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ISSN 1413-389X Temas em Psicologia da SBP—2003, Vol. 11, no 2, 134– 146
Resumo
Esta pesquisa descreve e analisa três fases de um procedimento de intervenção com duas crianças surdoce-
gas pré-lingüísticas. O estudo foi desenvolvido em uma escola especial de Brasília e nas residências, duran-
te nove meses. O objetivo foi implementar e avaliar procedimentos de intervenção com os sujeitos, basea-
dos na abordagem co-ativa de van Dijk e na perspectiva sócio-histórica. Os resultados sugerem que as es-
tratégias propostas por van Dijk na década de 60 mostraram-se eficazes quando associadas a práticas de
sala de aula que privilegiaram o uso simultâneo de vários recursos alternativos de comunicação (Libras,
gestos, movimentos corporais coordenados, Tadoma, escrita, fala, objetos de referência etc.). As alunas,
que inicialmente apresentaram uma comunicação expressiva elementar, no final da pesquisa, passaram a
apresentar novas competências comunicativas baseadas no uso de sinais, escrita, bem como melhoraram no
desempenho nas suas tarefas, concentração e comunicação, passando a demandar mais informações do seu
meio.
Palavras chave: criança surdocega, comunicação, ensino especial, movimento co-ativo.
Trabalho apresentado XXXIII reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, Belo Horizonte, MG, outubro de
2003.
Apoio financeiro: FAPESP e CAPES
Endereço para correspondência: Via Washington Luís, km 235 – Caixa ostal 676 – São Carlos – SP – CEP13565-905.
E-mail: pabdalah@bol.com.br
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135 Prática educacional com crianças surdocegas
do a mão da criança sobre a sua. Gradativa- uma ênfase nas indicações táteis como uma
mente, o professor vai permitindo que a criança forma de viabilizar às crianças o acesso às
entre em contato com o objeto do conhecimen- informações através do movimento e das sen-
to. O objetivo é ampliar a ação motora do sur- sações, maximizando e otimizando seus senti-
docego no ambiente. dos remanescentes. Proporcionam-se, assim,
Durante a fase da referência não repre- novas condições da relação entre as influên-
sentativa introduz-se o uso do objeto de refe- cias recíprocas dos fatores biológicos
rência como um recurso mediador da interação. (habilidades e recursos que a criança dispõe) e
O objetivo é relacionar determinados objetos sócio-culturais, na aprendizagem de novos
com as atividades a serem realizadas (Bloom, repertórios de comportamentos das crianças
1990). A apresentação do objeto inicialmente surdocegas (Vygotsky, 1988).
precisa ser contextual; depois se promove sua Para o desenvolvimento desta aborda-
descontextualização, passando a utilizá-lo co- gem na prática escolar, é necessário um pro-
mo uma referência que antecipa a atividade grama educacional cuidadosamente determi-
programada. Para tanto, o objeto reduzido ou nado. A organização do ambiente de trabalho
simplificado, precisa ter uma equivalência sim- ajuda o surdocego a memorizar a disposição
bólica com o real e com a atividade a ser de- dos materiais permanentes facilitando sua ori-
senvolvida. entação e mobilidade no espaço da sala de
A quinta fase é a imitação, representa a aula. O estabelecimento da rotina é fundamen-
continuação do movimento co-ativo de forma tal porque viabilizará melhores condições para
mais rica, uma vez que o surdocego começa a a criança evocar, combinar e se orientar nas
re-criar os elementos simbólicos assimilados a atividades do dia, podendo futuramente ante-
fim de conseguir a satisfação de suas necessi- cipar as atividades mediante o objeto de refe-
dades. rência da mesma. Para isto é importante colo-
O gesto natural é a última fase descrita car estes objetos em um espaço definido
por van Dijk (1968). Nesta fase, o surdocego (caixas de memória, mesa), segundo a seqüên-
começa a criar seus próprios gestos para repre- cia das tarefas a serem desenvolvidas no dia,
sentar algo que deseja conquistar. Transforma de tal forma que quando a criança chegar à
os movimentos corporais em instrumento de sala de aula possa tomar conhecimento da
comunicação. Assim, os primeiros gestos a programação. Após a realização da atividade,
serem utilizados no trabalho com surdocegos o objeto de referência é retirado do local, indi-
devem imitar um jogo motor, no qual todo o cando o fim da atividade (McInnes, 1999).
corpo participa da identificação do objeto ou
da situação. O que importa é representar os Método
objetos a partir do que se pode fazer com eles, Participantes
tornando claro o que se pretende realizar, exe- Participaram deste estudo duas crianças
cutar em um momento específico. Outro passo surdocegas, pré-lingüísticas, do sexo femini-
necessário é o nível co-ativo dos gestos natu- no, sem outros comprometimentos aparentes,
rais, isto é, o professor deverá repetir muitas porém com atraso no desenvolvimento da co-
vezes de forma atraente e lúdica o movimento municação. As crianças eram de famílias com
do gesto, antes da criança ser capaz de realizá- baixo nível socioeconômico. As duas residiam
lo de forma independente. Muitas vezes, é ne- em cidades do Distrito Federal distantes cerca
cessário que os gestos e os sinais sejam realiza- de 35 km de Brasília.
dos no próprio corpo da criança. Quando esta A identificação das alunas será 9I e 7G,
conseguir realizar o gesto sem ajuda, evidenci- os números representam a idade cronológica
ará que possui condições de falar sobre algo de cada uma durante o período de coleta de
que está ausente. Neste estágio, o mediador dados e as letras foram aleatórias. O compro-
deverá estimular a expressão da criança por metimento auditivo e visual em ambas foi de-
meio de perguntas. corrente da Síndrome da Rubéola Congênita.
Percebe-se que em todas as fases desen- A 9I possui oito anos de experiência escolar
volvidas e descritas por van Dijk (1968), há na rede pública de ensino especial e a 7G, três
anos.
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10. registro escrito em braile, mediante o uso do segundo a modalidade de serviço oferecido.
brailex e larabraile (materiais produzidos pela O objetivo foi proporcionar as alunas à
instituição Laramara situada em São Paulo), e oportunidade de comparar os objetos, identifi-
máquina braile modelo Perkins. car a mudança do espaço físico e orientar-se
Portanto, o procedimento mencionado em relação à seqüência de atividades e a mo-
priorizou a ação (movimento e representação), dalidade do atendimento, bem como se deslo-
estimulou à síntese visual (gráfica), a síntese car de uma sala para outra de forma autôno-
oro-tátil (vibração da emissão verbal). Além ma. Deste modo, elas eram estimuladas a en-
disto, incentivou a utilização de diferentes for- contrar salas, ou ainda, a levarem ou busca-
mas de registro (soletração dactilológica, braile rem material em salas diferentes.
digital, fonológica, gráfica, letras avulsas), re- 3. Conversa de roda. Teve por objetivo am-
presentação em Libras, aplicação e generaliza- pliar o vocabulário em sinais, palavras e ex-
ção do significado contextual, social e cultural pressões mediante a alternância de turnos de
da palavra. Buscou-se manter uma rotina de conversação. Inicialmente, estes momentos se
trabalho marcada pela regularidade e freqüên- restringiram a perguntas realizadas pela pes-
cia destes procedimentos, com vistas a ampliar quisadora com indução das respostas.
e diversificar o vocabulário. A título de exem- 4. Calendário. Teve por objetivo possibi-
plo descrever-se-ão outras atividades que fize- litar às alunas condições para se situarem em
ram parte da rotina. relação a: (a) atividade (começo, meio e fim);
1. Música. Teve por objetivo familiarizar os (b) sucessão das situações de aprendizagem
sujeitos com a seqüência, o ritmo e a melodia em espaços distintos e com outros profissio-
dos sinais e com a atividade comum aos de- nais; (c) renovação cíclica dos períodos (dias
mais alunos da escola. A interpretação em Li- da semana, meses), e (d) compreensão do ca-
bras era realizada pela pesquisadora, que ficava ráter irreversível do tempo (segunda-feira já
em frente à aluna (9I), no mesmo nível. Nesta passou). Enfatizou-se um tempo dinâmico,
posição, realizavam-se as seguintes etapas: (a) envolvendo relações de passado, presente e
marcação de cada sinal de forma lenta; (b) re- futuro dos acontecimentos. Para tanto, utiliza-
petição dos sinais através do movimento co- ram-se os seguintes materiais: ficha tridimen-
ativo; (c) realização dos sinais no campo visual sional (3D): rotina diária e do tempo; ficha 2D
ou no braço, mão da aluna; (d) indicação da nomes: dia, mês e ano; calendário adaptado e
música, através do sinal de referência. caixa de memória, conforme descritos anteri-
2. Orientação espacial. Teve por objetivos (a) ormente.
explorar as relações entre os objetos no espaço; A atividade do calendário foi dividida em
(b) locomover-se; (c) quantificar as portas exis- três partes: (a) tempo; (b) dia da semana e do
tentes a partir de um referencial; (d) identificar mês, e (c) organização da caixa de memória.
o espaço através dos indícios táteis e cinestési- O item referente ao tempo foi explorado em
cos associados à via visual durante a locomo- seis etapas, são elas: (1) pegar as fichas 3D-
ção, conforme lembram Huebner et al. (1995). tempo; (2) ir para o pátio; (3) selecionar as
As alunas eram estimuladas e orientadas a res- fichas representativas do dia (sol, frio etc.);
peito das pistas táteis presentes na parede e no (4) retornar à sala de aula; (5) representar na
piso da escola, bem como quantificar as portas. lousa e depois no papel as condições do dia;
Assim, com a mão fechada e tendo a mão da (6) guardar as fichas. Inicialmente, as etapas
pesquisadora abarcando a mão de uma aluna, eram orientadas pela pesquisadora, depois
liberava-se para cada porta um dedo da mão da pela professora, no final as alunas as realiza-
aluna e os demais permaneciam na posição vam sem ajuda.
original. No início, esta atividade foi realizada O item referente ao dia da semana e do
de maneira co-ativa, com ajuda total, depois mês consistiu em um processo de sete etapas:
com ajuda parcial, por fim a realização era in- (1) realizar a identificação e reconhecimento
dependente. de cada ficha 3D: rotina diária; (2) marcar o
Outra técnica consistiu no uso de objetos dia da semana; (3) estabelecer a correspon-
de referência para identificar as salas da escola dência entre o sinal e nome; (4) soletrar o no-
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quando a criança surdocega possui no seu am- dos à forma encontrada por elas para exterio-
biente familiar e escolar uma reciprocidade e rizar o interesse no estabelecimento e manu-
disponibilidade na utilização diversificada de tenção das relações interpessoais. Provavel-
recursos de comunicação, suas condições de mente, esta característica que emergiu nos
aprendizagem se ampliam melhorando suas resultados seja pertinente à tese de Chomsky
interações com seu meio físico e humano e, (1973) sobre a existência nos seres humanos
conseqüentemente, deste para com ela. de uma programação inata destinada a desen-
A teoria de van Dijk (1968) mostrou-se volver aptidões para a linguagem.
básica na estimulação da aprendizagem de sis- Porém, a presença apenas da motivação
temas alternativos de comunicação em crianças para a conversação não promoveu uma intera-
surdocegas, desde que consideradas suas parti- ção prazerosa. A motivação constituiu-se no
cularidades e as especificidades de seu contex- passo inicial do processo, no entanto a função
to histórico, social e cognitivo. Neste processo, cultural da comunicação demonstrou que: (a)
é importante não perder de vista que qualquer o apoio às intenções comunicativas das alu-
deficiência influencia o estabelecimento das nas, interpretando suas contribuições com ba-
relações interpessoais e exige a organização de se no contexto imediato e no objeto; (b) a ex-
novos padrões de interação. Para isto, as fases posição delas aos modelos alternativos de
de nutrição, ressonância, movimento co-ativo e conversação; (c) a participação em experiên-
uso do objeto de referência consistiram nos cias de interação apropriadas e adaptadas às
pilares básicos para o apoio e a ampliação dos particularidades da surdocegueira, evitando
recursos de comunicação utilizados pelos parti- sua exclusão das atividades promovidas no
cipantes deste estudo. âmbito escolar e familiar; foram condições
A realização dos movimentos co-ativos que contribuíram com a ampliação dos recur-
na apresentação de objetos, gestos, sinais ou sos de comunicação das alunas. Este fato re-
dactilologia se mostrou uma estratégia bastante percutiu positivamente no ambiente familiar
eficiente na medida em que proporcionou uma promovendo novos padrões de interação. En-
margem de segurança para as alunas explora- fim, não há um único fator desencadeador do
rem de forma sistematizada o ambiente próxi- desenvolvimento da comunicação, mas uma
mo, bem como contribuiu com a superação das série de situações que se relacionam, determi-
dificuldades de configuração das mãos na reali- nam e reforçam-se mutuamente promovendo
zação dos sinais ou das letras do alfabeto dacti- formas específicas de comportamento.
lológico. Os resultados nas áreas de AVD e mo-
Os dados obtidos durante a intervenção tricidade (coordenação e controle dos grandes
levaram a redefinir o papel do objeto de refe- e pequenos músculos) mostraram que a surdo-
rência na comunicação com surdocegos, uma cegueira não comprometeu o acesso das alu-
vez que, inicialmente, não era possível compa- nas a estes conhecimentos e, principalmente, a
tibilizar a atenção das alunas em relação à in- aprendizagem e desenvolvimento de habilida-
formação funcional do objeto com os comple- des a eles relacionadas. No entanto, quando se
mentos da interação entre os participantes. Foi passa do nível do contato com objetos concre-
necessário primeiro canalizar a atenção das tos e manuseáveis para o nível abstrato das
alunas para a pesquisadora, desenvolvendo relações e interações entre indivíduos da mes-
assim a atenção compartilhada e, só depois, ma espécie e do conteúdo cultural, verifica-se
apresentar o objeto de referência. Com isto, que o grau de acesso pelos surdocegos altera-
evitou-se a interação privilegiada entre sujeito se. Esta alteração evidencia a necessidade de
e objeto presente no comportamento apresenta- adaptação que promova as condições adequa-
do pela 7G, e introduziu-se a importância do das de aprendizagem. Este resultado confir-
outro na exploração do objeto do conhecimen- mou o que a literatura da área evidencia como
to. uma das principais implicações da surdoce-
Durante a pesquisa foi possível constatar gueira: acesso à comunicação expressiva e
que as alunas demonstravam motivação para a receptiva (Watkins e Clark, 1991; Wheeler e
conversação, sendo os movimentos coordena- Griffin, 1997).
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145 Prática educacional com crianças surdocegas
Artigo Científico
Resumo
Esta pesquisa tratou da relação de crianças com cegueira com seus irmãos mais velhos e teve
como objetivo buscar a compreensão de como essa relação se configura. Apoiou-se na
abordagem qualitativa seguindo os procedimentos metodológicos definidos por Lüdke e André
(1986), buscando analisar os dados a partir de categorias definidas levando em conta os
objetivos da pesquisa e o conteúdo das entrevistas e do Teste das Fábulas embasado em
referencial psicanalítico. Os sujeitos de pesquisa foram três mães de crianças com cegueira e
seus filhos com a idade de nove ou dez anos. Foram realizadas entrevistas com todos os
sujeitos. Os dados obtidos apontam que as crianças com cegueira buscam em seus irmãos fonte
de prazer, companheirismo e modelos de identificação, mesmo quando possuem uma relação
conflituosa. Os achados desta pesquisa confirmaram que esta relação influencia o
desenvolvimento dos indivíduos e sugerem que são necessários outros estudos acerca deste
tema. © Cien. Cogn. 2008; Vol. 13 (2): 160-178.
Abstract
This is a research involving the relationship among congenital blind children and older
siblings. The research targets, the understanding of how is the blind children relationship with
their older siblings by conducting interviews with them and their parents. The presently study
is supported by qualitative focus and follow the methodological procedure defined by Lüdke
and André (1986). The study seeks to analyze the data with defined categories by the objectives
of the study and the interview and legend test based in the psychoanalytic theory. Three
congenital blind children and their mothers were taken as subjects for this research. The
children ages were nine or ten years old. Interviews were carried out with mothers and
children, and the legend test was applied with the children. Drawn conclusion from data
collection points out that blind children, even in a brotherly conflicting relationship, find on
the siblings a pleasurable source, companionship and most of times a self identification model.
The research findings stress the point that the brotherly relationship is highly important for the
congenital blind children development, suggestions are made for additional studies to be taken
over this fact in order to lead our knowledge to a broader understanding over this subject.©
Cien. Cogn. 2008; Vol. 13 (2): 160-178.
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Ciências & Cognição 2008; Vol 13 (2): 160-178 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 15/06/2008 | Revisado em 24/07/2008 | Aceito em 25/07/2008 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 30 de julho de 2008
1. Introdução
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Ciências & Cognição 2008; Vol 13 (2): 160-178 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 15/06/2008 | Revisado em 24/07/2008 | Aceito em 25/07/2008 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 30 de julho de 2008
• Não há diferença significativa entre a interação fraterna dessas crianças e das crianças
videntes;
• A relação entre irmãos oferece uma oportunidade para a criança com cegueira desenvolver
comportamentos que a ajudam a adaptar-se à cegueira;
• A autora ressalta que, nos casos estudados, houve uma grande influência dos pais como
fator externo no relacionamento dos irmãos e lista as características observadas:
• Expectativas rígidas acerca do papel do irmão com relação à criança com deficiência;
• Sentimentos ambivalentes no que se refere a atender a demanda do filho com deficiência,
mas ao mesmo tempo não prejudicar o irmão;
• Dificuldade em notar as necessidades de cada filho separadamente;
• Dificuldade na inserção da criança com cegueira na dinâmica familiar;
• Influência dos pais na relação fraterna impedindo situações espontâneas (Lavine, 1977).
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Ciências & Cognição 2008; Vol 13 (2): 160-178 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição
Submetido em 15/06/2008 | Revisado em 24/07/2008 | Aceito em 25/07/2008 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 30 de julho de 2008
A literatura encontrada, apesar de limitada, mostra que a criança com deficiência pode
ser encarada como um peso tanto pra a relação familiar quanto para a relação fraterna. A
pesquisa de Villela (1999) que buscou o entendimento das repercussões emocionais nos
irmãos de crianças com deficiência visual aponta nesta direção.
Esta pesquisa avaliou dez crianças entre 6 e 11 anos de idade que possuíam irmãos
com deficiência visual. Foi concluído que existe um sofrimento específico nestas crianças
referente às suas fantasias inconscientes, que tomam um caminho peculiar devido à dinâmica
familiar. Sabe-se que a figura mais importante no desenvolvimento primitivo da criança é sua
mãe e que ela serve de modelo de identificação para as demais crianças. Nesta pesquisa foram
encontradas mães que estavam voltadas para o atendimento de seu filho com deficiência
visual e que esperavam compreensão de todos, não podendo perceber a demanda afetiva dos
demais filhos. “As crianças ficam aderidas a isto, e não reivindicam suas necessidades em
prol da preservação da boa relação com o irmão deficiente e com a mãe” (Villela, 1999: 179).
Villela (1999), ao fazer a análise desses dados, refere-se ao grande sofrimento psíquico
causado pela repressão da hostilidade e pelo afastamento das reais necessidades de afeto da
própria criança. Conclui, então, que essas crianças fazem parte de uma população de risco no
que se refere ao sofrimento emocional. Esses dados diferem dos encontrados por Powell e
Ogle (1992) referentes aos mecanismos psíquicos utilizados por essas crianças com a
finalidade de preservar a relação amorosa com o irmão com deficiência, o que estes autores
interpretam como evidência de níveis elevados de altruísmo, empatia e responsabilidade nos
irmãos de crianças com deficiência.
Pode-se perceber, pelos estudos de Villela (1999), bem como os de Powell e Ogle
(1992), a grande ênfase dada ao aspecto psíquico, afetivo e emocional gerado pela presença
de uma criança com deficiência visual na família. Cabe pois, aqui, uma pergunta: este
envolvimento psíquico, afetivo e emocional não diz respeito também à criança com a
deficiência no que tange ao seu relacionamento fraterno? Estudar então a relação entre irmãos
a partir de como a criança com cegueira a sente e percebe é de grande importância para a
compreensão da relação como um todo e no que se refere a crianças com cegueira. Tendo em
vista estas considerações iniciais, os objetivos desta pesquisa foram:
2. Método
A coleta dos dados foi norteada pelas características sugeridas por Bogdan e Biklen
(1992):
• O ambiente natural como fonte direta dos dados e o pesquisador o principal instrumento
da pesquisa;
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• Luiza (10 anos): freqüentava escola regular e atendimento especializado; filha de Carmem
(36 anos – doméstica) e Antônio (motorista de ônibus); irmã de Alex (20 anos) e Lúcia (10
anos – irmã gêmea);
• Ricardo (9 anos): freqüentava escola regular e atendimento especializado; filho de Marina
(40 anos – trabalhava em casa na confecção de bíblias) e José (47 anos – desempregado);
irmão de Renata (19 anos) e Luís (14 anos);
• Karina (9 anos): freqüentava escola regular e atendimento especializado; filha de Maria
(52 anos – do lar) e João (43 anos – coordenador de tráfego); irmã de Kelly (16 anos) e Karen
(9 anos – irmã gêmea). Os instrumentos para a coleta de dados foram os roteiros de entrevista
semi-estruturados e um gravador digital.
• 1ª camada: proprietários que empregam mão de obra assalariada e alta classe média,
assalariada ou não que pode ser considerada a “elite” socioeconômica.
• 2ª camada: “setores intermediários”, a média classe média, assalariada ou autônoma, e os
proprietários de pequeno negócio familiar urbano (comércio e serviços).
• 3ª camada: “massa trabalhadora urbana”, composta pela baixa classe média assalariada,
pelos segmentos operários e demais assalariados populares e segmentos inferiores dos
trabalhadores autônomos.
• 4ª camada: base do mercado de trabalho urbano, composto por trabalhadores assalariados
de segmento mais baixo, autônomos e empregadas domésticas; e a maioria de trabalhadores
rurais e agricultores familiares.
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poucos cômodos e parcos recursos. Cabe aqui fazer essa ressalva, já que ela pode ser um
motivo de diferenciação no cotidiano das famílias.
Com relação à coleta e registro de dados pode-se destacar:
2.2. Instrumentos
2.3. Entrevistas
Outro recurso utilizado foi o Teste das Fábulas criado por Luisa Düss. Esse teste foi
apresentado primeiramente por esta autora em 1940, e possui um referencial teórico
freudiano. Sua primeira versão compunha-se de histórias incompletas que tinham o objetivo
de investigar conflitos inconscientes. Em 1950 Düss divulgou o resultado de suas pesquisas
com o teste ampliando-o posteriormente. Seu objetivo era obter um diagnóstico do complexo
e não uma classificação nosológica dos sujeitos investigados. Esse teste engloba uma forma
verbal e uma pictória. A primeira é composta de 10 fábulas, nas quais o herói, que pode ser
uma criança ou um animal, encontra-se em situações que representam cada fase do
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desenvolvimento psicossexual para Freud, sendo que essas situações por serem ambíguas e
simbólicas facilitam a projeção da criança e permitem a identificação de conflitos. Já a forma
pictória, possui 12 lâminas com ilustrações adequadas a cada história e que devem ser
apresentadas simultaneamente à forma verbal (Cunha e Nunes, 1993).
Nesta pesquisa foi utilizada apenas a forma verbal do teste porque as crianças
estudadas são desprovidas do sentido da visão, e também a utilização da forma pictória não é
recomendada por Cunha e Nunes (1993) para crianças a partir dos 8 anos.
A aplicação realizada foi individual contando com um inquérito posterior a cada
resposta, quando possível, e este inquérito tem por finalidade o enriquecimento da resposta
para posterior avaliação. A avaliação, por sua vez, foi realizada segundo modelo proposto por
Cunha e Nunes (1993).
Optou-se pela utilização do Teste das Fábulas, pois ele possibilita, através de suas
histórias, a investigação de alguns temas do desenvolvimento da criança. A relação entre
irmãos é tratada especificamente na fábula três que, além das reações frente ao desmame,
engloba o tema da rivalidade fraterna. Foi aplicado o teste na íntegra, vez que a relação entre
irmãos poderia também aparecer nas respostas a outras fábulas como ocorreu no caso de
Ricardo e Karina.
2.5. Procedimentos
• Entrevista preliminar com a mãe das crianças para a apresentação da pesquisa e assinatura
do termo de consentimento livre e esclarecido, bem como para investigar a percepção das
mesmas sobre a relação de seus filhos;
• Entrevista com as crianças para a investigação sobre sua relação com seus irmãos mais
velhos.
O registro das entrevistas foi realizado através da gravação das mesmas e posterior
transcrição. Esta forma de registro demonstrou-se muito eficaz pois permite captar as
informações de maneira imediata e absolutamente fiel à forma como são expressas, evitando,
assim, a seleção de informações pelo entrevistador. A gravação permitiu ao entrevistador,
reiterando Lüdke e André (1986), acompanhar de forma mais livre a fala e as expressões dos
entrevistados. Algumas dificuldades em relação à entrevista gravada, tais como as expressões
faciais, corporais e mudanças de postura foram registradas pela entrevistadora, imediatamente
após o encerramento da entrevista. O gravador, apesar de poder ser um instrumento inibitório
para o sujeito, já que nem todas as pessoas sentem-se à vontade frente à gravação de sua fala,
isto não ocorreu nestas entrevistas. Uma dificuldade foi a transcrição da fala do entrevistado
para o papel, pois esta operação não é tão simples quanto se imagina, tomando várias horas e
apresentando informações cruas nas quais é difícil destacar as informações centrais.
A análise dos dados coletados foi realizada em três etapas que se caracterizaram por:
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• 2ª etapa: foi feita a convergência dos dados da primeira fase buscando ligações entre eles;
• 3ª etapa: foi estabelecida a relação entre os dados obtidos nesta pesquisa e a literatura
científica encontrada sobre a temática.
3. Resultados e análise
A análise dos dados partiu da identificação de categorias presentes nos discursos dos
entrevistados e pela posterior identificação de convergências entre os sujeitos como segue:
Neste tópico é abordada a percepção das mães acerca da relação dos irmãos. Tanto
Maria quanto Marina afirmaram que eles se entendiam bem e participavam das atividades uns
dos outros, como por exemplo: Luís levava Ricardo à instituição de atendimento
especializado, quando Marina não podia. Carmem comentou que apesar de Lúcia ficar com
Luiza todo dia à tarde enquanto ela trabalhava, percebia que elas não tinham uma boa relação,
havendo pouco afeto entre elas e o não compartilhamento das atividades. Quanto à relação de
Luiza com o Alex, no momento da pesquisa, era restrita a contatos telefônicos, já que ele não
morava mais na mesma cidade que a família.
Um fator comum nas três famílias foi a presença de ciúme na relação dos irmãos.
Marina disse que Luís tinha ciúmes de Ricardo e achava que isso se devia a ela sempre
defendê-lo, e também pelo fato de, às vezes, Ricardo dormir com ela.
Carmem comentou que Luíza tinha muito ciúme, mas que quando Alex morava com
elas era pior, pois todos tinham ciúme uns dos outros, expressando várias vezes seu
descontentamento em ter irmãos. Maria contou que Karen tinha muito ciúme de Karina, não
ocorrendo o inverso, e Kelly, por sua vez, tinha ciúme das gêmeas. Relatou, ainda, a
ocorrência de competição entre Karen e Karina como, por exemplo, acerca do
desenvolvimento do seio.
Quanto à interferência das mães na relação dos irmãos todas as três relataram esta
ocorrência. Marina falou que, normalmente, favorecia Ricardo quando este brigava com Luís
a respeito de assistir televisão e disse ainda, que em alguns momentos, não precisava intervir,
pois eles se entendiam sozinhos. Maria também disse que, muitas vezes, precisava intervir na
relação das filhas e que procurava favorecer uma de cada vez, e Carmem comentou que
intervinha sempre, pois Lucia e Luiza brigavam muito por diversos motivos, como a
televisão, o telefone, entre outros. Tanto Carmem quanto Maria comentaram sobre suas
atitudes quando as gêmeas brigavam, chegando a se agredir fisicamente. Carmem batia nas
duas quando isso acontecia e Maria não favorecia nem uma nem outra.
Uma questão que apareceu apenas nas entrevistas de Marina e Maria, foi a relação dos
irmãos com amigos. Ambas disseram que eles não tinham amigos em comum. Marina falou
que Ricardo conhecia todos os amigos de Luís e que gostava deles e aqui deve-se chamar a
atenção para a discordância na entrevista de mãe e filho, já que Ricardo disse que não gostava
dos amigos de Luís. Maria comentou que, apesar das gêmeas não terem as mesmas amigas,
como eram da mesma classe na escola, acabavam fazendo parte do mesmo grupo e disse
ainda que elas (Karina e Karen) não gostavam das amigas de Kelly (irmã mais velha).
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Neste item está a análise das respostas das mães a respeito da relação entre pais e
filhos. As três entrevistadas afirmaram que agiam da mesma forma com todos os filhos. Aqui,
porém, destaca-se uma discrepância na entrevista de Marina, pois, ao mesmo tempo em que
ela disse que tratava os três filhos igualmente, comentou que nas brigas de irmãos sempre
favorecia Ricardo, o que deixava Luís com ciúme. Carmem falou que procurava não favorecer
nenhuma das duas e que quando elas brigavam e passavam a culpa de uma para a outra ela
batia nas duas. Já Maria comentou que se não agia da mesma forma com as três, sentia-se
culpada.
Quanto à relação das crianças com o pai, Marina expôs que o pai era frio e não dava
tanta atenção para os filhos, nem para Luís, nem para Ricardo. Maria também contou diversos
episódios nos quais precisou intervir na relação de Karina e João. Carmem foi a única das
entrevistadas que não contou com a presença do marido no diagnóstico da cegueira de Luiza e
no período posterior a este, pois já estavam separados, e falou que o ex-marido tinha pouco
contato com as filhas e que por muitas vezes chegava embriagado nas visitas sendo impedido
de vê-las por Maria.
Maria e Marina expressaram, de formas diferentes, certa dificuldade dos maridos em
lidarem com as limitações dos filhos. Marina contou que José não saía com Ricardo até mais
ou menos os quatro anos de idade, e que ela percebeu que ele tinha vergonha do filho. Já
Maria comentou que João teve muita dificuldade em aceitar que Karina andasse de bengala, e
que teve a impressão que ele não conseguia lidar com o fato da deficiência da filha poder ser
observada por outras pessoas de forma concreta.
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No que se refere às atividades de lazer que os irmãos faziam juntos o que apareceu de
semelhante foi que, independente das circunstâncias, os irmãos brincavam juntos, mesmo
quando brigavam muito e tinham tipos de brincadeiras diferentes.
Nesta categoria destaca-se o fato de que as três crianças afirmaram que gostavam de
sair com os irmãos. Ricardo para ir ao parque, passear de metrô ou ir à instituição de
atendimento especializado; Luiza para ir à casa da avó ou andar de bicicleta com o irmão; e
Karina para ir à feira e ao cabeleireiro.
Outra atividade comum eram as brincadeiras que variavam de acordo com a
preferência de cada um, mas estavam presentes nos três casos. Outra característica comum nas
entrevistas de Karina e Lúcia foi o fato de que ambas afirmaram que gostavam de assistir
televisão com as irmãs.
A única característica comum nos três casos foi referente a brigar; as três crianças
afirmaram que não gostavam de brigar com seus irmãos e o motivo das brigas era diferente,
dependendo de cada caso.
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1º - Item de maior convergência que aparece na relação entre a criança com cegueira e seu
irmão(ã);
2º - Itens convergentes nas famílias;
3º - Itens sobre a relação das mães com os filhos;
4º - Itens que aparecem apenas em um dos sujeitos, mas que assinalam pontos importantes das
relações que requerem atenção;
5º - Características específicas.
4.1. Item de maior convergência que aparece na relação entre a criança com cegueira e
seu irmão(ã)
Nos três casos, de formas e em graus diferentes, ficou claro o papel que os irmãos
representavam quando: Ricardo afirmou que gostava muito de brincar e passear com Luís,
como ir ao parque, andar de metrô, ouvir música; Luiza, questionada sobre como é ter um
irmão, verbalizou:
“Ah, é bom, porque às vezes quando ela quer brincar nós brinca, quando ela quer sair a
gente sai. Nós vai na casa da minha vó que mora perto, eu gosto de ir lá. E também vou
na rua com a Lúcia aí nós brinca de castelinho de areia.”
Expressou, então, sentimentos positivos acerca de possuir uma irmã apesar de ter
relatado uma relação conflituosa com a mesma; Karina, embora tenha falado que preferia ter
apenas a Kelly como irmã, relatou as brincadeiras que fazia com a Karen (irmã gêmea) de
forma prazerosa. A esse respeito percebe-se que, independente da presença de ciúme e
rivalidade, as três crianças encaravam sua relação com os irmãos como uma fonte de prazer
em algum grau. Estes dados reiteram Furman e Burhmester (1985), que apontam a extrema
importância da relação entre irmãos para o desenvolvimento social da criança, sendo uma
fonte freqüente de companheirismo, ajuda e suporte emocional. Afirmam ainda que, muitas
vezes, irmãos mais velhos cuidam de seus irmãos mais novos e também podem ser modelos
de identificação como fica claro, por exemplo, no caso da relação entre Karina e Kelly.
Estudos como o de Lavine (1977) e o de Stillwell e Dunn (1985) consideraram que a
relação entre irmãos é influenciada em grande parte pelo relacionamento estabelecido com os
pais, sendo que esse relacionamento pode ser fator facilitador ou trazer dificuldades para a
relação fraterna. O posicionamento de Carmem, ao definir que devido às brigas Lúcia e Luiza
não deveriam ficar juntas, dizendo: “Eu acho assim que cada uma tem que ficar na dela, né?
Uma em um canto e a outra no outro, né?”, pode ser dificultador. Esta atitude constitui uma
barreira na relação das irmãs, pois, à medida que os conflitos não são encarados e resolvidos,
há uma clara tendência a evitar esses conflitos, podendo tornar o ciúme e a rivalidade cada
vez maiores.
A relação de irmãos, por ser a primeira relação intensa entre pares, é um importante
agente de socialização, sendo que esse relacionamento auxilia o desenvolvimento social.
Através da convivência com os irmãos, as crianças desenvolvem suas habilidades sociais que
serão, posteriormente, utilizadas em outras relações (Powell e Ogle, 1992). Também aqui,
esta afirmação pode ser corroborada pelas três famílias entrevistadas. Maria e Karina
contaram que esta brincava muito com as irmãs e que, apesar de não ter os mesmos amigos
que Karen, por fazerem parte do mesmo grupo social, acabavam por estarem juntas. Deve-se
ressaltar ainda que, através da brincadeira relatada por Karina, na qual ela e a irmã gêmea
encenam situações da vida adolescente, estão adquirindo habilidades sociais e de adequação
ao mundo. Luiza também, ao contar que brincava com sua irmã encenando situações de
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compra (mercearia) ou de banco pode, através da imitação da vida adulta, estar recorrendo a
habilidades sociais e adquirindo-as. O mesmo se passa com Ricardo que relatou que gostava
de sair com o irmão para ir ao parque ou ao metrô.
Um dos pontos de grande relevância notado nas três famílias é que nenhuma delas
conversava de forma livre sobre a deficiência. É muito importante para o desenvolvimento da
criança com cegueira que lhe seja permitido falar de seus sentimentos e sensações sobre sua
deficiência. Apesar de Marina e Maria terem afirmado que conversavam com seus filhos
sobre a cegueira, nenhuma delas baseando-se em seus relatos, deixava que as crianças dessem
vazão aos seus sentimentos e frustrações acerca da deficiência. Marina disse que quando
Ricardo perguntou a ela porque as pessoas nasciam com cegueira, ela respondeu que não
sabia explicar, mas que quando Deus queria alguma coisa não adiantava reclamar. Maria, por
sua vez, quando Karina falou que não queria ser cega respondeu:
“Karina você é tão linda, sabe, com nove anos você tem ainda uma vida inteira, a
mamãe não tem mais jeito, vou ser linda só na próxima encarnação! Sou feia, tenho 52
anos, tô na reta final, não tenho chance nenhuma, olha quanta coisa você tem pela frente
e a mamãe não tem nada" ou "Eu não admito que você reclame de nada porque o jeito
que a mamãe viu você nos meus braços."
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ela em algumas situações. Karina disse: “Meu pai não é o pai da Kelly, só que ele trata ela
bem, assim, trata bem. Eu falei para ele ‘E ai de você tratar mal a Kelly!’” Marina também
relatou diferenças no relacionamento de Ricardo com Luís e Ricardo com Renata, e disse que
Renata não tratava mal Ricardo, mas era seca com ele. Estas falas podem relacionar-se ao que
Bank e Kahn (1982) comentam sobre a rivalidade fraterna ocorrer devido à fragmentação das
famílias modernas, as quais, muitas vezes, têm formações distintas no nascimento dos
diversos filhos.
Uma outra questão a ser notada nos dados levantados pela pesquisa é a delegação de
responsabilidade aos irmãos. Marina contou que Luís, apesar de ter 14 anos, é muito maduro e
assume responsabilidades como a de levar Ricardo para a instituição de atendimento
especializado que freqüentava e, mesmo sendo advertida que, como Luís era menor de idade,
ele não poderia estar acompanhando Ricardo, disse: “Ele adora o irmão...É...Semana passada
ele que trouxe o Ricardo aqui...É por que, falam que não pode porque ele só tem quatorze
anos mas ele é grandão, né?...Cabeça feita, né?” Maria relatou que Karen costumava fazer
tudo o que Karina pedisse e Carmem falou que Lúcia fazia tudo por Luiza quando ela não
estava, como servir o almoço para a irmã. Dunn (1985) afirma que quando um irmão possui
uma deficiência os irmãos saudáveis tendem a assumir responsabilidades que não teriam caso
a deficiência não estivesse presente. Essa questão fica clara nas três entrevistas.
Quanto à intervenção e tratamento das mães para com seus filhos, percebe-se, como
apontado anteriormente, que Marina afirmou que tratava os filhos da mesma maneira, mas,
durante sua entrevista, constatou-se uma tendência em proteger Ricardo em diversas
situações, em falas como:
“É que agora tem duas televisões mas antes com uma TV só saía muita briga, às vezes o
Ricardo...É que o Ricardo gosta de assistir o canal 4 e o 2 e o Luís já não, é o 5, só o 5,
aí as vezes o Luís fala: ‘Agora o Lu vai assistir’. ‘Ah não, agora que vai começar meu
desenho!’ ‘Não, eu falei que vou assistir e acabou!’ Aí eu falo: ‘Mas Luís, você não
falou pra mim que você ia sair?’ Aí se eles começam a brigar eu me meto no meio e
falo: ‘Não, você falou que ia sair então agora o Ricardo vai assistir!’ eu tenho que entrar
no meio...Eu sempre favoreço o Ricardo...”
Marina percebia ainda que esta atitude gerava ciúme em Luís e complementou
dizendo: “É, acho que é por isso que o Luís tem ciúmes... Às vezes o Luís fala: ‘Ai pra mãe
tudo é o Ricardo!’ Porque o Ricardo gosta de assistir canal 4 e eu também gosto, eu já me
acostumei, ele adora assistir canal 2 e aí também me acostumei.” Fica claro aqui que a
intervenção de Marina a favor de Ricardo influencia a relação dos irmãos. Ricardo, por sua
vez, parece corroborar esta questão com a fábula do cordeirinho, aparentemente tomando
certas atitudes por medo de perder o vínculo com a mãe.
Carmem, no entanto, disse que tentava não favorecer nem uma nem outra em suas
decisões:
“Agora quando eu não estou em casa é uma briga. Tem dia que ela liga no meu serviço,
não a Lúcia, a Luiza, e fala: ‘Mãe, ela não quer isso, mãe ela não quer aquilo!’ Aí eu
digo: ‘Quando eu chegar em casa a gente conversa’. Aí quando eu chego lá todo mundo
está quietinho, quer dizer, aí eu pergunto: ‘Quem fez isso? Quem fez aquilo?’ E elas
começam: ‘Foi a Lúcia, foi a Luiza!’ Aí eu pego e bato nas duas. Agora quando uma
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quer assistir uma coisa e a outra quer ver outra coisa eu desligo a TV, eu não vou nem
pro lado de uma nem pro lado da outra.”
Em sua fala nota-se o não enfrentamento de um conflito, assim como quando relatou
que cada uma deveria ficar em um canto. Apesar de ter uma atitude igual com as duas filhas,
essa atitude não se adaptava às circunstâncias, pois as duas eram punidas por igual e não se
confrontavam com o motivo da briga e com as características específicas de sua relação.
Nota-se que as intervenções de Carmem e Marina não levavam em consideração os
eventos ocorridos; Marina porque acaba favorecendo sempre a Ricardo e Carmem por não
estabelecer um contato com o conflito resolvendo-o de forma igual para as duas irmãs, no que
parece uma tentativa de empregar um senso de justiça.
Maria, por outro lado, contou que às vezes se culpava por não fazer as coisas iguais
para as filhas: “Aí você se policia, então o copinho com água fica do lado direito, a jarrinha
com água fica lá, então se eu abasteço um copo eu tenho que fazer sempre os dois porque as
vezes eu me culpo”. Contou que Karen e Kelly tinham ciúmes de Karina, então procurava
fazer as coisas iguais para as filhas. Falou sobre o ciúme de Karen: “Na hora de se trocar
rápido, você pega e põe a pasta na escova e agiliza as coisas, aí a Karen chega lá e fala
assim: ‘Mãe você pôs pasta só pra Karina?’". Quanto à Kelly disse: “A Kelly fala: ‘Ai mãe,
estreou um filme, vamos não sei o que?’ Ai ela fala ‘Vocês ficam aí sozinhas ô Karina e
Karen porque a mãe vai me levar lá que é só maior que quatorze anos’., ‘Lógico que não,
que não sei o que, ou vamos todas, você vai ter que assistir a Xuxa ou a Tayna’. ‘Eu não vou
assistir este filme de bebê!’ Ai eu falo assim: ‘Kelly não dá, né?’ ‘Esta vendo só, se fosse só
eu pronto! Vocês só vieram encher meu saco’". Apesar de ocorrer o ciúme na relação das
irmãs, nota-se ao longo da entrevista de Maria que ela procurava adotar uma posição
equilibrada entre as filhas; então, se Karen a ajudou mais nas tarefas domésticas ela ganhava
uma recompensa que as outras não. Aparentemente, ela adequava sua atitude às circunstâncias
que apareciam.
Os fatores apontados acima estão em acordo com Kris e Ritvo (1983) quando afirmam
que, além das intervenções dos pais no que se refere à relação entre irmãos, a postura dos
mesmos na relação com cada um dos filhos é de extrema importância. É preciso que haja um
senso de justiça nessas relações que vai além do fazer a mesma coisa para todos os filhos. O
senso de justiça paterno deve estar alicerçado na percepção das diferenças pessoais de seus
filhos. É necessário que haja flexibilidade para que sejam encontradas atitudes adequadas às
situações apresentadas ao longo da vida. Com certeza, é de extrema importância a capacidade
de justiça materna representada pela igualdade no tratamento dos filhos e pela percepção das
diferenças entre eles adequando suas atitudes às circunstancias. Também Shopper (1974)
aborda esse assunto e afirma que muitos pais acreditam erroneamente que se os filhos forem
tratados da mesma maneira não sentirão ciúmes um do outro e brigarão menos. Todavia, na
verdade, o que ocorre é geralmente o oposto.
A interação das mães com seus filhos com cegueira é outro fator que influencia a
relação destes últimos com seus irmãos. Pode-se destacar no relacionamento de Ricardo e
Marina sua fala a respeito de querer o filho por perto, de ter parado de trabalhar fora para ficar
com o filho e da sua defesa a Ricardo em suas brigas com Luís. Já no que se refere à Maria, o
nascimento de Karina trouxe modificações essenciais na vida familiar, porque esta deixou de
trabalhar para cuidar dos bebês, provocando ressentimento em Kelly devido à perda da
condição financeira que tinham anteriormente. Deve-se apontar também que Kelly tinha
problemas de relacionamento com o padrasto, o que podia agravar a aceitação das
modificações em sua vida. Esses fatores corroboram o que Lavine (1977) afirma sobre a
possibilidade de ocorrer a monopolização da atenção dos pais pela criança com cegueira,
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“Às vezes ela fala: ‘Mamãe eu estou muito cansada, você deixa?’ Que nem hoje ela
deixou os pratos lá e vem mosquito, etc, etc. ‘Ai, eu estou muito cansada, hoje você
pode?’ ‘Hoje eu posso, eu também tô cansada, mas eu posso, só que vamos combinar,
amanhã você lava o meu, então a gente troca’. ‘Ai tá bom vai, vamos ver se amanhã eu
fico menos cansada.’”
4.4. Itens que aparecem apenas em um dos sujeitos, mas que assinalam pontos
importantes das relações que requerem atenção
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relação ciclos de intensa briga e intensa afeição que, geralmente, dominam suas relações e,
aparentemente, não conseguem viver separados um do outro. Existem famílias, entretanto,
que encorajam a aquisição de habilidades individuais nos gêmeos, favorecendo, dessa forma,
um desenvolvimento saudável. A identificação muito próxima de um gêmeo com o outro
impede que eles se separem e demonstra que suas representações de si e dos objetos estão
extremamente distorcidas. No caso de Karina e Karen percebe-se o discernimento de Maria
em estimular a aquisição da independência, e pode-se exemplificar este fator com a situação
comentada por Maria que este ano na escola vários gêmeos foram separados e que Karina
disse que não iria se separar de Karen:
“Na escola comum, ano passado trocaram alguns gêmeos, de sala, aí a Karina: ‘Ah eu
vou falar com a dona Vera, porque não é para mudar a gente de sala’ Eu falo que a
independência, porque ano passado ficou definido que as crianças ficaram este ano e o
ano que vem, que aí cada uma vai fazer sua aula de música etc e tal.”
Maria parece ter consciência da grande vinculação à qual irmãos gêmeos estão
expostos e procura estimular a independência de cada uma. Já no caso de Luiza e Lúcia, as
intensas brigas podem, como foi dito anteriormente, derivar-se de problemas no processo de
diferenciação entre elas, gerando conflito e rivalidade.
5. Considerações finais
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cegueira são filhas de pais diferentes dos seus irmãos mais velhos, o que pode ser uma fonte
de conflito e rivalidade entre eles.
Quanto à atitude das mães, sabe-se que elas se constituem como figura de
identificação para a criança nas fases mais precoces da vida, e suas atitudes para com os
irmãos são de extrema importância, pois servem como modelo de identificação. Neste estudo,
apesar das três famílias terem constituições semelhantes, as atitudes das mães são diversas:
Marina parecia dedicar-se de forma maciça a Ricardo; Maria tentava dividir-se entre as três
filhas; e Carmem buscava igualar sua reação às duas irmãs.
Nota-se que todas as mães protegiam seus filhos com cegueira cobrando ações e
delegando responsabilidades aos seus irmãos. Não foi constatado, porém, a percepção delas a
respeito de como seus filhos são impactados por essas delegações. Porém cabe aqui ressaltar
que como a influência da atitude materna na relação de irmãos não consistiu um dos objetivos
deste trabalho, registra-se a importância de pesquisas futuras a este respeito.
Nas três famílias um fator de extrema importância notado nesta pesquisa é que não se
falava sobre a deficiência de forma clara e continente, não dando possibilidade de expressão
para a criança com cegueira de manifestar seus sentimentos frente à cegueira e nem a
oportunidade de discussão desta condição com seus irmãos. Apesar de duas mães afirmarem
que conversavam com seus filhos sobre essa questão, ao exemplificarem a conversa, percebe-
se que não há acolhimento das angústias e ansiedades dos filhos, o que pode influenciar de
forma negativa seu desenvolvimento.
Outro objetivo deste estudo era identificar as atividades que as crianças com cegueira
realizavam com seus irmãos. Constatou-se que todas as crianças entrevistadas
compartilhavam atividades de lazer com seus irmãos como brincadeiras, jogos e passeios. As
três relataram as atividades em comum como fonte de prazer e contentamento; apenas Luiza
comentou pontos negativos nas atividades, tais como brigas. As atividades escolares eram
compartilhadas somente por Karina e Karen, porque eram as únicas a estudarem na mesma
escola.
Alguns dados colhidos nesta pesquisa deram origem a indagações sobre a relação de
irmãos gêmeos quando apenas um deles possui uma deficiência. A relação entre gêmeos já
possui características próprias que divergem da relação fraterna em geral. Quando um deles
possui uma deficiência essa relação torna-se ainda mais intrigante, pois, como fica a
identificação entre eles? Como as mães conseguem lidar com filhos tão semelhantes em idade
e com necessidades, muitas vezes, absolutamente diversas no que se refere ao seu
desenvolvimento? Como não privar o irmão gêmeo sem deficiência de atenção quando o
outro pode necessitar de diversas intervenções?
Outra pergunta gerada a partir desta pesquisa diz respeito às particularidades da
relação entre irmãos de uma criança com cegueira no seu ambiente escolar. Como apenas uma
das crianças estudava na mesma escola que sua irmã não foi possível aprofundar esse assunto.
Portanto, cabe aqui assinalar a importância de esclarecer mais sobre a relação dos irmãos na
escola. Como é estar na mesma sala de aula? Ou na mesma escola?
Deve-se chamar atenção também para a dificuldade de se encontrar pesquisas acerca
de indivíduos com cegueira que levem em consideração seu referencial perceptual não
fazendo assim uma comparação dos mesmos com os videntes. No que se refere a pesquisas
sobre o relacionamento fraterno cabe aqui ressaltar que não foi encontrada nenhuma, o que
mais uma vez aponta para a necessidade de novos estudos sobre o tema.
Constatou-se que a relação entre irmãos é de grande riqueza e importância na vida do
indivíduo. Contudo, não foi possível esgotar a investigação da relação fraterna de crianças
com cegueira nesta investigação por motivos óbvios como o tempo disponível para a
execução da mesma e o número de sujeitos encontrados com características semelhantes às
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Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, SP.
Notas
(1) Todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios para garantir o sigilo da identidade
dos sujeitos.
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A invenção na ponta dos dedos: a reversão da atenção em pessoas com deficiência visual<<-1->>
Virgínia Kastrup∗∗
Resumo
Diversos estudos têm indicado que a perda de visão produz uma
reorganização do sistema cognitivo em função de novos
investimentos da atenção, que são condição para a reinvenção da
vida cotidiana dessas pessoas. Por outro lado, é cada vez mais
evidente que o campo do perceber envolve um conjunto de
experiências complexas, que vai além da dimensão funcional e
utilitária. Existe uma atenção funcional, que é voltada para a vida
prática, e uma atenção suplementar, que participa dos processos
de invenção. O objetivo do texto é analisar, em pessoas que
perderam a visão, duas mudanças da atenção: o redirecionamento
da visão para o tato e a reversão, na qual a atenção sofre uma
mudança de qualidade. A argumentação recorre a estudos de
psicologia experimental, aos trabalhos de Bergson, Depraz, Varela
e Vermersch, bem como a uma pesquisa de campo realizada numa
oficina de cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida.
Palavras-chave: Invenção; Atenção; Deficiência visual.
cegos congênitos. São considerados cegos congênitos pessoas que nunca viram.
Seu sistema cognitivo é, desde o nascimento, constituído com base nos demais
sentidos e sem referência a elementos visuais. Cegos precoces são aqueles que
perderam a visão entre seis meses e um ano de idade. Como o diagnóstico da
cegueira pode não ser imediato, a diferença mais significativa não é entre cegos
congênitos e precoces, mas entre precoces e tardios, em função da existência,
nos últimos, de referências visuais e coordenações neurais entre as modalidades
sensoriais, que ocorrem, em média, até os três anos de idade (Hatwell, 2003).
Os cegos tardios constituem casos bastante efetivos de deficiência visual
adquirida, sendo palco de processos de aprendizagem e, em última análise, de
uma exigência de profunda reinvenção cognitiva. O funcionamento cognitivo
na cegueira adquirida guarda, por certo, diversos pontos em comum com o
dos videntes e dos cegos congênitos, todavia é fundamental investigar suas
possíveis especificidades.
Algumas das transformações cognitivas da deficiência visual adquirida estão
diretamente relacionadas à redução da eficiência de habilidades e hábitos
anteriores, ou seja, de comportamentos caracterizados pelo automatismo, como
verter água num copo, colocar pasta na escova de dente ou caminhar pela rua.
O comportamento automático é um comportamento sem atenção. Sua
utilidade na vida prática é justamente liberar a atenção para outras atividades.
Assim, quando um vidente caminha para o trabalho, seguindo seu percurso
habitual, libera a atenção para pensar em algo que está lhe preocupando, em
um compromisso que terá no final da tarde, para fazer projetos ou evocar
lembranças do dia anterior. A perda da visão, quando se instala, produz uma
redução das ações automáticas e um aumento da participação da atenção nas
mais simples tarefas da vida cotidiana.
No domínio da psicologia cognitiva da deficiência visual, o tema da atenção
surge no âmbito da discussão sobre o problema da compensação sensorial.
Segundo as teorias mais tradicionais da compensação, a pessoa cega possui, em
função da ausência da visão, um melhor desempenho de sentidos como o tato
e a audição. Presente já em D. Diderot (1979) e bastante disseminada no
senso comum, a idéia de compensação tem sido objeto de recorrentes análises.
Vygotski (1997) afirma que a melhora no desempenho dos demais sentidos
não é uma dádiva divina e nem pode ser explicada por uma reorganização
fisiológica imediata, mas resulta de um processo de construção, em que ganham
destaque vetores sociais e culturais, entre os quais se destaca a linguagem.
Embora bastante utilizada, a noção de compensação não deixa de colocar muitos
problemas. O apelo excessivo a ela pode levar a pensar que todo o problema da
reorganização cognitiva dos que perderam a visão consiste em compensar uma
aprender a prestar a atenção aos signos que chegam pela audição e pelo tato:
reconhecer pessoas pela voz, ouvir o ruído dos carros para atravessar a rua, usar
as sensações táteis dos pés e aquelas transmitidas pela bengala, perceber signos
auditivos para saber a posição e distância de objetos do ambiente etc. É também
preciso que se aprenda a distribuir a atenção entre mais de um sentido numa
atividade complexa, como circular pela cidade, assistir uma aula ou participar
de uma reunião social.
No entanto, é incontestável que nem todos os problemas da cegueira dizem
respeito a questões de ordem prática (Oliveira, 2002). Um homem que estava
perdendo gradativamente a visão como efeito de uma diabete persistente deu
o seguinte depoimento, que expressa bem esta situação: “Quando a gente perde
a visão, a gente fica muito pra baixo […]. Ainda mais eu, que era uma pessoa
que gostava de viajar, adorava ver esse Rio de Janeiro, adorava ver o Corcovado,
adorava ver…” (P2). Observa-se em sua fala que os problemas a serem
enfrentados pelas pessoas que perdem a visão envolvem, por certo, a
possibilidade de caminhar pela rua, trabalhar e manter uma vida autônoma,
mas também poder contemplar o mundo, entrar em contato com coisas bonitas
ou interessantes, experimentar contentamento com certas percepções e ter
experiências que nada tem a ver, ao menos diretamente, com os problemas da
vida prática. Nessa direção, Oliver Sacks (1995) narra o caso de um pintor
que, tendo perdido a visão de cores em função de um desastre de automóvel,
enfrentou sérios problemas em relação, por exemplo, à alimentação e à sua
vida sexual. A comida cinzenta provocava náuseas e sua mulher parecia ter cor
de rato, deixando de provocar nele qualquer atração. Os exemplos mostram
que o campo do perceber envolve um conjunto de experiências complexas,
que vai além da dimensão funcional e utilitária. As experiências perceptivas
não utilitárias, muitas vezes, mobilizam uma atenção de qualidade especial
que, conforme veremos, está envolvida nos processos de invenção de mundo e
de si. É preciso sublinhar, entretanto, que não estamos nos referindo apenas a
situações excepcionais de invenção, mas a de diferentes experiências que se
dão no âmbito da vida cotidiana transpondo, em certos momentos, sua
dimensão meramente pragmática (Kastrup, 1999).
Tomando como foco o processo de reconstrução do sistema cognitivo das
pessoas que se tornam cegas, nosso objetivo será analisar dois problemas relativos
à atenção: o redirecionamento e a mudança de qualidade. O primeiro problema
– o do redirecionamento da visão para o tato e outros sentidos – envolve a
atenção funcional, voltada para a vida prática, em que predominam uma atitude
recognitiva e atos de focalização e de prestar atenção. Trata-se aí de uma atenção
submetida a uma finalidade. O segundo problema envolve uma atenção
1
O Instituto Benjamin Constant é um centro de referência nacional para as questões da deficiência visual, ligado ao
Ministério da Educação. Possui uma escola, capacita profissionais da área, assessora escolas e instituições, oferece consultas
gratuitas à população, possui oficinas de reabilitação, produz material especializado, impressos em braile e publicações
científicas. A oficina de cerâmica, na qual foi realizada a pesquisa, é ligada à Divisão de Reabilitação e é coordenada pela
ceramista Clara Fonseca.
2
A noção de representação é utilizada aqui em sentido pragmático, sem referência a fundamentos, significando um modo
particular de conhecer. Nos termos de Francisco Varela, trata-se aqui da representação em sentido fraco, e não em sentido
forte, como é utilizada pelo cognitivismo computacional. A representação em sentido forte traz consigo uma tomada de
posição ontológica – há um mundo prévio que lhe serve de fundamento – e epistemológica – o conhecimento é objetivo
quando corresponde a este mundo. Cf. Varela, Thompson e Rosch (2003).
A mudança de qualidade
O problema da mudança na qualidade da atenção foi discutido por Depraz,
Varela e Vermersch (2003; 2006). Os autores referem-se ao movimento que,
objeto “lá fora” possa emergir. Em segundo lugar, a percepção distal, do objeto
“na frente”, requer uma mudança na qualidade da atenção que revela
semelhanças com aquela da visão estereoscópica. A emergência da percepção
do objeto se faz a partir de certo deslocamento da atenção. É abandonando a
atitude de busca e adotando uma atitude de receptividade ativa que a atenção
aberta vem preenchida por um conteúdo. Assim, Paul Bach-y-Rita e Eliana
Sampaio, além de produzirem um dispositivo para auxiliar deficientes visuais,
que dá evidências do papel da ação na cognição, dão também indicações da
mudança da qualidade da atenção à qual se referem Depraz, Varela e Vermersch
(2003).
A cartografia na oficina de cerâmica trouxe situações que também revelam
a reversão da atenção. O trabalho com a cerâmica não se limita à atenção
funcional, caracterizada por uma atitude cognitiva de busca e em que
predominam atos de focalização e de prestar atenção voltados para o
reconhecimento e a ação. Ela mobiliza uma atenção suplementar durante os
processos de criação, que se caracteriza por uma atitude cognitiva de abertura
ao encontro de algo que não se buscava. A atenção suplementar surge quando
o sujeito sai da posição de piloto da atenção, ou seja, deixa a atitude intencional
e desmancha o foco na realização de tarefas.
Uma das participantes descreveu a dificuldade em perceber, através do tato,
a forma de uma peça que ela havia moldado. “Quando eu fiz o meu primeiro
rosto, o primeiro rosto mesmo de escultura, eu não conseguia ver o rosto. Eu
estava com a bola na minha mão, construindo o nariz, o olho, a boca, e eu
pegava, e isso me dava uma aflição tão grande, tão grande… E eu não conseguia,
eu não conseguia ver o rosto ali com a minha mão. Então eu apalpava com as
duas mãos, a cabeça na minha mão e eu apalpando e alisando e eu não via”
(P4). O problema que se evidencia na criação de peças de cerâmica é que nem
sempre a percepção, mesmo a do próprio ceramista, é convocada ao
reconhecimento. A participante comentou sua aflição ao tentar reconhecer o
rosto que ela própria esculpia. “Se você pegar numa caneca, você sabe que é
uma caneca, mas se você pegar num objeto abstrato, você não vai saber que
aquilo é um objeto, é uma coisa qualquer. Você não sabe o que é, pode parecer
várias coisas, mas não é realmente aquilo que é com a luz acesa. Assim era eu
com aquele rosto. Eu pegava no rosto, na peça, na argila e não via o rosto […].
E olha que ele cabia na palma de minha mão. Eu passava assim e não via. Uma
coisa muito estranha. Me deu muita aflição, eu fiquei muito angustiada. Eu
queria tirar dali um rosto, mas eu não conseguia ver um rosto, sabe? Foi muito
difícil pra mim” (P4). O fato de a mulher não reconhecer o objeto que ela
própria estava criando atesta o quanto o processo de criação se dá, em parte,
fora de foco, e sem um controle absoluto por parte do eu. Como a pessoa não
coloca na cerâmica um objeto representado dentro da cabeça, mas a criação se
dá através de um movimento de composição entre a idéia e a matéria fluida do
barro (Kastrup, no prelo),3 a relação com o objeto criado nem sempre é de
reconhecimento imediato. A experiência pode ser mesmo de estranhamento.
A mesma mulher continuou falando de sua experiência.
Aí a professora virou pra mim e falou assim: “Deixa o rosto surgir
naturalmente, deixa que ele vai surgir, relaxa que ele vai surgir.” E
eu fiquei com aquilo ali, respirei fundo, tentei relaxar, aí eu fui e
coloquei a mão… […] A cabeça na minha mão […], e eu não
conseguia ver um rosto naquilo que eu tava fazendo. Se eu pegasse
no nariz eu sabia que era um nariz, se eu pegasse na boca eu sabia
que era a boca, mas num todo eu não conseguia ver a peça. E foi
um processo muito lento, de muitos dias. Eu acho que eu levei
uns dois, mais de um mês pra fazer o primeiro rosto. Até que eu
consegui passar a mão e ver. […] Ela falou no primeiro momento
que eu comecei, mas eu levei mais de um mês. (P4)
Quando a professora aconselha a “relaxar”, parece que o intuito é fazer com
que a mulher abandone a atitude de busca voluntária de reconhecimento da
forma, como se fosse preciso deixar de buscar para, enfim, encontrar. Em termos
de atenção, trata-se de uma orientação para uma mudança de qualidade, para
uma atitude de letting-go. Só assim ela pôde vir a encontrar o que não buscava
mais.
A conversão da atenção
Bergson distingue dois tipos de percepção. A primeira é voltada para
interesses práticos e é assim definida: “Auxiliar da ação, ela isola, no conjunto
da realidade, aquilo que nos interessa; mostra-nos menos as coisas do que o
partido que delas podemos tirar. Antecipadamente as classifica, antecipadamente
as etiqueta; mal olhamos o objeto, basta-nos saber a que categoria ele pertence”
(Bergson, 2006b, p. 158). A segunda é descrita com a percepção do artista:
“Quando olham para alguma coisa, vêem-na por ela mesma, e não mais para
eles; percebem por perceber – por nada, pelo prazer” (Bergson, 2006b, p. 158).
Por este desprendimento dos interesses do eu, possuem “uma visão mais direta
da realidade”. Segundo Bergson é por um deslocamento da atenção que o
espírito se distancia dos interesses que limitam a percepção para chegar a sua
ampliação. Denomina conversão o movimento de transformação da atenção
3
Kastrup, V. (No prelo). O lado de dentro da experiência: atenção a si e produção de subjetividade numa oficina de
cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida.
de criação sofresse uma bifurcação e tomasse outro rumo. E ele continua. “Aí
pensei bem e falei: ‘Pô, dá pra fazer as letrinhas em braile em cerâmica’ […]. E
aquilo ficou na minha cabeça […] A idéia. Aí eu fui pra casa, levei um pedaço
de argila. Cortei, fiz o molde […]. E comecei a fazer as peças, as pecinhas”
(P2). Após a surpresa do toque, a atenção pára, se detém na idéia. Há um
movimento de pouso (cf. Kastrup, 2007). O participante foi tomado,
mobilizado e então é a idéia que toma conta do processo de criação. Ele é
levado a dar forma à idéia, atualizá-la, compondo com a matéria. Tudo isto
tocando e se deixando tocar pelo barro. Não cabe entrar aqui nos detalhes da
continuidade do processo de criação e nos movimentos de vaivém entre a idéia
e os signos da matéria (Kastrup, no prelo).4 Basta lembrar que o tato revela
aqui sua dimensão plenamente háptica. É o fragmento da peça, e não sua
forma global, que respondem pela conversão da atenção. Por outro lado, a
experiência transpõe os limites da relação entre um sujeito e um objeto. O
encontro é contato direto e sem mediação. Tocar o barro é, ao mesmo tempo,
e de modo indiscernível, ser tocado por ele.
Abstract
Several studies have indicated that the loss of sight causes a
reorganization of the cognitive system due to new allocations of
attention, which are the condition for the reinvention of these
people’s daily lives. On the other hand, it becomes more and more
evident that the field of perception encompasses a set of complex
experiences beyond the functional and useful dimension. There is
a functional attention geared towards practical life, and a
supplementary attention that permeates the process of invention.
This paper aims to analyze two types of changes in attention in
those who have lost their sight: the redirection of sight towards
tact; and reversion, that is, a change in the attention quality. The
argumentation is supported by experimental psychology studies;
the works of Bergson, Depraz, Varela and Vermersch; and a field
work carried out in a ceramics workshop with people presenting
acquired visual impairment.
Key words: Invention; Attention; Visual impairment.
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Virgínia Kastrup
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Sabe-se que a Web privilegia a informação baseada nos aspectos visuais da informação: cores, fotografias, ícones,
símbolos. Dessa forma, a acessibilidade à internet por usuários cegos é dependente de programas que possuem síntese
de voz, que convertem as informações da tela para a apreensão auditiva. Entre programas desta categoria, um dos mais
usados no Brasil é o Dosvox. Este artigo apresenta a primeira parte de uma pesquisa que procura avaliar a usabilidade
deste programa. Foi feita uma avaliação cooperativa com estudantes universitários cegos. Os resultados indicam que o
programa afetou a experiência dos usuários com a Web, e o conhecimento adquirido poderá ser usado no
desenvolvimento de novas versões do Dosvox.
It is known that the Web privileges the information based on the visual aspects of the information: colors, photographs,
icons, symbols. Thus, the accessibility to the Internet for blind users is dependent of screen reader software, that
convert the information of the screen for the auditory apprehension. Between programs of this type, one of the most
used in Brazil is Dosvox. This paper presents the first part of a research that tries evaluate the usability of that
program. It has been executed a cooperative evaluation with blind college students. The results indicate that the
program affects the experience of the users with the Web, and the acquired knowledge can be used in development of
new versions of Dosvox.
Introdução.
Sabe-se que hoje a internet é uma fonte inesgotável de recursos e informação para todos. Através da grande
rede, pode-se trabalhar, estudar, pesquisar, conhecer pessoas. Contudo, conforme Berners-Lee, o criador da
World Wide Web, “o poder da Web está em sua universalidade. O acesso por todos independentemente de
deficiência é um aspecto essencial”. Mesmo frente a essa necessidade, um percentual expressivo de pessoas
com deficiência, particularmente os cegos, estão excluídos do acesso amplo à Web.
Sendo a internet um grande mecanismo de inclusão social, é fundamental que o maior número possível de
pessoas se beneficiem dela. Deve-se assim permitir o acesso por pessoas com diferentes capacidades físicas,
cognitivas, perceptivas, em diferentes contextos de utilização, para que todos possam aproveitar os seus
recursos.
Estudos realizados pelo governo britânico e pelas Nações Unidas (DRC, 2004; ONU, 2006) comprovam que
a grande maioria dos sítios eletrônicos não respeitam os requisitos mínimos para que usuários com
deficiência possam ter um bom aproveitamento durante a interação. De maneira geral, os sítios eletrônicos
não seguem os padrões considerados mínimos em termos de acessibilidade na Web.
A fim de contribuir para a inclusão dos cegos na Web, diversas tecnologias de apoio têm sido projetadas. No
Brasil, o Dosvox é um dos mais programas usados pelos cegos, e a sua melhoria depende de estudos de
usabilidade e de acessibilidade.
Acessibilidade na Web.
A norma ISO 16071 (2003), que estabelece diretrizes internacionais para a acessibilidade em programas de
computador, define conceitualmente acessibilidade como a “usabilidade de um produto, serviço, ambiente ou
recurso por pessoas com a mais ampla diversidade de capacidades” (características físicas, mentais e
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perceptivas).
Como usabilidade pode ser definida, de acordo com a norma ISO 9241 parte 11, como efetividade, eficiência
e satisfação num dado contexto de uso por usuários específicos, pode-se assim dizer que acessibilidade será a
conjugação de efetividade, eficiência e satisfação por qualquer pessoa e sem a definição de um contexto
específico de uso.
Em outras palavras, é necessário que a interação se dê de maneira efetiva, com o máximo de eficiência
possível e oferecendo uma experiência satisfatória para diferentes tipos de usuário, com ou sem deficiência,
usando dispositivos ou programas alternativos com telas pequenas (como celulares e computadores de bolso)
ou programas desatualizados. Mesmo que com apresentações diferentes, é necessário garantir o mesmo nível
de acesso à informação para todos, respeitando as características de cada uma dessas circunstâncias.
No caso da Web, as pessoas cegas são as que enfrentam maior nível de dificuldade para tentar realizar tarefas
ou buscar informação (DRC, 2004). Nielsen (2001) estima que o acesso à Web é três vezes mais fácil para
pessoas que não têm problemas de visão em relação a pessoas com deficiência visual.
- Sobre cegueira.
O decreto federal 5.296, de 2 de dezembro de 2004, define deficiência visual em duas categorias:
“cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção
óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção
óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que
60 graus; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores”.
Segundo esta classificação, pessoas com 5% da visão, ou menos, são cegas; já a acuidade visual entre 5% e
30% caracteriza visão abaixo do normal.
Conforme outro tipo de classificação, encontrada no sítio eletrônico do Instituto Benjamin Constant (IBC), é
cego o indivíduo cuja visão, mesmo com a correção adequada no melhor dos seus olhos, é de 20/200 (ou
6/60) ou menos, isto é, se ela só consegue ver a 20 pés (aproximadamente 6 metros) o que uma pessoa de
visão normal pode ver a 200 pés (em torno de 60 metros).
O W3C, com seu Web Accessibility Initiative (WAI) estabeleceu diretrizes internacionais para garantir a
difusão de práticas para adequação dos documentos na Web em termos de acessibilidade. Com esse objetivo,
foi elaborado em 1999 um documento, o Web Content Accessibility Guidelines (WCAG). Este é ainda hoje
considerado como o padrão mundial em termos de acessibilidade de conteúdo na Web. Entretanto, a
conformidade e adequação ao WCAG ocorre de forma voluntária.
Contudo, o WCAG vem sendo alvo de inúmeras críticas por sua desatualização em relação aos avanços da
internet. Além disso, um estudo realizado por um órgão britânico comprovou que mesmo a adequação
integral a suas recomendações não garantiriam acessibilidade efetiva (DRC, 2004). Este estudo, que entre
outros métodos realizou a avaliação de sítios eletrônicos que cumpriam todas as recomendações do WCAG
com a participação de usuários com diferentes deficiências auxiliados por especialistas, encontrou uma série
de problemas de acessibilidade, onde 45% destes não eram violações diretas ao WCAG.
Frente a estas e outras críticas, uma nova versão do documento está atualmente em estágio de
desenvolvimento, o WCAG 2.0. Assim como todo documento do W3C, ele está sendo publicado em working
drafts, que são iterativamente analisados pela comunidade de interessados que envia seus correções e
sugestões de mudança.
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Tecnologias de apoio.
As pessoas com deficiência geralmente utilizam tecnologias de apoio, que estendem as suas possibilidades
perceptivas e motoras. Entre estas tecnologias, pode-se apontar como exemplos: próteses para pessoas com
deficiência motora, aparelhos auditivos para pessoas com surdez moderada, programas de computador que
ampliam o conteúdo na tela do computador para pessoas com baixa visão, monitores Braille para pessoas
com surdo-cegueira.
Como não podem acessar o conteúdo da Web de maneira visual, as pessoas cegas utilizam principalmente
no acesso à internet programas que utilizam a síntese de voz. Entre os programas desta categoria, destacam-
se os os leitores de tela como solução mais difundida e utilizada.
Basicamente, os leitores de tela transformam o conteúdo na tela do computador em voz sintetizada ou pré-
gravada, passível de apreensão auditiva para pessoas que não possam ou tenham dificuldade de ter acesso
visual à informação. Além das pessoas cegas, também utilizam estes programas algumas pessoas com baixa
visão e com deficiência cognitiva.
Existem muitos leitores de tela disponíveis, sendo a maioria comercial. Destacam-se o Jaws, o Virtual Vision
e o NVDA. O objetivo destes programas é permitir que estas pessoas consigam interagir com o computador
como as outras pessoas, realizando suas tarefas cotidianas. Contudo, estes programas se limitam a
transformar o conteúdo da tela em voz, sendo uma interface entre os programas (navegadores, programas de
e-mail, processadores de texto e outros) e seus usuários.
Assim, para que haja acessibilidade de fato, é necessário que os programas e páginas na Web garantam a
usabilidade por outros dispositivos de entrada diferentes do mouse. Como a grande maioria dos cegos acessa
o computador via teclado, todas as seções e links em uma página devem ser passíveis de ser acessadas com
facilidade por este dispositivo.
De maneira análoga. um documento da Web será lido pelo programa leitor de tela para permitir sua
apreensão sonora, a partir da forma como está estruturado, em linguagens adequadas para a marcação de
páginas na Internet, como o HTML e o XHTML. Torna-se desta forma crucial que os documentos sejam
construídos de forma a garantir a máxima compreensão independente da maneira como será acessado, seja
de maneira visual, sonora ou tátil. No caso de leitura não visual de um documento da Web, ele é linearizado
e transformado por tecnologias de apoio, de acordo com sua estrutura em termos de código-fonte.
- Sobre o Dosvox.
O Dosvox é um sistema para computadores da linha PC que se comunica com o usuário através de síntese de
voz em português (podendo ser configurada em outros idiomas). Ele é formado por um conjunto de
programas que compõem um ambiente de sistema integrado para uso por pessoas cegas.
O sistema surgiu em 1993, através do trabalho de Antônio Borges e de Leonardo Pimentel, que na época era
estudante de Informática na UFRJ. O objetivo era conseguir uma forma de fazer com que Leonardo, que é
cego, conseguir utilizar o computador. Na época, as soluções existentes em síntese de voz para computadores
eram precárias. Boa parte das soluções se baseavam em placas de síntese de voz, que eram muito caras.
Assim, foram sendo gradativamente desenvolvidos os módulos que compõem o Dosvox. Entre os recursos
que acompanham atualmente o Dosvox, podemos citar:
• Sistema operacional que contém os elementos de interface com o usuário;
• Sistema próprio de síntese de fala, que traduz em voz todas as mensagens apresentadas pelo sistema;
• Editor, leitor, impressor e formatador de textos em formato convencional ou Braille;
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O sistema vai além do que oferecem os leitores de tela, que complementam os programas convencionais em
ambiente Windows transcrevendo o conteúdo da tela para áudio para a apreensão auditiva. O ambiente
Dosvox possui internamente seus próprios aplicativos e tem como objetivo ser uma solução completa para
que as pessoas com deficiência visual possam fazer uso de computadores. Todos os programas são passíveis
de ser acessados a partir da navegação por teclado e há ajuda contextual presente.
Acompanham ainda o Dosvox outros programas que rodam fora do ambiente Dosvox, como um leitor
simplificado de telas (Monitvox) e um ampliador de telas (LentePro) para facilitar a leitura para pessoas com
baixa visão. Ambos rodam em ambiente Windows.
O sistema busca estabelecer um diálogo sonoro com o usuário, convidando o usuário a navegar através de
menu via teclado e buscando ao máximo facilitar a realização de tarefas sem conhecimento técnico. A
comunicação homem-máquina é simplificada, e leva em conta as características e limitações dessas pessoas.
Muitas das mensagens sonoras emitidas pelo Dosvox é feita em voz humana gravada, o que diminui o índice
de estresse para o usuário, segundo os seus desenvolvedores (DOSVOX, 2007).
O sistema é gratuito, e é executado a partir do Windows, estando em testes uma versão do sistema para o
Linux, o Linvox, e conta com o suporte direto dos desenvolvedores do projeto. Estes mantém uma lista de
discussão via correio eletrônico, a Voxtec. Esta lista tem como objetivo servir como um fórum para um
diálogo constante com os usuários do Dosvox e assim poder ouvir comentários, críticas e sugestões de
melhorias. A lista facilita tanto a troca de experiências de usuários como a aquisição de informações que
podem ser usadas em possíveis melhorias para o programa.
No Brasil, o sistema Dosvox é muito utilizado, sendo possivelmente o mais difundido. Além disso, é uma
solução de código aberto, passível de melhorias propostas pela comunidade. Assim, pretende-se com o
presente estudo entender melhor como se dá a interação dos usuários cegos na interação com a Web
utilizando o programa Dosvox.
Sujeitos do estudo.
Neste estudo, pretende-se observar a influência específica do programa Dosvox na experiência interativa de
pessoas cegas com a internet. Para isso, buscou-se inicialmente um grupo que fosse relativamente
homogêneo em termos de contexto e nível sócio-cultural.
Houve uma conversa preliminar com quatro alunos cegos e quatro alunos com baixa visão, onde pôde-se
conhecer um pouco do perfil dos voluntários. Entre os alunos cegos, percebeu-se que dois deles eram mais
interessados e engajados no aprendizado de novas tecnologias no acesso à Web e já eram usuários do
Dosvox com experiência, enquanto os outros dois demonstravam certa resistência a este tipo de ferramenta e
quase nunca faziam uso das mesmas, tendo pouca experiência no uso do Dosvox.
O objetivo foi observar a experiência dos alunos cegos com a Web via Dosvox. Foi realizada uma pesquisa
através de questionário por e-mail com os dois alunos mais interessados, já com experiência no uso do
Dosvox. A partir de uma entrevista preliminar, percebeu-se que os outros dois tinham muito pouca
experiência com o programa, e não tinham o perfil necessário para participar do estudo.
A partir do questionário, percebeu-se que o perfil de ambos era muito semelhante. Ambos tem quase a
mesma idade (27 e 28 anos), perderam a visão e usam computador através do Dosvox há mais de 10 anos.
Apesar de fazerem uso da ferramenta há anos, ambos não reconheceram o nome Webvox, e associaram a
outros módulos do Dosvox, como o Cartavox.
Ambos destacaram como pontos positivos as possibilidades proporcionadas pelo Dosvox, como
possibilidade de acesso a textos, e-mail, bate-papos sonoros, entre outros. Percebeu-se também nas respostas
que os problemas de acessibilidade dos sítios eletrônicos são associados ao Dosvox.
Metodologia do estudo.
A partir destas informações, optou-se por observar os dois voluntários que demonstram ser mais motivados
no acesso à Web com o uso de tecnologias de apoio.
- Avaliação cooperativa.
Para observar a influência do Dosvox na interação dos voluntários cegos com a Web, será utilizada a
avaliação cooperativa. Segundo Monk (1993), este método é um procedimento para obter informações sobre
problemas experimentados ao se trabalhar com um protótipo de software, e a partir dos resultados poder
propor melhorias para as próximas versões.
Segundo Santos (2000), a característica fundamental deste procedimento está em que o usuário e o
pesquisador trabalham de maneira colaborativa. Enquanto o usuário realiza tarefas dentro do sistema
observado, ele é observado pelo pesquisador e estimulado a “pensar alto”, fazendo perguntas, descrevendo as
ações realizadas e emitindo comentários acerca do que ocorre durante a interação.
Como o usuário realiza as tarefas fazendo comentários sobre a interação, isto interfere na maneira com que
ele as executa. Pode-se registrar o experimento com anotações, gravação de áudio, vídeo e programas de
monitoração da ação na tela, de acordo com a infra-estrutura disponível.
- Aplicação do método.
O experimento foi realizado no laboratório de informática da UniverCidade, que conta com computadores
onde a versão mais recente do DosVox (3.4) está instalada em todos os computadores.
Para a realização do experimento, foram definidas algumas tarefas a ser seguidas pelos usuários para
observar suia interação com a Web via Dosvox. As tarefas eram:
1ª Buscar no Google pelo sítio eletrônico da Associação Brasileira de Pilates (ABP);
2ª No site da ABP, buscar informações sobre curso básico de Pilates;
3ª Entrar no sítio eletrônico do Submarino e procurar o último CD de Caetano Veloso, “Cê”;
4ª Entrar no site do DosVox e encontrar a versão mais atual do programa.
Antes do experimento, foi explicado aos voluntários que o desempenho deles não era o foco do experimento,
e sim o Dosvox e como este influenciava em sua experiência com a Web, seja positiva ou negativamente.
Em seguida, os voluntários iniciavam a configuração do Dosvox. Abaixo descreve-se como se deu a
interação dos usuários com a Web durante o experimento. Foi realizado registro por escrito sobre o
comportamento dos voluntários e das impressões do pesquisador.
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Voluntário A.
Nas pré-configurações do Dosvox, anteriores ao início das tarefas, o voluntário A desativou a síntese de falas
SAPI, dizendo ser esta pior em relação à padrão do Dosvox.
Inicialmente, ele entendeu acesso a internet como sinônimo de acessar o seu e-mail. Assim, ele acessou o
Cartavox, através da opção C, do menu R (rede). Só quando orientado, percebeu que se tratava de buscar
páginas na Web.
1ª tarefa: Buscar no Google pelo sítio eletrônico da Associação Brasileira de Pilates (ABP).
Ele tentou encontrar o Google em “páginas selecionadas” (opção S), mas não encontrou. Relatou que era o
procedimento que realizava em casa e que lá já tinha salvos os endereços das páginas que ele mais acessava.
Usou a opção de “trazer página” (T) e digitou o endereço com auxílio do pesquisador, já que não sabia
soletrar a palavra “google”. A página foi carregada, e ele chegou sem problemas ao campo de busca, apesar
da quantidade de links que havia no caminho.
Realizou a busca por “Associação Brasileira de Pilates”. Na página de resultados, teve dificuldade em
entender as opções que vinha antes dos resultados, citando como exemplo o item “Páginas do Brasil”, que
para ele não era claro em relação ao contexto. Contudo, depois conseguiu chegar até os resultados e, por fim,
encontrou o sítio eletrônico.
3ª tarefa: Entrar no sítio eletrônico do Submarino e e procurar o último CD de Caetano Veloso, “Cê”.
Entrou no sítio eletrônico do Submarino e iniciou a leitura linear da página. Ao ouvir o termo “cds”, tentou
usar novamente a busca textual, usando este termo, mas isto não o ajudou a encontrar informações sobre o cd
procurado.
Acessou o link “música digital”, depois voltou e enfim encontrou a busca do site, digitando “caetano
veloso”. Contudo, ele não conseguiu encontrar os resultados na página seguinte, tamanha a quantidade de
conteúdo que aparece antes dos mesmos. Cada vez que se carrega a página, é necessário ler uma grande
quantidade de itens entre menus, imagens e outros até acessar o conteúdo específico. Por fim, desistiu da
tarefa.
Voluntária B.
Inicialmente, entrou na opção “Gerador de Homepages” (opção W) pensando ser o navegador do Dosvox.
Não sabia o nome do navegador (Webvox), e nem a opção específica para acessá-lo a partir do menu, e
precisou de ajuda.
1ª tarefa: Buscar no Google pelo sítio eletrônico da Associação Brasileira de Pilates (ABP).
Não associou inicialmente “trazer página” (opção T) à opção para acessar um sítio eletrônico. Abriu a página
do Google, e também encontrou sem problemas a caixa de busca, digitando nela “Associação Brasileira de
Pilates”. Ao iniciar o carregamento da página com os resultados da busca no Google, ela pensou que já seria
a página da Associação procurada, e foi orientada sobre o engano pelo pesquisador.
Ao descobrir que naquela página eram exibidos os resultados da busca, começou a ler o texto linearmente,
mas ao chegar à caixa de busca que é colocada no começo da página, não entendeu o que fazer, e realizou a
busca mais duas vezes, sem conseguir passar desta caixa de texto todas as vezes. Ela não entendia porque a
caixa de texto aparecia de novo, e pensava ter feito algo errado ou que a busca não havia sido feita.
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Apenas quando informada que os resultados seriam exibidos após a caixa de texto, ela seguiu lendo o
conteúdo e encontro o link adequado. Contudo, não sabia o que fazer para entrar no link, e acabou entrando
por engano na versão salva em cache no Google. Por fim, desistiu da tarefa.
Como a página que se abre é um texto um pouco mais longo, ela vai ouvindo o início de cada parágrafo e
pulando para o próximo, para economizar tempo. Fez isso até encontrar o link “Cursos”, onde encontrou a
informação procurada.
3ª tarefa: Entrar no sítio eletrônico do Submarino e e procurar o último CD de Caetano Veloso, “Cê”.
Entrou no sítio eletrônico do Submarino, e acionou por engano a opção “Lista de casamento”. Percebeu o
engano, e recarregou a página principal. Relatou que não era claro quando era texto e quando era link,
citando como exemplo uma lista de itens que aparece antes das categorias principais do sítio eletrônico.
Contudo, tal lista era o título da página, que não pode ser associado a link, e que ela identificou como
conteúdo.
Achou a busca, mas na página de resultados se confundiu com a quantidade de itens entre o início da página
e os resultados propriamente ditos.
Desistiu de procurar o CD pelo Submarino e tentou o Google, mas realizou uma busca muito genérica,
apenas por “Caetano Veloso”. Mais uma vez teve dificuldades em entender que os resultados vinham após a
caixa de busca. Entrou no link sobre o Caetano Veloso do Wikipédia, no que foi informada que tal página
não serviria para encontrar o CD do cantor. Após isso, desistiu da tarefa, passando para a última.
Após o carregamento da página do Dosvox, ela iniciou a leitura linear do documento, relatando que este
continha muito texto. Entretanto, ela não teve muita dificuldade em encontrar o link para o programa
atualizado.
Resultados e discussão.
De maneira geral, a grande maioria dos problemas encontrados pelos voluntários durante o estudo está
relacionado ao baixo nível de acessibilidade dos sítios eletrônicos visitados (à exceção do sítio do Dosvox).
Contudo, percebeu-se alguns problemas de acesso proporcionados pelo Dosvox. Ambos desativaram o
recurso de síntese de voz SAPI, que disseram oferecer baixa qualidade de voz. Para a voluntária B, usuária
menos freqüente do programa em relação ao voluntário A, algumas termos utilizados nos menus do Dosvox
não eram muito claros, e precisavam de explicação (mesmo ela conhecendo o programa há mais de dez
anos), como o “Trazer Página” e o “Gerador de Homepages”.
Aconteceram alguns casos em que foram acionados links da opção “páginas selecionadas” (opção S) e a
página não era aberta, possivelmente por algum defeito do programa. Da maneira como o conteúdo é
apresentado pelo Dosvox, também não é muito clara a diferença entre links e o texto comum, sendo pouco
perceptível também a diferença entre estes e os títulos e subtítulos das páginas, segundo os voluntários.
De maneira geral, contudo, o programa foi elogiado por ser considerado fácil de aprender e por ser gratuito,
o que facilita a sua difusão.
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Conclusões.
De maneira geral, o experimento teve sucesso, já que pôde-se aprender mais sobre a maneira com que o
Dosvox influencia a interação de pessoas cegas com a Web. Percebeu-se alguns problemas de usabilidade
que certamente influem negativamente na qualidade da interação.
Contudo, deve-se destacar mais uma vez que a grande maioria dos problemas enfrentados pelos usuários
eram proporcionados pelos sítios eletrônicos acessados que têm sérios problemas de acessibilidade, como
ficou demonstrado pelo experimento, à exceção do sítio eletrônico do Projeto Dosvox, que foi projetado em
conformidade com os padrões de acessibilidade.
A partir dos resultados deste experimento, que é parte de uma pesquisa de mestrado que estuda a influência
do Dosvox na experiência de cegos com a Web, podem ser elencados alguns novos passos, entre eles a
realização de testes da mesma natureza e entrevistas com especialistas em acessibilidade cegos, entrevistas e
pesquisas estruturadas com os desenvolvedores e pesquisas quantitativas com outros usuários do Dosvox
através da lista Voxtec.
Espera-se assim contribuir para o desenvolvimento do Dosvox, que é sem dúvida um marco na vida dos
cegos no Brasil e no movimento em prol da acessibilidade, para que se possa ter uma sociedade da
informação mais inclusiva e igualitária.
Bibliografia.
Disability Rights Commission (DRC). The Web access and inclusion for disabled people: a formal
investigation conducted by the Disability Rights Commission, London. TSO, 2004.
MONK, Andrew; WRIGHT, Peter; HARBER, Jeanne; DAVENPORT, Lora. Improving your humam-
computer interface: a practical guide. Hertfordshire: Prentice Hall, 1993.
NCE - UFRJ. Projeto DOSVOX. On-line. Disponível em: <www.intervox.nce.ufrj.br/dosvox/>. Acesso em:
22 jun. 2007.
NIELSEN, Jakob; COYNE, Kara Pernice. Beyond ALT Text: Making the Web Easy to Use for Users
with Disabilities. Fremont, California: Nielsen Norman Group, 2001.
Organização das Nações Unidas (ONU). United Nations Global Audit of Web Accessibility. On-line.
Disponível em: <www.un.org/esa/socdev/enable/documents/fnomensarep.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2007.
World Wide Web Consortium (W3C). Web Content Accessibility Guidelines 1.0 (1999). On-line.
Disponível em: <http://www.w3.org/TR/WAI-WEBCONTENT/>. Acesso em: 22 jun. 2007.
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Resumo
Résumé
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http://www.muitoespecial.com.br/imprimir.asp?conteudo=1346
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RESUMO
Este trabalho propõe identificar a percepção da imagem corporal de indivíduos com
deficiência visual. A especificidade deste estudo consistiu em analisar a percepção
corporal do indivíduo cego e com baixa visão na relação de orientação e mobilidade,
relações sociais e emocionais. O instrumento foi a entrevista semi-estruturada. Os sujeitos
deste estudo foram 11 adultos com deficiência visual. Destacamos três importantes
categorias de respostas: percepção corporal em relação aos aspectos motores, sociais e
emocionais. Para que as pessoas com deficiência visual sejam mais autônomas seu
contexto deve ser de acessibilidade, tanto no aspecto familiar quanto na vida escolar e
social.
ABSTRACT
This study consisted of analyzing the corporal perception of the blind people in the
orientation and mobility, social and emotional relations. The instrument was semi-
structuralized interview. The subjects of this study had been 11 adults with visual
deficiency. We detected three important categories of answers: corporal perception in
relation to the aspects motor, social and emotional. So that the people with visual
deficiency are more independent their context must be of accessibility, as much in the
familiar aspect and in belonging to school and social life.
RESUMEN
Este estudio consistió en el analizar de la opinión corporal de personas ciegas y las
relaciones de la orientación y de la movilidad, sociales y emocionales. El instrumento
utilizado foie semi-estructuradas entrevistadas. Los individuos de este estudio fueron 11
adultos con deficiencia visual. Detectamos tres categorías importantes de respuestas:
percepción corporal en referencia a los aspectos motores, sociales y emocionales. De
modo que la gente con deficiencia visual sea más independiente su contexto debe tener
accesibilidad, tanto en la vida familiar, cuanto en la vida de la escuela como en la vida
social.
1. INTRODUÇÃO
O corpo é a expressão material da personalidade. Sendo intrínseco e inerente,
identificado a nós como nosso esqueleto, nosso aparelho muscular, o corpo como um todo.
Temos percepção corpórea própria. Diariamente, frente ao espelho, nos comparamos com
os padrões vigentes, estereótipos de beleza e perfeição, e a tendência é imitá- los. Imitação
do vestir, do pentear, do modelar o corpo e, principalmente, como agir a partir dos gestos e
movimentos. O comportamento do ser humano segue padrões que podem ser
compreendidos de forma mais ou menos nítida que entendemos como arquétipos, criando
seu próprio mundo através da conquista da natureza. A “corpolatria” é expressão da cultura
somática da sociedade de consumo. Estas colocações fazem- nos refletir sobre a dificuldade
de modificar uma representação sócio-cultural.
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Os órgãos dos sentidos têm o papel de “situar- nos” perante o mundo. Assim como a
linguagem que está baseada nas imagens, é através da visão que construímos a opinião
sobre o mundo.
Para a pessoa com deficiência visual a percepção de si e do mundo à sua volta é
alterada devido às informações que recebem serem reduzidas e suas representatividades,
pobres. Assim, tais informações, feitas através da exploração do ambiente pela s mãos e
outros sentidos, têm sua representatividade, às vezes, distorcida, gerando ansiedade e
insegurança. Seus conceitos se formam ao longo do tempo e a partir de seus
relacionamentos sociais, com informações produzidas a partir da descrição de objetos e
espaço, por pessoas não cegas.
De acordo com Diehl (2006) a imagem do corpo, bem como sua relação com o
meio ambiente, são conceitos abstratos para os cegos, tendo em vista que eles não dispõem
ou possuem poucas referências visuais. Eles constroem o seu mundo físico basicamente
através de sensações táteis, olfativas e auditivas.
Um dos aspectos mais inquietantes, na concepção do desenvolvimento perceptivo-
motor do indivíduo com deficiência visual, é o de reconhecê- lo como um sujeito capaz de
realizar e expressar sua corporeidade com a mesma “grandeza” que um vidente. Na
Educação Física, é fundamental a utilização do corpo como instrumento de comunicação e
expressão no desenvolvimento do indivíduo com deficiência visual. Atividades que
busquem satisfazer as necessidades pessoais e sociais no dia a dia, de forma independente
e auto-suficiente são, por exemplo: expressão corporal, música, dança, teatro e atividades
esportivas adaptadas. “O contato com o fato artístico, os sons, a música, o movimento, a
dança e as artes plásticas, são elementos que nutrem as vivências e a conduta pessoal”.
(BRIKMANN, 1989, p.105).
A proposta deste artigo destina-se, fundamentalmente, pesquisar os parâmetros da
percepção corporal em deficientes visuais, identificar capacidades de percepção da imagem
de seu corpo, suas inter-relações entre eles e com os demais. Gallahue & Ozmun (2003),
comenta que fatores como um sentimento de bem-estar, imagem corporal, posição de
controle e depressão, podem ser influenciados pelo envolvimento em atividades físicas.
2. METODOLOGIA
Este trabalho é um estudo descritivo-exploratório. Demarca o perfil de um grupo,
analisa certos fenômenos, define pressupostos, identifica estruturas e possíveis relações
com outras variáveis.
Definiu-se a população de indivíduos com deficiência visual, tendo como amostra
nove sujeitos com cegueira total e dois com baixa visão, na faixa etária entre 19 e 45 anos,
pertencentes à região metropolitana de Porto Alegre. Dois dos entrevistados são do sexo
feminino e nove do sexo masculino.
O instrumento utilizado foi uma entrevista semi-estruturada. Os itens norteadores
da pesquisa foram os seguintes: a) como se dá a percepção da imagem corporal do
indivíduo com deficiência visual; b) sua percepção em relação ao corpo e sua mobilidade
nas atividades da vida diária e também nas atividades físicas mais intensas; c) relação e
interação com o meio, a família, a sociedade, etc.; d) como se processa seu lado emocional,
seus medos, inseguranças, alegrias e tristezas.
Perspectiva físico/motora
Observamos que estes indivíduos possuem dificuldade em relação à percepção de
seu corpo quanto aos aspectos físicos e motores. A percepção, muitas vezes, ocorre a
partir das informações dadas pelo outro. Informações que são fundamentais para seu
crescimento integrado sob vários aspectos. “O que eu percebo do meu corpo é assim, eu
percebo o que os meus amigos falam” (Entrevistado 2); “... eu não me importo muito com
isso, mas...eu só sei o que as pessoas dizem, né...” (Entrevistada 10).
Quanto maiores forem os estímulos e novas experiências do indivíduo, mais
completo será seu desenvolvimento perceptivo, principalmente sob o ponto de vista
psicomotor.
“Falar sobre a percepção que o cego tem do mundo, só ele pode falar, pois somente
ele pode percebê- lo pelo seu corpo” (PORTO, 2005, p.35). Quando nos deparamos, ou
imaginamos um objeto, ou quando construímos a “imagem” de um objeto, não agimos
como uma simples máquina perceptora, mas como uma personalidade que experimenta
essa percepção.
Através da elaboração da imagem corporal percebemos que somos iguais aos
demais, pelo menos em nossa forma. Os cegos têm, na maioria das vezes, uma “visão”
distorcida da realidade corporal. “... Eu sou alto, um pouco... tenho 1,63m” (Entrevistado
8). O Entrevistado 6, aproximadamente mesma altura, disse que era meio alto. “Sou meio
magro... meio gordinho” (Entrevistado 1).
Percebemos que a tendência é perceber o mundo, mais como eles crêem ou querem
que seja do que através da informação recebida através dos diferentes estímulos.
Acreditamos que para adquirir real percepção, os indivíduos dependem das relações entre
os fatores do estímulo captados e das experiências vividas com este estímulo.
Vivemos numa cultura em que a aparência é extremamente valorizada. É através
dessa aparência que os demais nos percebem e nos reconhecem, por isso pode-se destacar a
importância da imagem na determinação do conceito de auto- identidade e de
autovalorização.
Essa cultura constrói sua imagem de corpo e essa imagem se constitui numa
maneira própria de “ver” e viver o corpo. Porém se percebe que os indivíduos cegos
mesmo estando, às vezes, fora do “padrão” de beleza estabelecido pela cultura da
corpolatria, relatam estarem contentes com seus corpos. “...Me sinto um pouco alta, né,.. eu
me sinto realizada com meu corpo... não sinto bonita e nem feia, me sinto no padrão
normal” (Entrevistada 10).
A maioria dos sujeitos entrevistados demonstrou preocupação com a postura,
relatando que freqüentemente alguém lhes faz alguma observação a respeito do
assunto.“Sim, eu ando sempre de cabeça baixa... eu tenho que levantar a cabeça e não
consigo” (Entrevistado 7); “...Sim, a professora de teatro. Ela sempre fazia comentários
com a gente, sempre caminhar com a cabeça alta, “olhando” para a frente e nunca
caminhar encurvado, apoiando-se na bengala” (Entrevistado 8).
Uma vida fisicamente ativa e habilidade para desenvolver tarefas da vida diária, são
fatores que podem ter efeito positivo no conceito que adultos têm de si e na maneira como
os outros os vêem (Gallahue & Ozmun, 2003). Devemos ter em mente as dificuldades
sofridas pelos indivíduos cegos quanto às possibilidades de ação e interação motora.
Dificuldades ocasionadas pela reação da família e da sociedade que tendem a super
protegê- los e a cercearem suas ações. “Às vezes eu tenho medo de ir para certos lugares,
porque não tenho boa mobilidade. Às vezes eu vou para esquerda quando é para direita. Eu
tenho uma mania, de não ”olhar” para a pessoa que está falando”(Entrevistado 6).
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Perspectiva social
A família, muitas vezes, cria ao redor da criança cega uma redoma formada pela
superproteção, causada pelo sentimento de culpa, pela desestruturação que o nascimento de
uma criança deficiente causa, pelo medo e por falta de informações. Existe um total
cerceamento da ação motora, tudo vindo à criança sem que ela saiba a origem, ocorrendo
situações abaixo do seu limiar de captação, fazendo com que ela tenha a tendência de
fechar-se cada vez mais em seu mundo. “...Eu levanto todo o dia às 8 horas. Tomo café.
Vou para meu quarto, sento em minha cadeira giratória que a minha mãe me deu e fico
escutando rádio o dia todo” (Entrevistado 3).
Para Gandara (1992) a família desempenha papel fundamental no desenvolvimento
e educação do indivíduo com deficiência visual, pois resultados mais imediatos e corretos
viriam de esclarecimentos e atendimentos prestados a partir da infância.
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Como a pessoa cega é muito dependente do meio, não tem muitas chances de
escolha, só lhes resta atribuir valor ao que nele acontece. Sua área afetiva poderá estar
saturada destes sentimentos equivocados, manifestando ansiedade, inseguranças ou até
mesmo, sentimentos de incapacidade. Os indivíduos entrevistados deixaram transparecer a
carência afetiva, trazendo a reboque outros sentimentos, como o medo, a tristeza e o pior
de todos, o sentimento de solidão. “Ser carente é ser humano, é estar vivo e atuante numa
eterna luta, sempre recomeçada e nunca finda” (SAÚDE, 2001, p.82).
A compreensão do quanto o indivíduo cego pode e é capaz diante das situações de
vida é um desafio para ele e seus familiares. A maneira como a família se comporta pode
acelerar ou retardar o processo de independência, trazendo conseqüências profundas ao
longo do seu desenvolvimento. Nesse sentido, entendemos a importância da estimulação
na família.
A preocupação com o desenvolvimento da criança com deficiência visual deve
iniciar-se no nascimento, para que possam se estabelecer suas bases e atingir a maturidade
necessária para uma boa interação sócio-afetiva no seu meio. Cabe, ainda, aos especialistas
da Educação Especial, assumirem seu papel enquanto responsáveis pela orientação e
estimulação durante o desenvolvimento da criança procurando evitar, prevenir e
minimizar, na medida do possível, as defasagens que poderão ocorrer tanto no
desenvolvimento, quanto na aprendizagem.
Em conformidade com Schilder (1980, p.243): “Nossa imagem corporal só adquire
suas possibilidades e existência porque nosso corpo não é isolado”. Segundo este autor, um
corpo é necessariamente um corpo quando está entre outros corpos. As pessoas aprendem a
avaliar seus corpos através da interação com o meio em que vivem, assim sua auto- imagem
é desenvolvida e reavaliada continuamente.
É preciso estimular o indivíduo com deficiência visual para que se mostre através
de sua linguagem corporal, prestando atenção à sua maneira de mover-se, de relacionar-se
com o mundo. Cada um traz, em seu corpo, uma memória de vida, uma história, um
contexto familiar. Saber olhar esses corpos com a singularidade de cada um é o
fundamento de uma didática cuidadosa, que valoriza a subjetividade e estimula
potencialidades. Para as pessoas cegas, as maiores alegrias são centradas nos contatos,
criando referenciais com alguém que lhes dê atenção. Em contra-partida, manifestam
grande frustração quando são relegadas à condição de deficientes e até mesmo uma
redução de atenção desperta- lhes tristeza. A indiferença dos videntes não é bem assimilada,
tendo como conseqüência a insegurança. Identificou-se que a maioria do público
entrevistado não possui muitos amigos e, que o pouco que tem, também é deficiente visual.
“...Eu prefiro ter amigos cegos do que videntes, porque me sinto mais seguro, sabe...o
vidente não me dá muita segurança... porque já tentei me aproximar de pessoas que
enxergam, mas acabei não conseguindo” (Entrevistado 7).
A partir de experiências que valorizem atividades que contemplem o contato com o
outro, com o mundo, podemos destacar a contribuição da construção de uma identidade e o
desenvolvimento do indivíduo. Para o deficiente visual, estas experiências se tornam
fundamentais, desenvolvendo e fortalecendo sua independência e sua auto-estima.
Conforme Porto (2005), o ser humano é inseparável do meio ambiente e esse entorno
humano se dá pela natureza e sociedade.
Nessa pesquisa, apenas um sujeito relatou que participa de festas com
videntes.“Vou bastante, mas eu peço aos amigos para não me deixar no meio para não
bater em ninguém.”(Entrevistado 2)
Na maioria das vezes, suas relações pessoais são comprometidas, fugindo do
padrão de normalidade estabelecido.“Eu converso mais é por telefone. Eles (os amigos)
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nunca têm tempo. Eles falam, ah eu vou te visitar, mas na vão. Aí eu tenho que ligar, senão
não me ligam”.(Entrevistado 11).
Assim, podemos identificar o quanto é complicado para esse público participar de
eventos para videntes. O que se constatou é que na maioria das vezes, eles só participam de
festas promovidas por entidades representativas dos indivíduos com deficiência visual.
Quatro sujeitos relataram que nunca participam.
O relacionamento entre as pessoas caracteriza a unidade básica do sistema. Esta é
formada sempre que duas ou mais pessoas prestam atenção ou participam nas atividades da
outra, constituindo-se como um contexto crítico para o desenvolvimento. As pessoas não
constroem seu esquema corporal sozinhas, sendo essencial o diálogo com os pais,
professores, colegas e amigos, sobre o esquema corporal e a imagem do corpo. “Perceber e
relacionar-se com o meio ambiente não se resume apenas aos sinais diretos que o cérebro
recebe de determinados estímulos” (PORTO, 2005, p.88).
Perspectiva emocional
A pessoa cega, muitas vezes, chega à fase adulta sem um “passado” de
experiências, não apresentando as rotinas da vida cotidiana de acordo com a sua idade.
Seus conceitos básicos como esquema corporal, lateralidade, orientação espacial e
temporal, são quase inexistentes e sua mobilidade difícil, o que poderá levar à baixa
estima.
De acordo com estas colocações, pode-se entender o quanto a criança deficiente
visual pode ser mal conduzida em seu desenvolvimento e aprendizagem, quando guiada
pela insegurança, superproteção e, mesmo, desconhecimento das pessoas que a cercam.
A partir dos relatos, podemos evidenciar alguns pontos relativos à perspectiva
afetiva, onde os entrevistados revelaram possuir uma grande carência, acarretando
dificuldades para o equilíbrio emocional e a construção de sua personalidade. “Às vezes eu
quero conversar com minha mãe e ela diz que não pode. Ela finge que não escuta. Então,
foi aí que fui me fechando...me fechando” (Entrevistado 6).;“Como moro com minha
sogra, eu tenho que agüentar muita coisa. Falam as coisas..., que eu não sei fazer comida
na frente de todo mundo. Não deixam eu fazer absolutamente nada” ( Entrevistada 10).
A maneira preconceituosa de categorizar e rotular a pessoa cega é mantida e
alimentada pela ideologia do déficit, num círculo vicioso que se mantém nas exigências
produtivas de uma “sociedade de consumo” que só reconhece o indivíduo na medida em
que ele produz. Ao mesmo tempo, essa mesma sociedade legitima sua isolação e justifica a
criação de instituições asilares. Incontáveis são as pessoas cegas, confinadas em si
mesmas, temerosas de “enxergar” a vida com suas próprias mãos, estagnadas em seu
desenvolvimento pelas demandas de uma certa dotação física: a visão.
Porém, existem aqueles que ousam desafiar as “leis”, ignorando supostas
“inaptidões” e mobilizam recursos no sentido de pleitear e tomar posse dos espaços
conquistados. Não se pode negar que é através da interação que estabelece com o outro que
o deficiente visual conquista um corpo seguro, ganhando confiança para a delimitação do
espaço físico em que convive.
O desenvolvimento da auto-estima acarreta desafios que precisam ser enfrentados,
pois a promoção da auto-estima passa pelo processo de desenvolvimento da aquisição de
autonomia. “Ah, eu me sinto feliz. Antigamente eu nem saía de casa. Eu me sinto assim,
que estou bem melhor. De fazer piscina. Aqui na Associação, a gente faz expressão
corporal, eu me sinto muito bem”.(Entrevistada 5); “Eu sou uma pessoa de bastante alto
astral.”(Entrevistada 10).
Normalmente, a auto-estima manifesta-se pela aceitação de si mesmo como pessoa
e por sentimentos de valor pessoal e de autoconfiança, constituindo-se em fator
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4. PALAVRAS FINAIS
As dificuldades encontradas pelas pessoas com deficiência visual relacionadas à sua
percepção corporal, sua mobilidade e tudo que se relacione com suas ações são muitas.
Bem como poderia ser com a pessoa vidente. Porém, a falta de estimulação precoce, os
obstáculos encontrados no seu dia-a-dia dificultando sua acessibilidade, a pouca oferta de
espaços, para através do esporte e do lazer, desenvolver suas necessidades sócio-afetivas
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são maiores do que as demais pessoas. A carência dessas atividades pode levá-los a um
processo desencadeador de severos comprometimentos relacionados à independência,
segurança, aquisição e desenvolvimento de conceitos, integração com o meio e consigo
mesmo, assumir ou concluir tarefas de conhecimento e satisfação pessoal.
Essas relações entre imagem corporal, aspectos motores e de bem estar psico-social
são fundamentais para se compreender a complexidade do universo da imagem corporal,
auxiliando na melhor compreensão do desenvolvimento desse fenômeno e dos parâmetros
que determinam todo o julgamento de si. Além disso, pode-se levar a especulações sobre
trabalhos no sentido de fazer com que haja uma maior aceitação de si por parte do
indivíduo com deficiência visual.
Encontramos algo de profundo questionamento à sociedade, o meio em que vive
este público. A influência do social no pessoal é um fator existencial pouco considerado
numa sociedade individualista, mas determinante para se compreender as limitações e
possibilidades do indivíduo cego. Ao analisar o contexto das pessoas com deficiência
visual entrevistadas, não fica difícil perceber que estes indivíduos, carentes do sentido da
visão, não têm as mesmas condições e oportunidades de viver plenamente sem estímulos.
Ao fazer parte de uma sociedade, o ser humano quer ter direitos e deveres, para ter a
oportunidade de participar de modo efetivo do seu processo de construção, estabelecendo
relações de troca, como qualquer outro.
Através de atividades específicas e sua total interação com o meio, pessoas com
deficiência visual poderão ter mais oportunidades de conquistar seu espaço como cidadãos,
independente de sua deficiência. A afirmação da individualidade e o desenvolvimento de
uma identidade positiva dependem fortemente disto, contribuindo significativamente para
uma vida plena desses indivíduos.
REFERÊNCIAS
OBJETOS DE REFERÊNCIA
Promovendo o desenvolvimento de conceitos e habilidades de
comunicação em crianças com deficiência visual e
dificuldades de aprendizagem.
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PREFÁCIO
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AGRADECIMENTOS
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2. O que “Objetos de Referência” podem representar? 06
3. Por que usar “Objetos de Referência”?. 09
4. Quais crianças podem se beneficiar com “Objetos de Referência”? 09
5. Quais habilidades e critérios precisam ser desenvolvidos a fim de se colocar em
prática “Objetos de Referência”? 10
6. Como os “Objetos de Referência” podem ser apresentados a
uma criança 11
7. Colocando em prática. 12
a) Apresentando outros objetos de referência 20
b) Reduzindo e simplificando cada objeto 13
c) Separando o Objeto de Referência daquele ao qual se refere 16
d) Seqüenciando o uso dos Objetos de Referência;
montando esquemas 16
e) Apresentando mais informações com os objetos 18
f) Usando Objetos de Referência como linguagem expressiva. 19
8. Diferentes maneiras de usar Objetos de Referência 20
9. Usando Objetos de Referência para abrandar
o comportamento desafiador 21
10.Objetos de Referência e outras formas de comunicação 21
11.Encorajando uma criança a escolher um
novo objeto e seu significado 21
12.Rotulando objetos 22
13.Conclusão; a importância de cuidadoso planejamento e avaliação 22
14.Leitura complementar 23
Bibliografia 24
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5:87: (A B 8
em cada caso, para querer dizer a mesma coisa, uma criança que não pode ler ou
escrever pegaria uma bola de plástico (da piscina de bolas) para se expressar.
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- Horários. Este item tende a ser abstrato –pelo menos no que diz respeito
à compreensão infantil. Por exemplo, eu tenho utilizado um pequeno
relógio de plástico para querer dizer 16h00 (momento em que algumas
crianças vão para casa, outras tomam seu chá, e o resto sai para brincar).
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- Pessoas. Para quem quer que seja representado, podemos, por exemplo,
tomar uma pulseira, ou um pedaço de material de que é feito um objeto
ou roupa.
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As crianças que mais deverão se beneficiar ao utilizar “Objetos de Referência” são
as:
ou aquelas as quais
- a escrita grande, o braile ou Moon (um sistema táctil alternativo de
leitura) não se apresentam como opções apropriadas – embora
aprender a usar objetos simbolicamente possam tornar esses métodos de
alfabetização mais accessíveis.
“Objetos de Referência” tem sido utilizado com jovens surdocegos durante algum
tempo e, cada vez mais, vem desempenhando um importante papel na educação de
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crianças com problemas de visão e que também são portadoras de outras deficiências.
O potencial para ajudar jovens que possuem conhecimentos de braile ainda precisa
ser avaliado propriamente. Além disso, pode ser que pessoas de qualquer idade que
apresentam condições degenerativas, como é o caso do mal de Alzheimer, possam ser
ajudadas a utilizar suas faculdades mais efetivamente através da apropriada e
suficientemente precoce introdução dos métodos de “Objetos de Referência”.
É importante ter em mente que crianças com relativamente boa visão possam ter a
capacidade de usar desenhos em vez de objetos, ou abstrair o desenho a partir do
objeto.
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objeto ao qual se refere. O que inclui, por exemplo, uma caneca para
‘bebida’ e uma colher para ‘comida’.
(coisa que é muito mais visual), pode ser bastante inapropriada para
crianças cegas nos primeiros estágios de aprendizado. Poderá ser muito
melhor representar o transporte/viagem num automóvel usando-se parte
do veículo com a qual a criança tem contato corriqueiro. Assim, uma boa
forma de representar a ação ‘andar de micro-ônibus’, por exemplo, pode
ser com o uso de uma fivela de cinto de segurança.
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“Depois de nadar, vamos ter uma bebida e então será hora de ir para casa.”
Então, tente quatro, cinco atividades e assim por diante. Mais uma vez, será
importante avaliar o nível de desenvolvimento da criança nesta área. Quão longa
pode ser a cadeia de futuras atividades que uma criança pode apreender? Até quanto
esse número pode ser estendido? Entendendo como os eventos são seqüenciados,
uma criança pode começar a criar conceitos sobre o passar do tempo.
Uma escala de atividades pode ser construída por todo o período da manhã, para um
dia, uma semana ou até um período mais longo. Especialmente com portadores de
múltipla deficiência, é importante ter em mente que a ‘agenda’ deve ser válida para
todos os momentos do dia; assim, se a escala de atividades será usada, não deve parar
às 16h00, por exemplo, ou no momento em que termina o dia escolar. Imagine, como
professor, ter um relógio enquanto você estava na escola e, então, ter que lidar sem
ele durante o período noturno.
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A seqüência de objetos pode ser utilizada não apenas para antecipar futuros
acontecimentos, mas também para referir-se a eventos passados. Para a típica
pergunta:
a qual muitas crianças com dificuldades de aprendizado acham tão difícil, os objetos
poderão fornecer o necessário despertar para a memória. Para as crianças as quais a
apreensão da linguagem ainda encontra-se nos estágios iniciais –fase em que o
passado, presente e futuro são freqüentemente confundidos—, os Objetos de
Referência poderão ser de valor inestimável.
A escala de atividades mostrada abaixo é feita de uma série de caixas com tampas
que podem ser fechadas para indicar que uma atividade acabou. A intenção é que a
escala seja consultada no início do horário escolar e que seja atualizada, fechando-se
a tampa apropriada, a cada mudança de atividade. Momentos antes ao horário de ir
para casa, os eventos do dia poderão ser todos verificados. Estará sempre disponível
para consultas.
e) Apresentando mais informações com os objetos. Uma vez que a criança possa
entender, com os Objetos de Referência, que atividades básicas tais como ‘piscina de
bolas’, nadar, comer e outras, irão acontecer, e quando acontecerão, em relação a
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outras atividades, então a forma como essas informações são apresentadas podem ser
refinadas de diversas maneiras. Por exemplo, quem irá nadar? Nós iremos tomar
alguma coisa na sala de aula ou na sala de lanche? As quatro perguntas principais que
precisam ser respondidas provavelmente se resumem a:
O que?
Quando?
Onde?
Com quem?
O objeto que representa a atividade irá responder a primeira dessas perguntas e sua
posição em relação a outros objetos irá fornecer a informação questionada pelo
segundo objeto.
Os objetos podem ser anexados com Velcro para facilitar a arrumação dos cartões de
acordo com as necessidades do momento.
poderão ser encorajadas a usar objetos de referência de uma forma expressiva, a fim
de escolher por elas mesmas o próximo passo da ação ou, quem estará participando,
onde e quando.
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Esta idéia poderia ser apresentada oferecendo-se à criança a escolha de dois objetos,
representando, digamos, um copo de leite e um copo de limonada, e deixando a
criança escolher a opção preferida. Nessa situação de escolha ‘forçada’, a seleção
poderia ser feita entre três ou mais objetos.
Se uma agenda de atividades está em operação, um espaço poderia ser deixado para
ser preenchido pela criança com a atividade de sua escolha, talvez como recompensa
por ter realizado com êxito a tarefa anterior.
Frases poderiam ser completadas com objetos sobre uma mesa, possivelmente usando
um quadro de Velcro ou alternativa que se encaixe. Por exemplo, em resposta à
pergunta
“Nós tivemos música [representada por sinos] no ginásio [um apagador] com Anna
[bracelete de metal]”.
12 Rotulando objetos. Todos os objetos deveriam ser rotulados para que todos
entendam imediatamente o que a criança quer dizer ou precisa. A idéia de
“significado duplo” não cessa somente ao se escrever seu significado. Os
objetos também podem ser rotulados em braile ou Moon, por exemplo. É até
possível relacionar os diferentes objetos, se os distintos símbolos envolvendo
uma atividade em particular, uma pessoa, lugar, ou horário, estejam ligados
entre si, interagindo juntos, como, por exemplo, uma placa de trânsito que é
indicada em duas línguas, digamos, em francês e inglês.
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BIBLIOGRAFIA
Confrontation between the Young Deaf-Blind Child and the Outer World
(Comparação entre a criança surdocega e o mundo exterior), de Mary Rose
Jurgens, com introdução de J. Van Dijk, publicado por Swets & zeitlinger B.V.,
Amsterdam e Lisse, 1977.
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ARTIGOS
Perspectivas da atuação
fonoaudiológica diante do
diagnóstico e prognóstico
da surdocegueira
Brasília M. Chiari*
Eliane L. Bragatto**
Regiane Nishihata***
Carolina A. F. de Carvalho****
Resumo
Abstract
Hearing and Vision are two important inputs for an individual to develop and keep full
communication. There are illnesses, whose treatment, besides the clinical observations, need the
application of qualitative assessment, such as illnesses and syndromes that affect hearing and vision
simultaneously. The Cogan Syndrome, a sort of deafblindeness, is characterized by sensorineural
hearing impairment, vestibular and ophthalmological alterations, in addition to systemic alterations.
It is a rare syndrome triggered by an unknown factor that affects white young-adults, irrespective of
gender. In this case study of a subject with Cogan Syndrome, we analysed qualitatively, social, personal
and professional aspects, with emphasis on the communication effectiveness, before and after diagnosis.
*
Professora Titular da Disciplina dos Distúrbios da Comunicação Humana do Departamento de Fonoaudiologia da
Unifesp/EPM. ** Mestre em Distúrbios da Comunicação Humana – Campo Fonoaudiológico pela Unifesp/EPM; especializada
em Neuropsicologia pela Unifesp/EPM. *** Especialista em Distúrbios da Comunicação Humana – Campo Fonoaudiológico pela
Unifesp/EPM. **** Especialista em Distúrbios da Comunicação Humana – Campo Fonoaudiológico pela Unifesp/EPM.
Resumen
La audición y la visión son de dos entradas sensoriales importantes para el desarollo y conservación
de una plenitud en la comunicación. Hay enfermedades donde, además de la observación clinica y
aplicación de examenes empíricos , la evaluación cualitativa es imprescindible, como en las síndromes
o enfermedades que acometen los sistemas auditivo y visual, simultáneamente. La sordoceguera en la
síndrome de Cogan es caracterizada por disacusia neurosensorial, alteraciones en el vestíbulo y
oftalmológicas, además de complicaciones sistémicas; es rara y de origen desconocida, acometiendo,
principalmente individuos adultos jóvenes, de etnia blanca y sin preponderancia de sexo. En este
estudio de caso evaluamos de manera cualitativa un individuo con diagnóstico de Síndrome de Cogan,
incluyendo cuestiones relativas a los aspectos de vida personal, social y profesional, en los períodos
antes y después del diagnóstico, enfatizando las dimensiones de la funcionalidad de su
comunicación.Discutimos criterios que serán establecidos por el equipo multidisciplinar para tales
casos particulares, cuanto a conductas en la evaluación y orientación familiar, y apuntamos directrices
del proceso de rehabilitación, especialmente la terapia fonoaudiológica y la realización de la cirugia
de implante coclear.
ARTIGOS
A criança surdocega não é uma criança surda que escrita, a audição e as funções motoras orais/
não pode ver e nem um cego que não pode ouvir. deglutição (Giacheti, 2004). Ao mesmo tempo,
Não se trata de simples somatório de surdez e ce- outras ciências que atuam na prevenção, diagnós-
gueira, nem é só um problema de comunicação e tico e tratamento das síndromes, como, por exem-
percepção, ainda que englobe todos esses fatores e
plo, a Otorrinolaringologia, Oftalmologia, Psico-
alguns mais.
logia, Fisioterapia, Neurologia e Psiquiatria, tam-
A surdocegueira é classificada quanto ao tipo bém possuem uma relação com a Fonoaudiologia
em: cegueira congênita e surdez adquirida; surdez no trato desses e de outros diversos tipos de pato-
congênita e cegueira adquirida; cegueira e surdez logia. Assim, as intercorrências genéticas se confi-
congênita; cegueira e surdez adquirida; baixa vi- guram como exemplo claro da oportunidade e
são com surdez congênita; baixa visão com surdez necessidade da atuação de uma equipe transdisci-
adquirida. O surdocego pode ser pré-lingüístico ou plinar no caminho para a efetividade e eficiência
pós-lingüístico. As causas podem ser pré, peri ou clínica e terapêutica.
pós-natais. Desta forma, a Fonoaudiologia pode colabo-
Há mais de 70 enfermidades conhecidas cau- rar na importante identificação junto aos pacien-
sadoras da surdocegueira, entre síndromes e doen- tes de suas necessidades de comunicação e priori-
ças. Dentre estas, encontra-se a Síndrome de dades, estabelecendo metas realistas que efetiva-
Cogan, rara e de causa desconhecida, que acomete mente reduzam seus handicapes e, conseqüente-
predominantemente indivíduos adultos jovens, por mente, proporcionem uma melhor qualidade de
volta dos 25 anos, da raça branca e sem preponde- vida.
rância de sexo.
Na Síndrome de Cogan, há alterações otoneu- Objetivo
rológicas, com crises de vertigem, zumbidos,
desequilíbrio, náuseas e vômitos. A disacusia é Avaliar qualitativamente o desempenho comu-
do tipo neurossensorial, na maioria bilateral. A per- nicativo de um indivíduo com diagnóstico de Sín-
da auditiva pode ser flutuante e evoluir para sur- drome de Cogan, bem como contribuir para o es-
dez profunda e irreversível na maioria dos casos. clarecimento de como é a sua vida e de como é
As alterações oftalmológicas se evidenciam por constituída a compreensão de sua própria doença,
ceratite intersticial, caracterizada por dor, hipere- sugerindo a partir daí formas de avaliação e reabi-
mia ocular, fotofobia, visão turva e lacrimejamen- litação.
to. Outras manifestações sistêmicas incluem
febre, cefaléia e alterações músculo-esqueléticas, Material e método
gastrointestinais, cutâneas, cardiovasculares, gê-
nito-urinárias, vasculares e pulmonares (Grasland, Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Éti-
Pouchot, Hachulla, Blétry, Papo, Vinceneux, ca em Pesquisa da Universidade Federal de São
2004). Paulo, sob o CEP nº 01458/05.
A prática clínica tem demonstrado que, nos
processos de diagnóstico e intervenção referentes Sujeito
a síndromes e distúrbios da comunicação, há uma
integração das Ciências da Genética e Fonoaudio- Trata-se de indivíduo do sexo feminino, 28
logia; enquanto esta estuda a comunicação huma- anos de idade, da raça branca e procedente de São
na e seus distúrbios, aquela estuda a transmissão Paulo, SP. É casada, tem uma filha de 3 anos de
de características biológicas, as quais podem ser idade, cursou até a terceira série do ensino médio e
físicas, químicas, citológicas ou funcionais. Den- exercia o cargo de auxiliar administrativo, em uma
tro de uma equipe multidisciplinar, a Genética atua empresa privada, até o ano de 2002.
com os aspectos de diagnóstico, nosologia, acon- Compareceu ao ambulatório de oftalmologia
selhamento, prevenção, prognóstico, detecção de do Hospital São Paulo, em agosto de 2002, com
portadores, tratamento, entre outros. Já a Fonoau- a queixa de hiperemia ocular; desde então, refere
diologia tem como objetivo caracterizar dentre o piora progressiva da visão. Na mesma época, sur-
espectro clínico geral, as manifestações que envol- giram sintomas vestibulares: zumbido, tontura e
vem a linguagem em suas modalidades oral e vertigem; na seqüência, apresentou queixa auditiva.
O diagnóstico da Síndrome de Cogan foi fechado audição da paciente se apresentou de forma pro-
em conjunto pelos setores de genética e oftalmolo- gressiva e flutuante; em 2002, havia uma perda
gia. Apresentou também um quadro de depressão, auditiva neurossensorial de grau leve apenas na fre-
com antecedentes familiares. qüência de 8000 Hz, na orelha direita; num prazo
Concomitantemente ao déficit auditivo, houve de 12 meses, evoluiu para uma perda profunda
aumento do zumbido e da vertigem, e o resultado bilateral. Os resumos dos limiares auditivos, no pe-
do exame otoneurológico foi sugestivo de síndro- ríodo de agosto de 2002 a julho de 2005, encon-
me vestibular periférica. O comprometimento da tram-se descritos abaixo:
Faz uso de medicamentos corticosteróides e faz uso de lentes corretivas nem foram encontra-
antidepressivos. Está em processo de seleção e das outras referências sobre a avaliação funcional
adaptação de prótese auditiva e inserida no grupo da visão. Atualmente, é acompanhada pelos Am-
de candidatos à cirurgia de implante coclear. Não bulatórios de Reumatologia (Setor de vasculite),
ARTIGOS
Oftalmologia (Setor da córnea), Otorrinolaringo- curso, que é o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC),
logia (Setor de implante coclear), Fonoaudiologia proposto por Lefèvre e Lefèvre (2000). Conforme
(Setor de prótese auditiva) e Psiquiatria do Hospi- os autores, o DSC é
tal São Paulo. Também está sendo encaminhada
para freqüentar uma instituição de apoio aos indi- [...] uma proposta de organização e tabulação de da-
víduos portadores de surdocegueira. dos qualitativos de natureza verbal, obtidos de depo-
imentos, artigos de jornais, matérias de revistas se-
manais, cartas, papers de revistas especializadas, etc.
Procedimento
A proposta do DSC consiste basicamente em
Para a descrição da experiência selecionada, analisar o material verbal coletado, extraindo-se de
o método de investigação empírica adotado foi o cada um dos depoimentos, as Idéias Centrais e as
estudo de caso. De acordo com Gil (1999), o es- suas correspondentes expressões-chave. A partir
tudo de caso disso, pode-se encontrar uma ancoragem que seria
o discurso-síntese do sujeito coletivo.
[...] se fundamenta na idéia de que a análise de uma No presente trabalho, utilizamos o DSC na
unidade de determinado universo possibilita a com-
forma de “estudo de caso”, aplicando-o em apenas
preensão da generalidade do mesmo ou, pelo me-
nos, o estabelecimento de bases para uma investi- um sujeito, visando a verificação de sua exeqüibi-
gação posterior, mais sistemática e precisa. lidade no que tange à avaliação qualitativa do de-
sempenho comunicativo do portador da Síndrome
A pesquisa de campo foi conduzida sob a for- de Cogan. Na perspectiva de que o resultado seja
ma de entrevista, permitindo que o sujeito fosse satisfatório, pretende-se a ampliação da amostra,
indagado tanto sobre os fatos quanto sobre a sua com a inclusão de outros sujeitos portadores da
opinião a respeito deles, corroborando possíveis mesma síndrome. Espera-se com isso auxiliar no
fontes de evidências. Godoy (1995) argumenta que desenvolvimento de estratégias terapêuticas que
a pesquisa qualitativa possam ser aplicadas, viabilizadas tanto na forma
de terapia individual como na terapia em grupo.
[...] envolve a obtenção de dados descritivos sobre
pessoas, lugares e processos interativos pelo conta- Resultados
to direto do pesquisador com a situação estudada,
procurando entender o fenômeno segundo a pers- Segundo relato do indivíduo, a comunicação
pectiva dos sujeitos.
no dia a dia é limitante, privativa e isoladora; a
O roteiro adotado na entrevista foi o semies- adaptação às limitações decorrentes da síndrome
truturado, contendo 28 questões relativas aos as- impõe uma mudança radical quanto à forma e uso
pectos de vida pessoal, social e profissional pré e da linguagem. A síndrome acomete a audição de
pós- diagnóstico, enfatizando as dimensões da fun- forma súbita e aguda e a visão de forma insidiosa;
cionalidade da comunicação (Anexo 1). as duas de forma crônica.
A entrevista foi realizada no Ambulatório de [...] comunicação, conversa, eu não tenho muito
Avaliação e Diagnóstico dos Distúrbios da Comu- não porque é difícil, é só o necessário, eu fico ima-
nicação Humana do Hospital São Paulo – Univer- ginando as coisas...
sidade Federal de São Paulo, sem estabelecimento [...] fico conversando comigo mesma só de pensa-
de limite de tempo para sua conclusão. Foi feita mento. Às vezes, vejo as pessoas conversando, fico
gravação magnética da entrevista. O sujeito se querendo saber... coisas que eu fazia antes quando
colocou prontamente disponível a participar do tra- eu escutava, conversar, ouvir, quero dar opinião,
balho, não havendo dificuldade em realizá-lo; as reclamar, achar o que gosta e o que não gosta...
É, o pior dos piores...
perguntas foram lidas em uma velocidade mais
Ah, é uma vida nova, uma experiência, uma expe-
reduzida e/ou repetidas, devido à surdocegueira do riência nova...
entrevistado. A entrevista durou 46 minutos.
Toda a entrevista foi transcrita literalmente. A síndrome limita as atividades de lazer, pro-
Para análise das informações obtidas nas respos- vocando o afastamento do convívio social; inca-
tas, foi utilizada uma modalidade de análise do dis- pacita a independência locomotora do indivíduo.
Televisão, eu vejo as pessoas conversando. Às ve- sa?”... não... “Que foi, que você tem?”... aí eu falo...
zes eu não assisto muito televisão que minha vista “Nada”... “Ah, você quer conversar?”... e eles fi-
dói, então eu deito, cada três horas eu deito porque cam conversando aí... aí quando tem o tempo todo
eu sinto fraqueza, tontura, minha vista dói. Fico pra mim eu já fico sem assunto... (risos)... coisa
olhando pra televisão pra querer entender o que a espontânea...
pessoa fala quando ela tá mexendo a boca... Eu passo o final de semana na minha sogra, eu
“Sozinha não saio não que eu tenho tontura... morei com ela. Então fica uma coisa... é... eles não
Ah, sair! Nossa! Pelo menos eu pegava a minha sabem como se comportar. É que uns se sentem
filha e pegava o ônibus. Eu nunca fui de ficar den- culpado, outros não, fica um clima, é como se ti-
tro de casa, hoje eu tô mais em casa... e fulano vai vesse uma interrogação no ar. Mas ela mexe a boca
me levar, fico dependendo... “Ah, hoje eu não pos- pra falar comigo, mas não tem mais a conversa que
so sair com você”... “Você quer sair? Você quer a gente tinha antes...
sair?”... “Pode ser outro dia?”... “Aí eu falo pode, Eu vejo minha mãe, às vezes eu não quero falar
claro!”... (risos)...Você abre mão das coisas que pra ela, mas a gente procura falar de coisa do que
você quer na hora. É porque, como se chama aque- passou, mas tem hora que isso mexe um pouco co-
la pessoa que quer as coisas na hora? Não é fácil, migo. Tem dia que eu nem ligo, tem barulho no meu
se eu tivesse normal aí eu ia sair, ninguém impedia ouvido, eu não escuto a voz de ninguém, aí eu não
de eu sair, eu era pau pra toda obra, fazia tudo consigo lê lábio. Vou assisti televisão sem saber o
sozinha, ia em banco, loja, eu trabalhava, fazia tudo. que a pessoa tá falando, na hora que precisa você
Hoje eu vejo que eu tenho que pedir, é horrível. consegue, é questão de prática... é... eu fico muito
sozinha...
Após o diagnóstico da síndrome há um pre-
juízo na dinâmica familiar, tornando o portador im- Além dos cuidados já recebidos, a ajuda com-
produtivo, retraído e reprimido. A expressividade plementar mais desejada é uma maior divulgação;
no tocante à espontaneidade, emoções e desejos é a compreensão da síndrome pelo paciente porta-
afetada diretamente. Há a promoção da exclusão dor, cuidadores e população em geral ainda é insu-
social do indivíduo, restringindo o seu círculo de ficiente, acarretando diversas conseqüências como
amizades aos familiares. a discriminação, medo do “contágio”, dificuldade
para conseguir emprego, dentre outras. É também
Eu quase não tenho amigo, eu perdi (risos)... ficou necessário fomentar um maior intercâmbio entre
uma coisa... é... as pessoas ficam com dó mas não os portadores da enfermidade.
quer conversar não, principalmente quando come-
ça porque tudo começou com uma depressão. Mas Ah, eu não percebi não o médico é que falou... por-
não foi só por causa da depressão não, eu fiquei que eu nunca tinha ouvido falar em Síndrome de
ruim das vistas, ruim do ouvido, aí eu passo muito Cogan.
nervoso, fico muito nervosa. Aí hoje as pessoas, hoje O que eu sei é que atinge as vista e o ouvido... e dá
eu dou risada, mas a minha vontade de chorar é tontura...
muita, eu tenho vontade de chorar... Realmente é entender esse barulho que eu escuto
Ah... tinha conversa. Ah, mudou porque minha mãe no ouvido. Uma vez falei pro médico... “O tímpano
preparava as coisas, hoje em dia é assim... ahhh... virou pra dentro, eu tô escutando tudo de dentro”.
a inútil... Então não dá, tem hora que você quer captar da
Ah... o médico falou que eu não posso ficar nervo- onde, o que que você tá ouvindo. Será que quando
so porque muda dá ..atinge as vista ficar nervoso, faz assim o que tá captando? Sei lá, dá vontade de
ficar emocionada, atrapalha. enfiar um negócio, um microfone pra ver, fazer uma
...então eu já procurei mudar, a não conversar so- auto-avaliação. Tem um programa na Cultura que
bre o que me afeta, coisas que não me deixa com... fala de onde vem o vento, aí mostra, aí eu falo “Oh
não me deixa sofrer... então, eu sou firme... e enca- meu Deus, de onde vem esse barulho?”
rar o que tá acontecendo comigo, mas olha o trata- Eu vi numa revista um caso de uma mulher de ou-
mento até engraçado porque a família, a família é tro estado que o filho não escuta e tem problema
tudo é motivo de dar risada, um fica pro outro...
nas vistas, e que ele consegue com as cordas vo-
“Ah, fala pra ela”... “Ah, fala você”... “Ah, fala
cais ele sente a vibração, e ele entende aos poucos
você”... “Aí ela tá falando”... e começa a fazer gesto
o que a pessoa tá falando...
com a mão ... é... “Cala a boca!”... ou às vezes fala
“Pode ser depois?”... “Pode ser daqui a pouco,
você espera um pouquinho?”... ou então... “Ah, A síndrome promove a passividade no desem-
deixa pra lá, não é nada não, é coisa minha, nada penho comunicativo; o sujeito faz uso apenas dos
a ver, não esquenta a cabeça”... “Você tá nervo- recursos visuais da mídia, ainda que com restrições;
ARTIGOS
impossibilita atividades que dependem só da audi- jogam futebol como hobby, e a leitura é o segundo
ção. Não há preferência explícita sobre o canal sen- hobby referidos pelos surdos (23,08%). 30,23% dos
sorial de maior dificuldade, se o auditivo ou o vi- cegos não possuem nenhum tipo de hobby, enquan-
sual. Há a declaração implícita da necessidade de to apenas 6,73% dos surdos referem este fato, sen-
otimização de seus potenciais sensoriais remanes- do constatada uma diferença estatisticamente sig-
centes. nificante. Em relação à carreira profissional,
44,44% dos surdos gostariam de seguir a carreira
Só quando tem legenda, aí quando não tem eu vejo militar, enquanto 87,10% dos cegos escolheram a
reportagem que às vezes dá pra entender... e a Fá- carreira de professor. A maior dificuldade diária
tima Bernardes fala bem... já o Boris Casoy já é
relatada pelos surdos foi a comunicação (51,85%)
velho... aí não dá pra entender... (risos).
Ai, rádio eu já nem... ainda existe a Nativa?... A e para os cegos o maior problema diário foi a loco-
rádio que eu ouvia, rádio e CD. Nossa! Era a mi- moção (44,19%). Os estudantes surdos (90,65%)
nha paixão, era música o dia inteiro, agora eu nem são, significativamente, mais independentes que os
ligo. Eu nem sei que música tá na moda... cegos (72,73%). O pai foi referido como “pessoa-
Ah, é ver, é pior... as duas... Ah, foi horrível! Que chave”, tanto para os indivíduos cegos quanto sur-
dificuldade essa resposta. Que o barulho é infer- dos. Em relação à satisfação com serviços institu-
nal, mas ficar com as vistas, é dói as vistas e eu cionais, todos os indivíduos cegos estavam satis-
fico deitada... mesmo sem ter sono... tenho que fi- feitos, 87,8% bastante satisfeitos e 12,2 moderada-
car deitada... mas o barulho é horrível...
mente satisfeitos. Já os indivíduos surdos, 28% re-
Sou linda! (risos)... Eu me acho... Eu sou gente que
sente que fala e quer ver e quer ouvir. Aí minhas lataram não estar satisfeitos com serviços institu-
dificuldade e você fala eu sou gente, eu falo, eu cionais. A análise das conseqüências oriundas da
sinto, eu cheiro... é, apalpo, imagino como é que é privação dessas duas vias sensoriais, quando ocor-
a sua voz, sua voz é grossa ou fina?... rem isoladamente, leva-nos a refletir sobre os efei-
tos possíveis nos casos em que a surdez e a ceguei-
Discussão ra acometem o indivíduo, simultaneamente. Nas
respostas fornecidas pelo sujeito do presente estu-
A descrição clínica da Síndrome de Cogan, do, fica nítida a sua exclusão social, demonstrada
combinada à análise das respostas da entrevista, pelo afastamento dos amigos e parentes; grande li-
ratifica a importância da atuação da equipe multi- mitação em desenvolver um hobby como a leitura
disciplinar, envolvendo profissionais da Genética, e/ou a música; perda da capacidade em exercer sua
Otorrinolaringologia, Oftalmologia, Fonoaudiolo- profissão, bem como a escassez de recursos para
gia, Psiquiatria, Psicologia e de outras áreas, de- aprendizagem e treinamento de uma nova ativida-
pendendo de cada caso específico. É importante de de trabalho; restrição na comunicação e na lo-
ressaltar o papel do profissional de saúde mental comoção; perda da independência; falta da divul-
como vital para se atingir uma compreensão glo- gação sobre serviços institucionais direcionados à
bal dos pacientes com Síndrome de Cogan. comunidade surdocega.
Há trabalhos publicados relatando as caracte- Na comunicação, a percepção auditiva envol-
rísticas psicossociais dos indivíduos cegos ou sur- ve a capacidade de receber e interpretar os estímu-
dos. Estudo realizado na Arábia Saudita por los sonoros através da audição. As habilidades en-
Abolfotouh e Telmesani (1993), com 152 estudan- volvidas, além dos processos de atenção e memó-
tes do sexo masculino, 44 cegos e 108 surdos, ria, são a detecção do som, sensação sonora, loca-
verificou a prevalência da depressão entre surdos e lização sonora, reconhecimento, discriminação e
cegos, de acordo com Children Depression Inventory compreensão (Katz, 1999). A surdez provoca a res-
(CDI) e caracterizou alguns aspectos psicossociais trição de estímulos do ambiente. Indivíduos ouvin-
dessa população por meio de um questionário. Os tes normais recebem inputs visuais, auditivos, pro-
resultados apontaram que 13,95% dos cegos e prioceptivos e táteis, enquanto os surdos possuem
6,54% dos surdos apresentaram depressão; 12,5% uma séria restrição na entrada sensorial auditiva,
dos indivíduos cegos e 6,06% dos portadores diminuindo o número de estímulos e oportunida-
de deficiência auditiva “não têm amigos”; 51,16% des de interagir com seus interlocutores (Chiari,
dos cegos têm como hobby a leitura, seguido Bragatto, Barbosa, Strobilius, Soares, 2002). As
por poesia (25,58%). Entre os surdos, 61,54% respostas da entrevista apontaram que a surdoce-
gueira pode levar o indivíduo a uma diminuição de uma das entradas sensoriais, como a visão ou a
brusca de sua interação com o mundo. Ao mesmo audição, levaria à precariedade deles na observa-
tempo, quanto menos estimulada a audição resi- ção das regularidades de comportamento do orga-
dual e treinados os canais sensoriais remanescen- nismo observado. Isso poderia explicar o fenôme-
tes, maior a chance de agravamento do problema. no que verificamos quando, por exemplo, um indi-
Portanto, para que não seja estabelecido um ciclo víduo cego aguça outros sentidos como os da audi-
em que um prejuízo “realimenta” o outro, a reali- ção, tato, olfato e paladar. Essa especialização aju-
zação da terapia fonoaudiológica é fundamental. daria na busca em suprir as condições para carac-
terizar objetos perceptivos. Examinando especifi-
Percepção camente o caso como da surdocegueira, a manu-
tenção desse “sistema observacional” demandaria
Para Luria (1990), a percepção é definida como um grande esforço, já que duas das principais en-
tradas sensoriais se encontram prejudicadas. A
[...] um processo complexo envolvendo complexas análise das respostas do sujeito do presente estudo
atividades de orientação, uma estrutura probabilís- indicou uma percepção quanto à sua fragilidade,
tica, uma análise e síntese dos aspectos percebidos imposta pela patologia. Por outro lado, demons-
em um processo de tomada de decisão.
trou uma consciência sobre os canais sensoriais re-
O autor propõe que, manescentes, valorizando-os, como alerta de que,
apesar de abalada a conservação da “congruência
[...] estruturalmente, a percepção depende de práti- estrutural” citada pelo autor acima, a desintegra-
cas humanas historicamente estabelecidas que po- ção é rejeitada pelo indivíduo e será evitada en-
dem ou não só alterar os sistemas de codificação quanto houver recursos.
usados no processamento da informação, mas tam-
bém influenciar a decisão de situar os objetos per- Avaliação
cebidos em categorias apropriadas. Podemos, por-
tanto, tratar o processo perceptual como similar ao Apesar dos surdocegos, como os portadores da
pensamento gráfico: ele possui aspectos que mu- Síndrome de Cogan, procurarem se utilizar dos
dam com o desenvolvimento histórico.
resíduos visuais e auditivos que possuem, torna-se
difícil a avaliação das suas reais potencialidades de-
Maturana (2001) conceituou o fenômeno que
vido aos impedimentos sensoriais. Há, portanto, pri-
conotamos com a palavra “percepção” como a as-
meiramente, uma demanda da conscientização
sociação, feita pelo observador, das regularidades
sobre a mudança de esquema, de estruturas tradicio-
notadas no comportamento do organismo observa-
nais, passando a um esquema funcional e flexível,
do. Ao contrário do que normalmente propõe a
utilizando um enfoque global orientado pelas neces-
neurofisiologia e a psicologia, o autor argumentou
sidades individuais do sujeito, e não apenas aplican-
que a percepção não pode ser apenas uma opera-
do um conjunto de técnicas específicas isoladas.
ção de captação de uma realidade externa, pois
A avaliação das capacidades/habilidades cog-
[...] os seres vivos são sistemas dinâmicos determi- nitivas e comunicativas deve incorporar outros fa-
nados estruturalmente, e tudo o que acontece neles tores, além dos etiológicos, como escolaridade, ní-
é determinado a cada instante por sua estrutura... vel socioeconômico, experiências sociais, compor-
o meio não pode especificar o que acontece num tamentos, interesses e estilo de aprendizagem de
sistema vivo – ele pode apenas desencadear em sua cada indivíduo surdocego. Além disso, seu conhe-
estrutura mudanças determinadas por sua estrutu- cimento sobre a síndrome, o grau de aceitação da
ra. Como resultado disso, constitutivamente, um enfermidade e, caso haja, o tipo de reabilitação em
sistema vivo opera sempre em congruência estru- curso ou já realizada anteriormente.
tural com o meio, e existe como tal somente na
Durante a avaliação cognitiva, observar seu
medida em que essa congruência estrutural (adap-
tação) for conservada. Caso contrário, ele se desin- modo de interação, exploração e compreensão do
tegra. meio ambiente, porque dessas estratégias depen-
derá a aquisição de novos recursos facilitadores que
De acordo com as idéias desse autor, a capaci- poderão mediar suas relações com as pessoas e com
dade de percepção dos indivíduos com supressão o mundo.
ARTIGOS
Sobre a avaliação sensorial, investigar os re- bilidade, organização e flexibilidade; a atitude de-
síduos visuais e/ou auditivos, que apresentem les diante da deficiência e o compromisso que po-
algum tipo de funcionalidade e que muitas vezes dem estabelecer com o processo de reabilitação.
não são estimulados de forma adequada; explorar Estudo realizado com 19 famílias colombianas e
a forma de uso dos outros canais sensoriais rema- 40 indivíduos adultos portadores da Síndrome de
nescentes, além dos da visão e audição. Todas es- Usher (USH), patologia que, como a Síndrome
sas informações são ferramentas extremamente de Cogan, causa a surdocegueira, buscou investi-
úteis, no sentido de dirigir a comunicação e a gar as necessidades e o tipo de relação familiar dessa
aprendizagem por esse caminho, com maiores e população portadora de limitação sensorial dupla.
melhores possibilidades de êxito durante o futuro Os autores elaboraram um questionário, e as famí-
processo terapêutico do sujeito. A reabilitação lias foram visitadas em suas próprias casas por as-
estará centrada principalmente nas formas de co- sistentes sociais. A pesquisa buscou investigar a
municação possíveis para viabilizar sua autono- idade da detecção da deficiência auditiva e visual,
mia e inclusão social. tipo da USH, reações emocionais dos pais e filhos
Pesquisas experimentais sobre o desenvolvi- afetados, cobertura médica, estado civil, tipo de
mento de habilidades em modalidades sensoriais comunicação dentro da família, produtividade
remanescentes apontam para o papel da plasticida- econômica, tipo de reabilitação e informações so-
de cerebral. Lessard, Pare, Lepore e Lassonde bre a síndrome. Os resultados indicaram que, em
(1998) afirmaram que alguns cegos têm melhor 10% das famílias o pai rejeitou o filho afetado; 17%
habilidade de localização sonora que os indivíduos relataram problemas em se relacionar com os ir-
com visão normal. Indivíduos cegos são severa- mãos não-afetados; apenas 50% conseguiram se-
mente afetados, visto que a visão é essencial para o guir a escolaridade além do ensino fundamental;
desenvolvimento de conceitos espaciais. Uma for- 50% não possuem independência financeira; 87%
ma de compensação surgiria no desenvolvimento são solteiros ou separados. Os autores referiram a
de uma acurada percepção espacial pelo processa- importância da criação de um programa nacional
mento auditivo. Os autores constataram que os in- como ferramenta para detecção precoce, diagnós-
divíduos cegos desde a infância foram capazes de tico e acompanhamento desses indivíduos. Além
mapear o som ambiental com igual, ou melhor, disso, enfatizaram que a avaliação e o acompanha-
acurácia que os com visão, na condição de escuta mento psicológico devem fazer parte do progra-
binaural. Porém, ao contrário dos indivíduos com ma, pois as famílias necessitam de suporte para
visão, os portadores de cegueira total foram me- arcar com os problemas inerentes a essa doença
lhores na localização correta da fonte sonora, na para o estabelecimento de relações humanas posi-
condição de escuta monoaural; os indivíduos ce- tivas (Tamayo, Rodriguez, Molina, Martinez,
gos com visão periférica residual localizaram os Bernal, 1997).
sons com menor precisão do que os indivíduos com
visão normal ou aqueles totalmente cegos. Implante coclear
A avaliação da Linguagem, respeitadas as li-
mitações impostas por todos os fatores já citados, Na atualidade, uma das perspectivas mais efi-
provenientes da síndrome ou não, deve abranger o cazes na reabilitação dos indivíduos surdocegos,
exame cuidadoso da intenção comunicativa, fun- inclusive os portadores da Síndrome de Cogan, é a
ções comunicativas, estrutura do discurso, o meio cirurgia de implante coclear. Apesar da escassez
comunicativo utilizado e a compreensão do discur- dos relatos sobre tais casos, os já existentes apon-
so do falante. Os aspectos da motricidade oral, fun- tam para um prognóstico muito favorável em rela-
ções estomatognáticas e voz também são relevan- ção à audição, principalmente porque a síndrome
tes nesta avaliação, tendo a oralidade um lugar ainda acomete o indivíduo em uma idade adulta jovem,
de maior destaque na interação com o meio e se- ou seja, no período pós-língüístico; após a cirur-
melhantes, em virtude dos prejuízos visuais e au- gia, os pacientes foram capazes de conversar ao
ditivos presentes nos pacientes portadores da Sín- telefone sem a necessidade do uso de adaptador e
drome de Cogan. obtiveram altos índices médios nos testes de reco-
A dinâmica familiar deve ser pesquisada crite- nhecimento de palavra e de sentenças diárias, com-
riosamente, compreendendo a sua estrutura, esta- parados à quase nulidade dos escores encontrados
na avaliação pré-cirúrgica (Low, Burgess, Teoh, dos profissionais e cuidadores, com base em uma
2000; Pasanisi, Vincenti, Bacciu, Guida, Berghenti, perspectiva mais realista, valorizando as capaci-
Barbot et al., 2003). dades e necessidades mais prementes desses indi-
Algumas especificidades sobre essa síndrome víduos. Os resultados satisfatórios nesse tipo de
são alertadas e devem ser levadas em consideração análise apontam para a importância da ampliação
pela equipe multidisciplinar nas tomadas de deci- da amostra, o que nos permitirá a generalização
são nos momentos pré, peri e pós-cirúrgico: o fator dos resultados.
etiológico auto-imune da síndrome e o longo tem- Restabelecer um dos canais sensoriais pode ser
po de uso de esteróides provocam maior suscetibi- o melhor dos caminhos para a reabilitação do pa-
lidade às complicações cirúrgicas ao aparecimento ciente, ao lado da terapia fonoaudiológica nos
de infecções, dentre elas a otite média crônica; pos- períodos pré e pós o implante coclear. Avaliações
sibilidade da existência de obstrução intracoclear, prospectivas devem ser feitas para confirmar a qua-
necessitando-se de alterações nas técnicas cirúrgi- lidade de vida dos pacientes, passado o momento
cas; após a cirurgia pode haver recorrência aguda do estresse cirúrgico e obtidos os efeitos no seu
dos sintomas oftalmológicos da síndrome, possi- desempenho comunicativo, incluindo os ganhos na
velmente decorrente do estresse cirúrgico (Vincenti, discriminação auditiva, leitura labial e melhora da
Bacciu, Guida, Berghenti, Barbot et al., 2003; qualidade vocal.
Aschendorff, Lohnstein, Schipper, Klenzner, 2004)
Outra possível vantagem seria que as pesqui- Referências
sas apontam para os possíveis efeitos do implante
coclear na redução da intensidade, desconforto e Abolfotouh MAE, Telmesani A. A study of some psycho-social
characteristics of blind and deaf male studentes in Abha City,
duração do sintoma de zumbido (Miyamoto, Asir Region, Saudi Arabia. Public Health 1993;107: 261-9.
Bichey, 2003; Rubinstein, Tyler, Johnson, Brown, Aschendorff A, Lohnstein P, Schipper J, Klenzner T. Obliteration
2003; Mo, Harris, Lindbaek, 2002; Ruckenstein, der cochlea beim cogan-syndrome - implications for cochlear
Hedgepeth, Rafter, Montes, Bigelow, 2001). implant surgery. Laryngo-Rhino-Otol 2004;83: 836-9.
Cresce o interesse dos indivíduos candidatos à Chiari BM, Bragatto EL, Barbosa T, Strobilius RE, Soares TCB.
Avaliação da intencionalidade e funcionalidade da comunicação
cirurgia de implante coclear, bem como de seus em crianças deficientes auditivas e ouvintes entre 24 e 60 meses.
familiares e/ou cuidadores por informações mais Pró-Fono 2002; 14(2):187-98.
detalhadas acerca da doença e prognóstico. Fica Giacaglia LRA. Teorias da instrução e ensino por descoberta:
claro que o sujeito gosta de ser plenamente infor- contribuição de Jerome Bruner. In: Penteado WMA,
organizador. Psicologia e ensino. São Paulo: Papelivros; 1990.
mado. Isso pode e deve ser feito em uma lingua- p.42-58.
gem popular e ser estendido também aos profissio- Giacheti CM. Fonoaudiologia e genética: estudos
nais que trabalharão de forma direta ou indireta no contemporâneos. In: Ferreira LP, Befi-Lopes DME, Limongi
processo de reabilitação e que não pertençam, SC. Tratado de fonoaudiologia. São Paulo: Roca; 2004.
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necessariamente, à área da saúde.
Gil AC. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5.ed. São Paulo:
Atlas; 1999. p.75.
Conclusões Godoy AS. Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. Rev Adm
Empresas 1995;35(3):20-9.
A comunicação é uma das necessidades bási- Grasland A, Pouchot J, Hachulla E, Blétry O, Papo TE,
Vinceneux P. Typical and atypical cogan’s syndrome: 32 cases
cas do ser humano, por pertencer a uma sociedade. and review of the literature. Rheumatology 2004;43(8):1007-15.
As pessoas surdacegas necessitam de formas espe- Katz J. Tratado de audiologia clínica. 4.ed. São Paulo: Manole;
cíficas de comunicação para terem acesso à educa- 1999.
ção, lazer, trabalho, vida social, etc. Lefevre FE, Lefevre AMC. Os novos instrumentos no contexto
da pesquisa qualitativa. In: Lefevre FE, Lefevre AMC, Teixeira
A entrevista permitiu a formulação de algu-
JJV, organizadores. o discurso do sujeito coletivo: uma nova
mas reflexões sobre o desempenho comunicativo abordagem metodológica em pesquisa qualitativa. Caxias do
e a compreensão da percepção de mudanças de Sul, RS: EDUCS; 2000. p. 1-138.
vida e suas relações interpessoais, após o diag- Lessard N, Pare M, Lepore FE, Lassonde M. Early-blind human
nóstico, do portador da Síndrome de Cogan. Mos- subjects localize sound sources better than sighted subjects.
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trou-se um instrumento capaz de promover con- Low WK, Burgess RE, Teoh CK. Cochlear implantation in a
dutas eficazes durante a avaliação e sugerir alter- patient with cogan’s syndrome, chronic ear disease and on
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E-mail: eliane_bragatto@hotmail.com
Anexo 1
Nome: __________________________________________________________________________
1
<<-1->>
Introdução
A Musicografia Braille consiste no sistema de leitura e escrita musical
convencionalmente adotado por pessoas com deficiência visual.
são representados pelo conjunto de 63 caracteres que formam o Sistema Braille. Os
fundamentos da Musicografia Braille foram concebidos pelo próprio Louis Braille, criador
desse sistema de escrita para cegos.
Não obstante o fato de Louis Braille ter consolidado as bases dessa notação musical,
foram posteriormente realizadas diversas convenções e acordos entre diferentes países,
no sentido de se aprimorar e de se adaptar esse código às especificidades de diferentes
formas de representaçãomusical.
As resoluções mais recentes acerca desse código encontram-se no “Novo Manual
Internacional de Musicografia Braille”, (1997).
Conforme aponta Silva(2003):
“Esta obra, de largo alcance para uso dos cegos de todo o mundo, é o
resultado de vários anos de estudo por parte do Subcomitê sobre Musicografia Braille da
União Mundial de Cegos e é a continuação do conjunto de manuais publicados após as
conferências de Colônia (1888) e Paris (1929 e 1954), contendo ainda as resoluções e
decisões tomadas pelo referido Subcomitê nas conferências e acordos celebrados entre
1982 e 1994”.
Nota-se, entretanto, que esse manual não constitui um material de caráter
essencialmente didático, através do qual alunos e professores possam assimilar os
fundamentos da Musicografia Braille.
Geralmente, os professores de Música são formados para lecionarem aos
alunos que aprendem a ler em tinta, e por isso, a metodologia de trabalho por eles
adotada se baseia nas especificidades desse código. Os livros didático-musicais são
também estruturados de acordo com as características peculiares da escrita musical
utilizada por quem vê.
Ao lecionar a um aluno com deficiência visual, o professor necessita
compreender os mecanismos do código em Braille, ainda que ele não precise ter fluência
na leitura dessa notação.
Faz-se necessário que ele conheça o modo como o aluno assimila a partitura,
a fim de que sejam trabalhadas as demandas requeridas na aquisição da proficiência em
Musicografia Braille.
O professor deve estar ciente das diferenças que existem entre esse código e
a notação em tinta. Tais diferenças se referem sobretudo à configuração linear do sistema
Braille. Isso implica que nesse sistema, não sejam utilizadas pautas e claves, de modo
que a altura das notas é representada por sinais de oitava, e os valores rítmicos são
grafados por meio de caracteres específicos, associados a cada altura.
Ao propor o estudo de uma peça, é importante que o professor saiba a
dimensão da tarefa que o aluno realizará ao lê-la em Braille.
É importante considerar que Uma partitura em tinta consiste realmente em
uma representação espacial da peça. Se há, por exemplo, uma escala ascendente, esse
movimento aparece concretamente na pauta. Muitos aspectos da partitura se mostram
2
<<-1->>
visualmente claros para seu leitor, tais como: A classificação da peça como monofônica,
polifônica ou homofônica, a densidade do trecho musical, a correspondência entre as
vozes, a simultaneidade das notas, os desenhos e padrões rítmicos mais recorrentes. O
mesmo não ocorre em uma partitura transcrita para o Braille. Em tal notação, essas
características da peça são inferidas após um processo de abstração, necessariamente
realizado pelo leitor. Levitin (2000), ao considerar aspectos sobre a formação da “mente
musical” aponta que uma das habilidades fundamentais ao seu desenvolvimento é a de
“captar a estrutura interna da música, análoga à maneira como os grandes enxadristas
têm uma compreensão estrutural profunda das jogadas de xadrez e das inter-relações das
peças no tabuleiro”. Para quem lê música por meio do sistema braille, essa compreensão
estrutural é indispensável, tendo em vista o nível de abstração requerido ao longo da
leitura.
Deve-se considerar que a alfabetização musical é um fator imprescindível
para a inclusão de pessoas cegas no campo da Música. Aos alunos, deve ser garantido o
direito ao aprendizado desse código, bem como o direito de acesso a material didático-
musical transcrito para o Braille.
Faz-se necessário, desse modo, que as pessoas com deficiência visual
tenham garantido o acesso a uma formação musical qualificada, que lhes permita
desenvolver suas potencialidades. Para tanto, conforme defende Smaligo (1998) torna-se
imprescindível que seja oferecida a essa população a possibilidade de acesso ao sistema
de leitura e escrita musical criado especificamente para seu uso.
Porém, observa-se uma escassez de meios e recursos que viabilizem a
concretização desse princípio, uma vez que poucas entidades se dedicam ao ensino e à
difusão da Musicografia Braille.
Na perspectiva da inclusão das pessoas com deficiência visual ao ensino de
Música regular, o ensino desse código deve ser oferecido sob a forma de um “atendimento
educacional especializado”, definido por Mantoan(2003) como uma modalidade de
atendimento que apóia e subsidia o ensino regular.
Objetivos
Esta pesquisa tem por objetivo problematizar o ensino da Musicografia
Braille, como um elemento facilitador da Inclusão de pessoas com deficiência visual ao
campo da Música.
O presente estudo também possui os seguintes objetivos específicos:
-Abordar a existência de espaços de formação através dos quais a
Musicografia seja difundida e estudada;
-Aprofundar a investigação acerca dos procedimentos e recursos existentes
para a produção de partituras em Braille, as quais, por sua vez, consistem em um material
que subsidiam a formação musical das pessoas com deficiência visual;
-Produzir um conhecimento consistente e aprofundado sobre o acesso a
Musicografia Braille, mediante a produção de um material que sirva de apoio ao processo
de formação musical das pessoas com deficiência visual.
Metodologia
3
<<-1->>
4
<<-1->>
Discussão e Resultados
Verificou-se que existe uma falta de informação acerca da Musicografia Braille.
Há professores que desconhecem a existência dessa notação e, por isso, adotam
maneiras “improvisadas” para o ensino da leitura musical, o que torna seus alunos
restritos a essas adaptações. Há também aqueles educadores musicais que sabem da
existência desse método de escrita, mas desconhecem os caminhos de acesso a ele, os
quais, aliás, são estreitos, visto a escassez de materiais didáticos e de cursos através dos
quais ele seja divulgado.
De fato, considerando-se sobretudo a realidade brasileira, o acesso à notação
musical em Braille, dentro das condições atuais, exige um grande empenho tanto por parte
dos professores de música, quanto por parte de seus alunos com deficiência visual. Os
professores necessitam despender grande quantidade de tempo e dedicação para
buscarem recursos adequados e para compreenderem os mecanismos de leitura e escrita
em Braille, e os alunos, por sua vez, precisam se dispor a assimilarem esses mecanismos
de um modo quase autodidata, através dos poucos métodos existentes para esse fim.
Através da coleta e da análise desses relatos, foi possível o contato com uma variedade
de experiências pessoais e profissionais, que revelaram a existência de diferentes formas
de relações estabelecidas pelos sujeitos com a notação musical em Braille. Ainda que os
entrevistados considerem que o aprendizado desse código seja fundamental, a maioria
deles enfrentou uma grande dificuldade para ter acesso a esse ensino. Embora todos
tenham se deparado com obstáculos da mesma natureza, cada sujeito desenvolveu suas
próprias estratégias de enfrentamento. Nesse sentido, é importante que a riqueza dessa
diversidade seja contemplada nas discussões acerca do ensino da notação musical em
Braille. Não existe uma única ou uma exclusiva forma de acesso a esse código, assim
como não há uma maneira mais correta para se aprende-lo. Ao se enfocar os métodos de
ensino dessa notação, deve-se levar em conta as particularidades de cada aluno, e deve-
se assegurar a ele o direito de ser protagonista do seu próprio aprendizado.
Mediante os relatos dos sujeitos, notou-se o reconhecimento por parte deles acerca da
importância da Musicografia Braille. A escassez de formas de contato com essa notação
levam os sujeitos acreditarem que a Musicografia Braille é um código de grande
complexidade e de difícil assimilação.
Não se pode negar a complexidade do código. Entretanto, essa crença
advém, como já dito, da falta de recursos que subsidiam seu aprendizado.
Ao se abordar o contexto que permeia o ensino da Musicografia Braille,
podem ser destacados alguns personagens.
Constata-se, primeiramente, a presença do educador musical. Fala-se, aqui,
de um professor de Música “genérico”, e não de uma pessoa especializada em lecionar
para os cegos. Está-se falando daqueles que comumente saem de conservatórios e
universidades de Música, rumo à docência.
É fato que, grande parte desses educadores musicais, ao se depararem com
um aluno cego, desconhecem os meios pelos quais esse estudante possa se apropriar da
leitura e escrita musical. A busca de informações sobre o ensino da Musicografia Braille,
por parte do professor, é imprescindível, e, sem dúvida, trata-se de uma tarefa árdua, visto
que atualmente (e sobretudo no Brasil), há uma grande escassez de profissionais e
instituições que difundem esse sistema de escrita.
Apesar dessa dificuldade, o professor precisa ser consciente de seu papel
junto a seu aluno com deficiência visual. Antes de tudo, ele é um educador musical, assim
5
<<-1->>
como o é para seus demais alunos. Sua responsabilidade é a de prover as condições para
que o estudante que lhe foi confiado venha a ter uma formação musical consistente. Logo,
ainda que o professor desconheça o código musical em Braille, ele tem o papel de ensinar
os fundamentos da Música, com base em sua formação profissional. Ele pode ensinar a
técnica de um instrumento, bem como os conceitos relativos à Teoria Musical, à
Harmonia, à História da Música, a aspectos estilísticos das obras, etc. Esses
conhecimentos de que o professor dispõe subsidiarão o aprendizado da Musicografia
Braille por parte de seu aluno.
Pode-se supor que o professor de Música não precise saber ler e escrever
partituras em Braille para lecionar a um aluno cego. Mas ele necessita, certamente,
entender os mecanismos desse sistema de grafia, para compreender os desafios a serem
enfrentados pelo estudante.
Dentre os “personagens” envolvidos nesse processo de ensino, , pode-se
também pensar na figura do “especialista”: aquele que realmente sabe ler e escrever
Música em Braille e que tem uma ampla vivência acerca da aplicação desse código em
diversos contextos musicais. Trata-se de um estudioso no campo da Musicografia Braille.
Ele tem o papel de apoiar as atividades pedagógicas realizadas por professores e alunos
em uma escola regular. Ele talvez atue como uma espécie de “consultor”, ou como
alguém que conheça em profundidade as convenções da leitura e escrita, as atualizações
do código e as várias formas de representação musicais possíveis , de acordo com as
especificidades do Sistema Braille.
Por fim, destaca-se a figura do próprio aluno, como alguém que se faz
protagonista de seu aprendizado, ao buscar uma formação musical consistente e ao se
engajar no processo de alfabetização musical.
É importante salientar que, embora esse estudo aborde especificamente o
ensino da Musicografia Braille, ele pode trazer contribuições ao campo da Educação
Musical, de maneira geral. Isso ocorre pois as questões levantadas nesse trabalho
suscitam reflexões acerca do ensino de Música, ou das diversas formas pelas quais os
indivíduos se apropriam do conhecimento musical.
Referências
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Psicologia: Teoria e Pesquisa <<-1->>
Jan-Abr 2005, Vol. 21 n. 1, pp. 007-015
RESUMO – A formação de conceitos depende da linguagem e do pensamento, que integram informações sensoriais. Postula-
se que mudanças no sujeito que conhece e nos objetos e eventos a serem conhecidos sugerem modelos flexíveis de ensino
de conceitos. Considera-se que os mesmos pressupostos se aplicam ao ensino de conceitos a alunos cegos. São discutidas
especificidades desse processo, incluindo o papel do tato como recurso, embora não como substituto direto da visão, e a noção
de representação, como fundamento da elaboração de recursos didáticos para o aluno cego.
Uma das preocupações constantemente apresentadas por Constata-se que, entre as falas dos educadores de cegos,
professores do ensino regular que recebem alunos cegos em são muito freqüentes as que se relacionam à busca de formas
suas classes refere-se ao modo de aprendizagem do aluno alternativas para apresentar objetos e eventos, que se assume
cego e, especialmente, aos recursos necessários para essa serem conhecidos normalmente através da visão. Fica, entre-
aprendizagem (Laplane & Batista, 2003). A resposta reside, tanto, a questão: O que é conhecer? Ver é conhecer? Sentir
em parte, na adoção de recursos alternativos para acesso ao sensorialmente é conhecer? Uma das respostas correntes na
texto escrito, tais como o sistema Braille. Entretanto, ficam psicologia e no meio educacional relaciona o ato de conhe-
muitas dúvidas: Como a criança vai entender as noções apre- cer à aquisição de conceitos. Propõe-se, então, no presente
sentadas nas aulas? Como vai, por exemplo, fazer distinções trabalho, discutir a questão da aquisição de conceitos, e suas
entre animais? Conhecer o funcionamento do corpo humano? implicações para o ensino de crianças cegas.
Compreender o que são acidentes geográficos?
De onde vêm essas dúvidas? Em parte, de uma concepção Concepções sobre Conceitos
de aprendizagem centrada no aporte sensorial e, basicamen-
te, na visão, conforme indicado na afirmação apresentada a A definição de conceito, no Dicionário Aurélio (Ferreira,
seguir, a propósito da questão do ensino de artes para cegos: 1975) apresenta nove itens, tendo o primeiro a seguinte
“Atestam as pesquisas mais recentes que os olhos são respon- acepção: 1. Filosofia: “Representação dum objeto pelo
sáveis por no mínimo 80% das impressões recebidas através pensamento, por meio de suas características gerais.” Nos
da sensibilidade. Habitamos um mundo que se manifesta de demais itens do verbete, são apresentadas acepções relativas
forma predominantemente visual” (Oliveira, 1998, p.7). a: definição, idéia, concepção, opinião, avaliação e máxima
ou provérbio. Assim, a primeira acepção, explicitamente, e as
1 Várias das idéias do presente texto foram desenvolvidas a partir de
demais, de forma implícita, trazem a idéia de generalização,
duas situações: encontros com professores da rede regular de ensino, de busca do que há de generalizável em diferentes elemen-
realizadas em conjunto com a colega de trabalho Profa. Dra. Adriana tos, de modo a permitir identificações e agrupamentos sob o
Lia Friszman de Laplane; e discussões com a psicóloga e doutoranda mesmo nome ou rótulo.
em Psicologia Educacional, Maria Eduarda Silva Leme, que atua em A psicologia vem se dedicando ao estudo dos conceitos,
reabilitação profissional e educação de jovens cegos. Este trabalho e, para isso, tem adotado diferentes concepções, dentre as
contou com o auxílio da FAEP-Unicamp: processo 1.534/2003.
2 Endereço: Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências quais foi considerada hegemônica, até recentemente, a cha-
Médicas, Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação, Rua Tessália mada concepção tradicional ou clássica. Lomônaco, Caon,
V. de Camargo, 126, CP. 6111, Bairro Barão Geraldo, Campinas, SP, Heuri, Santos e Franco (1996), em uma revisão de literatura,
Brasil 13084-971. E-mail: cecigb@fcm.unicamp.br apresentam quatro concepções presentes nas teorias de inves-
7
C. G. Batista <<-1->>
tigação psicológica sobre conceitos: clássica, probabilística, processo que os produz e modela. Nesse sentido, dado que a
dos exemplares e teórica. experiência está permanentemente em aberto, eles não podem
ser definidos por condições necessárias e suficientes.
Concepção clássica Kitcher (1990) apresenta, ainda, duas outras implicações
da crítica de Kant às definições de conceitos empíricos
A concepção clássica, cujas origens remontam ao rea- através de condições necessárias e suficientes (concepção
lismo aristotélico, é apresentada por Medin e Smith (1984) clássica). A primeira ataca a noção de que a aprendizagem
como uma concepção que “sustenta que todos os exemplos de conceitos ocorre em um período relativamente curto de
de um conceito compartilham propriedades comuns, que tempo. Para ser coerente com a presente crítica, a aquisição
se constituem em condições necessárias e suficientes para de conceitos precisa ser concebida como uma experiência
a definição do conceito” (p. 115). Medin (1989) dá como que continua ao longo da vida. A segunda implicação su-
exemplo a categoria “triângulo”, que atende aos critérios gere que a própria noção de conceitos não seria adequada
de possuir uma lista de propriedades individualmente ne- às mudanças no ambiente, e deveria ser substituída pela de
cessárias e coletivamente suficientes para inclusão de uma protótipos conceituais, em constante mudança ao longo do
figura geométrica nessa categoria. No caso do triângulo, os tempo. Dessa forma, seria preservada a principal suposição
critérios são: ser uma figura geométrica fechada, possuir teórica sobre conceitos empíricos: eles são centrais para a
três lados e a soma de seus ângulos internos totalizar 180 cognição por serem moldados pela experiência.
graus. Essa concepção é também apresentada por Oliveira e
Oliveira (1999), que destacam sua natureza binária, do tipo Concepção prototípica ou probabilística
“tudo-ou-nada”, de modo que “se duas entidades quaisquer
são exemplares de um conceito, elas o são a igual título, A primeira alternativa à concepção clássica, segundo
ou seja, um conceito não se aplica mais ou melhor a uma Lomônaco e cols. (1996), foi a concepção prototípica ou pro-
entidade que a qualquer outra” (p. 18). babilística, proposta por Eleanor Rosch (Rosch, Simpson &
Lomônaco e cols. (1996) consideram que, embora a Miller, 1976). A autora afirmou ter se baseado em Wittgenstein,
concepção clássica tenha sido predominante na psicologia que sugeriu o princípio de semelhança entre categorias, for-
por mais de meio século, várias dificuldades foram sendo evi- mando famílias, de modo que cada item tivesse um ou mais
denciadas. Essas dificuldades foram apresentadas por Medin elementos em comum com alguns outros, mas que nenhum
e Smith (1984), a primeira sendo o fracasso na especificação elemento precisasse ser comum a todos os itens. Rosch sugeriu,
de propriedades definidoras. Esses autores consideram que então, a organização de categorias em torno de um conjunto
décadas de análises por lingüistas, filósofos, psicólogos e de propriedades ou conjuntos de atributos correlacionados que
outros falharam na definição da maioria dos conceitos rela- são característicos ou típicos, rejeitando, assim, a noção de
tivos a objetos. Uma outra dificuldade apontada refere-se à atributos definidores. Oliveira e Oliveira (1999) comentam que
existência de casos cuja inclusão é incerta ou duvidosa, pois a concepção prototípica, da mesma forma que a clássica, iden-
os limites das categorias não são delimitados com precisão. tifica conceitos com conjuntos de propriedades. A diferença
Como exemplo, Medin e Smith (1984) trazem a dúvida sobre é que, nesse caso, as propriedades “constituem um protótipo,
se um tapete deve ser considerado como parte da mobília. de tal maneira que a aplicabilidade de um conceito a uma
Ainda outro argumento contra a concepção clássica refere-se entidade depende do grau de similaridade que existe entre a
ao fato de que alguns exemplos são mais típicos que outros. entidade e o protótipo do conceito” (p. 22). Assim, não se tem
Nesse sentido, o conceito de ave seria melhor representado uma situação de enquadramento do tipo “tudo ou nada”, mas
por uma andorinha3 do que por avestruz. Os autores citam, de exemplares mais ou menos próximos do protótipo, com
ainda, outros argumentos, também destacando a diferença limites pouco definidos.
de representatividade de diferentes exemplares colocados Entre as críticas a essa concepção, estão as de Medin e
sob a mesma designação conceitual, e consideram que é o Smith (1984). Eles consideram que a mesma pode não cap-
conjunto desses argumentos que acaba trazendo dificuldades tar adequadamente todo o conhecimento das pessoas sobre
para a concepção clássica. conceitos. Consideram que as pessoas, além de conhecerem
A concepção clássica foi também criticada por Kitcher propriedades características, também parecem conhecer o
(1990), uma autora interessada nas contribuições de Kant conjunto de propriedades de um conceito, bem como as
para a psicologia, especialmente nas colocações do filósofo relações entre elas, o que não estaria contemplado por essa
sobre conceitos empíricos. Kitcher faz uma crítica à visão concepção. Além disso, sugerem que essa concepção pode
clássica sobre conceitos, que supõe definições baseadas em ser excessivamente aberta e flexível.
condições necessárias e suficientes, e demonstra como Kant
dá apoio a essa crítica. Afirma que, para Kant, os conceitos Concepção dos exemplares
empíricos podem ser considerados como regras que nos per-
mitem unir materiais que são apresentados separadamente à A terceira concepção destacada por Lomônaco e cols.
nossa percepção. Assim, conceitos empíricos são adquiridos, (1996) é a concepção dos exemplares, que guarda seme-
refinados, rejeitados, ou mantidos com base na experiência. lhanças com a concepção prototípica. Também se opondo à
Isso é o que os legitima: serem justificados4 pelo próprio concepção clássica, esta concepção “assume que, pelo menos
em parte, um conceito consiste em descrições separadas de da ciência”, existem alguns indicadores úteis. Conceitos de-
alguns de seus exemplares” (Medin & Smith, 1984, p. 118). monstram a unidade sistemática que vai permitir a hierarquia
Para eles, os modelos de exemplares têm em comum a idéia de gênero e espécie quando um conceito de gênero indica:
de que a categorização de um objeto se baseia em compara- a) propriedades ou b) forças que governam, elementos que
ções daquele objeto com exemplares conhecidos da mesma explicam os poderes ou propriedades do fenômeno indicado
categoria. Esses autores consideram como uma vantagem pelo conceito da espécie.
em relação à concepção prototípica o fato de que exemplares Kitcher (1990) considera que essa proposta de Kant é
podem trazer informações sobre todo o conjunto de valores melhor que a concepção teórica de conceitos, pois não ne-
de uma propriedade, bem como informação sobre correla- cessita da atribuição de teorias a crianças e adultos leigos.
ções entre propriedades. Criticam, por outro lado, o fato de A heurística subjacente à teoria de Kant sugere a adoção de
se ter uma falta de restrições em relação a propriedades que conceitos que indicam algumas relações de dependência entre
devem ser incluídas em conceitos, ou mesmo, quanto ao que atributos. Conceitos seriam apoiados apenas em fragmentos
constitui um conceito. de teorias. A autora destaca, assim, as contribuições teóricas
e heurísticas da visão de Kant sobre conceitos empíricos, que
Concepção teórica contesta frontalmente a concepção clássica e propõe uma
alternativa à concepção teórica, especialmente quando não se
A quarta e última concepção destacada por Lomônaco trata de teorias científicas. Busca uma caracterização dos con-
e cols. (1996), proposta como alternativa para superar as ceitos empíricos como inacabados, em processo de alteração,
limitações acima apontadas, é a concepção teórica. Segundo melhor caracterizados por relações parciais de dependência
esses autores, baseia-se na idéia de que, ao formar novos entre gênero e espécie, do que por sistemas fechados de
conceitos, o sujeito traz pressuposições sobre “como as coisas definição por condições necessárias e suficientes.
estão dispostas no mundo: como elas são, qual o seu modo de
funcionamento e como se relacionam entre si. Estas pressu- Conceitos em Piaget e Vygotsky
posições são denominadas ‘teorias’ ou ‘modelos’” (p. 53). É
enfatizado o fato de que cada conceito se relaciona com outros Com um foco mais voltado para a aquisição, Piaget e
conceitos, dentro de domínios de conhecimento, sendo cada Vygotsky também abordam a questão dos conceitos. Em
domínio organizado por uma teoria, não necessariamente uma relação a Piaget, é possível afirmar que, em sentido amplo,
teoria científica. Murphy e Medin (1985) esclarecem que, toda a sua epistemologia genética guarda relação com o tema
quando argumentam que os conceitos são organizados por “conceitos”. Flavell (1975), autor de tradição piagetiana, dis-
teorias, o termo “teoria” é usado para significar um grande cute a aquisição de conceitos em vários domínios: o mundo
número de “explicações” mentais, e não um relato científico lógico e matemático (classes, relações e número), o mundo
completo e acabado. O termo indica “um conjunto complexo natural (objetos; quantidade – conservação de peso, subs-
de relações entre conceitos, geralmente com uma base cau- tância e volume; espaço; tempo, movimento e velocidade;
sal” (Murphy & Medin, 1985, p. 290), de forma semelhante causalidade e conceitos afins) e o mundo social.
às teorias usadas em explicações científicas, embora não se Na maioria desses domínios, Piaget representou um
confunda com estas. Lomônaco e cols. (1996) ressaltam a marco teórico e empírico, e sugeriu etapas, ou fases de
diferença dessa concepção em relação às demais, pelo fato de evolução dos mesmos, ao longo da vida. O autor postulou
os conceitos passarem a ser vistos sempre como relacionados que as aquisições humanas seguem estádios de desenvol-
a outros conceitos, constituindo domínios de conhecimentos, vimento (Piaget, 1964/1967), com características bastante
articulados por teorias. definidas. Esses estádios representam etapas ou marcos no
desenvolvimento, a partir da primeira forma de inteligência,
Concepção defendida por Kitcher, baseada em Kant a sensório-motora, passando pelo início do uso do símbolo,
das operações concretas e, finalmente, das operações formais.
Depois de criticar a concepção clássica sobre conceitos, Sua epistemologia genética parte do modelo de conhecimento
Kitcher (1990) traz a pergunta sobre os mecanismos mentais completo, presente no adulto, e se pergunta sobre a origem
envolvidos em nossa habilidade de classificar com base em desse conhecimento, desde o início da vida do bebê. Busca
conceitos, já que foi rejeitada a noção das condições neces- as respostas por meio de investigações sobre as formas de
sárias e suficientes. Lembra a sugestão de Kant quanto ao construção de cada categoria de conhecimento, em cada es-
emprego de conceitos empíricos que se relacionem como tádio, propondo um modelo de desenvolvimento humano que
gênero e espécie, entendendo-se “gênero” como categoria seria classificado de organicista, de acordo com os critérios
mais ampla, e “espécie” como subcategoria de “gênero”. As apresentados por Lewis (1999).
características podem se coordenar entre si, ou constituir sé- Por sua vez, Vygotsky (1934/1989) aborda a questão da
ries parciais de características hierarquizadas, que ascendem a aquisição de conceitos, fazendo distinção entre conceitos
gêneros mais altos e/ou descem para espécies mais baixas. espontâneos e conceitos científicos, os primeiros adquiridos
Segundo Kitcher (1990), Kant considera que essas rela- na experiência pessoal da criança, e os científicos, em sala
ções de coordenação e subordinação não se constituem em de aula. O autor descreve etapas na formação de conceitos
uma “essência”, mas apenas indicam relações de dependência (sincretismo, complexo, conceito). Relata que, nos estudos
entre as propriedades conhecidas a serem associadas ao con- realizados por seu grupo de pesquisa, o pensamento por con-
ceito. Embora, pelos motivos já explicitados, não se possa ter ceito só foi observado a partir da adolescência, com gradual
uma lista completa das relações de dependência antes do “fim aparecimento dos verdadeiros conceitos e permanência das
formas mais elementares em muitas áreas do seu pensamento. abordada pelos teóricos do desenvolvimento, é importante
Traz um enfoque menos linear que Piaget, considerando que salientar que, ao longo da vida, as pessoas se envolvem em
“a adolescência é menos um período de consumação do que diferentes tipos de interação, que levam a diferentes níveis
de crise e transição” (p. 68). Sua abordagem ao processo de de aprofundamento de diferentes conceitos. Assim, ao longo
desenvolvimento pode ser classificada como contextualista, das experiências de uma pessoa, e dos conhecimentos que
segundo os critérios de Lewis (1999). O autor dá ênfase ao adquire, muda o nível de compreensão de cada conceito.
papel da linguagem, ao considerar que o processo de forma- Por exemplo, o conceito de Poder Legislativo é diferente
ção de conceitos consiste em operação intelectual, “dirigida para uma criança de 8 anos, um adolescente que fez uma
pelo uso das palavras como o meio para centrar ativamente visita a uma Casa Legislativa, um adulto que trabalha como
a atenção, abstrair determinados traços, sintetizá-los e sim- escriturário em uma Câmara de Vereadores, um deputado,
bolizá-los por meio de um signo” (p. 70). um leitor assíduo de jornal e um cientista político. O mesmo
Vygotsky (1934/1996) critica a noção da psicologia tra- pode ser pensado em relação a quaisquer outros exemplos,
dicional, baseada na lógica formal, de que o conceito é uma tais como, “casamento”, “maternidade e paternidade” ou
estrutura mental abstrata, muito distante de toda a riqueza da “carreira profissional”.
realidade concreta. Ao invés disso, afirma que É importante lembrar, também, que as coisas a serem
conceituadas (objetos, eventos, instituições, costumes) estão
O verdadeiro conceito é a imagem de uma coisa objetiva em sua em mudança, o que é mais acentuado em uma sociedade
complexidade. Apenas quando chegamos a conhecer o objeto tecnológica como a atual. Entre outros exemplos, podem ser
em todos os seus nexos e relações, apenas quando sintetizamos mencionadas as alterações recentes no conceito de “telefone”:
verbalmente essa diversidade em uma imagem total mediante os modelos com fio e sem fio, os conjugados a aparelhos de
múltiplas definições, surge em nós o conceito. (Vygotsky, fax e secretária eletrônica, e os celulares, com suas múltiplas
1934/1996, p. 78) funções. Outros exemplos: TV tradicional versus interativa;
teatros tradicionais versus Centros Culturais; os computa-
Ao longo da presente revisão sobre concepções relativas a dores pessoais dos anos 1980, os dos anos 1990, e os atuais
conceitos, destaca-se a tendência por visões dinâmicas, ade- notebook e palmtops. Observam-se, ainda, alterações nos
quadas à captação de uma realidade mutável e multifacetada. significados das palavras, alterações mais rápidas e efêmeras
A partir das mesmas, são sugeridas as seguintes decorrências na gíria, mas também observadas nas formas cultas da língua
para o processo educacional: e nas variações dialetais.
a) Com base na concepção teórica, conceitos vistos como Assim, ao longo da vida, o processo de aquisição vai
relacionados a outros conceitos, são organizados em assumindo formas cada vez mais individualizadas e típicas
sistemas, que variam de acordo com teorias e objetivos de pessoas e de grupos: mudam as coisas, muda o nível
específicos. Desse modo, o mesmo elemento a ser concei- de conhecimento das coisas, definem-se áreas de domínio
tuado pode fazer parte de diferentes sistemas conceituais, conceitual preferencial (dependendo, entre outros fatores,
não existindo, portanto, uma definição única e exclusiva da atividade profissional e de interesses pessoais). Não tem
para um determinado conceito (ex: “cachorro” tem uma sentido, portanto, falar em “conceito adquirido” em situação
definição enquanto componente do sistema de classifi- escolar como algo definitivo.
cação dos seres vivos pela Biologia, outra no âmbito da
discussão sobre animais de estimação, e outra, ainda, Aquisição de Conceitos por Pessoas Cegas
como possível vetor de doenças).
b) A partir das colocações de Kitcher (1990), uma proposta A questão da aquisição de conceitos por cegos passa,
de caracterização de conceitos empíricos como relações em primeiro lugar, por tudo o que se refere à aquisição de
entre “gênero” e “espécie”, de modo aberto, ao invés de conceitos por qualquer pessoa, com ou sem alterações sen-
definições fechadas, por condições necessárias e suficien- soriais. Aplicam-se, portanto, as observações e conclusões
tes. apresentadas anteriormente, acrescidas de tópicos específicos
c) Também a partir de Kitcher (1990), a noção de que a relativos ao tema. Nesse sentido, será apresentada uma breve
aquisição de conceitos deve ser concebida como uma revisão sobre aquisições de pessoas cegas, e apresentados e
experiência que continua ao longo da vida, não podendo discutidos os resultados de um levantamento sobre concep-
ser pensada, exclusivamente, como aprendizagem a curto ções de professores a respeito do ensino de conceitos para
prazo. alunos cegos. Serão discutidos, a seguir, as questões centrais
d) Com base nas colocações de Vygotsky (1934/1989, destacadas nesse levantamento, a saber, o uso do tato como
1996), uma concepção de aquisição de conceitos voltada recurso no ensino de cegos e a noção de representação no
para processos de mediação por signos, particularmente planejamento de material didático para cegos.
a mediação pela linguagem, e, assim, colocando o foco
nas interações entre pessoas, objetos e situações, como Aquisições de pessoas cegas
integrantes ativos de contextos sociais e culturais, ao
longo do processo contínuo de apropriação do significado Estudos recentemente realizados no Brasil mostraram
de conceitos. exemplos de competências dos cegos na aquisição de
Tendo em vista essas considerações, fica claro que o conceitos. Leme (1999) investigou a compreensão do sig-
mesmo objeto pode ser conceituado em diferentes níveis, nificado de palavras que se supõe terem uma base visual
dependendo de diferentes fatores. Além da questão evolutiva, (como “arco-íris” e “transparente”), em relação a quatro
adolescentes do sexo feminino com cegueira congênita. Os de diferenças dentro de uma população, com principal atenção
resultados indicaram significados corretos para a maioria das para os casos de alta aquisição. Warren (1994) considera que
palavras, para quase todas as jovens, em geral com alto grau um caso de alta aquisição nos diz mais que a informação sobre
de generalização e abstração das respostas. resultados médios, pois já é suficiente para indicar que as pos-
Passos (1999) estudou a compreensão de metáforas por síveis dificuldades não são inerentes à cegueira, e, ao mesmo
dois meninos cegos congênitos, com idade entre 12 e 13 tempo, instiga à identificação dos processos que favoreceram
anos. A intervenção envolveu a explicação do significado essas aquisições. O autor critica propostas de aconselhamento
de algumas das metáforas. Os resultados indicaram que de pais e profissionais, que descrevem aquilo que, “em média”,
os dois meninos mostraram aumento na compreensão das uma criança cega pode adquirir, por acreditar que tendem a
metáforas cujo significado foi explicado, e também para as reduzir expectativas de aquisição. Essas colocações de Warren
metáforas não explicadas, embora com diferenças no nível sugerem novas formas de investigação, e colocam sob suspeita
de desempenho entre eles. os estudos comparativos que concluem sobre incapacidades
Ormelezzi (2000) pesquisou a aquisição de representa- ou atrasos na aquisição de diferentes habilidades por cegos,
ções mentais por cegos adultos. Constatou que a formação incluindo a questão de conceitos.
de imagens e conceitos dos participantes se dava pelas ex- Por sua vez, Lewis (2003) apresenta revisão de literatura
periências de tipo tátil, auditiva e olfativa, inter-relacionadas sobre o desenvolvimento de crianças cegas, concluindo que
com a linguagem das pessoas com quem interagiam. E, no a cegueira não impede o desenvolvimento, mas que este
caso de conceitos pouco ou nada acessíveis à percepção, difere, de diversos modos, do apresentado pelas crianças
verificou significados consistentes, cuja aquisição foi atri- videntes. Considera, assim, que o estudo de crianças cegas
buída à linguagem. pode ser significativo para as teorias de desenvolvimento, e
Nunes (2002) propôs o ensino de quatro grupos de con- sugere três implicações teóricas desses estudos. A primeira se
ceitos (coisas tateáveis pequenas, coisas tateáveis grandes, refere à necessidade de identificação de rotas alternativas de
conceitos não tateáveis e conceitos abstratos), para três desenvolvimento. Lewis (2003) argumenta que, se as crianças
crianças cegas com idades entre 9 e 10 anos. Os resultados cegas apresentam uma quantidade relativamente pequena de
indicaram que todos os participantes apresentaram desem- problemas de desenvolvimento, isso indica que este pode ocor-
penho apreciavelmente melhor após a intervenção. rer na ausência do input visual. E aponta a linguagem como a
Nunes (2004) apresentou seis histórias (elaboradas por principal fonte de informação para a criança cega, e possível
Keil, centradas na concepção teórica de conceitos, e adap- substituto para muito do que ela perde pela falta de visão. Em
tadas para o Brasil por Lomônaco) para sete crianças cegas relação a esse tópico, considera-se que cabe uma discussão
entre 8 e 13 anos. Verificou que as crianças basearam-se, na sobre relações entre input sensorial e processos cognitivos, que
maioria das vezes, em atributos definidores, considerados remete à pergunta epistemológica sobre a origem do conheci-
superiores aos atributos característicos. Também solicitou aos mento. Hessen (1925/2000), em texto clássico publicado no
sujeitos a definição de 15 conceitos, concretos e abstratos, e início do século XX, apresenta e discute possíveis respostas a
analisou as categorias de respostas. Dessa forma, identificou essa pergunta, colocando as posições do empirismo e raciona-
formas diferenciadas de definição e de utilização de recursos lismo clássicos, o primeiro enfatizando o papel dos sentidos,
perceptivos para a elaboração dos conceitos. o segundo, a importância da razão. O autor também apresenta
Quanto à literatura internacional, a recente revisão de como formulações mais recentes, representando tentativas de
Nunes (2004) buscou as principais bases de dados, no período conciliação: o intelectualismo, mais próximo do empirismo,
de 1980 a 2004. A autora encontrou um número relativa- e o apriorismo, mais próximo do racionalismo. A discussão
mente pequeno de estudos, a maioria publicada no Journal continua, e o que importa enfatizar é que não se concebe
of Visual Impairment and Blindness. A tendência geral dos mais o empirismo ou racionalismo puros. No mesmo sentido,
resultados foi de indicar capacidades conceituais dos cegos, embora com grandes variações, a Psicologia tende a pensar
semelhantes às dos videntes, sendo as diferenças discutidas no conhecimento como fruto de interação entre informações
como relacionadas a modos alternativos de processamento provenientes dos sentidos e processos cognitivos, em que a
cognitivo das informações sensoriais. linguagem assume papel relevante, embora com variações
De modo geral, as revisões mais recentes sobre o desen- nos diferentes quadros de referência teórica. Assim, quando
volvimento de pessoas cegas (Lewis, 2003; Warren, 1994) Lewis fala na linguagem como possível substituto do que a
não trazem mais a dúvida sobre presença de capacidades, criança cega perde pela falta de visão, é importante lembrar
e sim, questionamentos sobre aspectos em que diferem, e que a linguagem é importante para qualquer pessoa, e que é
implicações teóricas e práticas dessas diferenças. difícil falar em um único substituto para a visão. O que se
De uma forma abrangente em relação às capacidades dos coloca, no caso do cego, é a pergunta sobre como se organi-
cegos, com implicações para o tópico em questão, Warren zam e se integram as informações provenientes dos sentidos
(1994) critica o que ele denomina de abordagem comparativa remanescentes, e qual o papel da linguagem e do pensamento
ao estudo dos cegos, em que capacidades e características de nessa organização.
crianças cegas são avaliadas em relação às capacidades cor- A segunda implicação teórica apresentada por Lewis
respondentes de crianças videntes, sempre em relação à idade (2003) refere-se à busca de explicações para problemas no
cronológica. O autor afirma ter utilizado essa abordagem em desenvolvimento de crianças cegas, nos casos em que aparen-
seus livros anteriores de revisão da literatura sobre o desen- temente não existem problemas cerebrais que os justifiquem.
volvimento de crianças cegas. E propõe, como alternativa, a Sugere que essas crianças podem não ter recebido, ao longo
abordagem diferencial, definindo-a como busca da explicação de seu desenvolvimento, inputs apropriados em quantidade,
qualidade ou variedade, de modo a permitir convergência de suas classes, em municípios do interior de São Paulo. Foram
informações e redundância das mesmas. A autora aponta, identificadas e discutidas algumas de suas crenças sobre o
portanto, para a importância de se investigar influências am- planejamento de ensino para esses alunos, sistematizadas em
bientais, ao longo da história do desenvolvimento da criança, quatro categorias, apresentadas a seguir.
deslocando o foco do limite orgânico, como fator único de 1) A discriminação tátil constitui-se em habilidade básica,
produção de dificuldades. que deve ser bem treinada em crianças cegas.
A terceira implicação refere-se às teorias evocadas para Considera-se, assim, o tato como a principal forma de ob-
explicar diferenças observadas. Lewis (2003) discute o fato tenção de informação para o cego. Sugere-se que o tato deve
de que a teoria de Piaget prevê relações entre o aparecimento ser treinado extensivamente na discriminação de diferentes
de diferentes manifestações (ex: reação à separação dos pais, materiais e de diferentes aspectos desses materiais, tais como
noção de permanência de objeto, linguagem, compreensão de forma, textura e peso. Muitas vezes, essas atividades são
causalidade e jogo), como reflexo da habilidade subjacente de propostas de forma de exercícios específicos, com amostras
representação mental do ambiente. Lembra exemplos de estudos variando ao longo de uma dimensão, como forma ou textu-
com crianças cegas, em que foram observadas discrepâncias ra, a serem discriminadas fora de contextos significativos.
entre essas manifestações, estando algumas atrasadas e outras Revivem, assim, a estratégia pedagógica do exercício de
ocorrendo no mesmo período que para as crianças videntes. E habilidades isoladas, que tem sido bastante criticada pela
as discute sugerindo a necessidade de formulações teóricas que pedagogia contemporânea.
não sejam baseadas apenas no estudo do desenvolvimento de 2) O que não é apreendido pelos olhos, deve ser ensinado
crianças videntes. Cabe comentar que a teoria de Piaget não é por meio de modelos táteis.
a única que discute o desenvolvimento infantil, e que se trata As professoras demonstram grande preocupação com a
de uma teoria que seria classificada por Lewis (1999) como falta de material adequado, e parecem crer que esses recursos
organicista, com ênfase no estabelecimento de etapas claramente táteis, per se, permitiriam as aquisições de conhecimento
delimitadas no desenvolvimento. Lewis (1999) discute a questão pelos alunos cegos. As autoras do estudo discutem a crença
das abordagens ao desenvolvimento infantil e critica modelos subjacente a essa afirmação, de que a formação de conceitos
de desenvolvimento que ele denomina organicistas. Propõe depende, basicamente, de informações primárias, prove-
que os mesmos sejam substituídos por modelos contextualistas nientes dos sentidos, e de que o tato é o principal substituto
de desenvolvimento, que enfatizam: a) a descontinuidade no da visão.
desenvolvimento, opondo-se à noção de continuidade; b) uma 3) Deve-se oferecer à criança cega uma grande quantidade
visão da criança como participante ativo de sua socialização e de objetos, que a ajudarão a construir conceitos.
desenvolvimento, contrapondo-se a uma visão passiva, depen- As professoras pensam que deveria ser usada uma pro-
dente de imperativos biológicos e do ambiente social; c) uma fusão de objetos, em tamanho real ou miniatura, e assumem
concepção da história do desenvolvimento como narrativa, como que o ensino vai ser mais efetivo, quanto mais objetos forem
representação de eventos passados passível de reconstrução, oferecidos. As situações não facilmente apresentáveis ao tato
oposta à noção de história como fotografia. Assim, com relação provocam dúvidas e insegurança quanto à possibilidade dos
às colocações de Lewis (2003), considera-se que são bastante alunos de ter acesso a esses conhecimentos, incluindo: a)
relevantes quando sugerem que as formulações teóricas sobre elementos não facilmente miniaturizáveis, e/ou que perdem
desenvolvimento não sejam baseadas exclusivamente no estudo muitas de suas características nessa situação. Exemplos:
de crianças videntes. Entretanto, não apenas porque as explica- conjunto de edifícios, acidentes geográficos (lago, monta-
ções não se coadunam com as colocações da teoria de Piaget nha, etc); b) elementos que são inacessíveis ao toque, como
sobre estágios de desenvolvimento, mas também porque outros bolha de sabão, fenômenos atmosféricos (nuvem, raio, arco-
modelos podem ser propostos para o estudo do desenvolvimento íris), entre outros; c) elementos que são perigosos ao toque:
de todas as crianças, com ou sem alterações orgânicas. animais agressivos ou peçonhentos, objetos quentes, etc; d)
Verifica-se que diferentes autores, sob diferentes pers- elementos cujo toque é proibido ou pouco convencional,
pectivas, trazem dados sobre as possibilidades de desenvol- como é o caso de certas partes do corpo, certos animais
vimento de crianças cegas e buscam elucidar processos de (sapo), entre outros.
aquisição, enfatizando a contribuição de fatores ambientais A idéia é que se deveria ter um acervo, o mais completo
e apontando implicações teóricas e metodológicas do estudo possível, de objetos, miniaturas e ampliações. Lamenta-se
dessas crianças. a impossibilidade de o cego ter acesso aos elementos não
reprodutíveis em modelos tateáveis. As autoras do estudo
Concepções de professores sobre ensino de conceitos consideram que a questão a ser discutida é a da representa-
para cegos ção, e levantam as seguintes questões: Será que todo objeto
representa a noção que se pretende trazer para o aluno? Que
Abordando-se a questão de outro ângulo, o dos profes- preocupações deveriam estar presentes, ao se planejar um
sores em sala de aula, pode-se perguntar o que eles pensam objeto como representante de outro objeto ou fenômeno?
sobre o ensino de crianças cegas, especialmente quando 4) Representações visuais devem se converter em represen-
está em implantação a política de inclusão de alunos com tações táteis, para ensejar a formação de conceitos.
deficiência no sistema regular de ensino. Um estudo foi Aqui, as professoras se referem, principalmente, a re-
realizado por Laplane e Batista (2003), com 25 professoras presentações bidimensionais: figuras, fotografias, desenhos,
do ensino regular (pré-escola e primeiras séries do Ensino mapas, esquemas. No caso do aluno cego, alguns recursos
Fundamental) que tinham alunos com deficiência visual em já foram desenvolvidos, e muito resta a fazer. Há questões
importantes a discutir, para balizar a elaboração desses re- corpo, pernas, sente suas garras, percebe a maciez do pelo,
cursos. Nesse sentido, Masini (1994) retoma formulações de ouve seus miados, sente seu cheiro e, ao mesmo tempo, está
Chauí que, em obra sobre “o olhar”, conclui que conhecer sempre vendo a imagem do gato todo. A autora afirma que
não é ver, mas que o ver permanece como condição para o isso é diferente do caso da criança cega, que pode passar
conhecer. Masini comenta que, no caso, “se está falando da por várias experiências isoladas (ouvir um miado, tocar uma
‘maioria’ dos seres que aí estão, existindo como videntes e parte do corpo do gato, levar um arranhão, entre outras) sem
percebendo pela predominância da visão sobre os demais ter a facilidade de integrar todas essas experiências como
sentidos” (p. 81). E lança a pergunta: “Não seria possível provenientes de um gato.
pensar de uma outra maneira? (...) Porque não perguntar É inegável o papel da visão ao trazer informações sobre
como é o pensar daquele que aí está e não é vidente?” elementos colocados em diferentes distâncias, possibilitan-
(p. 81). Nesse sentido, a autora analisa e critica “propostas, do percepção global e noção de profundidade, bem como
instrumentos e fundamentações para trabalhos com o D.V., a análise dos elementos que compõem a cena. Entretanto,
cujo referencial básico era exatamente o que não é próprio podem ocorrem dois tipos de erro ao se valorizar o papel da
dele, isto é, a visão” (p. 75). visão: um é o de confundir o papel da percepção visual global
Considera-se, assim, que a partir da pesquisa de Laplane com o dos processos mentais superiores na compreensão de
e Batista (2003), emergem questões relativas ao papel do tato conceitos; outro, é o de subestimar o valor de informações
no ensino do cego e à noção de representação no planeja- seqüenciais. Em relação ao primeiro aspecto, é importante
mento de recursos didáticos. lembrar o que já foi destacado sobre aquisição de conceitos.
Aplicando essas considerações ao exemplo do gato, uma
O uso do tato como recurso no ensino de cegos criança não vai ter a noção de gato por ver um gato, mas por
integrar dados sensoriais e explicações verbais que lhe per-
Dentre os autores que discutem a questão do papel do mitam identificar e descrever um gato, estabelecer distinções
tato para o cego, destacam-se Ochaita e Rosa (1995), que entre gato, cachorro e rato, e, no processo de educação formal,
apresentam o sistema háptico ou tato ativo como o sistema adquirir noções cada vez mais profundas e complexas sobre
sensorial mais importante para o conhecimento do mundo seres vivos e suas propriedades.
pela pessoa cega. Para esses autores, é necessário diferenciar Quanto ao segundo ponto, sobre o valor das informações
entre tato passivo e tato ativo ou sistema háptico. Enquanto seqüenciais, é oportuno lembrar que, na vida, estão presentes
no primeiro a informação tátil é recebida de forma não in- muitas modalidades de informação seqüencial: a música, o
tencional ou passiva, no tato ativo a informação é buscada de texto longo (romances, dissertações, entre outros), a exibição
forma intencional pelo indivíduo que toca. Assim, segundo de um filme ou de uma peça de teatro. Nesses casos, não se
eles, no tato ativo encontram-se envolvidos não somente os considera que haja perdas ou dificuldades, pela impossibili-
receptores da pele e os tecidos subjacentes (como ocorre no dade da captação global e simultânea de todos os elementos
tato passivo), mas também a excitação correspondente aos que vão sendo apresentados em seqüência.
receptores dos músculos e dos tendões, de maneira que o Ainda um outro aspecto, em geral pouco ressaltado, é o
sistema perceptivo háptico capta a informação articulatória, fato de que videntes se baseiam muito mais em informações
motora e de equilíbrio. conjugadas a partir de vários sentidos, do que unicamente na
Ainda segundo Ochaita e Rosa (1995), existem impor- visão. Às vezes, tarefas são descritas como basicamente visu-
tantes diferenças entre a percepção e o processamento da ais, quando não é o caso, pois vários sentidos participam da
informação mediante o tato e a visão. Afirmam que a cap- mesma, além, é claro, do papel predominante dos processos
tação da informação mediante o tato é muito mais lenta que cognitivos. Podem ser citadas várias situações em que é clara
a proporcionada pelo sistema visual, e lembram que essa a participação do tato e do sentido proprioceptivo, além da
informação tem caráter seqüencial. Consideram que isto dá visão: localizar objetos em uma bolsa; acionar equipamentos
lugar a uma maior carga na memória de trabalho, quando com teclas, como telefone, teclado de computador, ou con-
os objetos a serem explorados são grandes ou numerosos trole remoto; tocar instrumentos; vestir-se (lembrar de como
(exemplo: exploração tátil de uma mesa, em comparação com se coloca um cinto nos passadores ou se puxa um zíper nas
sua exploração visual). Além disso, enquanto o tato somente costas); localizar alguns dos comandos de um carro, espe-
pode explorar as superfícies situadas no limite que os braços cialmente os dos pés. Assim, reitera-se que, para um cego,
alcançam, a visão é o sentido útil por excelência para perceber não se trata de substituir a visão por outros sentidos, normal-
objetos e sua posição espacial a grandes distâncias. mente inativos, mas de acioná-los de uma forma diferente
Assim, o tato constitui um sistema sensorial que tem do vidente, que parece usar a visão para “guiar” os demais
determinadas características e que permite captar diferentes sentidos. O tato constitui-se em recurso valioso no ensino de
propriedades dos objetos, tais como temperatura, textura, alunos cegos. Entretanto, não pode ser visto como substituto
forma e relações espaciais. Essa captação tem caráter seqüen- da visão, nem pensado de forma independente dos processos
cial e funciona a curta distância, correspondendo ao alcance cognitivos envolvidos na apropriação de conhecimentos.
da mão. Ao mesmo tempo, difere da visão, que permite a
obtenção de informação simultânea e à distância. A noção de representação no planejamento do material
Outros autores que escrevem sobre a cegueira também didático para cegos
exaltam o caráter totalizador ou global da visão. Ferrell
(1996) dá o exemplo de como uma criança passa a conhecer Uma representação pode ser entendida como um elemento
um gato: ao explorar o animal, a criança toca sua cabeça, colocado no lugar de outro. Em sala de aula, professores
lançam mão de representações para trazer alguns dos ele- da mesma forma que para alunos videntes. A especificidade
mentos do mundo, relevantes para determinada explicação. fica por conta da elaboração de recursos auxiliares na com-
Quando se trata do ensino de videntes, para os quais já existe preensão de diferentes conceitos e sistemas de conceitos. Para
uma longa tradição bem estabelecida, os professores utilizam tanto, é relevante redefinir o papel do tato, como importante
meios bidimensionais (gravuras, fotos, esquemas, mapas, recurso, embora não como substituto direto da visão. É também
filmes) e tridimensionais (objetos reais ou miniaturas). Mui- relevante pensar a noção de representação, como base para
tas convenções vêm sendo estabelecidas, de tal forma que, o planejamento de recursos didáticos, a serem elaborados e
algumas vezes, deixa-se de entendê-las como convenções. apresentados de forma interligada aos sistemas conceituais já
É o caso, por exemplo, dos esquemas (ex: célula, átomo, adquiridos e em fase de aquisição pelos alunos.
sistema solar) e dos mapas, que parecem auto-evidentes
para os iniciados em sua interpretação. No caso de gravuras, Referências
é importante lembrar as convenções para indicar formas,
incidência de luz, texturas e distâncias relativas, que vão Ferreira, A. B. H. (1975). Novo dicionário Aurélio. Rio de Janeiro:
mudando ao longo da história da arte e da história do desenho Nova Fronteira.
pedagógico e das ilustrações infantis. Ferrell, K. A. (1996). Your child’s development. Em M. C. Holbrook
Uma vez que se trata de representações, a tarefa, em (Org.), Children with visual impairments: A parents’ guide
relação ao aluno cego, é de buscar as melhores formas de (pp. 73-96). Bethesda: Woodbine House.
representação para esse aluno. É um desafio interessante para Flavell, J. H. (1975). O desenvolvimento de conceitos. Em P. H.
o professor, paralelo ao trabalho de estabelecer representa- Mussen (Org.), Carmichael: Psicologia da Criança. (M. H. S.
ções para o aluno vidente, embora mais instigante e criativo, Patto, Trad.) (pp. 1-130). São Paulo: EPU, EdUSP.
devido à menor oferta de modelos disponíveis. Dessa forma, Hessen, J. (2000). Teoria do conhecimento. (2ª ed.). São Paulo:
começam a ser equacionados os problemas explicitados Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1925).
pelas professoras na pesquisa anteriormente mencionada, Kitcher, P. (1990). Kant’s transcendental psychology. New York &
em relação a formas de trazer “o mundo” (objetos, veículos, London: Oxford University Press.
acidentes geográficos, animais peçonhentos) para a sala de Laplane, A. L. F. & Batista, C. G. (2003). Um estudo das concepções
aula. Assim, a diferença entre alunos videntes e cegos fica de professores de ensino fundamental e médio sobre a aquisição
centrada nos modos de representação a serem utilizados de conceitos, aprendizagem e deficiência visual [Resumo]. Em
como auxiliares na explicação de diferentes conceitos, o que Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial
é mais promissor que a discussão centrada na constatação (Org.), Anais do I Congresso Brasileiro de Educação Especial,
das dificuldades trazidas pela cegueira, sempre comparadas IX Ciclo de Estudos sobre Deficiência Mental, (pp. 14-15). São
com a ausência dessas dificuldades nos videntes. Carlos: UFSCar.
Um exemplo refere-se à compreensão da idéia de “trem Leme, M. E. S. (1999). Investigação de conceitos em cegos
com 45 vagões”. Para tanto, é necessário saber o que é trem, congênitos. Cadernos Cepre, 1(1), 33-36.
vagão e ter noção de número. Trata-se de vários conceitos, Lewis, M. (1999). Alterando o destino: Por que o passado não
cuja aquisição envolve múltiplas situações de ensino- prediz o futuro. Campinas: EdUnicamp & Moderna.
aprendizagem, tanto no caso do aluno cego, como do vidente. Lewis, V. (2003). Development and disability (2a ed.). Oxford, UK:
No caso do aluno cego, não é preciso, como freqüentemente Blackwell.
postulado, levá-lo a percorrer um trem com esse número Lomônaco, J. F. B., Caon, C. M., Heuri, A. L. P. V., Santos, D. M.
de vagões ou apresentar-lhe uma miniatura desse trem. A M. S. & Franco, G. T. (1996). Do característico ao definidor:
oferta de recursos pedagógicos para o ensino do conjunto de Um estudo exploratório sobre o desenvolvimento de conceitos.
conceitos envolvidos na referida expressão dependerá dos co- Psicologia: Teoria e Pesquisa, 12(1), 51-60.
nhecimentos anteriores do aluno, e não se dará em uma única Masini, E. F. S. (1994). O perceber e o relacionar-se do deficiente
aula. Outro exemplo refere-se ao conceito de relâmpago, em visual. Brasília: Corde.
séries mais avançadas do ensino. Nesse caso, as explicações Medin, D. L. (1989). Concepts and conceptual structure. American
envolvem noções de eletricidade, dispensando-se o uso de Psychologist, 44(12), 1.469-1.481.
recursos tangíveis, ou a capacidade de ver um relâmpago, Medin, D. L. & Smith, E. E. (1984). Concepts and concept
como requisito para compreensão. formation. Annual Review of Psychology, 35, 113-138.
Murphy, G. L. & Medin, D. L. (1985). The role of theories in
Conclusão conceptual coherence. Psychological Review, 92(3), 289-316.
Nunes, I. M. (2002). A aquisição de conhecimentos sobre diferentes
Concepções recentes sobre conceitos apontam para pro- conceitos em crianças cegas totais com diferentes histórias de
cessos de mudança, interação entre elementos e relatividade vida: Uma investigação. Dissertação de Mestrado, Universidade
de sistemas de classificação. Mudanças se referem tanto ao Federal de São Carlos, São Carlos.
sujeito que conhece como aos objetos e eventos a serem Nunes, S. S. (2004). Desenvolvimento de conceitos em cegos
conhecidos. Essas concepções sobre conceitos apontam congênitos: Caminhos de aquisição do conhecimento. Dissertação
para a importância dos processos cognitivos, especialmente de Mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo.
linguagem e pensamento, na elaboração e integração das Ochaita, E. & Rosa, A. (1995). Percepção, ação e conhecimento nas
informações provenientes dos sentidos. crianças cegas. Em C. Coll, J. Palácios & A. Marchesi (Orgs.),
No que se refere ao ensino de conceitos para alunos cegos, Desenvolvimento Psicológico e Educação. (M. A. G. Domingues,
as decorrências dessas concepções devem ser levadas em conta, Trad.). (pp. 183-197). Porto Alegre: Artes Médicas.
Oliveira, J. V. G. (1998). Arte e visualidade: A questão da cegueira. Vygotsky, L. S. (1989). Pensamento e linguagem. (J. L. Camargo,
Revista Benjamin Constant, 4(10), 7-10. Trad.) (2ª ed.). São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente
Oliveira, M. B. & Oliveira, M. K. (Orgs.). (1999). Investigações publicado em 1934).
cognitivas: Conceitos, linguagem e cultura. Porto Alegre: Vygotsky, L. S. (1996). Obras escogidas, IV. Psicología infantil.
Artmed. (L. Kuper, Trad.). Madrid: Visor. (Originalmente publicado
Ormelezzi, E. M. (2000). Os caminhos da aquisição do conhecimento em 1934).
e a cegueira: Do universo do corpo ao universo simbólico. Warren, D. H. (1994). Blindness and children: An individual
Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação da USP, São differences approach. EUA: Cambridge University Press.
Paulo.
Passos, P. M. P. (1999). A compreensão de metáforas pela criança
cega congênita. Cadernos Cepre, 1(1), 26-29.
Piaget, J. (1967). Seis estudos de Psicologia. (M. A. M. D’Amorim,
Trad.). Rio de Janeiro: Forense (Originalmente publicado em
1964). Recebido em 21.09.2004
Rosch, E., Simpson, C. & Miller, S. (1976). Structural bases of Primeira decisão editorial em 10.02.2005
typicality effects. Journal of Experimental Psychology: Human Versão final em 31.03.2005
Perception and Performance. 2(4), 491-502. Aceito em 11.04.2005
Resumo
Seis adolescentes com cegueira congênita, alunos da Fundação Jonathas Telles de Carvalho, em Feira de Santana,
concordaram em participar da presente pesquisa respondendo questionários e outros instrumentos de entrevista sobre
imagem corporal e sexualidade. Os resultados demonstram que os adolescentes com cegueira têm fiel percepção de sua
imagem corporal, que é construída a partir do que lhe dizem e pelo toque do próprio corpo. Em todos os adolescentes foi
observado elevado nível de auto-estima e autopercepção como sexualmente atraentes. Existe consciência das transforma-
ções corporais da adolescência, embora com desinformação e receio sobre as mesmas. Todavia prevalece o desejo de
construir uma relação afetivo-sexual, desejo esse semelhante ao dos adolescentes videntes. A ausência no país de um
modelo pedagógico especial para educação sexual de portadores de deficiência visual agrava os desafios desta fase da vida
e predispõe a preconceitos por parte da sociedade.
*
Professora de Educação Sexual. Departamento de Ciências Biológicas. UEFS.
**
Professora de Bioética. Departamento de Ciências Biológicas. UEFS.
Núcleo Integrado de Educação Sexual
Departamento de Ciências Biológicas
Universidade Estadual de Feira de Santana
Km 03 BR 116 - Feira de Santana Bahia Brasil
E-mail: sdfranca@gf.com.br
relativamente curto, nem sempre são acompa- Antes da aplicação dos instrumentos da pesqui-
nhadas de modificação do esquema corporal. sa, o Termo de Consentimento Livre e Esclare-
Assim, as sensações sinestésicas do adolescente cido (Resolução 196/96, CONEP/CNS/MS),
e sua aparência física não coincidem, ou mesmo foi apresentado (lido), individualmente, a cada
conflitam, com o seu esquema corporal. adolescente, tornando-os conhecedores de to-
Os poucos estudos que enfocam a imagem dos os procedimentos da pesquisa, deixando-os
corporal e a sexualidade do adolescente com ce- livres para aceitar, recusar ou desistir em qual-
gueira respaldam, teoricamente, o interesse à quer momento dos trabalhos.
reflexão sobre o tema, reconhecendo que o ado-
lescente com cegueira passa por conflitos e de-
sejos semelhantes aos do adolescente vidente,
RESULTADOS E DISCUSSÃO
todavia inexistem, no Brasil, pesquisas sobre o
tema. Foram identificados e estudados seis ado-
Considerando este conjunto de observa- lescentes com cegueira congênita, sendo três do
ções, o presente trabalho se propõe a estudar gênero masculino e três do gênero feminino, com
como o adolescente com cegueira constrói sua idades de 12, 14, 19 e 10, 15, 18 anos, respec-
imagem corporal e como lida com as manifesta- tivamente.
ções da sexualidade nesta fase da vida. O Quadro 1 demonstra que, ao informa-
rem sobre sua auto-imagem, por consulta se-
guida de oferta de alternativas, os adolescentes
MATERIAL E MÉTODO com cegueira demonstraram possuir fiel percep-
ção sobre sua aparência pessoal. As respostas fo-
Por tratar-se de amostragem intencional, à ram compatíveis com o observado pela Pesqui-
qual somente interessavam adolescentes com sadora, exceto em dois dos adolescentes, que não
cegueira congênita e que estivessem freqüentando se revelaram seguros em suas respostas. Um de-
a escola, buscou-se a Fundação Jonathas Telles les achava-se confuso entre o que ele se imagi-
de Carvalho, por ser a instituição que oferece nava e o que sua genitora dizia em relação à sua
um serviço de apoio pedagógico a todos os alu- etnia. Curiosamente, a sua opinião era a corre-
nos com cegueira que estão na rede pública de ta. Um outro auto-identificou-se como sendo
ensino da cidade de Feira de Santana, Bahia. negro, quando sua aparência era de mulato.
Nesta instituição, foram selecionados todos os Elevada auto-estima foi observada em to-
adolescentes com cegueira congênita, com ida- dos os entrevistados, uma vez que, sem exceção,
des entre 10 e 19 anos. todos afirmaram considerarem-se bonitos e sim-
Para avaliação da auto-imagem, foram uti- páticos. Uma das adolescentes afirmou que, além
lizados os seguintes instrumentos: 1) Questio- de considerar-se bonita, reconhecia-se como
nário com questões voltadas para auto-imagem, “maravilhosa”. Esta mesma adolescente portou-
modificações corporais e manifestação da sexua- se de forma inquieta durante todo o tempo da
lidade. 2) Complementação de frases, com vis- entrevista, demonstrando-se preocupada com os
tas a analisar o sentimento em relação ao corpo cabelos e com sua aparência geral. Interpretou-
e a sua relação como sexualidade. 3) Escala de se esta atitude como uma característica de vai-
autovaloração, com o objetivo de mensurar o dade, presente nos adolescentes em geral.
grau de auto-estima. Os Quadros com os resul- Os resultados do Quadro 2 demonstram
tados demonstram o conteúdo dos instrumen- que os adolescentes com cegueira dispensam
tos. atenção e preocupação especial ao próprio cor-
Anteriormente à coleta de dados, o proje- po e às modificações que estão acontecendo ou
to fora aprovado pelo Comitê de Ética em Pes- que já aconteceram. Esta constatação reafirma
quisa do Hospital São Rafael, Salvador, Bahia. que os adolescentes com cegueira enfrentam os
Quadro 2 - Distribuição do modo de percepção do próprio corpo por seis adolescentes com cegueira, alunos da
Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de Santana, Bahia
Quem lhe Qual a parte De que parte Qual a parte Se você tivesse
falou sobre N do corpo N do corpo N que você acha N que mudar algo N
as mudanças em que mais mais gosta? mais bonita? no seu corpo
em seu corpo? pensa? o que mudaria?
Quadro 3 - Distribuição das respostas dadas às perguntas sobre sexualidade por seis adolescentes com cegueira,
alunos da Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de Santana, Bahia*
*Alguns adolescentes deram mais de uma resposta.
co de palavras usadas para traduzir o que a voz da capacidade de extrair informações através da
revela, leva-nos a admitir que muito do que não voz excede em muito o que os videntes normal-
pode ser visto com os olhos pode ser percebido mente contemplam através da voz.
através da voz. Aqui também, o aprimoramento
Quadro 4 - Parte do corpo que os seis adolescentes com cegueira, alunos da Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de
Santana, Bahia, informaram gostar de tocar e de ser tocado, e o que eles, por resposta espontânea, percebem através
da voz*
*Alguns adolescentes deram mais de uma resposta.
O Quadro 5 apresenta os resultados dos 19 anos, que está namorando pela primeira vez,
testes por complementação espontânea de fra- que disse: “Desconhecido, sei que tenho muito
ses. Admite-se que essas complementações re- a descobrir. É um mar que pretendo navegar”.
velam o sentimento que os adolescentes nutrem Observou-se a falta de informação acerca
em relação ao seu corpo e como se relacionam dos processos naturais da puberdade, como a
com a própria sexualidade. Os resultados per- ejaculação: dos seis adolescentes, somente três
mitem concluir que existe, entre os adolescen- responderam alguma coisa, mesmo assim, após
tes cegos entrevistados, uma forma positiva de uma rápida explicação; os demais preferiram se
relacionamento com o próprio corpo, expressa, omitir. Com relação à menstruação, dois dos
invariavelmente, de forma positiva, com pala- adolescentes não deram nenhuma resposta.
vras tais como bonito, muito bonito, lindo e fonte
Ao falarem sobre as manifestações da sexua-
de prazer. Em relação às modificações da puber-
lidade, como o sexo, o ser tocado, o namoro e o
dade, observa-se uma variação de sentimentos
casamento, os adolescentes expressaram curio-
que vai desde normalidade a insatisfação. Estes
sidade, boa aceitação e, inclusive, o desejo de
tipos de comportamento são também caracte-
construir uma família, desejos esses reconheci-
rísticos da fase da adolescência nos videntes.
damente semelhantes aos da maioria dos jovens
Em relação ao corpo do sexo oposto, mes- videntes. A grande diferença consiste, todavia,
mo para aqueles que ainda não conhecem, exis- na forma como a sociedade encara a sexualidade
te uma busca por formas de expressar o que da pessoa com cegueira, e não na maneira como
imaginam, a exemplo da adolescente nº 1, de o deficiente visual vivencia sua sexualidade.
Adolescentes
Frases para No1 No2 No3 No4 No5 No6
complementação
Quadro 5 - Resultado da complementação de frases feita pelos seis adolescentes com cegueira, alunos da
Fundação Jonathas Telles de Carvalho, Feira de Santana, Bahia
*A adolescente complementou: “Sei que tenho muito a descobrir. É um mar que pretendo navegar”.
3). Esta mesma adolescente, durante o contato inteligentes, alegres, bonitas, amadas e entur-
pesquisador/pesquisado, comportou-se de for- madas. Este resultado é indicativo de bom rela-
ma impaciente e inquieta, afirmando que não cionamento com a própria sexualidade, pois a
era cega, apesar de se locomover de forma igual auto-estima é de fundamental importância para
à dos seus companheiros e de constar na avalia- se estabelecer uma vida afetivo-sexual prazero-
ção médica, registrada na ficha escolar, que a sa. Evidencia-se, assim, que a falta da visão não
mesma é portadora de cegueira congênita. Esta interfere na percepção positiva sobre si mesmo.
observação corrobora a afirmativa de Gil (2000) A auto-estima permite ao indivíduo crescer
de que, na fase da adolescência dos indivíduos emocionalmente, ter segurança, ser alegre, li-
com cegueira, alguns manifestam, de forma acen- vre, otimista e com capacidade de dar e receber
tuada, sentimentos de revolta contra a deficiên- afeto. Concluiu-se que essas qualidades inde-
cia, por não aceitarem as limitações e a discri- pendem de deficiência visual.
minação social. Há grande influência da socie- Finalmente, o estudo da literatura perti-
dade no padrão de beleza que o adolescente nente e os dados coletados revelaram a inexis-
busca para si, o que pode levar à angústia e à tência de informações sistemáticas sobre educa-
insegurança quando o assunto é o corpo ção sexual para adolescentes com cegueira, o que,
(SUPLICY; EGYPTO, 1995). além de ser uma violação aos direitos dos não-
A fim de melhor explorar o aspecto da au- videntes, torna mais desafiadora a experiência
tovaloração nos adolescentes com cegueira, cons- de vida nesta fase. No sentido de contribuir para
truiu-se um instrumento em arte plástica, que o tema, uma das Autoras (FRANÇA, 2002)
constava de um corte vertical em uma escada, desenvolveu e testou entre educadores especiais
com seis degraus, passível de ser percebida com um modelo pedagógico de educação sexual para
as mãos, por tato, em alto-relevo. Os adolescen- adolescentes com cegueira, reconhecendo ser este
tes eram solicitados a indicar, com os dedos, o primeiro modelo proposto no Brasil.
subindo os degraus, em qual altura eles se reco-
nheciam em relação a cada uma das dez pala-
vras ditas pela Pesquisadora. Na Figura 1, apre-
senta-se o resultado da aplicação desta escala de CONCLUSÕES
autovaloração. Nota-se a confirmação da eleva- O estudo realizado direciona para as se-
da auto-estima entre esses adolescentes com ce- guintes conclusões:
gueira: eles se percebem como pessoas fortes, a) Nos adolescentes com cegueira, a ado-
lescência se caracteriza da mesma forma que nas fundamentais de informação para a construção
pessoas dotadas de visão, isto é, com deslum- da imagem corporal nos adolescentes com ce-
bramentos, inseguranças, desejos e sonhos. gueira.
b) Existe notória auto-estima nos adoles- e) Não existem modelos pedagógicos es-
centes com cegueira. peciais orientando adolescentes com cegueira
c) Não obstante a visão ser o principal sobre as modificações corporais da puberdade e
meio para construção da imagem corporal, os a sexualidade.
adolescentes com cegueira conseguem a cons- f ) É urgente a implantação de programas
trução dessa imagem através do tato e da audi- pedagógicos para orientação sexual dos porta-
ção, principalmente. dores de cegueira, assim como para desfazer pre-
d) O toque do próprio corpo e a forma conceitos em relação à manifestação da sexuali-
como outras pessoas os descrêem são as fontes dade nessas pessoas.
Self body image and sexuality in young blind students of a special public school
in Feira de Santana, Bahia
Abstract
Six congenital blind adolescents, who attend the Jonathas Telles de Carvalho Foundation, in Feira de
Santana, Bahia, Brazil, agreed on participating in this research project, by answering questions on their
self corporal image. The results showed that blind adolescents have true perception of their body image that
is built up by listening to others and by touching their own bodies. In every blind adolescent interviewed,
high self-esteem and self-perception of being sexually attractive were observed. In spite of being poorly
informed about body changes in adolescence, the blind students are aware of those alterations. Similar to
any young boy or girl who can see, the blind students hope to have a sexual and affectionate relationship
with a partner. The lack of special pedagogical models in Brazil to develop their sexual education stresses
their adolescence challenges and predispose them to more social prejudice.
REFERÊNCIAS
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DAVIS, P. K. O poder do toque. São Paulo: Best Seller,
Brasília, DF: MEC, Secretaria de Educação à Distância,
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desarrollo del adolescente. Buenos Aires: Paidós, 1968.
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p.27-41.
Centro de Referencia Latinoamericano para la Educación
Especial, La Habana, 2002. Dissertação defendida na SUPLICY, M. ; EGYPTO, A. C. Sexo se aprende na
Universidade Estadual de Feira de Santana. escola. São Paulo: Olho d’Água, 1995.
Agradecimentos
Aos entrevistados, por aceitarem colaborar conosco nesta pesquisa, e à Fundação Jonathas Telles
de Carvalho, por disponibilizar as informações necessárias para que fosse possível conhecer uma
vivência diferente.
Fabiana Bonilha
Mestre e Doutoranda em música pelo Instituto de Artes da UNICAMP
e-mail: fbonilha@iar.unicamp.br
Claudiney Carrasco
Docente do Departamento de Música – Instituto de Artes da UNICAMP
e-mail: carrasco@iar.unicamp.br
Sumário:
O presente estudo foi motivado pela experiência pessoal de sua autora, enquanto musicista com
deficiência visual. Ele aborda aspectos referentes ao ensino de Musicografia Braille. A partir de um
enfoque qualitativo, buscou-se investigar a percepção de estudantes de Música com deficiência visual
e de seus respectivos professores acerca das condições atuais de aplicação da Musicografia Braille ao
campo da educação musical.
Introdução
Existe uma estreita relação entre a Música e as pessoas com deficiência visual e,
notoriamente, as atividades musicais têm um papel muito importante na vida de muitas dessas
pessoas.
Há, inclusive, um pensamento bastante difundido segundo o qual as pessoas com
deficiência visual tendem a ser bem-sucedidas no campo da Música, caso se dediquem ao estudo
dessa manifestação artística. Tal raciocínio se apóia na tendência desses indivíduos a possuírem
habilidades ligadas sobretudo à percepção e memória musical.
Deve-se notar que, as pessoas desprovidas de visão recorrem a outros sentidos, sobretudo à
audição, para que possam perceber o ambiente que as cerca de forma eficaz e adequada. E isso pode
justificar em parte o grande interesse delas pela música.
Através de um estudo realizado por Belin et al (2004), buscou-se investigar se a
superioridade das habilidades auditivas das pessoas cegas ultrapassava o domínio da orientação
espacial. Para tanto, os sujeitos foram submetidos a uma tarefa que envolvia habilidades musicais
específicas.
A partir desse estudo, concluiu-se que as pessoas cegas desde a primeira infância tiveram
um desempenho muito superior à performance dos indivíduos pertencentes aos outros dois grupos
na atividade proposta.
Encontrou-se, assim, uma correlação negativa entre a idade em que os indivíduos ficam
cegos e o nível de desempenho nessa tarefa. Isso pode ser explicado considerando-se que, na
infância, há uma maior plasticidade do cérebro, em relação às idades mais avançadas.
Assim, uma vez que, de maneira geral, a capacidade auditiva seja mais amplamente
desenvolvida por essas pessoas, a música, por conseguinte, acaba se tornando uma rica fonte de
expressão para elas.
Nesse sentido, Figueira (2002) aponta que, ao longo da história, podem ser encontrados
inúmeros exemplos de pessoas com deficiência visual que se dedicaram à Música e que obtiveram
reconhecimento nessa área.
Considerando a arte como um instrumento de inclusão social, o autor cita diversos casos
em que os deficientes visuais se fizeram presentes em manifestações artísticas distintas, dentre as
quais a música aparece como predominante.
Oliveira (1995), também discorre sobre o papel que a música desempenha na vida das
pessoas deficientes visuais. Em seu trabalho, ele utiliza a memória de quatro músicos cegos e, dessa
forma, reconstrói suas histórias de vida, à luz do pensamento de Deleuze. Em sua análise dos
depoimentos colhidos, o autor considera que a música aparece como um eixo condutor dos relatos
de vida dos sujeitos, e assim, afirma o papel dessa arte na construção da identidade desses
indivíduos.
Faz-se necessário, desse modo, que as pessoas com deficiência visual tenham acesso a uma
formação musical qualificada, que lhes permita desenvolver suas potencialidades. Para tanto,
conforme defende Smaligo (1998) torna-se imprescindível que seja oferecida a essa população a
possibilidade de acesso ao sistema de leitura e escrita musical criado especificamente para seu uso.
Esse código de notação musical, que é universalmente adotado por pessoas cegas,
denomina-se Musicografia Braille. Seus primeiros fundamentos foram criados, em 1828, pelo
próprio Louis Braille (1809 - 1852), inventor do sistema de escrita destinado a deficientes visuais,
segundo biografia editada pela Unesco (1975). Antes disto, os estudantes cegos aprendiam a ler
música através de um sistema em que a simbologia da notação em tinta era impressa em alto relevo.
Esse sistema, evidentemente, impedia que os alunos tivessem uma leitura fluente, assim como
dificultava o processo em que eles próprios pudessem escrever música. Tem-se registro de que, em
1829, foi realizada a primeira edição da obra intitulada "Método de palavras escritas, Músicas e
canções por meio de sinais, para uso de cegos e adaptados a eles".
A escrita musical em Braille é composta dos mesmos 63 caracteres usados no sistema
Braille em geral. Essa escrita é feita somente em sentido horizontal, diferentemente do código em
tinta, em que se pode escrever também verticalmente. Não se usam claves nem pentagramas, e a
altura das notas se representa por sinais de oitavas. Os acordes são representados por sinais de
intervalos correspondentes. Nota-se que é imprescindível que o leitor decore a partitura para que a
execute, e isso requer que ele tenha um bom conhecimento musical para que realize uma leitura
eficiente.
Deve-se considerar que, desde a criação da Musicografia Braille, foram realizadas diversas
reformulações e melhorias ao código musical, até que se chegasse aos padrões concebidos na
atualidade. Apesar do empenho constante na consolidação desse método de escrita, deve-se notar
que o ensino dessa notação sempre foi muito pouco difundido, sobretudo devido à falta de
capacitação de professores, e devido à grande escassez de partituras e materiais didáticos transcritos
para esse código.
Nesse sentido, no presente trabalho, tencionou-se problematizar o ensino de música para
pessoas com deficiência visual, e analisar as condições que garantam o acesso desses indivíduos a
uma formação qualificada. Partiu-se do pressuposto de que o aprendizado da Musicografia Braille é
um elemento imprescindível na formação musical de pessoas cegas, do mesmo modo como o
aprendizado do Sistema Braille é essencial para que elas tenham acesso à informação e ao
conhecimento.
Deve-se destacar que a experiência pessoal da autora dessa pesquisa, enquanto musicista
com deficiência visual, consistiu em uma motivação para que ela se dispusesse a produzir um
conhecimento relacionado a essa área. Seu contato com a Musicografia Braille e suas dificuldades
enfrentadas durante a formação musical a impulsionaram a discutir aspectos relevantes acerca do
ensino de Música para pessoas com deficiência visual.
Objetivos
A presente pesquisa teve por objetivo geral investigar junto a alunos de música com
deficiência visual e a seus respectivos professores, aspectos ligados ao aprendizado de leitura
Metodologia
Esse estudo foi realizado segundo um enfoque qualitativo, uma vez que nele se buscou
compreender a percepção de alunos e professores de música acerca do ensino de Música para
pessoas cegas. Os dados foram coletados mediante o uso de entrevistas semi-estruturadas e de
questionários contendo perguntas abertas. Após a aplicação desses instrumentos, os dados coletados
foram subdivididos nas seguintes categorias e subcategorias de análise.
Após a formulação dessas categorias, os depoimentos foram analisados segundo a
metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo, proposta por Lefevre (2003). Essa ferramenta de
análise possibilita que se construa um único discurso representativo da amostra estudada, através do
levantamento de idéias centrais e do encadeamento das falas dos sujeitos. Assim, é possível que se
apreenda o pensamento comum aos sujeitos abordados, e isso facilita a elaboração de reflexões e
conclusões relevantes para a pesquisa.
Paralelamente à coleta de dados junto a alunos e professores, foi realizada uma
investigação acerca das ferramentas tecnológicas existentes para a transcrição de partituras em
Braille. Dessa busca, resultou a criação de um acervo de obras musicais em Braille. Essa fase do
trabalho contou com o apoio do Laboratório de Acessibilidade da Unicamp, e com a participação de
bolsistas do SAE (serviço de apoio ao estudante) da mesma universidade.
Resultados
A partir dos depoimentos coletados, foi possível estabelecer um panorama das condições
de ensino de Música para pessoas com deficiência visual, sobretudo no que se refere ao contato com
a leitura e escrita musical em Braille.
Verificou-se que existe uma falta de informação acerca da Musicografia Braille. Há
professores que desconhecem a existência dessa notação e, por isso, criam formas “improvisadas”
para o ensino da leitura musical, o que torna seus alunos restritos a essas adaptações. Há também
aqueles educadores musicais que sabem da existência desse método de escrita, mas desconhecem os
caminhos de acesso a ele, os quais, aliás, são estreitos, visto a escassez de materiais didáticos e de
cursos através dos quais ele seja divulgado.
De fato, o acesso à notação musical em Braille, dentro das condições atualmente oferecidas
no Brasil, exige um grande empenho tanto por parte dos professores de música, quanto por parte de
seus alunos com deficiência visual. Os professores necessitam de um alto grau de motivação para
buscarem recursos adequados e para compreenderem os mecanismos de leitura e escrita em Braille,
e os alunos, por sua vez, precisam se dispor a assimilarem esses mecanismos de um modo quase
autodidata, através dos poucos métodos existentes para esse fim.
Dessa falta de informação e dessa escassez de meios que viabilizam o acesso à
Musicografia Braille, decorrem a formação de diversas crenças que as pessoas com deficiência
visual e seus respectivos professores possuem acerca de tal notação. Em geral, esse código é
concebido como algo bastante complexo, e quase inatingível, cujo aprendizado demanda um longo
tempo e esforço. Entretanto, os professores e alunos abordados reconhecem a importância da
Musicografia Braille como uma ferramenta que possibilita a autonomia das pessoas com deficiência
visual, em seu processo de formação.
De fato, a partir do aprendizado desse código, o aluno adquire independência para escrever
e ler partituras, por meio de uma linguagem convencionada especificamente para o uso de pessoas
desprovidas da visão. Isto possibilitará que essa população freqüente espaços de formação musical,
comuns a todas as pessoas, o que remete à idéia de se conceber uma educação musical inclusiva.
Em outras palavras, o acesso à Musicografia Braille se torna um elemento imprescindível para a
inclusão dos alunos com deficiência visual em escolas de músicas regulares.
Deve-se notar, entretanto, que tais escolas não oferecem apoio e condições para que os
alunos com deficiência visual estabeleçam contato com a leitura e escrita musical em Braille. Disto
decorre a necessidade de que se viabilize o atendimento educacional especializado a esses alunos,
através do qual eles possam ter acesso a esse ensino. Essa modalidade de atendimento, tal como é
concebido por Mantoan (2002), consiste em uma forma de apoio ao processo pedagógico,
capacitando o aluno com deficiência para que ele seja inserido em ambientes educacionais
inclusivos.
Conclusão
A partir desse estudo, foram suscitadas reflexões acerca do ensino de Música para pessoas
com deficiência visual. Mas pode-se considerar que as idéias nele apresentadas também se aplicam
de alguma forma ao ensino de Música para qualquer pessoa, já que foram levantados aspectos sobre
o aprendizado da leitura e escrita musical, sobre o papel do professor na formação do aluno e sobre
a abordagem as diferenças individuais no campo da música.
O assunto tratado nessa pesquisa foi muito pouco contemplado em outros trabalhos
acadêmicos. Por isso, ainda há muitas questões que podem ser problematizadas em novas pesquisas
dentro dessa área.
Referências Bibliográficas
Belin, P; Gougoux, F; Lepore, F; Lassonde, M; Voss, P; Zatorre, R.J. (2004). Pitch discrimination in the
early blind. Nature, v.15, n.430, p.309-? Disponível em:
www.arclab.org/medlineupdates/abstract_15254527.html Acesso em: 31 maio 2005.
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Figueira, E. A presença da pessoa com deficiência visual nas artes. (2003) Rede Saci. Disponível em:
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Mantoan, M.T.E. (2002) O direito de ser, sendo diferente na escola. (Mimeografado).
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Smaligo, M.A. (1998) Resources for helping blind music students. Music Educators Journal, v.85, n.2, p 23-
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em: http://www.deficientesvisuais.org.br/Braille.htm#apresentacao . Acesso em: 28 jun. 2006.
Resumo
Este trabalho investiga as relações entre corpo e cognição entre jovens deficientes visuais. Dois estudos de caso são apresentados, fundamentados em
contribuições da pesquisa ação-crítica e da teoria ator-rede. Os dois sujeitos eram cegos congênitos, ambos os alunos inscritos na Oficina de Teatro do
Instituto Benjamin Constant (IBC), no Rio de Janeiro. Estes alunos eram também membros da Oficina de Expressão Corporal do IBC, que tinha como
finalidade promover experimentações corporais lúdicas que facilitassem a construção das personagens. As ações propostas baseavam-se nos impasses
e nas dificuldades vivenciadas pelos sujeitos durante os ensaios da peça. Os resultados indicam que a noção de corpo implica um certo modo de relacionar
humanos e não-humanos. Constatou-se ainda que intervir sobre o corpo implica produzir novos universos cognitivos. Com tais resultados, problematizam-
se as relações entre psicologia e educação.
Palavras-chave: cegueira; estudo de caso; cognição.
This study investigates the relations between body and cognition among visual handicapped youths. Two case studies are presented based on
contributions from critical action research and from actor network theory. The subjects were born blind, both regular students enrolled at Benjamin
Constant Institute’s Theatre Troupe, in Rio de Janeiro. These students were also members of Benjamin Constant Institute’s Body Expression Group that
aimed to promote ludic body experimentations to easy the character building. The activities proposed were based on the difficulties experimented by
the subjects when they were rehearsing the play. The results underlines that the notion of body implies connection between humans and non-humans
and that to change body gestures is the same of creating new cognitives experiences. These results show the relevance of the relation between
psychology and education.
Keywords: blind; case study; cognition.
El trabajo investiga las relaciones entre cuerpo y cognición entre jóvenes deficientes visuales. Son presentados dos estudios de caso fundamentados en
contribuciones de la investigación acción crítica y de la teoría actor-red. Los dos sujetos eran ciegos congénitos y alumnos inscriptos en el Taller de Teatro
del Instituto Benjamín Constant (IBC), en Rio de Janeiro. Estos alumnos también eran miembros del Taller de Expresión Corporal del IBC, que tenía como
finalidad promover experimentaciones corporales lúdicas que facilitasen la construcción de los personajes. Las acciones propuestas se basaban en las
dificultades vividas por los sujetos durante los ensayos de la obra. Los resultados presentados indican que la noción de cuerpo implica una cierta forma
de relacionar humanos y no humanos. Todavía, se constató que intervenir sobre el cuerpo implica en producir nuevos universos cognitivos. Con esos
resultados se discuten las relaciones entre psicología y educación.
Palabras clave: ceguera; estudio de caso; cognición.
311
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1
A equipe de pesquisadora era coordenada pela autora. Dela participavam as seguintes alunas da graduação em Psicologia da Universidade Federal
Fluminense: Luciana de Oliveira Pires Franco, Ana Gabriela Rebelo dos Santos, Aline Alves de Lima, Carolina Cardoso Manso.
2
Professora Marlíria Flávia Coelho da Cunha.
312 Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes
<<-1->>
ção em psicologia para além dos muros do laborató- Ainda adotando as indicações da teoria ator-rede,
rio. O enfoque lewiniano foi decisivo para a inserção proposta por Latour (1994) e de algum modo, segui-
dos grupos e coletivos sociais no campo de investiga- da por Despret (1999), considera-se que as inter-
ção da psicologia. No entanto, ainda que a pesquisa venções em psicologia produzem unidades de medi-
de campo lewiniana tenha constituído uma nova for- da imanentes, ou seja, os referenciais de medida da-
ma de ação no contexto social, “a ordem social é [neste quilo que é produzido pelas intervenções são pactua-
enfoque] naturalizada e as crises e os conflitos são dos e negociados com o grupo. Como já ressaltado,
interpretados como desordens, efeitos disfuncionais, as ações realizadas com os participantes da pesquisa
cujas resistências à mudança são alvos de interven- eram circunscritas nos limites entre o ver e o não-
ção” (Rocha & Aguiar, 2003, p.65). Diferentemente ver. O desafio era encontrar modos de agir que fizes-
desta abordagem a pesquisa ação - crítica, proposta sem sentido e fossem pertinentes aos modos de co-
por Thiollent (2000), está ligada a projetos nhecer e viver daquele grupo. Assim, as ações que
emancipatórios e autogestionários que visa a cons- eram levadas a cabo eram retificadas, negociadas. Al-
truir coletivamente o conhecimento, promovendo, gumas ações planejadas e executadas não produziam
portanto, uma imbricação inequívoca entre sujeito e efeitos – pelo menos não aqueles efeitos que eram
objeto de pesquisa, de tal modo que o conhecimento esperados. Despret (1999) sublinha que a produção
produzido pelas ações implementadas pelo pesquisa- de conhecimento em psicologia implica em risco: não
dor é co-construído e partilhado entre pesquisador e o risco de ser desmentido, mas sim o risco de não
pesquisado. formular a boa pergunta para os sujeitos que partici-
Segundo Rocha e Aguiar (2003, p.65) pam da pesquisa. E a boa pergunta é aquela que faz
derivar o conhecimento, colocando em análise e vari-
entendida como uma ação que visa mudanças na re- ação as versões do conhecimento que estavam em
alidade concreta com uma participação social efetiva, pauta. Desse modo, considera-se que este trabalho
a pesquisa ação crítica está centrada no agir, através conduz a um modo de tratar das relações entre cor-
de uma metodologia exploratória, tendo seus po e cognição entre jovens deficientes visuais e, ao
objetivos definidos no campo de atuação pelo pes- mesmo tempo, a problematizar as relações entre
quisador e pelos participantes (...) Tais experiências psicologia e educação. Porque se de um lado, as ações
caminham no sentido da articulação entre teoria/prá- executadas eram em certa medida, planejadas, de
tica e sujeito/objeto, na medida em que conheci- outro lado, elas eram modificadas pelo grupo. Assim
mento e ação sobre a realidade se fará na investiga- os sujeitos da pesquisa não são passivos, submissos
ção das necessidades e interesses locais (...). às ações da pesquisadora. Ao contrário, eles são ativos,
são co-participantes, talvez fosse possível dizer, co-
autores do trabalho. Adotando esta postura
Com relação aos pontos destacados, pode-se di-
metodológica, considera-se a ética um exercício da
zer que o trabalho encontra ressonâncias com a pes-
imanência, isto é, um modo de considerar o não-ver
quisa ação-crítica. No entanto, reconhece-se que esta
seguindo os referenciais do não-ver, um modo de
aproximação tem alguns limites. Isso porque, instruí-
pactuar com o grupo os limites entre o ver e o não-
dos com as propostas de Latour (1994) e Despret
ver. Limites que eram efetivamente pactuados quan-
(1999), buscou-se refletir acerca das relações entre
do se procurava elaborar um personagem que fizes-
humanos e não-humanos na construção do conheci-
se sentido para um cego e para um vidente.
mento, o que não é de modo algum tematizado na
perspectiva da pesquisa ação-crítica. Se forem segui-
das as pistas destes autores, pode-se afirmar que a
Questões epistemológicas: pensar longe
construção do conhecimento se faz em rede (Latour,
das visões e afirmar as versões
Em seu livro sobre as emoções, Despret (1999)
1994), isto é, num plano de conexões híbrido no qual
estabelece uma interessante distinção entre visão e
se articulam humanos e não-humanos.
Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) • Volume 11 Número 2 Julho/Dezembro 2007 • 311-322 313
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versão no que diz respeito à construção do conheci- peito ao sentido dado ao termo herdeira: Ao se con-
mento. Um conhecimento que se propõe como vi- siderar de algum modo, herdeiros da psicologia do
são do mundo se impõe de fora, “[a visão] invade o século XIX, que sentido atribui-se a esta idéia de he-
campo” e o desvela sob o modo da evidência e da rança? A segunda ressalva diz respeito ao estatuto
revelação. Assim, uma visão exclui outras. Neste sen- conceitual da noção de corpo como suporte da
tido, o trabalho não se propõe a afirmar uma visão cognição: Considera-se como eixo deste trabalho a
sobre o papel do corpo como suporte da cognição noção de corpo-máquina, fundada na física mecanicista
entre jovens deficientes visuais, isto é, não se preten- e retomada pela fisiologia experimental do século XIX
deu revelar o que são e como funcionam o corpo e a ou estabeleceu-se novos referenciais teórico-práticos
cognição em um jovem cego. No estudo pretendeu- para tratar desta noção?
se produzir uma versão desta relação entre cognição
e corpo. A propósito do termo versão, Despret A herança como vetor de transformação
(1999, p. 37) afirma que ele “parece melhor do que Despret (1999) apresenta uma concepção de he-
qualquer outro para dar conta desta coexistência rança que se afasta das idéias de continuidade históri-
múltipla de saberes, de definições contraditórias e de ca e de origem na história. Para afirmar esta idéia a
controvérsias”. autora baseia-se na conhecida fábula árabe sobre os
12 camelos, que é apresentada por Tahan (1955) numa
A versão não se impõe, ela se constrói. Ela não se versão um pouco diferente, mas que serve aos mes-
define no registro da verdade ou da mentira e da mos propósitos: um homem muito velho, próximo
ilusão, mas naquele do devir: devir de um texto in- da morte, reúne seus três filhos para dividir com eles
cessantemente retrabalhado e revirado, devir de um os seus únicos bens que são onze camelos. Ao
mundo comum, devir das reviravoltas e das tradu- primogênito, deixa metade dos bens; ao filho do meio,
ções. A versão não desvela o mundo nem o vê-la, a quarta parte e ao mais novo a sexta parte. Quando
ela o faz existir num modo possível. A versão não é o pai morre, os filhos ficam atônitos. Como dividir
o feito de um homem sozinho, ela é fonte e fruto da esta herança? 11 camelos não são divisíveis por dois,
relação, ela é trabalho, no seio da relação, ela é ne- por quatro nem por seis, como podiam os filhos par-
gociação que se desvia, se transforma, se traduz tilhar a herança conforme a vontade do pai? Atônitos,
(Despret, 1999, p.44). os filhos decidem procurar ajuda recorrendo aos con-
selhos de um sábio. Este lhes diz que a única coisa
Um dispositivo pode se definir em termos de oca- que pode fazer é dar-lhes o seu velho camelo, des-
siões para uma versão, isto é, um dispositivo se cons- dentado, magro, mas muito valioso uma vez que ele
titui como uma oferta de oportunidade feita a um fe- irá ajudar os jovens na divisão da herança. Com o pre-
nômeno. Por esta via, foi proposta uma reflexão so- sente recebido do sábio os filhos somam 12 camelos
bre o trabalho na oficina de expressão corporal com e podem finalmente dividir a herança segundo a von-
jovens deficientes visuais como um dispositivo que tade do pai: o mais velho recebe seis camelos, ou a
faz existir uma certa relação entre o corpo e a cognição metade dos bens; o do meio fica com três, o que
e, ao mesmo tempo, um certo modo de tematizar equivale à quarta parte; e o mais novo herda dois ca-
esta relação. É neste sentido que se entende que tal melos, ou seja, a sexta parte dos 12 camelos. Ao final
dispositivo implica uma relação de co-produção en- da divisão o camelo desdentado é devolvido ao velho
tre o objeto e o sujeito da pesquisa. sábio como forma de reconhecimento e gratidão.
O trabalho se situa numa linha de investigação her- Esta fábula permite levantar a questão acerca da
deira da psicologia do século XIX, já que a atenção transmissão através da herança. Os filhos recebem
dirigiu-se para a cognição em suas articulações com o do pai algo que não pode ser transmitido sem se trans-
corpo. No entanto, neste ponto é necessário estabe- formar. A herança não está dada, antes deve ser
lecer duas ressalvas fundamentais. A primeira diz res- construída a partir do 12º camelo. Este por si só não
314 Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes
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é a solução do problema, mas sim aquilo que transfor- na filosofia. O paradigma visuocêntrico (Belarmino,
ma o problema de modo a que ele possa ser solucio- 2004) marcou as pesquisas no campo da psicologia
nado. Segundo Despret “uma herança se constrói e cognitiva, em particular nos estudos acerca da per-
tudo o que participa desta construção torna-se um cepção. Por outro lado, deslocaram-se as alianças te-
devir possível desta herança” (1999, p.28). Desse órico-práticas que se estabeleceram para definir a psi-
modo, se de um lado os filhos são produtos de uma cologia. Os aliados não são mais os instrumentos da
herança, de outro lado, eles são os vetores de trans- psicofísica, nem a bancada do laboratório de pesquisa
formação desta herança. experimental. Propõe-se estabelecer uma aliança en-
Entender, portanto, a herança como vetor de devir tre a psicologia e as artes, em particular as artes cênicas.
e de transformação leva a uma reflexão que diz res- Daí, o interesse em seguir um grupo de teatro forma-
peito ao problema desta pesquisa, isto é, através dos do por jovens cegos e portadores de baixa visão a fim
estudos de caso, analisar as relações entre a cognição de acompanhar os impasses corporal-cognitivos que
e o corpo, temática de certo modo herdada da psico- são produzidos a partir dos jogos teatrais. Neste per-
logia do século XIX. No entanto, herdaram-se os curso, impõe-se como tarefa seguir as marcas, os ves-
impasses, as controvérsias, não as soluções prontas e tígios, os rastros que estes jogos teatrais produzem
definitivas. Neste sentido, considera-se o corpo a par- nos corpos dos deficientes visuais levando-os a co-
tir daquilo mesmo que aparecia como o seu limite na nhecer diferentemente o mundo a sua volta.
psicologia do século XIX: a sua labilidade, sua parciali- A experiência do teatro com cegos e portadores
dade. Se a cognição enraíza-se no corpo, que desenho de baixa visão permite acompanhar o modo como a
da cognição pode-se esboçar se são consideradas pessoa utiliza os sentidos para a elaboração do mundo
como positivas as noções de labilidade e parcialidade e do universo do personagem. O espaço cênico cria
do corpo? A psicologia experimental do século XIX um campo de aprendizagem que engloba diversos
investigava a cognição a partir de sua articulação com pontos fundamentais no desenvolvimento cognitivo da
o corpo considerado como referencial de objetividade, criança cega: a orientação e a locomoção, as relações
de quantificação e de controle. A aliança entre a psico- interpessoais, a orientação do corpo no espaço etc.
logia e a fisiologia experimental foi neste sentido uma O trabalho de construção dos personagens bem como
aliança em torno de uma certa concepção de ciência. a memorização do texto implica, portanto, um dispo-
Ciência positivista cujo modelo era representado pe- sitivo cognitivo que leva à criação e a produção de um
las ciências da natureza. Definiu-se este trabalho como universo cognitivo cujos efeitos são incorporados pela
herdeiro do século XIX na medida em que esta he- criança em seu dia-a-dia. O ponto central a ser desta-
rança implica um vetor de devir e de transformação: cado neste processo é aquele que diz respeito ao pa-
o que interessa não é seguir o corpo entendido como pel que a arte assume na construção do mundo
extensão e movimento, mas sim, acompanhar as suas cognitivo/perceptivo das crianças. Isso significa dizer
derivas, as suas errâncias, as suas variações a partir que as percepções e aprendizagens que o teatro
das múltiplas conexões que estabelece com o mundo. viabiliza passam a ser incorporada à vida da pessoa
Trata-se, portanto, de uma herança que levará ao mes- deficiente visual, ao seu cotidiano.
mo tempo a definir um outro objeto para a psicologia Masini (1994) comenta que a educação do cego e
e a entender de outro modo as relações entre a da pessoa com baixa visão é, na maior parte das ve-
cognição e o corpo. zes, centrada em padrões adotados pelos videntes.
Por esta via, neste trabalho operou-se um duplo Segundo a autora, educar deficientes visuais de acor-
deslocamento. Por um lado, deslocou-se a centralidade do com padrões dos videntes produz um desconhe-
da visão nos estudos sobre a cognição quando se per- cimento das especificidades do ser deficiente visual.
guntou o que é o conhecer sem o ver. A relação entre Isso significa que conhecer o modo como estas pes-
o conhecer e o ver estabelece um referencial de in- soas conhecem o mundo é fundamental para a elabo-
vestigação bastante forte tanto na psicologia quanto ração de estratégias pedagógicas voltadas para o cego
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e o portador de baixa visão. Outros autores que in- ção de tais articulações do corpo com o mundo. A
vestigam o tema da cegueira seguem a mesma argu- partir destas articulações são produzidos tanto o cor-
mentação de Masini (1994) no que toca à necessida- po, com sua fala e gestos próprios, quanto ao mundo
de de buscar conhecer os modos singulares e pró- conhecido. Corpo e mundo são co-construídos a partir
prios pelos quais o deficiente visual conhece e se re- de tais articulações.
laciona com o mundo a sua volta. Assim, Belarmino Partindo destas contribuições teóricas, este tra-
(2004) analisa historicamente a centralidade da visão balho de pesquisa pretendeu investigar o papel da arte
nas pesquisas sobre o conhecer e chama a atenção cênica como recurso pedagógico voltado para o en-
para a necessidade de se investigar outras modalida- sino do deficiente visual, focando principalmente na
des de conhecimento, em particular aquela que se relação entre corpo e cognição. Para alcançar este
centra na percepção tátil. Para a autora, o tato é um objetivo geral foram estabelecidos dois objetivos es-
órgão de conhecimento que se estende por todo o pecíficos: elaborar e executar intervenções que vi-
corpo. Belarmino (2004) sublinha a importância de sassem produzir as posturas, gestos e cognições dos
na educação da pessoa com deficiência visual se to- personagens a serem interpretados na peça. Desta-
mar como referência a mundividência tátil, isto é, a ca-se que para a realização deste objetivo era funda-
construção da cognição por meio do exercício da mental levar em conta as demandas do grupo; anali-
percepção tátil. sar dois casos a fim de acompanhar os efeitos que
Caiado (2003) apresenta várias entrevistas com de- estas intervenções produziram.
ficientes visuais a fim de investigar os impasses vividos
por estas pessoas durante suas vidas escolares. Muitos
dos relatos apresentados indicam a importância de en- Método
raizar o ensino nas experiências corporais do deficiente
visual, buscando assim mobilizar a experiência corporal Participantes
do deficiente visual a fim de promover a aquisição de As oficinas de expressão corporal aconteceram
conhecimentos. Batista (2005) também aponta consi- durante todo o ano de 2005, uma vez por semana,
derações que vão nesta mesma direção quando analisa a com duração de uma hora e meia cada encontro. Tais
formação de conceitos em pessoas cegas. oficinas eram coordenadas pelas pesquisadoras e dela
No teatro, a elaboração de cada personagem pas- participaram 10 alunos do IBC que fazem a oficina de
sa por diversas etapas e o que se pode notar é o pro- teatro. Dentre estes alunos 3 tinham cegueira
gressivo envolvimento da criança com o universo da congênita e 7 eram portadores de baixa visão, com
personagem. Merece destaque o papel que o corpo graus variados de resíduos visuais, com idades entre
assume na construção e elaboração das personagens. 9 e 16 anos.
Falar da importância do corpo na construção da per- Para a definição de cegueira adotou-se o critério
sonagem não traz em si nenhuma novidade. O que funcional ou educacional referido por Amarilian
significa, portanto, dizer que entre as crianças defici- (1997). Segundo este referencial é considerado cego
entes visuais é o corpo o suporte das elaborações e o sujeito que faz uso exclusivamente do Sistema Braille
do trabalho de construção das personagens? Qual- para a leitura e a escrita e é considerado portador de
quer ator poderia afirmar o mesmo, sem dúvida. O baixa visão aquele que, através de recursos óticos e
que nos interessa circunscrever com esta afirmação outros, lê e escreve fazendo uso de material impres-
é que não se trata do corpo-máquina, mas sim de um so em tinta. Assim, sabe-se que alguns dos sujeitos
corpo construído, elaborado a partir das múltiplas cegos possuíam algum resíduo visual – por exemplo,
conexões que estabelece com o universo teatral: o a capacidade de distinguir luz e sombra, capacidade
texto, o cenário, o figurino, o espaço do palco, os para perceber alguns obstáculos. Os sujeitos que fi-
outros atores, a música etc. O processo de constru- caram cegos antes dos 5 de idade são considerados
ção e elaboração das personagens engloba a produ- cegos congênitos.
316 Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes
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Os estudos de caso foram realizados por meio tada por Tsallis (2005, p.20-23) ao afirmar que a
das notas e observações do que se passou na Oficina “recalcitrância acontece no terreno do vínculo, da
de Expressão Corporal com dois dos seus partici- relação. Ela explicita (...) um acontecimento singular
pantes. Todos os alunos que eram membros do gru- [e pode ser utilizada como] uma medida para estabe-
po de teatro faziam parte também das Oficinas de lecer os possíveis mapas sobre a movimentação dos
Expressão Corporal que eram organizadas em torno vínculos”.
dos impasses que os jovens vivenciavam na constru- A recalcitrância colocava então todo o dispositivo
ção dos seus personagens. A proposta de interven- em análise, fazendo a reformulação das ações. Deste
ção implicava um processo de construção recíproca modo, os efeitos cognitivos iam sendo criados, inven-
no qual as ações eram constantemente renegociadas tados ao mesmo tempo em que o conhecimento so-
com o grupo, modificadas, colocadas em risco. Ao bre tais efeitos era articulado. Os grupos eram coor-
mesmo tempo, observou-se que os jovens denados por duas pesquisadoras, enquanto as outras
problematizavam suas experiências, seus modos de três tomavam notas em um caderno e faziam registros
conhecer o mundo a partir dos trabalhos na Oficina através de fotos. As notas eram digitalizadas e reunidas
de Expressão Corporal. num único documento. Alguns encontros foram
registrados em gravador e depois transcritos. Os res-
Descrição dos sujeitos dos estudos de caso ponsáveis pelos jovens que participaram da Oficina de
Caso 1- Participante – menina de 11 anos, cega Expressão Corporal assinaram o termo de consenti-
congênita que estava participando do grupo de tea- mento livre e esclarecido autorizando a realização dos
tro pela primeira vez. A menina fazia outras atividades estudos de caso e a publicação dos resultados.
artísticas como canto e piano. No entanto, até aquele
momento nunca havia realizado nenhum trabalho que
envolvesse atividades de experimentação corporal. Resultados e Discussão
Caso 2- Participante – rapaz de 16 anos, cego
congênito, participava pela primeira vez do grupo de Os resultados foram discutidos em parceria com
teatro. Este rapaz apresentava em seu cotidiano mo- a professora de teatro do IBC. Na análise dos resul-
vimentos estereotipados de balançar as mãos e o cor- tados consideraram-se pertinentes alguns eixos: o
po. O rapaz não se locomovia com o auxílio da ben- papel dos não-humanos, as transformações do cor-
gala, andava sempre amparado pelos colegas, pelo res- po, as transformações no modo de conhecer o mun-
ponsável ou tateando. O rapaz ainda não tinha feito do, as negociações dos limites entre o ver e o não-
nenhuma atividade voltada para a orientação e a mo- ver no dispositivo do grupo de expressão corporal.
bilidade, comuns entre os deficientes visuais de sua
faixa etária e não estava envolvido em nenhuma outra Caso 1: Corpo de bailarina
atividade artística. Partiu-se de uma questão levantada pelo grupo de
teatro durante os ensaios da peça A Loja da Alegria
Procedimento (Cunha, 2005) encenada no IBC em novembro de
Cada encontro era construído em torno dos 2005. A peça contava a história de uma loja de brin-
impasses que os alunos experimentavam na constru- quedos onde estes ganhavam vida sempre que o dono
ção dos seus personagens. A cada impasse relatado de loja dela se ausentava. Havia vários personagens-
pelos alunos, uma estratégia de ação era proposta. brinquedos: um motociclista, um corredor, um luta-
Algumas vezes tais estratégias eram redimensionadas dor, uma bailarina. Na análise do caso 1 acompanhou-
pelos alunos, algumas apareciam como intervenções se a construção desta última personagem.
fracas, com as quais os alunos não se articulavam, com Durante os ensaios da peça e nas oficinas de ex-
relação às quais eles eram recalcitrantes. A noção de pressão corporal havia um impasse no que diz res-
recalcitrância proposta por Latour (1997) é comen- peito à personagem bailarina: aqueles alunos com re-
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síduos visuais tinham uma concepção do ser bailarina um deslocamento, um desvio de rota, uma media-
inteiramente desconhecida da menina cega que faria o ção ou invenção de uma relação antes inexistente
personagem porque muitos tinham memórias visuais que de algum modo modifica os atores nela implica-
envolvendo bailarinas. dos. Tradução não se confunde com interação (...) O
Esta menina não conseguia entender o que os cole- sentido de tradução envolve ao mesmo tempo um
gas diziam acerca da bailarina: “ela é leve, dança levan- desvio e uma articulação de elementos díspares e
tando as mãos, gira em torno do próprio corpo”. heterogêneos (Moraes, 2004, p.326)
Embora entendesse o sentido das palavras, a menina
não conseguia “encarná-las”, isto é, não conseguia devir- Desse modo, a primeira atividade proposta foi
bailarina, ter um corpo-bailarina. O impasse que tal experimentar as roupas da bailarina: uma saia feita de
dificuldade produzia atingiu todo o grupo e fez apare- plumas e outra de um tecido bem leve foram tateadas
cer um problema: O que é ter um corpo-bailarina? O pelos alunos. As saias passaram de mão em mão, fo-
que pode um corpo-bailarina? Tais questões nortearam ram cheiradas, alisadas e os alunos constataram que
o trabalho do grupo por vários encontros e foram ela era bem diferente de uma saia feita com tecido
deslocadas, traduzidas para uma outra questão: Como grosso como o jeans. Os alunos vestiram as roupas
produzir um corpo-bailarina numa menina cega da bailarina e solicitaram que as pesquisadoras colo-
congênita? Como fazê-la afetar-se pelo mundo da bai- cassem música para que eles pudessem perceber
larina levando-a a inventar o seu corpo-bailarina? como a saia podia ser movimentada ao som das músi-
Num primeiro momento, as psicólogas explicaram o cas. As pesquisadoras decidiram colocar dois tipos
que é ser bailarina. Tal estratégia mostrou-se pouco arti- de música: valsas e músicas brasileiras cujas letras fa-
culada, a menina não era afetada pelas palavras, não se lavam de bailarinas. Ao som das músicas os alunos
modificava a partir do que lhe era dito. Tal situação pro- começaram a dançar: “como se dança na ponta dos
duziu um deslocamento nas intervenções propostas. pés?”- perguntou uma aluna cega. E concluiu ela mes-
Foi planejada uma série de atividades que tinha ma: “a bailarina dança e anda na ponta dos pés, com
como finalidade produzir um campo de experimenta- passos de formiga que quer guardar um segredo, anda
ções, um mundo-bailarina. Primeiramente, foi pergun- sem fazer barulho”.
tado ao grupo de alunos o que cada um conhecia da Outras experiências foram trabalhadas: o som da
bailarina. Algumas posturas corporais da bailarina fo- música, o tatear de outras peças do vestuário da bai-
ram destacadas pelo grupo: larina. Uma poesia sobre bailarinas, de autoria de
· a bailarina fica toda esticadinha; Meireles (1996), foi lida para o grupo e cada um pôde
· a bailarina pula alto, “quase voa”; comentar o que era indicado naquela poesia sobre o
· parece que ela é leve, leve, como se fosse uma corpo da bailarina, o mundo da bailarina.
pluma; Uma questão, no entanto, permanecia em aberto
· ela usa roupas leves, a saia da bailarina é toda para a menina que iria interpretar o personagem: “a
leve e é bem diferente de uma saia feita de jeans, leveza, o que é isso, como fazer para que o corpo
por exemplo. pareça leve?”
Estas e outras características foram apontadas pelo A fim de dar conta desta questão, as pesquisado-
grupo. A partir deste levantamento, foram propostas ras propuseram duas atividades que envolviam um
experiências corporais e sensoriais que mobilizassem enorme balão de gás. Dentro do balão de gás foram
o corpo todo e que pudessem fazer conexão com o colocados grãos de arroz de modo que quando o balão
que era dito sobre a bailarina. Portanto, buscavam-se era movimentado os grãos de arroz produziam um
mecanismos de tradução que produzissem um deslo- som suave. Optou-se pelo uso deste material e não
camento do universo das palavras para aquele dos de guizos, muito comuns, por exemplo, no jogo de
sentidos e das experiências corporais. Destaca-se que futebol com cegos. Por que o arroz e não o guizo?
por tradução entendia-se Considerou-se que o guizo produzia um som
318 Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes
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descontínuo, quando a intenção era que o som tam- dia-a-dia no IBC era comum que ele balançasse repe-
bém pudesse transmitir a continuidade dos movimen- tidamente as mãos, coçasse as pernas, pulasse, movi-
tos da bailarina. mentos que também se faziam notar tanto durante os
A primeira atividade, com o balão de gás consistiu ensaios da peça quanto nos encontros da Oficina de
em articulá-la aos movimentos dos braços da bailari- Expressão Corporal. Tais movimentos não faziam par-
na. Desse modo, as pesquisadoras pediam que a me- te do contexto corporal do seu personagem na peça:
nina segurasse o balão e diziam: “a bailarina abraça um velhinho, um pouco distraído, dono da loja de
este balão na frente do corpo, depois o levanta até o brinquedos.
alto da cabeça, depois o leva para o lado”. Com estes Do mesmo modo que no caso da construção da
movimentos dos braços articulados ao balão, a meni- bailarina, observou-se que não era suficiente dizer ao
na ia construindo os movimentos dos braços da baila- rapaz que ele devia parar de balançar as mãos ou de
rina que sobem ao ar arqueados, depois descem para coçar as pernas. A professora de teatro sugeriu que
um lado e depois para o outro. Todas as crianças, in- o personagem fizesse uso de uma bengala, um objeto
clusive aquelas com baixa visão, fizeram estes movi- que muitas pessoas velhas utilizam para auxiliar o ca-
mentos com a mediação do balão. A segunda atividade, minhar. O objetivo era “ocupar” as mãos do rapaz de
com o balão consistiu em colocá-lo sobre um enor- modo a que as estereotipias fossem deixadas de lado.
me lençol que era segurado pelas pesquisadoras. As Destaca-se que este rapaz, embora cego congênito,
crianças ficaram sob o lençol e empurravam o balão. nunca havia sido treinado para o uso de bengala. Por-
Esta experiência produziu comentários: “como a bola tanto, duas questões devem ser sublinhadas. Em pri-
é leve, ela voa alto, basta um toquinho e ela já voa”, meiro lugar, o rapaz embora soubesse que muitas
foi o que disse uma menina com baixa visão. Ao final pessoas cegas usam bengalas, não tinha, ele próprio,
destas experiências a menina cega finalmente concluiu: a experiência corporal com o uso deste instrumento
“a bola é leve e a bailarina também é leve” e em segui- já que se locomovia com a ajuda de outros colegas ou
da disse: “meu corpo pode ficar leve como esta bola”. tateando a sua frente para evitar os obstáculos. Em
Interessante notar que estas intervenções produ- segundo lugar, e na mesma direção, o rapaz sabia que
ziram um grupo-bailarina, com o qual a menina se ar- existem no mundo pessoas chamadas de “velhinhas”,
ticulava. Naquele grupo-bailarina não havia mais a dis- mas ele não tinha nenhuma vivência corporal que pu-
tinção entre cegos e portadores de baixa visão, baila- desse auxiliá-lo na construção dos gestos e das pos-
rinas e não-bailarinas. Ali havia um grupo, um coletivo, turas do velhinho que iria interpretar.
no sentido proposto pela teoria ator-rede, ou seja, A fim de conhecer o modo como o rapaz conhecia
uma articulação de humanos e não-humanos que pro- os usos de uma bengala, as pesquisadoras pergunta-
duzia efeitos, inventando um mundo bailarina único, ram a ele: “Para que serve uma bengala?” E ele respon-
singular. Considerou-se relevante ressaltar que o gru- deu: “para ver se tem obstáculos no caminho”. E as
po de expressão corporal funcionou como um dispo- pesquisadoras: “então mostre como se pode usar a
sitivo, no sentido afirmado por Despret (2004), isto bengala para ver se tem obstáculo”. O rapaz colocou o
é, um dispositivo que produz novas formas de falar, braço esticado para o alto e a bengala suspensa no ar
novas formas de articular humanos e não-humanos e, sendo agitada de um lado para outro. Tais movimentos
ao mesmo tempo, novas formas de interrogar o que indicavam que ele desconhecia o habitual modo como
é a cognição e o corpo. um cego utiliza a bengala, isto é, à frente do corpo,
sendo levada de um lado para outro e com uma de
Caso 2: Articulando ritmos musical e corporal suas extremidades em contato com o chão. As pesqui-
As posturas corporais deste rapaz eram marcadas sadoras então perguntaram: “Você sabe por que pes-
por vários movimentos estereotipadas os quais, con- soas velhas usam bengalas?” O jovem não sabia.
forme informado pelo seu responsável, apareceram Após estas experiências, uma das pesquisadoras
quando ele tinha entre 7 ou 8 anos. Nas atividades do sugeriu ao rapaz que, ao invés de usar a bengala, o seu
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320 Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes
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renciação que implica na construção do mundo e de si. novas ferramentas para pensar o que é a própria psi-
Assim, o trabalho de campo leva a concluir que o sujei- cologia, para construir uma psicologia em ação. Nes-
to e o mundo são co-construídos através das atividades te sentido, a relação entre a psicologia e a educação
do teatro. Nas palavras do filósofo, “o corpo é o su- são também relações de construção recíproca, de
porte da intuição, da memória, do saber, do trabalho invenção e criação de modos de agir que podem pro-
e, sobretudo, da invenção” (Serres, 2004, p.36). duzir modos de ensinar distintos dos tradicionais
Na atualidade, Bruno Latour (1999) afirma que ter modelos centrados na repetição e na imitação. As-
um corpo é ser afetado, movido e efetuado por co- sim, de um lado este trabalho pode oferecer subsídi-
nexões com outros homens e com não-humanos. Isso os aos profissionais de educação que lidam com defi-
significa dizer que o corpo é o efeito de redes de cientes visuais para refletirem sobre suas práticas; de
articulação que ligam humanos e dispositivos técni- outro lado, ele também levanta questões que levam a
cos os mais heterogêneos e díspares. Foram estas perguntar sobre o modo como a psicologia produz
afetações que foram acompanhadas por meio das conhecimento, sobre quais são os seus alcances e li-
observações no campo pesquisado. Tais observações mites. Em última instância, seguindo os termos de
permitiram ainda levantar dois pontos relevantes: Despret (1999), pode-se dizer que a interface entre
No trabalho desenvolvido com os deficientes vi- psicologia e educação produz derivas, transformações
suais foi extremamente relevante considerar o em ambos os domínios.
referencial que estas pessoas têm do mundo, os seus
modos singulares de conhecer. O ponto de partida
das atividades observadas eram as questões Referências
vivenciadas pelo grupo. Percebe-se que de nada adi-
antava dizer ao rapaz cego para usar a bengala: ele
Amarilian, M. L. T. (1997). Compreendendo o cego: uma visão
não conhecia a bengala do mesmo modo que os vi-
psicanalítica da cegueira por meio de desenhos-estórias. São Pau-
dentes a conhecem. O mesmo ocorria com a menina lo: FAPESP.
cega: ela não conhecia os movimentos típicos de uma
Batista, C. (2005). Formação de conceitos em crianças cegas:
bailarina, portanto, era inútil apenas dizer para ela: le-
questões teóricas e implicações educacionais. Psicologia: Teo-
vante os braços, ande na ponta dos pés. Tais palavras,
ria e Pesquisa, 21(1), 7-15.
centradas nas experiências cognitivas dos videntes
careciam de sentido para a menina cega. Portanto, Belarmino, J. (2004). Aspectos comunicativos da percepção tátil:
conclui-se que, como indicado por Masini (1994), a a escrita em relevo como mecanismo semiótico da cultura. Tese
educação da pessoa com deficiência visual deve ser de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo.
guiada pelos referenciais que o deficiente visual pos-
sui do mundo. Caiado, K. (2003). Aluno Deficiente Visual na Escola: lembran-
A construção do conhecimento ocorre numa rede ças e depoimentos. Campinas: Autores Associados.
que articula humanos e não-humanos. Trata-se de uma Cunha, M. F. (2005). A Loja da Alegria. Roteiro de peça teatral
cognição distribuída por diversos actantes, cognição não publicado.
que ocorre numa articulação com o corpo, com os
Despret, V. (1999). Ces émotions que nous fabriquent. Paris:
não-humanos. Nos casos observados, os não-huma- Lês empecheurs de penser en rond.
nos foram actantes fundamentais para a produção do
Latour, B. (1994). Jamais fomos modernos. (C. I. Costa, trad.).
conhecimento. Sem o balão de gás, o tambor, a músi-
Rio de Janeiro: Editora 34.
ca, as roupas da bailarina, não seriam produzidos os
efeitos cognitivos que levaram aquelas pessoas a co- Latour, B. (1997). Des sujets recalcitrants. La Recherce, 301, 88-90.
nhecerem o ser bailarina e o ser velho. Por esta via, é Latour, B. (1999). How to talk about the body? The normative
necessário a buscar novas ferramentas conceituais dimension of science studies. [On line]. Disponível: http://
para definir o que é a cognição e, conseqüentemente, www.ensmp.fr/~latour/articles/article/077.html.
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Recebido em: 28/05/2007
Revisado em: 03/12/2007
Aprovado em: 29/01/2008
Sobre a autora:
Marcia Moraes (mmoraes@nitnet.com.br ou mmoraes@vm.uff.br) - Professora do Programa de Pós-graduação strito senso em Psicologia da
Universidade Federal Fluminense. Doutora em Psicologia Clínica pela PUC / SP. Consultora Científica no Centro de Estudos sobre Subjetividade, Cegueira
e Baixa Visão do Instituto Benjamin Constant.
Nota da autora:
O trabalho contou com o apoio financeiro dos programas de iniciação científica (PIBIC) da Faperj e do CNPq. Agradeço à professora de teatro do
Instituto Benjamin Constant (IBC) Marlíria Flávia Coelho da Cunha, por ter permitido que o trabalho de campo fosse realizado. Agradeço também aos
profissionais do IBC que me acolheram naquela instituição, aos responsáveis pelas crianças que autorizaram a realização da pesquisa. Por fim, agradeço
de modo especial às alunas de graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense que estiveram vinculadas a esta pesquisa através do
programa de iniciação científica: Luciana de Oliveira Pires Franco, Ana Gabriela Rebelo dos Santos, Aline Alves de Lima, Carolina Cardoso Manso.
322 Modos de intervir com jovens deficientes visuais: dois estudos de caso • Marcia Moraes
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Lucia Reily
LUCIA REILY*
Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008 245
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Músicos cegos ou cegos músicos...
Introdução
filme documentário A pessoa é para o que nasce, do diretor
Roberto Berliner, coloca em evidência uma figura social que faz
parte do cenário rural e urbano ocidental há séculos: o músico
cego. Maria, Regina e Conceição são três irmãs cegas que se sustentam
com esmolas, cantando e tocando ganzá em feiras e portas de igreja no
Nordeste. Quando eram meninas, a família de camponeses sem terras
acompanhava o pai alcoolista que buscava trabalho temporário nas gran-
des propriedades rurais. A mãe contribuía fazendo artesanato. Depois que
o pai faleceu, a família toda passou a viver com o dinheiro que as irmãs
arrecadavam cantando e tocando ganzá. Residindo numa pequena vila
em Campina Grande, Paraíba, o primeiro curta-metragem realizado so-
bre essa história tirou-as do anonimato, e o documentário posterior re-
flete sobre as conseqüências da fama na vida das três. O filme retrata uma
realidade brasileira, na qual deficiência, miséria e música se entrelaçam.
A referência ao documentário tem a função de introduzir o recor-
te do presente texto, qual seja, o músico cego, visto à luz de representa-
ções de cegos instrumentistas em obras da História da Arte. O título in-
verte as posições das palavras cego e músico para deixar transparecer desde
a abertura do texto a fragilidade do lugar social ocupado pelo cego mú-
sico, que carrega historicamente a bagagem do assistencialismo, da
marginalidade e da miséria, por um lado, e do mito da superação do
infortúnio e da compensação da perda visual pela hipersensibilidade au-
ditiva de outro.
Fundamentação teórica
As concepções de deficiência são construções sociais, mesmo que,
segundo os argumentos de Linton (1998, p. 143),
246 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Lucia Reily
Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008 247
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Músicos cegos ou cegos músicos...
248 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Lucia Reily
Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008 249
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Músicos cegos ou cegos músicos...
250 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Lucia Reily
Retratos de cegueira
O presente estudo é um desdobramento de um levantamento
imagético desenvolvido a partir da pesquisa “Retratos de deficiência e
doença mental: intersecções da educação especial e da história da arte”,
que teve como objetivo mapear retratos de deficiência e doença mental
na história da arte, para investigar raízes do preconceito em obras de arte
ocidental. Partiu-se da premissa de Gilman (1994) de que os artistas ex-
pressam estereótipos coletivos vigentes na sociedade, mas que estas ima-
gens consolidam as atitudes perante a deficiência, estabelecendo um mo-
vimento iconográfico de escritura e leitura de sentidos visuais.
Ao analisar as representações da deficiência visual em obras da
história da arte, o pesquisador logo se dá conta do grande desafio que
Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008 251
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Músicos cegos ou cegos músicos...
252 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Lucia Reily
Cegos músicos
As representações de músicos cegos na história da arte atraves-
sam tempos e espaços. Em nosso levantamento, encontramos 25 obras
Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008 253
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Músicos cegos ou cegos músicos...
254 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Lucia Reily
Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008 255
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Músicos cegos ou cegos músicos...
Figura 1
Anônimo: Um harpista nos jardins de Senaqueribe
Baixo relevo em pedra do palácio de Nínive, século VII a.C. Neoassírio
256 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Lucia Reily
Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008 257
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Músicos cegos ou cegos músicos...
Figura 3
Francisco Herrera o Velho (c.1576-1656) – Cego tocador de viola de roda, 1640.
Óleo sobre tela, 71,5 x 92 cm
258 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Lucia Reily
Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008 259
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Músicos cegos ou cegos músicos...
Figura 4
John Everett Millais (1829–1896) – Menina cega, 1856
Óleo sobre tela, 82,5 x 62,2 cm
260 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Lucia Reily
Figura 5
Shahn, Ben (1898-1969) – O cantor cego, 1945
Têmpera, 64,7 x 97,1 cm, Coleção Particular
Foto: Scala/Art Resource, NY; Licenciado por AUTVIS, Brasil, 2008. © VAGA, NY
Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008 261
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Músicos cegos ou cegos músicos...
Figura 6
William H. Johnson (1901-1970) – Músicos cegos (ou “Músicos de Rua”),
circa 1940-45.
262 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Lucia Reily
Figura 7
Marisol (Marisol Escobar) – Parede de Jazz, c. 1962
Papel, tinta e objetos encontrados em madeira, 241.3 x 271.8 x 35.6 cm
Coleção Museum of Contemporary Art, Chicago, doação parcial de Ruth Horwich
Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008 263
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Músicos cegos ou cegos músicos...
Referências
264 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Lucia Reily
Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008 265
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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Músicos cegos ou cegos músicos...
266 Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 75, p. 245-266, maio/ago. 2008
Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>
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1
Introdução
∗
Instituição de Vinculação dos Autores:
Fernanda Vilhena Mafra Bazon (Universidade Estadual de Londrina / Universidade de São Paulo).
Elcie F. Salzano Masini (Universidade de São Paulo).
E-mail de contato: febazon@live.com
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2
hoje em inclusão. Chama a atenção ainda para a imprecisão conceitual que envolve a
utilização do termo integração e inclusão, que ora são empregados com o mesmo
significado, ora dispostos em contraste ou ainda propondo a superação da integração
pela inclusão. Uma das várias conseqüências desta indefinição é a contribuição para a
cisão dos profissionais que defendem a integração e dos que defendem a inclusão, como
se o sentido da educação em si não fosse a busca de integração ou inclusão social. Para
este autor a inclusão “é a base da vida social onde duas ou mais pessoas se propõem a,
ou têm que, conviver; já que muitas vezes o convívio não depende da vontade
individual. E conviver implica a presença de duas ou mais pessoas” (MAZZOTTA,
2002 p. 10).
Na Conferência Mundial que ocorreu em Jomiten (Tailândia) em 1990,
representantes de diversos países assinaram a Declaração Mundial sobre a Educação
para Todos e Plano de Ação para Satisfazer as Necessidades Básicas de Aprendizagem,
comprometendo-se a buscar a inclusão de todas as crianças na escola, a partir do
respeito à diversidade e da garantia do ensino básico universal e de qualidade. Mazzotta
(2002) afirma que nesta declaração além da educação ser reconhecida como direito
fundamental de todos, foi explicitado o sentido dado às necessidades básicas de
aprendizagem, que compreendem os instrumentos essenciais para a aprendizagem e os
conteúdos indispensáveis para a sobrevivência do indivíduo e seu desenvolvimento
visando à participação ativa na vida social.
Porém a assinatura deste documento garante a inclusão escolar? Todas as
crianças encontram-se realmente na escola? Se sim, como está ocorrendo o processo
educacional? Se não, quem são elas e porque evadiram ou foram excluídas do ambiente
escolar?
Diversos organismos internacionais preocuparam-se em discutir o direito à
educação para todos, em especial nesta conferência na Tailândia em 1990 e na
Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais em 1994 na Espanha, na
qual foi elaborada a “Declaração de Salamanca”. Nesta última reunião, foi reafirmado o
direito de pessoas com deficiência à educação (Cf. MARTINS, 2003).
A escola para todos pressupõe que a educação especial ocorra de forma
integrada à educação regular. Sendo assim, a escola torna-se aberta à diferença e busca
atender às necessidades de todos os alunos ao invés de excluir os que requerem práticas
e atenção diferenciadas (Cf. JIMÉNEZ, 1997).
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3
A cegueira congênita por sua vez, pode ser entendida como aquela que se
manifesta no nascimento ou logo após a ele, estando geralmente relacionada com
pigmentação difusa atípica, diminuição dos vasos da retina e atrofia do nervo óptico
(Cf. REY, 1999; TABER, 2000).
Ouvir pessoas com deficiência visual pode ajudar e nortear a compreensão das
mesmas, não mais a partir da falta ou prejuízo da visão, mas, sim, do uso dos sentidos
que propiciam seu contato e apreensão do mundo. Sob essa perspectiva, nessa
investigação os dados foram analisados a partir do que as criança cegas realizaram em
diferentes situações sem comparação entre crianças com deficiência visual e videntes,
respeitando assim a singularidade das primeiras.
Pode-se assinalar que a não comparação entre crianças com deficiência visual e
videntes é um ponto relevante desta pesquisa. É significativa esta observação porque, a
escola muitas vezes torna-se um ambiente que propicia a comparação entre crianças e
sob a ótica da inclusão escolar está o respeito à diferença. A comparação entre as
habilidades adquiridas por uma criança com deficiência visual e uma vidente ao fazer
uso do referencial da vidente, acarretará uma interpretação pautada no déficit, no que
falta à criança com deficiência visual. Esta comparação pode ser ainda maior quando
um irmão sem deficiência estuda na mesma escola, atribuindo qualquer falha,
dificuldade ou atraso à deficiência visual. O estudo do que a criança cega realiza em
diferentes situações e momentos estará considerando suas possibilidades e maneiras
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4
Vash (1988), ao falar da família com um membro com deficiência, assinala que
a descoberta da deficiência quebra o equilíbrio homeostático da unidade familiar,
havendo a necessidade de uma reestruturação dos papéis atribuídos aos membros da
família. Isso requer que as expectativas, os sonhos e as prioridades do grupo familiar
sejam, então, revistos. Todos vivenciam a perda, que provoca um choque e ainda o
medo das conseqüências futuras que a deficiência pode trazer.
A influência que uma criança com deficiência exerce sobre seus irmãos foi
menos estudada do que com relação aos seus pais. Freqüentemente, as necessidades dos
irmãos de uma criança com deficiência são negligenciadas por pais e professores.
Irmãos mais novos sem deficiência, muitas vezes, relutam em ir conversar com seus
pais sobre seus problemas e sentimentos. Seus problemas são, geralmente, deixados de
lado devido àqueles apresentados por seus irmãos com deficiência. Irmãs de crianças
com deficiência aparentemente são mais vulneráveis a dificuldades emocionais do que
irmãos. Os pais, com freqüência não estão aptos para ajudar os irmãos normais a
prepararem-se para o futuro em relação ao seu irmão com deficiência. Na maior parte
das famílias, as necessidades da criança com deficiência são colocadas em primeiro
plano (Cf. VADASY et al., 1984).
Dunn (1985) corrobora com esta afirmação, asseverando que quando um dos
irmãos possui uma deficiência, o irmão saudável tende a assumir responsabilidades que
não teria, caso a deficiência não estivesse presente. Especialmente quando se tratam de
irmãs mais velhas, elas têm a responsabilidade de tomar conta de seu irmão com
deficiência, e essa responsabilidade, pode provocar graves conseqüências para as
crianças normais. Estas crianças são, particularmente, vulneráveis a problemas
emocionais. Para que se compreenda quais as conseqüências para os irmãos sem
deficiência é necessário o entendimento de como a família, como um todo, lida com o
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5
stress de ter um membro com deficiência. De qualquer forma, ter um irmão com
deficiência, certamente, causa algumas dificuldades, e as crianças precisam de alguma
forma carregar o estigma de ter um irmão “diferente” que pode comportar-se de forma
estranha aos padrões habituais. Esta autora frisa, ainda, que pouco se sabe do
relacionamento entre irmãos quando um deles apresenta cegueira ou surdez.
A partir desta breve exposição teórica, percebe-se que tanto a relação entre
irmão quanto sua interface com a inclusão escolar que já vem ocorrendo nas escolas
brasileiras necessitando de subsídios para auxiliá-las, nota-se a carência de maiores
estudos, apontando assim a relevância deste trabalho.
Objetivos:
Buscar compreender a concepção, sobre a inclusão escolar, de duas crianças
com cegueira congênita e de suas mães, ressaltando o papel que a irmã sem deficiência
desempenha no processo de inclusão. E ainda, compreender como as irmãs se
comportam na escola, se compartilham situações de aprendizado e lazer ou não.
Método:
Esta pesquisa foi pautada modalidade da pesquisa qualitativa voltada para a
descrição de um fenômeno buscando desvelar seu sentido. Bogdan e Biklen (1982)
afirmam que a pesquisa qualitativa encontra no ambiente natural uma fonte direta de
informações, sendo o pesquisador seu principal instrumento. Pressupõe, assim, o
contato prolongado e direto do pesquisador com o ambiente e a situação investigada.
Participantes:
Foram participantes da pesquisa:
• Duas crianças com cegueira congênita que possuíam irmãs gêmeas sem
deficiência;
• As mães das crianças com cegueira congênita.
Instrumentos:
• Roteiro de entrevistas que contemplavam temas relacionados com o foco da
pesquisa;
• Gravador para registro das entrevistas;
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Resultados:
Neste tópico serão enunciados os resultados do estudo de caso, tanto referentes à
entrevista com a mãe quanto com a criança com cegueira. Cabe destacar que todos os
nomes utilizados são fictícios para assegurar o sigilo dos participantes desta pesquisa.
1. Caracterização dos participantes: identificação pessoal
1)MARIA
CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA
Filhos Pais
Karina (9 anos), cegueira total, sensível à luz. Maria (52 anos), separada do primeiro
Causa: retinopatia da prematuridade. marido e casada com João; era assistente
Karen (9 anos), irmã gêmea de Karina. social, mas não trabalhava no momento da
Kelly (16 anos), irmã mais velha de Karina e pesquisa devido ao cuidado de Karina.
Karen, filha do primeiro casamento de Maria. João (43 anos), coordenador de tráfego da
Dersa.
INFORMAÇÕES PRÉVIAS
• Maria engravidou das gêmeas com 42 anos apresentando pressão alta durante a gravidez
o que acarretou no parto prematuro (6 meses de gestação).
• Ambas ficaram na UTI, e Maria acreditava que a cegueira de Karina se devia a isto
• Contou que Karina teve outras complicações além da deficiência visual como, por exemplo,
uma parada cardíaca.
• A retinopatia foi descoberta na alta de Karina do hospital, e já ficou marcada a cirurgia
devido ao descolamento da retina.
separaram alguns gêmeos de classe (Karina Karina gostavam de assistir juntas, como o
disse que iria falar com a professora, pois não Chaves, e outros programas, como Malhação,
queria ser separada de Karen ao que Maria a Kelly também assistia com as duas).
respondeu que era importante pensar em sua Karen e Karina brincavam muito de
independência). professor ou de encenação (por exemplo de
Karen e Karina faziam a lição juntas personagens do Chaves).
(Karina ajudava Karen quando tinha lição de A Karina e a Karen tinham tipos de
matemática, especialmente na tabuada). brincadeira diferentes (a Karen gostava mais
A Kelly estudou na mesma escola da Karina de brincar com boneca e a Karina de
até o colegial. brinquedos que emitiam som).
2) CARMEM
CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA
Filhos Pais
Luiza (10 anos), cegueira total, sem percepção Carmem (36 anos), viúva do primeiro
de luz. Causa: retinopatia da prematuridade. casamento e separada do segundo marido, pai
Lucia (10 anos), irmã gêmea de Luiza. das gêmeas. Trabalhava como empregada
Alex (20 anos), filho do primeiro casamento de doméstica.
Carmem. Não morava com a mãe e as irmãs. Antônio, não mantinha relação próxima com
as filhas, era motorista de ônibus.
Freqüentemente estava embriagado ao visitar
as filhas e então era impedido por Carmem de
vê-las.
INFORMAÇÕES PRÉVIAS
• Os pais estavam separados há aproximadamente 10 anos na época da pesquisa.
• Carmem falou que quando descobriu que Luiza era cega já estavam separados e o pai não a
ajudou.
• As gêmeas nasceram de 7 meses e precisaram ficar na UTI, segundo a mãe, tomaram
muitos antibióticos fortes, pois nasceram com icterícia.
• Carmem afirmou que o médico disse que a cegueira de Luiza foi devido ao excesso de
exposição ao oxigênio.
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• Disse ainda que foi erro médico, pois um dos profissionais que a atendeu disse isso a ela, só
que se negou a testemunhar a seu favor em caso de processo, porque não prejudicaria um
colega. Carmem comentou que foi até o juiz e a um advogado, mas que ambos disseram que
ela precisava de provas para entrar com um processo.
• Percebeu o problema visual de Luiza em casa por volta dos 4 meses de idade, quando
levou-a ao médico, este sugeriu que poderiam ser colocados dois olhos de vidro no lugar dos
olhos de Luiza afirmando que não havia possibilidade de recuperação. Carmem não aceitou a
sugestão.
• Contou que não se conformava por ter uma filha com cegueira, falou que a situação era
muito difícil, mas que tinha que aceitar, pois a situação não iria mudar de qualquer forma.
• Disse que chorou muito quando descobriu o problema de Luiza.
3) LUIZA
DADOS DA CRIANÇA
Gostava de:
Gostava:
1) dos irmãos, (só não gostava quando eles brigavam com ela, comentou que Alex brigava
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Com relação ao caso de Karina, ficou claro o papel que as irmãs representavam
quando: Karina, embora tenha falado que preferia ter apenas a Kelly como irmã, relatou
as brincadeiras que fazia com a Karen (irmã gêmea) de forma prazerosa. A esse respeito
percebe-se que, independente da presença de ciúme e rivalidade, a criança encarava sua
relação com os irmãos como uma fonte de prazer em algum grau.
Uma outra questão a ser notada nos dados levantados pela pesquisa é a
delegação de responsabilidade aos irmãos. Maria relatou que Karen costumava fazer
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tudo o que Karina pedisse e nas situações escolares Karen muitas vezes
responsabilizava-se pelo cuidado e assistência à Karina, como por exemplo,
acompanhá-la ao banheiro ou ajudá-la no horário do recreio. Carmem, por sua vez,
falou que Lúcia fazia tudo por Luiza quando ela não estava, como servir o almoço para
a irmã.
Dunn (1985) afirma que quando um irmão possui uma deficiência os irmãos
saudáveis tendem a assumir responsabilidades que não teriam, caso a deficiência não
estivesse presente.
como repleto de brigas e desacordos. Há que se chamar atenção para o fato de que
Luiza, apesar do relacionamento conturbado com a irmã, não buscava em seu ambiente
social companheiros de brincadeira preferindo brincar sozinha. Carmem frisou, ainda,
em sua entrevista, que Luiza falava muito sozinha e que isso a preocupava, tendo levado
a filha a um psicólogo que a tranqüilizou, afirmando ser este um comportamento
normal. Pensando nestes dados pode-se citar a obra de Warren (1994), na qual considera
a família como uma unidade social repleta de relações complexas entre as crianças e os
adultos, sendo esperável que o desenvolvimento social da criança varie de acordo com
as características presentes em sua estrutura familiar. Sobre este assunto Lairy e
Harrison-Covello (1973, apud WARREN, 1994) afirmam que a socialização das
crianças é, em grande parte, determinada pelo seu ambiente familiar, e o bom
ajustamento da família para com sua deficiência tende a proporcionar um
desenvolvimento social próspero.
No caso de Luiza, tanto a mãe quanto a criança ressaltaram que não havia
compartilhamento das atividades escolares por parte das irmãs e que Luiza estava
encontrando dificuldades para acompanhar a escola regular, levantando-se a hipótese de
que ela ficasse retida. Lúcia não foi considerado um fator facilitador da inclusão escolar
de Luiza, ao contrário do constatado nas entrevistas de Maria e Karina, já que ambas
consideravam que a presença de Karen em sala de aula foi um grande facilitador do
processo de inclusão escolar.
Considerações Finais:
Esta pesquisa preocupou-se em ouvir o depoimento de duas crianças com cegueira
congênita e de suas mães a respeito da inclusão, com o objetivo de registrar a concepção
das mesmas acerca da inclusão e de como a relação fraterna permeou esse processo.
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Ficou claro que em um dos casos estudado (Karina) a irmã sem deficiência
auxiliou a inclusão da irmã com cegueira, tanto na vida escolar quanto nas atividades de
lazer com amigos e familiares. Este auxílio aparentemente gerou uma sobrecarga de
tarefas na criança sem deficiência relatada por sua mãe. Esta sobrecarga da irmã sem
deficiência já foi relatada na pesquisa de Villela (1999).
A sobrecarga também foi notada por Carmem na relação entre Luiza e Lúcia,
porém não no que estava relacionado às atividades escolares, mas sim em questões do
dia-a-dia.
Houve diferenciação também no que tange a busca por independência, já que
Karina demonstrava o desejo por adquirir independência e Luiza não. Constatou-se
também que em ambos os casos havia o compartilhamento de atividades de lazer, porém
quanto às atividades escolares apenas Karina era acompanhada por Karen.
Referências:
ANGELOTTI, A.P. Inclusão nas escolas municipais de São Paulo: um olhar dos
professores, 2004. 101 p. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade de São Paulo.
São Paulo.
BANK, S.P.; KAHN, M.D. The sibling bond: the first major account of the powerful
emotional connections among brothers and sisters throughout life. Nova York: Basic Books,
1982. 363 p.
BOGDAN, R.C.; BIKLEN, S.K. Qualitative research for education: an introduction to
theory and methods. 2. ed. Boston: Allyn and Bacon, 1992. 262 p.
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18
OUVIDOS CEGOS
Christiane Reis Dias Villela Assano
Há cegueiras que não se referem necessariamente à ausência de visão. Mesmo para
aqueles que possuem a visão considerada “normal”, existe um “ponto cego”, ou seja, um
ponto em que, na ausência de cones, bastonetes e receptores visuais, não se pode ver.
(Foerster, 1996, p.60). Mas existem outras tantas cegueiras.
Como professora de música, tenho refletido sobre a cegueira dos ouvidos - daqueles
que ouvem, mas não escutam. Há pontos cegos na escuta, ou melhor, há escutas que, por se
limitarem a pontos fixos, se tornam cegas. Castro (1988) as denominou “ponto de escuta”,
conceito que pode ser entendido ao misturarmos suas palavras às de Boff: todo ponto de
escuta é a escuta de um ponto. Escutar de um ponto significa limitar a escuta ao que se está
acostumado a ouvir, não mover a escuta, fixá-la em determinado lugar, imobilizá-la. A
escola de música tradicional, ao valorizar e limitar a escuta ao repertório dos séculos XVIII
e XIX, cega o ouvinte. Por esta razão, muitos professores e professoras formados por
escolas que “se orientam pelas normas e pelos critérios em que estavam baseados os
programas e currículos dos conservatórios europeus do século passado”, parecem não
compreender obras contemporâneas (Kollreuter apud Freire, 1992, p.187). Da mesma
forma que só se pode ver o que se compreende, também só se pode ouvir o que se pode
compreender.
Foerster (op.cit.), baseado nas pesquisas de Maturana e Frenk, reafirma que
“devemos crer para ver” pois “a retina está sujeita a um controle central que faz com que só
possamos ver aquilo em que cremos” (p.71). Garcia e Alves (1997) trazem o caso de um
homem que continuava cego mesmo após uma operação que traria de volta sua capacidade
de ver as coisas. O homem que teria agora a possibilidade de ver, não via. Seu cérebro teria
de aprender a ver...
Uma das inúmeras lendas do Conde Drácula também pode ilustrar bem o que
significa compreender para ver. Diz-se que um conde romeno apaixonou-se por uma
cantora de ópera em Paris que morreu subitamente. O conde amargurado voltou ao seu
castelo, mantendo sua amada viva todas as noites ao ouvir árias gravadas por sua suave voz
e ao admirar, também todas as noites, a estátua de mármore de sua amada. Mas enquanto
para o conde aquele era um meio de superar a ausência da amada, para os camponeses que
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2
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Vanessa parece dizer em seu trabalho que, como acredita na inexistência do silêncio
absoluto, também seu ouvido não pode encontrá-lo. No entanto, Andressa encontrou
facilmente o silêncio, como revela seu sucinto parágrafo. Tanto Andressa como Vanessa
ouviram o que podiam “ver”.
E para “ver melhor com os ouvidos”, temos de ampliar nossos pontos de escuta,
tentando desenvolvê-los de modo a distinguir figura de fundo sonoro (Schafer, 1991), de
modo a estranhar o que é tão “natural” ou “óbvio” que nossos ouvidos simplesmente
ignoram. Diria Stravinsky: “o verdadeiro criador pode ser reconhecido por sua capacidade
de sempre encontrar à sua volta, nas coisas mais simples e humildes, detalhes dignos de
nota” (1996, p.57).
É nessa perspectiva que venho trabalhando com Márcio, um aluno que, como cego,
“não pode ver”, e por “não poder ver” tem provocado em mim muitas reflexões sobre o que
pode ser a cegueira do olhar de quem vê, mas não captura, sobre o que pode ser a cegueira
de quem ouve, mas não escuta.
3
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Olhos aprisionados
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Texturas musicais
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Talvez eu tenha optado por me desafiar, por tentar dar a Márcio a sensação que
meus alunos poderiam ter ao observar a beleza de uma partitura, a beleza de um
manuscrito, mesmo que, ao vê-los, meus alunos não pudessem ainda “ver” tudo o que podia
estar escrito naquele pedaço de papel, mas pudessem construir a sua leitura. Mesmo que eu
não compreenda os hieróglifos egípcios, nada me impede de lê-los à minha maneira quando
vou a um museu. Da mesma forma, embora eu não pudesse compreender a partitura de
Márcio, não havia impedimento para que eu pudesse fazer a minha leitura de seu registro.
Por que então não fazer um outro movimento?
Mas no encontro seguinte, Márcio questionou-me sobre as notas musicais, pois uma
amiga com quem conversava lhe falara sobre isso. Perguntei se Márcio já ouvira falar dos
nomes dados às sete notas musicais e como ele as conhecia, toquei-as no teclado para que
ele pudesse ouvi-las. Ao mesmo tempo, recuperamos um pouco as subidas e descidas que
trabalhamos na aula anterior. As notas das quais ele falava foram facilmente encontradas
por ele no teclado devido às teclas pretas que ele já conhecia. Teria eu acertado?
Tomávamos, eu e ele, a melhor decisão?
Olhando outros pontos do mapa, lembro-me que, ao ler meu diário de bordo,
esqueci-me de relatar o processo de construção da partitura de Márcio. Embora soubesse da
existência, mesmo sem conhecer, da linguagem musical em braille, não havia tempo para ir
até o Instituo Benjamin Constant, muito menos para conhecer essa nova linguagem
profundamente. E agora? Como fazer?
Pensei que deveria explorar diferentes texturas, pois me lembrava de uma menina
cega que estudava no Curso de Iniciação Musical da Escola de Música da UFRJ na época
em que eu era estagiária do Curso de Licenciatura. O professor parecia esquecê-la dentro da
sala, ou talvez não pudesse se relacionar de forma diferente. Ela se apegara a mim, apenas
uma estagiária que não sabia nem mesmo o que fazer com as crianças ditas normais. Mas,
certo dia, o professor ensinava às crianças como fazer a Clave de Sol e me surpreendeu
quando levou para a menina uma clave de sol grande desenhada num papel, bem como um
rolo de barbante e cola para que a sua clave de sol pudesse ser reconhecida pelo toque.
Lembrei-me desse aprendizado quando tinha à minha frente o desafio de escrever a
partitura de Márcio. Mas eu não tinha barbante em casa e fui à procura de outros materiais.
Pensei em areia. Mas também não havia areia em minha casa. Foi então que me sentei ao
7
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computador e fiz umas tabelas bem grandes de sete colunas compridas que representavam
as teclas brancas de uma oitava. E as teclas pretas, como destacá-las? Tinha algumas fichas
em casa que cortei em pequenos pedaços para que Márcio pudesse identificar as teclas
pretas. Colei os cinco pedaços de cada oitava. É importante ressaltar que a música já havia
sido feita antes da criação da partitura.
Pensei em identificar as notas que seriam tocadas com uma outra textura. Colei
papel em forma de pequenas bolinhas nas teclas que seriam utilizadas, mas, na segunda
frase da música, havia uma nota que após a subida dos sons, retornava. Tentei indicar o
retorno com um pedaço de palito de dente colado sobre a nota (não é preciso dizer que até o
dia em que levei a partitura para Márcio o palito já havia caído...). Entretanto, faltava um
detalhe importante: como indicar de que lado Márcio deveria começar a tocar, já que eu
havia criado uma música que tanto começava de um lado como do outro? Resolvi grampear
o lado em que Márcio começaria a tocar a música. Quase tudo pronto...
Escrever esta partitura era mais que simplesmente criar uma nova forma de registrar
a música, era criar uma partitura onde eu teria de sair da minha lógica para entrar numa
outra, onde eu teria de me colocar por um momento no lugar do outro.
Durante nosso encontro, pedi para que Márcio tocasse, sentisse a partitura e aos
poucos, mostrava-lhe as diferentes texturas nela existentes. Construímos uma “legenda”
com essa conversa inicial. Márcio não só pôde executar a música, como também duas
semanas depois completou a minha partitura. Disse-me ele que na hora de tocar não
utilizou uma única oitava, pois eu não havia indicado isso na partitura. Foi então que ele me
sugeriu que, na próxima partitura, nós poderíamos colocar as frações que ele havia
inventado para identificar as oitavas.
Na semana seguinte, um grande susto. Márcio faltou à aula e o que num aluno dito
normal eu pensaria num pequeno problema de navegação, em Márcio o problema tomava a
proporção de um maremoto. Entretanto, na aula seguinte, Márcio voltou. Mas a falta de
Márcio causara em mim uma profunda reflexão sobre como ensinar-aprender música. Foi
justamente nesse período que eu pensara que o toque, tão excluído da escola, seria de
grande importância no meu contato com Márcio. O que a muitos eu dizia com o olhar, a
Márcio eu falaria com um singelo toque.
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Referências Bibliográficas
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
FREIRE, Vanda Lima Bellard. Música e Sociedade - uma perspectiva histórica e uma
reflexão aplicada ao ensino superior de música. Rio de Janeiro, 1992. Tese (Doutorado
em Educação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
GARCIA, Regina Leite, ALVES, Nilda. Uma infinidade de mundos possíveis – fragmentos
de um discurso em construção. Caxambu: XX Reunião Anual da ANPEd, 1997.
GARCIA, Regina Leite, VALLA, Victor Vincent (org.). A fala dos excluídos. Caderno
CEDES - 38. Campinas: Papirus, 1996.
GRIFFITHS, Paul. A música moderna - de Debussy a Boulez. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1994.
PENNA, Maura. O desafio necessário: por uma educação musical comprometida com a
democratização no acesso à arte. Educação Musical, São Paulo, Atravez, n. 4/5, p. 15-
29, 1994.
STRAVINSKY, Igor. Poética musical em seis lições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
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Diz que a cegueira lhe reforçou o ouvido e que, por isso, o ajudou
na música. Mas não relaciona o facto de ter perdido a visão com a
circunstância de ter vindo a tornar-se pianista. Gosta sobretudo dos
barrocos do século XVIII, mas também dos românticos do século
XIX – e até da música popular contemporânea, desde que boa. Se o Imagem
comparam a Ray Charles ou Stevie Wonder, outros pianistas cegos,
torce o nariz. Admira-os pelo que conseguiram na música, não necessariamente pela
cegueira. Senhores e senhoras, eis outra força da natureza.
Perder a visão foi uma das melhores coisas que me aconteceu na vida”, diz Jorge
Gonçalves. Surpreendente? Só para quem não se senta numa tarde de sol a conversar
com ele. Cego desde os cinco anos, Jorge tornou-se entretanto pianista profissional.
Diz que “A Paixão Segundo São João”, de Johann Sebastian Bach, é a sua peça
preferida. Explica que foi a polifonia, tanto quanto a possibilidade de dispensar a
partitura, que o fez optar pelo piano em vez da trompa, que a certa altura
experimentou. Fala dos tempos de Paris e de como, apesar de tudo, a competitividade
entre jovens candidatos a músicos foi muitas vezes intercalada por inesperados
momentos de solidariedade – e fala de cada uma dessas coisas com um discurso
articulado, um léxico rico, ideias reflectidas para além da forma perfeita. Tem 23 anos
e uma licenciatura em piano. Toca em concertos com orquestra, recitais a solo por
todo o País, galas de alerta para os problemas dos deficientes. E é invisual. “Como
Ray Charles ou Stevie Wonder”, podia dizer-se. “Como muitos outros, músicos ou
não”, diz ele.
“Enquanto tive visão, vivia num inferno. Tinha dores fortíssimas nos olhos, sobretudo
quando olhava para o sol, e passava imenso tempo internado. Quando perdi a visão,
aos cinco anos e tal, pude finalmente livrar-me disso”, explica. Com um glaucoma
congénito, patologia que se centra no atrofiamento no nervo óptico, Jorge Gonçalves
tem na verdade dois olhos capazes de ver, mas já não consegue que a informação
chegue ao cérebro e seja efectivamente processada em visão. A irmã, mais velha
quatro anos, sofre do mesmo problema, embora veja alguma coisa – e a coincidência
da deficiência nos dois irmãos significa necessariamente que ambos os progenitores
são portadores da doença, embora vejam os dois normalmente. “Se a cegueira levou à
música, isso já não posso dizer em absoluto”, explica Jorge. “Talvez sim, talvez não.
É difícil separar uma coisa da outra, pois todos nós vimos de um determinado
con-texto. Como cego, tenho o ouvido mais desenvolvido e isso naturalmente ajudou.
Mas a verdade é que foi a minha irmã quem começou por aprender piano e foi
ouvindo-a tocar que eu me interessei. E, de qualquer forma, tenho a necessidade
básica de exprimir-me como artista, não como deficiente.”
Incentivado pelos pais, uma efermeira e um tenente-coronel com especial apreço pela
cultura, Jorge Gonçalves tomou pela primeira vez contacto com o piano aos seis anos.
Aos nove, quando vivia com os pais em Tancos (o pai estava destacado na respectiva
Base Aérea), tentou entrar para o Conservatório Regional de Tomar. “Não me
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aceitaram logo. Foram esses os primeiros problemas com que me deparei: não
quererem aceitar-me como aluno. Aconteceu em Tomar e aconteceu depois em
Coimbra: rejeitavam-me, ouviam-me tocar e, então sim, aceitavam-me”, conta. “Na
verdade, não levo a mal. As pessoas têm todas muito medo da diferença. São
preconceitos naturais. Mas é preciso lutar contra eles, de qualquer forma.” E os
estudos prosseguiram, de Tomar ao Conservatório de Música de Coimbra, deste à
École Normale de Musique de Paris Alfred Cartot. Iniciado nos estudos em 1992,
Jorge Gonçalves concluiu o Curso Geral em 2001, em regime articulado com o ensino
secundário, o Diploma de Ensino em 2002 e o Diploma Superior de Ensino em 2004.
Desde então, é pianista profissional. Realizou recitais em locais tão diversos como o
Porto ou o Fundão, Castelo Branco ou Sintra, entre muitos outros. Tocou como
solista do Concerto de Grieg em três ocasiões diferentes, nomeadamente com a
Banda Sinfónica da Guarda Nacional Republicana e com a Banda de Música da
Força Aérea Portuguesa. Foi a programas de televisão e à Gala de Abertura do
Pirilampo Mágico, em 2005, de cuja campanha foi um dos rostos. “Faço sobretudo
concertos. Ou tenho feito concertos, o que é mais bem dito. Sou um prestador de
serviços, no fundo, e só espero poder continuar a sê-lo”, explica. “Vivo com
dificuldades, mas sobrevivo. Se quisesse ganhar dinheiro, não escolhia esta profissão.
Às vezes os meus pais têm de ajudar-me. Mas mantenho-me à tona de água. E faço o
que gosto. Nunca me arrependi da opção que fiz.”
Hoje, em Coimbra, ensaia uma média de seis horas por dia, sete dias por semana. E
embora goste dos românticos, nomeadamente de Grieg, explica que é Bach o seu
favorito. “Passo 60 por cento do meu tempo a tocar Bach. Os outros 40 é que são
para os românticos. Gosto muito do Barroco e acho que Bach é o sol da música, o seu
centro gravitacional, o homem que trouxe à música uma visão mais elevada,
universal. Mais: como ele escreveu sobretudo para órgão, cravo e clavicórdio, os
recursos do piano moderno permitem-nos quase reinventar a sua obra,
valorizando-a”, diz. Tem sobretudo quatro referências entre os grandes intérpretes do
mundo: Sviatoslav Richter, que considera “o manual da interpretação”; Maria João
Pires, que diz ter “o som mais bonito”; Glenn Gould, em quem encontra a perfeita
“reivenção do ordenamento” e Rosalyne Tureck, que gostou de ver “separar as
harmonias”. Em Bach, gosta principalmente das ‘Paixões’, entre elas de São João. A
‘Arte da Fuga’ ou os ‘Concertos de Brandenburgo’ são outras das suas obras
predilectas.
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“Ninguém toca piano com os olhos, mas com a cabeça. E cabeça todos nós temos”,
diz. Se o comparam a Ray Charles ou Stevie Wonder, fica indiferente. Admira-os
sobretudo pela música, muito mais do que pela cegueira. Principalmente Ray Charles.
“Foi uma pessoa que viveu numa América difícil, cheia de contrariedades, e que
conseguiu apesar disso encantar multidões. Mas não me refiro especialmente à
cegueira. As pessoas cegas podem fazer as mesmas coisas do que as outras”, explica.
E apesar da sua propensão para a música erudita, faz questão de vincar que também a
música popular o encanta. Desde que boa, claro. “Aquilo de que gosto é da
qualidade. E há música boa em todos os estilos. O Ray Charles, por exemplo, foi de
facto um grande músico. Pôs grande humanidade na música. É admirável.”
A PAIXÃO DA TROMPA
“É o meu instrumento preferido, aquele que tem o timbre mais bonito. Ainda hoje,
quando ensaio com uma orquestra, peço sempre aos trompistas que toquem um pouco
para mim. Mas a questão é que, ao contrário do piano, a trompa exige partitura para
se poder tocar numa orquestra. O piano toca-se de cor, mas a trompa não: tem de se
ler e tocar ao mesmo tempo. E isso, naturalmente, é uma coisa impossível para um
cego”, explica.
Fonte:Correio da Manhã
[Fim de Notícia]
Notícias » Destaque
13 / 09 / 2006 - 14 : 55
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HEIDRICH, Regina,
Doutora, Centro Universitário Feevale
BLUM, Arina,
Especialista, Centro Universitário Feevale
Este artigo relata a experiência de um projeto para redesenho da identidade visual de uma Associação de Deficientes
Visuais. Com o objetivo de fortalecer a identidade frente ao público vidente e, ainda, comunicá-la a deficientes visuais,
este projeto aborda a metodologia de criação para desenvolvimento de um trabalho embasado na inter-relação dos
sentidos de tato e visão no design impresso. A percepção sob o ponto de vista do design gráfico é, em geral, fortemente
atrelada a fatores visuais. Na grande maioria dos projetos de design impresso, o sentido da visão é explorado como
forma de comunicação, enquanto os sentidos de tato, olfato e audição praticamente não são abordados.
This paper tells the experience of a project for redesigns of the visual identity of one nonprofit organization enabling blind or
visually impaired people to achieve equality and access. With the objective to fortify the identity front to the people without
vision problem and, still, to communicate a people with visual impairments. This project approaches the methodology of
creation for development of a work based in the interrelation of the sense touch, and vision in design printed matter.
The perception in the point of view of graphical design is in general connected to the visual factors. In the great majority of
the projects of design printed matter, the direction of the vision is explored as communication form, while the senses like
touch, olfact and audition are not boarded.
1- Introdução
Este artigo relata a experiência de uma equipe de designers desenvolvendo um projeto gráfico para cegos.
Constata-se o desconhecimento, pelos integrantes da equipe, de aspectos ligados a deficiência visual e baixa
visão. Segundo a OMS-Organização Mundial de Saúde, cerca de 1% da população mundial apresenta algum
grau de deficiência visual. Mais de 90% encontram-se nos países em desenvolvimento. Nos países
desenvolvidos, a população com deficiência visual é composta por cerca de 5% de crianças, enquanto os
idosos são 75% desse contingente. Dados oficiais de cada país não estão disponíveis.
Observamos que a percepção sob o ponto de vista do design gráfico é, em geral, fortemente atrelada a fatores
visuais. Na grande maioria dos projetos de design impresso, o sentido da visão é explorado como forma de
comunicação, enquanto os sentidos de tato, olfato e audição praticamente não são abordados.
Segundo a revista eletrônica Saúde e Vida Online, desenvolvida pelo Núcleo de Informática Biomédica da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é considerado cego aquele que apresenta desde ausência
total de visão até a perda da percepção luminosa. Sua aprendizagem se dá através da integração dos sentidos
remanescentes preservados. O principal meio de leitura e escrita é o sistema Braille. O deficiente visual, no
entanto, precisa ser incentivado a usar seu resíduo visual nas atividades de vida diária sempre que possível.
Pessoa com baixa visão ou visão subnormal é aquela que possui resíduos visuais em grau que permitam ler
textos impressos à tinta, desde que se empreguem recursos didáticos e equipamentos especiais, excluindo as
deficiências facilmente corrigidas pelo uso adequado de lentes (BRASIL. Ministério da Educação e do
Desporto, 1993). Sua aprendizagem se dá através dos meios visuais, mesmo que sejam necessários recursos
especiais.
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Tanto a cegueira total quanto a visão subnormal pode afetar a pessoa em qualquer idade. Bebês podem
nascer sem visão e outras pessoas podem tornar-se deficientes visuais em qualquer fase da vida. A perda de
visão pode ocorrer repentinamente de um acidente ou doença súbita, ou tão gradativamente que a pessoa
atingida demore a tomar consciência do que está acontecendo. Ela também ocorre independentemente de
sexo, religião, crenças, grupo étnico, raça, ancestrais, educação, cultura, saúde, posição social, condições de
residência ou qualquer outra condição específica.
A deficiência visual interfere em habilidades e capacidades e afeta não somente a vida da pessoa que perdeu
a visão, mas também dos membros da família, amigos, colegas, professores, empregadores e outros.
Entretanto, com tratamento precoce, atendimento educacional adequado, programas e serviços
especializados, a perda da visão não significará o fim da vida independente e não ameaçará a vida plena e
produtiva.
O Braille é um dos códigos de apoio da língua, e sua importância está no fato de habilitar o ser humano a
compreender o mundo através de um sistema organizado de símbolos, substituindo o alfabeto convencional
por um alfabeto de pontos em relevo, o que possibilita ao deficiente visual a escrita e a leitura.
As primeiras tentativas de criar um método de acesso à linguagem escrita aos cegos datam do século XVI e
XVII. Entre eles estava a gravação de letras e de caracteres em madeira ou metal (usando parte da idéia da
imprensa de Gutenberg), sistemas de nós em cordas, caracteres recortados em papel e até mesmo alfinetes de
diversos tamanhos pregados em almofadas.
Até 1829, os portadores de deficiência visual aprendiam a ler através desses e de outros complicados
métodos de leitura. Naquele ano um jovem francês de 15 anos cego desde os 3 anos de idade, chamado Luis
Braille, desenvolve o sistema que é até hoje o mais efetivo recurso para a educação de cegos. Braille era
aluno da escola Haüy, a primeira escola para cegos do mundo e foi influenciado por um método de
transmissões de mensagens sigilosas criadas pelo oficial de exército francês Charles Barbier, que consistia na
combinação de 12 pontos em relevo com valor fonético.
O Braille é composto por 6 pontos, que são agrupados em duas filas verticais com três pontos em cada fila
(cela Braille). A combinação desses pontos forma 63 caracteres que simbolizam as letras do alfabeto
convencional e suas variações como os acentos, a pontuação, os números, os símbolos matemáticos e
químicos e até as notas musicais. Para os cegos poderem ler números ou partituras musicais, por exemplo,
basta que se acrescente antes do sinal de 6 pontos um sinal de número ou de música.
3 - Metodologia de desenvolvimento
Para o redesenho da identidade visual desta instituição, levou-se em consideração a necessidade de uma
assinatura que abordasse fatores não somente visuais, mas também táteis. A equipe envolvida no projeto foi
constituída por 4 estagiários e um assistente gráfico do Centro de Design Feevale, além do professor
responsável pela orientação ao trabalho. Notou-se, no primeiro contato com o projeto, que a equipe
necessitava de preparação para entender os aspectos não-visuais. Até então, todos os trabalhos desenvolvidos
pelo grupo seguiam padrões fortemente visuais.
Nota-se, inclusive, que os termos utilizados pela equipe permaneceram conforme indicativos visuais
comumente utilizados em design gráfico, quando “identidade visual” e “assinatura visual” são expressos para
designar o trabalho realizado. Os termos, utilizados pela equipe de designers nos projetos diariamente
desenvolvidos, são destacados de STRUNCK (2003:52) que faz uma interessante abordagem a respeito da
criação de identidades corporativas, mas privilegia a visão nos aspectos de percepção, afirmando que “este
sentido, o mais imediato, rico e independente do tipo de cultura que tenhamos, é indispensável a nossa
comunicação”.
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Desta forma, a metodologia utilizada para desenvolvimento deste projeto, baseou-se primeiramente numa
etapa de preparação da equipe para lidar com aspectos da comunicação não visual. A intenção foi buscar
conhecimento para interação junto ao público de deficientes visuais. Posteriormente seguiu-se com a
metodologia já utilizada pela equipe em outros projetos anteriormente realizados, sendo as etapas definidas
como: levantamento de dados; desenvolvimento de estudos; definição da identidade visual. Ressalta-se,
porém, que a abordagem de todas as etapas acabou por permear aspectos não-visuais, visto a necessidade de
aplicação dirigida ao público de deficientes visuais.
A primeira etapa do projeto, a interação com aspectos não visuais, foi conduzida sob a orientação de uma
professora com experiência junto ao público em questão. Através de uma oficina para apresentação da escrita
Braille, a equipe de design gráfico pôde entender como se dá a comunicação escrita junto aos cegos. Nesta
mesma oficina, a equipe fez uso de softwares utilizados por deficientes visuais, podendo vivenciar a
experiências táteis e sonoras.
Os principais questionamentos da equipe eram: Como se fazer entender sobre design gráfico para pessoas
cegas e como ter certeza de que este entendimento realmente estava ocorrendo? Os conceitos de semiótica e
percepção passaram a reorganizar as idéias da equipe. Segundo HEIDRICH e FLORES (2002) a Semiótica
estuda os efeitos do sentido. Ela investiga o significado em relação às diferentes culturas. O signo é cultural,
porque representa um determinado conceito e nunca aparece isolado, mas sempre dentro de um sistema de
signos, contextualizado. A percepção visual é semiotizada embora seja algo que ocorra automaticamente e
sem esforço, desde o momento em que abrimos os olhos e tomamos consciência dos objetos e que estes
passam a ter algum significado para nós.
Ao observarmos uma imagem, primeiramente, temos a percepção global, que visualiza o todo, mas destaca
os elementos pop-out . Posteriormente passamos à percepção analítica que é mais detalhada, dirigida pela
atenção que é intencional e cultural. Considera-se a primeira percepção, a mais global, que chama atenção
pelo todo. Destaca os elementos pop-out, que são os alvos que nos saltam aos olhos. Segundo TREISMAN
(1999:143), “os traços que permitem o pop-out na pesquisa visual são extraídos por módulos autônomos,
onde, cada um estabelece sua própria série de “cartas” topográficas codificando a disposição no espaço de
traços particulares cuja análise lhes retorna”. O elemento perturbador denominado por TREISMAN como
estímulos não alvo, também faz parte da percepção visual inicial dividindo a atenção do observador em
relação ao pop-out.
Foi constatado que os estudos sobre percepção e semiótica abrangem aspectos possíveis de serem analisados
por videntes. Como tornar a comunicação efetiva numa relação de designer-cliente se este é cego?
A partir deste primeiro estudo acerca da percepção e da linguagem visual para não-visuais, a equipe partiu
para um etapa de pesquisa, onde levantou-se dados para fundamentação de um trabalho permeado por
aspectos não-visuais. A leitura de artigos e textos abordando o tema foi a base para o início desta etapa.
Ainda, a realização de um levantamento de identidades visuais em instituições similares, permitiu uma visão
da área a ser abordada. Buscando maiores informações sobre processos de impressão e materiais específicos
para deficientes visuais, recorreu-se a reuniões junto à profissional responsável pelo atendimento pedagógico
aos deficientes visuais na Associação dos Deficientes Visuais de Novo Hamburgo. Estes encontros
permitiram a compilação e entendimento acerca de possibilidades técnicas para produção de material gráfico
dirigido ao público em questão.
Através das etapas anteriores, interação com aspectos não-visuais e levantamento de dados, a equipe pôde
iniciar os primeiros estudos para desenho do símbolo. Tendo como pressuposto tratar-se de um redesenho,
levou-se em consideração que a estrutura geral do símbolo seria mantida, porém aspectos formais seriam
revistos a fim de promover melhor leitura do desenho. Nesta etapa, identificou-se os principais problemas do
desenho até então utilizado pela instituição (Fig. 1), sendo eles: desestruturação, desproporção e
descontinuidade formal.
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A reformulação do desenho seguiu para a busca de solução que estruturasse a forma do ícone, a fim de que a
proporção e a continuidade formal fossem características presentes. O desenho do corpo e a posição da
bengala foram arranjados de maneira a permitir uma leitura mais continuada do símbolo (Fig. 2).
Para o logotipo (Fig. 3), buscou-se aspectos essencialmente de equilíbrio, dando-se destaque maior a
abreviatura “ADEVIS-NH”, nome pelo qual a associação é mais conhecida. A tipografia escolhida tem
aspectos de proporção em relação ao símbolo, sendo as letras de espessura similar à moldura do símbolo.
Fig. 3 - Logotipo
A junção entre símbolo e tipografia apresentou-se de maneira horizontal e vertical (Fig. 4), respeitando-se
um módulo geométrico para definir posicionamentos e espaçamentos. A preocupação em dividir o espaço de
forma geométrica, facilitaria a etapa seguinte do trabalho, quando a assinatura visual deveria apresentar-se
dirigida ao público de deficientes visuais.
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Destaca-se, ainda, que enquanto estruturava-se o desenho visual, paralelamente já se traçavam os esboços
referentes ao desenho em relevo (Fig. 5). A similaridade do desenho em relevo com o desenho visual deveria
refletir a identidade da assinatura. Com esta premissa, o estudo da assinatura em relevo contou com o apoio
da professora responsável pelo ensino do Braille na Associação. Foram necessárias diversas tentativas até se
chegar à aplicação ideal em relevo, observando fatores como tamanho, proporção e facilidade de leitura
pelos deficientes visuais. Segundo PIERON (2003) sobre a superfície cutânea total do corpo “somos levados
a admitir cerca de trezentos e cinqüenta mil sinais táteis locais distintos. Graças à presença de uns trinta
destes receptores táteis individualizados num centímetro quadrado da polpa dos dedos, a discriminação dos
pontos, cujo número e disposição caracterizam as letras no alfabeto Braille e asseguram a leitura tátil, torna-
se possível para cegos”.
Tanto a tipografia quanto a linha de moldura do símbolo foram adaptados para serem representados através
de uma fileira de pontos. Esta observação, informada pela professora de Braille, revela a melhor adaptação
dos deficientes visuais para identificar letras e desenhos expressos em linhas e formas mais simplificadas.
Linhas duplas apresentariam empecilhos de leitura, tal como a dificuldade de identificação da forma.
Fig. 5 – Imagem em pontos, compondo o desenho em relevo. Espaçamentos seguiram a proporção permitida pela
impressora Braille.
A última etapa metodológica consistiu das aplicações da assinatura em material gráfico (Fig. 6). A
necessidade de produzir material específico para cegos e com custo reduzido, dependeria de grande interação
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entre os designers, a Associação e uma gráfica. Esta troca de informações e serviços permitiria o andamento
das aplicações onde, cada um dos envolvidos, teria a participação numa parte do processo.
O material de expediente básico (cartões de visita, papel de carta, envelope e pasta) seguiu com a utilização
das cores institucionais. Dentre estes materiais, destaca-se o cartão de visita que receberia impressão sobre
papel apropriado para registro do Braille, respeitando a seguinte ordem de produção: na gráfica, o papel
receberia a impressão em tinta; ainda sem corte, a gráfica repassaria a impressão para associação que, em
impressora especial, adicionaria o Braille; os papéis já impressos em tinta e relevo retornariam à gráfica para
corte. Este esquema permitiu produção com base nos recursos disponíveis, além de dispensar a fabricação de
matriz para relevo, oportunizando maior facilidade para inclusão de informações Braille.
4 - Considerações Finais
Encontra-se em estudo, no momento, os demais materiais gráficos, tais como uma capa para apostila de
alfabetização Braille e capas para livros da biblioteca. Neste último, observa-se a importância de privilegiar a
possibilidade dos próprios deficientes visuais localizarem os livros na estante, abrindo espaço para inclusão e
independência dos mesmos.
O trabalho ainda não está finalizado, mas os resultados são otimistas, na medida que o próprio
desenvolvimento do projeto permitiu a interação dos designers com um aspecto pouco abordado no design
gráfico: a percepção não visual. Nota-se que a integração com o público em questão, os cegos, foi
fundamental para entender a comunicação por meio do tato, bem como permitiu que limitações técnicas
fossem sanadas através de um trabalho conjunto entre designers e profissionais acostumados a lidar com
deficiência visual.
A possibilidade de rever os conceitos de apresentação de projeto, privilegiando a comunicação pelo tato, foi
de fato o aspecto mais interessante deste trabalho. Pensando que, sob o ponto de vista do design gráfico
impresso, a percepção é, geralmente, fortemente atrelada a fatores visuais, este estudo contribuiu para uma
abordagem diferenciada, verificando-se que a comunicação impressa pode se dar de maneira mais completa,
à medida que os conceitos de design são perpassados para além do sentido da visão.
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Bibliografia
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HEIDRICH, Regina,
Doutora, Centro Universitário Feevale
BLUM, Arina,
Especialista, Centro Universitário Feevale
Este artigo relata a experiência de um projeto para redesenho da identidade visual de uma Associação de Deficientes
Visuais. Com o objetivo de fortalecer a identidade frente ao público vidente e, ainda, comunicá-la a deficientes visuais,
este projeto aborda a metodologia de criação para desenvolvimento de um trabalho embasado na inter-relação dos
sentidos de tato e visão no design impresso. A percepção sob o ponto de vista do design gráfico é, em geral, fortemente
atrelada a fatores visuais. Na grande maioria dos projetos de design impresso, o sentido da visão é explorado como
forma de comunicação, enquanto os sentidos de tato, olfato e audição praticamente não são abordados.
This paper tells the experience of a project for redesigns of the visual identity of one nonprofit organization enabling blind or
visually impaired people to achieve equality and access. With the objective to fortify the identity front to the people without
vision problem and, still, to communicate a people with visual impairments. This project approaches the methodology of
creation for development of a work based in the interrelation of the sense touch, and vision in design printed matter.
The perception in the point of view of graphical design is in general connected to the visual factors. In the great majority of
the projects of design printed matter, the direction of the vision is explored as communication form, while the senses like
touch, olfact and audition are not boarded.
1- Introdução
Este artigo relata a experiência de uma equipe de designers desenvolvendo um projeto gráfico para cegos.
Constata-se o desconhecimento, pelos integrantes da equipe, de aspectos ligados a deficiência visual e baixa
visão. Segundo a OMS-Organização Mundial de Saúde, cerca de 1% da população mundial apresenta algum
grau de deficiência visual. Mais de 90% encontram-se nos países em desenvolvimento. Nos países
desenvolvidos a população com deficiência visual é composta por cerca de 5% de crianças enquanto os
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(Microsoft Word - Redesenho da identidade visual de uma associa\347\3... http://74.125.77.132/search?q=cache:vAv4XeZ36tMJ:www.anpedesign.o...
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TRIBO
DE JAH
BRAZIL’S BEST
REGGAE BAND
PERFORMS
AT CLUB CINEMA
Representante no Brazil
Bem-vindo ao lançamento de Best City Events – nosso jornal
Veronica Silva
mensal bilíngüe, que leva até você o melhor em entretenimento,
cinema, eventos sociais e muito mais.
COVER STORY
Tribo De Jah brings “Brazilian Reggae” to South Florida
Tribo De Jah para o Sul da Flórida
A
Tribo de Jah trará sua marca
T
ribo de Jah will bring their unique
brand of “Brazilian Reggae” to fans exclusiva do “Reggae Brasileiro”
-
in South Florida this summer. aos fãs do sul da Flórida neste verão.
Presented by Nubia Rose Magazine, MW Apresentados pela Revista Nubia Rose,
Star Productions and Best City Events, this Estilo de Vida Brasileiro, MW Star
group will perform in English, Portuguese Productions e o Jornal Best City Events, este
and Spanish for a one night engagement at grupo se apresentará em inglês, português e
Club Cinema, 3251 N. Federal Highway, espanhol para um encontro de uma noite no
Pompano Beach on Friday, August 1 at 9 Club Cinema, 3251 N. Federal Highway,
p.m. Pompano Beach, na sexta-feira, dia 1º de
agosto, às 21 horas.
Tribo de Jah is a six-member band of
musicians who met at the School for the A Tribo de Jah é uma banda formada por
Blind in São Luís, capital of the state of seis músicos que se conheceram na Escola
Maranhão, in northern Brazil. para Cegos em São Luís, capital do estado
do Maranhão no norte do Brasil. Essa região
That region has been called the “Brazilian é chamada de “Jamaica Brasileira”. Uma
Jamaica.” Another unique feature of Tribo outra característica exclusiva da Tribo de
de Jah is that five of the six members of the Jah é que cinco dos seis membros são cegos
group are blind (one has only partial vision SHOW INFORMATION/ (um possui apenas visão parcial e os outros
while the other four are totally without sight). INFORMAÇAO DO SHOW quatro são totalmente cegos).
A Visão
Objectivos
1. Implementar um Programa para instruir o público sobre
a cegueira
Programa
1. Identificar e caracterizar os deficientes visuais segundo
as várias patologias.
Caracterização do Programa
Incidência e Prevalência
Referências estatísticas
Referências estatísticas
Caracterização segundo o grau de incapacidade
45000
40969
Fonte: INE – Censos 2001
40000
N = 59.125
35000
30000
25000
20000
15000
10000
4733 5183 4119 4121
5000
0
S/grau < 30% 30 - 59% 60 - 80% > 80%
atribuído
Referências estatísticas
Distribuição Nacional e Glaucoma
PAÍS NORTE %
Referências estatísticas
Distribuição - áreas geográficas - Lions Clubes
Clubes Lion Nº. D V Clubes Lion Nº. D V
Referências estatísticas
Patologias mais frequentes
Diabetes Hipertensão
Tracoma Glaucoma
Retinopatia Oncocercose
Referências estatísticas
Patologias mais frequentes em números
DIABETES 658.945
GLAUCOMA 72.519
CEGUEIRA 140.000
RETINOPATIA 78.403
HIPERTENSÃO 2.013.619
DEFIC. VISUAIS 163.515
ONCOCERCOSE 15.000.000
Fonte: INE – Censos 2001; Pesquisa Google
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Louis Braille
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Caracterização do Programa
Aprovação
Caracterização do Programa
Calendarização
Actividades
REALIZAÇÃO DE RASTREIOS
ANGARIAÇÃO DE FUNDOS
SENSIBILIZAÇÃO DA POPULAÇÃO
RASTREIOS
Rastreios
1. Realização de rastreios visuais, envolvendo a população e
com a colaboração de:
a) Escolas e Ópticas
b) Entidades ligadas à saúde, Município e outros
RECOLHA DE ÓCULOS
Recolha de Óculos
1. Contactar os serviços que têm actividades ligadas à visão:
a) Hospitais, Clínicas médicas, U.S.F e Centros de Saúde
b) Ópticas e afins
c) Associações ligadas à problemática da visão
ANGARIAÇÃO
DE
FUNDOS
Angariação de Fundos
1. Venda de materiais elaborados pelos deficientes visuais
4. Comunicação Social.
SENSIBILIZAÇÃO
DA
POPULAÇÃO
Sensibilização da população
1. Promoção de Reuniões, Simpósios e ou Workshops
• Problemática da visão
• Reinserção social
Sensibilização da população
7. Apoio aos Lares de 3ª. Idade que pela sua múltipla patologia associada
à diminuição da visão para elaboração de trabalhos de artesanato,
música, dança e passeios.
13 Centros de Reciclagem
7 – Estados Unidos;
1 – Austrália, Canadá, Itália, França, A. do Sul e Espanha
The American Foundation for the Blind is only four years old. It represents the best and most
enlightened thought on our subject that has been reached so far.
Picture yourself stumbling and groping at noonday as in the night; your work, your
independence, gone. In that dark world wouldn't you be glad if a friend took you by the hand
and said, "Come with me and I will teach you how to do some of the things you used to do
when you could see"?
It is the caring we want more than money. The gift without the sympathy and interest of the
giver is empty. If you care, if we can make the people of this great country care, the blind will
indeed triumph over blindness.
The opportunity I bring to you, Lions, is this: Will you not help me hasten the day when there
shall be no preventable blindness; no little deaf, blind child untaught; no blind man or woman
unaided? I appeal to you Lions, you who have your sight, your hearing, you who are strong
and brave and kind. Will you not constitute yourselves Knights of the Blind in this crusade
against darkness?
I thank you.
“Lions,
eu sou a vossa oportunidade”
“… os Lions são
os heróis de todos os dias”