila Nova Cerveira 101
Oliveira de Azeméis 1.114 Vila Nova Famalicão 2.181
Paços de Ferreira 621 Vila Nova de Gaia 5.155
Ponte de Lima 506 Vila Real 1.157
Fonte: INE – Censos 2001

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Visão e Trabalho com Cegos

Referências estatísticas
Patologias mais frequentes

Diabetes Hipertensão

Catarata Degenerescência macular

Tracoma Glaucoma

Retinopatia Oncocercose

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Visão e Trabalho com Cegos

Referências estatísticas
Patologias mais frequentes em números

DIABETES 658.945
GLAUCOMA 72.519
CEGUEIRA 140.000
RETINOPATIA 78.403
HIPERTENSÃO 2.013.619
DEFIC. VISUAIS 163.515
ONCOCERCOSE 15.000.000
Fonte: INE – Censos 2001; Pesquisa Google

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Visão e Trabalho com Cegos

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Louis Braille
● ● ● ● ●
● ● ● ●

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Visão e Trabalho com Cegos

Caracterização do Programa
Aprovação

1. Apresentação do Programa ao Gabinete do D115CN


para aprovação

2. Elaboração de uma “Comissão da Visão” em cada


Clube Lion e eventualmente em cada Divisão Lion

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Visão e Trabalho com Cegos

Caracterização do Programa
Calendarização

- Projecto de trabalho para o D 115 CN AL de 2008 / 2009

- Início no mês de Outubro

- Recolha dos materiais em Junho de 2009

- Eventual aplicação em anos futuros

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Visão e Trabalho com Cegos

Actividades

™ REALIZAÇÃO DE RASTREIOS

™ RECOLHAS DE ÓCULOS, ARMAÇÕES E OUTROS

™ ANGARIAÇÃO DE FUNDOS

™ SENSIBILIZAÇÃO DA POPULAÇÃO

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Visão e Trabalho com Cegos

RASTREIOS

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Visão e Trabalho com Cegos

Rastreios
1. Realização de rastreios visuais, envolvendo a população e
com a colaboração de:
a) Escolas e Ópticas
b) Entidades ligadas à saúde, Município e outros

2. Rastreios de Diabetes / Hipertensão / Dislipidémia, e com a


colaboração de:
a) Laboratórios da especialidade
b) Farmácias e Sector da saúde
c) Associações de utilidade pública

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

RECOLHA DE ÓCULOS

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Visão e Trabalho com Cegos

Recolha de Óculos
1. Contactar os serviços que têm actividades ligadas à visão:
a) Hospitais, Clínicas médicas, U.S.F e Centros de Saúde
b) Ópticas e afins
c) Associações ligadas à problemática da visão

2. Promover a recolha de todo o material que possa servir e beneficiar o


deficiente visual.

3. Criação de Caixas para a recolha dos materiais e colocação nos locais


de maior impacto:
a) Cafés e restaurantes
b) Centros comerciais e mercados
c) Farmácias, ópticas, consultórios e outros locais de saúde
d) Bancos, mercados, e estações de transportes

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

ANGARIAÇÃO
DE
FUNDOS

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

Angariação de Fundos
1. Venda de materiais elaborados pelos deficientes visuais

2. Elaboração de projectos e candidaturas a Lions Internacional visando a


obtenção de subsídios para campanhas.

3. Solicitar às entidades locais materiais de apoio e ou subsídios visando


a actividade que se pretende dinamizar.

4. Comunicação Social.

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

SENSIBILIZAÇÃO
DA
POPULAÇÃO

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

Sensibilização da população
1. Promoção de Reuniões, Simpósios e ou Workshops
• Problemática da visão
• Reinserção social

2. Comemoração do Dia Mundial da Visão – 15 de Outubro – com


a participação responsável e responsabilizável da
• Comunicação Social
• Público em geral

3. Elaboração de cartazes e panfletos apelativos, distribuindo-os


e afixando-os nos locais apropriados.

4. Utilização da Comunicação Social para a divulgação dos


projectos a realizar.

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

Sensibilização da população

5. Solicitar a passagem de slogans alusivos ao tema nos jornais e rádios,


de acordo com as características locais da comunidade.

6. Criação de Bolsas de Estudo para deficientes visuais, promovidas


pelos Lions das respectivas comunidades.

7. Apoio aos Lares de 3ª. Idade que pela sua múltipla patologia associada
à diminuição da visão para elaboração de trabalhos de artesanato,
música, dança e passeios.

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

13 Centros de Reciclagem
7 – Estados Unidos;
1 – Austrália, Canadá, Itália, França, A. do Sul e Espanha

Centro Reciclaje de Gafas Melvin Jones


Calle Espronceda, 22 – bajo dcha
03690 SAN VICENTE DEL RASPIEG – ALICANTE
ESPANHA

Contacto: Pedro Bellón, cc, DM 116


E-mail: pbcl2002@latinmail.com / pbcl2002@unlimitedmail.org
emiliomym@hotmail.com
Telefone – 34 965 22 91 92 e 34 966 30 24 44

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

Dear Lions and Ladies:

I am your opportunity. I am knocking at your door. I want to be adopted. I am the youngest


here, and what I offer you is full of splendid opportunities for service.

The American Foundation for the Blind is only four years old. It represents the best and most
enlightened thought on our subject that has been reached so far.

Picture yourself stumbling and groping at noonday as in the night; your work, your
independence, gone. In that dark world wouldn't you be glad if a friend took you by the hand
and said, "Come with me and I will teach you how to do some of the things you used to do
when you could see"?

It is the caring we want more than money. The gift without the sympathy and interest of the
giver is empty. If you care, if we can make the people of this great country care, the blind will
indeed triumph over blindness.

The opportunity I bring to you, Lions, is this: Will you not help me hasten the day when there
shall be no preventable blindness; no little deaf, blind child untaught; no blind man or woman
unaided? I appeal to you Lions, you who have your sight, your hearing, you who are strong
and brave and kind. Will you not constitute yourselves Knights of the Blind in this crusade
against darkness?

I thank you.

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

“Lions,
eu sou a vossa oportunidade”

Vocês que enchergam e escutam,


Vocês que são fortes, corajosos e bondosos,
Vocês aceitariam ser os Paladinos dos Cegos
nesta cruzada contra a escuridão?

9ª. Convenção Internacional de Lions Clubes


Cedar Point, Ohio - EUA
Helen Keller
30 de Junho de 1925

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

Milagres através do Serviço

“… os Lions são
os heróis de todos os dias”

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009


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Visão e Trabalho com Cegos

E vós Lions de Portugal

Aceitais ser os heróis de todos os dias

e trabalhar para a melhoria da qualidade de vida

dos vossos dependentes visuais

nesta cruzada contra a escuridão?

CL Rui Sampaio | Assessor da Visão | D 115 CN | AL 2008/2009

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