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RESISTÊNCIA E REINVENÇÃO: O ESTATUTO DA ÉTICA EM DELEUZE

Jorge Luiz Viesenteiner1


1.Considerações iniciais

“Um dia o século será deleuzeano”: de modo bastante profético, assim Michel
Foucault se refere a propósito da envergadura que a filosofia de Gilles Deleuze ainda
receberia, na medida em que seu pensamento fosse gradativamente sendo maturado mundo
afora, inclusive no Brasil. Professor na Université Sorbonne Paris VIII – fundada no bairro
Vincennes após o maio de 1968 –, o pensamento de Deleuze (1925-1995) passou a exercer
uma profunda influência nas últimas décadas não apenas no âmbito da filosofia, mas
também na política, artes, cinema e psicanálise.
Numa entrevista publicada em setembro de 19882, Deleuze faz um auto-esboço
cronológico de sua trajetória intelectual que consiste em três períodos. O primeiro, grosso
modo, inscrito entre 1952-1970, inicia-se com livros de história da filosofia a partir de um
comentário que Deleuze faz de filósofos como D. Hume, Nietzsche, Kant, H. Bergson e
Espinosa. Embora comentários, os livros de história da filosofia não se limitam a ser apenas
meio de reproduzir o que pensou determinado autor.3 Antes disso, Deleuze direciona seus
comentários de modo que eles se convertem num programa preparatório de sua própria
filosofia.4 O segundo período é marcado decisivamente pelos dois volumes de “Capitalismo
e Esquizofrenia”, vale dizer, O Anti-Édipo (1972) – escrito logo após o fervor político do
maio de 68 – e Mil Platôs (1980) – uma continuação e finalização de algumas questões
iniciadas n’O Anti-Édipo –, ambos escritos em parceria com Félix Guattari. Ao longo dos
anos 80 Deleuze esboça seu terceiro e último momento intelectual registrado, segundo o
próprio Deleuze, sob a rubrica das reflexões sobre “pintura e cinema, de imagens
aparentes” (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 11). As reflexões sobre o estatuto da ética

1
Professor do depto. de filosofia da PUCPR e pesquisador da Universidade de Greifswald/Alemanha. É autor
de A Grande Política em Nietzsche. (Annablume Editora).
2
Publicada na revista Magazine Littéraire, a entrevista se chama “Signos e Acontecimentos”. In: ESCOBAR,
Carlos H (org.). Dossiê Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon editorial, 1991. p. 9-30.
3
Em O que é filosofia (1997, p. 74), Deleuze escreve: “A história da filosofia é comparável à arte do retrato.
Não se trata de ‘fazer parecido’, isto é, de repetir o que o filósofo disse, mas de produzir a semelhança,
desnudando ao mesmo tempo o plano de imanência que ele instaurou e os novos conceitos que criou”.
4
Dois textos marcam o fim da primeira fase: Diferença e Repetição (1968) e Lógica do sentido (1969).
se situam em torno dos textos do segundo período, com especial atenção ao texto de 1980:
Mil Platôs.
Segundo Deleuze (1997, p. 10), “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de
fabricar conceitos”. O exercício filosófico precisa lançar luz sobre as estruturas da cultura,
do mundo, o homem, a morte, etc., a fim de que se converta em práxis de resistência.
Quando Deleuze (1988a, p. 225) pergunta: “Que é um pensamento que não faz mal a
ninguém, nem aquele que pensa nem aos outros?”, na realidade enfatiza que um
pensamento precisa violentar, precisa se dirigir ao encontro de algo que force a reflexão e,
sobretudo, que se imponha como resistência.
Pensar, inclusive, também significa ser violentado por forças externas; o exercício
do pensamento não brota de um “Eu” metafísico e abstrato, mas do encontro com forças
que rompam as nossas cercas, que esvaziem nossos punhados de convicções ilusórias que
só têm valor na medida em que nos dão uma falsa sensação de segurança: “que violência se
deve exercer sobre o pensamento para que nos tornemos capazes de pensar, violência de um
movimento infinito que nos priva ao mesmo tempo do poder de dizer Eu?” (DELEUZE,
1997, p. 73). O pensamento, pois, ao ser exercício de fabricar conceitos, deve violentar e
sacudir as teias de aranha da estabilidade e quietude e, neste aspecto, ele se configura
também como capacidade de resistir.5
O texto Mil Platôs expressa muito bem essa práxis filosófica inventora de conceitos.
Na verdade, podemos nos referir a ele como a operacionalização de um projeto de filosofia
que consiste precisamente em criar novos conceitos, modos de vida e formas de resistência.
Trata-se de um livro que experimenta ao fabricar conceitos, especialmente porque Deleuze
o pensou, junto com F. Guattari, como livro que expressa resistência ou máquina de guerra
contra os espaços pré-fabricados: “Estão nos fabricando um espaço literário, bem como um
espaço judiciário, econômico, político, completamente reacionários, pré-fabricados e
massacrantes (...). A mídia desempenha nisso um papel essencial, mas não exclusivo. É
muito interessante. Como resistir a esse espaço literário que está se constituindo? Qual seria
o papel da filosofia nessa resistência a um terrível novo conformismo?” (DELEUZE, 1992,
p. 39).

5
Cf. Deleuze (In: ESCOBAR 1991, p. 10): “A filosofia não é comunicativa, nem contemplativa ou reflexiva:
ela é, por natureza, criadora ou mesmo revolucionária na medida em que não cessa de criar novos conceitos”.
Mil Platôs é uma cartografia, uma geografia do pensamento, do desejo, da política,
da ética e da linguagem, que pretende desvendar quais são esses espaços pré-fabricados, a
fim de resistir a eles.6 Cada um dos títulos do livro compõe platôs, um experimento ou
resistência que podem “ser lidos independentemente uns dos outros, exceto a conclusão,
que só deveria ser lida no final”. Um platô não é uma metáfora, mas sim “zonas de variação
contínua, ou como voltas onde em cada uma se vigia ou sobrevoa uma região, e se fazem
sinais uns aos outros” (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 16). Cada título ou platô
significa o traçado de um mapa de circunstâncias que possuem datas fictícias e ilustrações.
Como fala Deleuze (1992, p. 38), trata-se de “um livro ilustrado” que se interessa pelos
“modos de individuação”, ou seja, os processos de codificação do homem bem como as
produções de signos que vão compor os espaços pré-fabricados da cultura contemporânea,
que nos seqüestra e controla a todo instante. É possível entrar por qualquer lugar do livro,
como um rizoma, sem uma entrada ou saída específica, mas que todo lugar se soma para
decodificar as estruturas fixas e rígidas do homem e da cultura contemporânea.
Não por acaso os platôs (títulos) do livro são aleatórios e podem ser lidos
independentemente uns dos outros. Trata-se de um livro nômade sem lugar fixo e estável,
sem momento histórico definido e, por isso, não capturável. É comum seqüestrar o que é
estável, mas o aleatório e nômade escapa a todo instante dos aparelhos codificadores da
sociedade. Assim é Mil Platôs: não é constante, nem capturável, nem estável e, sobretudo,
não é um livro que não oferece riscos; ao contrário, ele violenta, rompe as cercas da falsa
segurança, força-nos a pensar e, sobretudo, a resistir para inventar novas possibilidades de
vida. Em Mil Platôs, Deleuze faz da própria escrita um processo de resistência e liberação,
o que ele chamou de traçar uma linha de fuga: “Escreve-se sempre para dar a vida, para
libertar a vida lá onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga. Para isto, é preciso
que a linguagem não seja um sistema homogêneo, mas um desequilíbrio, sempre
heterogêneo” (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 14s.). Para Deleuze, escrever é criar, e
criar é resistir para que se inventem novas formas de vida que escapam às codificações e
seqüestros.
6
Para Deleuze (1992, p. 47), na medida em que Mil Platôs é um livro que leva a termo um projeto filosófico
que fabrica conceitos, é preciso compreendê-lo também como um livro que não mais pretende dizer a essência
ou fundamento das coisas, como o foi a tradição filosófica. Deleuze supera esse modelo, uma vez que o
conceito está relacionado à circunstâncias e, portanto, tem interesse em construir uma geografia, um mapa ou
cartografia das mais variadas linhas, fluxos, signos e códigos que atuam ao mesmo tempo sobre o homem e a
cultura.
Investigar o estatuto da ética em Deleuze significa compreendê-la tal como essas
características do livro Mil Platôs, mas que nos interessam apenas duas questões principais
que, em resumo, podem ser apresentadas nos seguintes termos: a) ética é a decodificação
das linhas que nos atravessam e nos codificam a fim de sermos capazes de resistir a elas; e
b) na medida em que se resiste aos mais variados modos de produção de subjetividade, de
tipos codificados, essa resistência já é uma criação e, neste caso, a ética é também
resistência que reinventa novos modos de existência e novas formas de vida. Em suma, a
ética em Deleuze pode ser compreendida através de dois movimentos que implica em
resistência e reinvenção.

2. Ética e Rostidade: resistir ao Rosto para reinventar a vida


Tomemos o sétimo platô de Deleuze intitulado “Ano zero – rostidade”. Quando
Deleuze fabrica o conceito de Rosto quer se referir também ao que ele denomina de
processo de subjetivação. Trata-se de um gigantesco projeto que constrói signos, códigos,
territórios e que depois se encarrega de transferi-los e gravá-los nos homens, de modo que
aos poucos cada homem vai ganhando um Rosto. Logo de início, é importante dizer que a
produção social do Rosto não significa individualizar cada rosto concreto em particular, ou
seja, produzir o Rosto concreto de João, Maria, José, etc. Ao contrário, segundo Deleuze os
rostos concretos individuados se produzem e se transformam numa grande unidade comum,
construído através das codificações que a cultura produz, até desembocar no grande Rosto.
Assim, ao invés de construirmos um rosto próprio somos metidos e gravados em um Rosto
produzido culturalmente: “Introduzimo-nos em um rosto mais do que possuímos um”
(DELEUZE, 1996, p. 44). Em outras palavras, isso significa que se não formos capazes de
construirmos um projeto ou modo de existência próprio, a cultura sempre se encarregará de
nos vender uma forma pronta e, ao comprarmos, pagamos caro por isso.
Mas o que é um Rosto, afinal? Deleuze nos diz que é um “sistema muro-branco –
buraco negro”, um modelo que conjuga dois eixos: um de significância (o muro branco)
“sobre o qual inscreve seus signos e suas redundâncias”, e outro de subjetivação (o buraco
negro) “onde aloja sua consciência, sua paixão, suas redundâncias” (DELEUZE, 1996, p.
31). Todo sistema muro branco-buraco negro é produzido por “máquinas abstratas”
responsáveis pela construção do Rosto:
Os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de rostidade, que irá produzi-los ao mesmo
tempo que der ao significante seu muro branco, à subjetividade seu buraco negro. O sistema buraco
negro-muro branco não seria então já um rosto, seria a máquina abstrata que o produz, segundo as
combinações deformáveis de suas engrenagens. Não esperemos que a máquina abstrata se pareça
com o que ela produziu, com o que irá produzir (DELEUZE, 1996, p. 33).

A máquina abstrata não tem forma, embora seja ela que crie os mais variados
códigos e signos culturais, uma máquina de binarização social: branco/negro,
homem/mulher, adulto/criança, rico/pobre, europeu/latino americano, homem-útil-
consumidor/homem-desempregado. O engraçado é que a máquina abstrata mesma não tem
um rosto, e por isso Deleuze fala que a máquina de rostidade nunca vai se parecer com o
que ela produz. Ela está em toda parte ao mesmo tempo em que não podemos capturá-la. É
como se disséssemos que, atualmente, o inimigo não possui mais fisionomia. Se no século
XVIII quiséssemos fazer uma revolução, atacaríamos diretamente o inimigo, por exemplo,
o Rei. A cultura contemporânea possui máquinas produtoras de códigos mas que oculta o
nome dessa máquina produtora de normas, regras, signos, códigos, etc. Não por acaso
temos dificuldades em lutar contra algo, pois sequer conseguimos identificar quem é o
inimigo. O sistema não tem rosto, embora produza o Rosto.7
O mecanismo oculto que a máquina abstrata emprega para produzir Rosto (o
sistema muro branco-buraco negro) é um grande agenciamento de poder que opera mais ou
menos assim: ao mesmo tempo em que a cultura contemporânea necessita convencer que se
vive um momento de extrema liberalização, paradoxalmente, sentimo-nos reprimidos como
nunca antes. É como se disséssemos que para controlar e dominar melhor uma pessoa
precisamos antes falar que ela é livre. É uma máquina abstrata que opera sem ser vista e,
por isso, extremamente perigosa. Podemos nos referir ao Capital contemporâneo, por
exemplo, como uma grande máquina abstrata que está aliada às suas principais
engrenagens: as Corporações, com seu regime de signos, códigos, condutas, regras, enfim,
com a produção de seus lugares comuns ou territorializações, como fala Deleuze.
A máquina abstrata de rostidade é fabricante dos códigos (os significantes), e das
subjetivações (a formatação da consciência): “essa máquina é denominada máquina de
rostidade porque é produção social do rosto, porque opera uma rostificação de todo corpo,
de suas imediações e de seus objetos, uma paisagificação de todos os mundos e meios”.
7
Impossível deixar de mencionar dois textos de Deleuze em que ele abre melhor esse diálogo, através de uma
lúcida interpretação das sociedades de controle atuais: “Controle e Devir” e “Post-scriptum sobre as
sociedades de controle”, ambos publicados no Brasil no livro Conversações (1992).
(DELEUZE, 1996, p. 49). Segundo Deleuze, a subjetividade do homem é alfinetada e
introduzida no muro branco. Na medida em que a máquina abstrata produz os territórios – o
lugar comum dos signos, das codificações, das moralizações, etc. – ela também vai
alfinetando cada homem nesse grande regime de signos, dando a eles um grande Rosto
unitário. Podemos perceber, portanto, que a máquina abstrata (o capital e suas corporações)
opera por “identificação” do diferente, quer dizer, um processo que torna igual o diferente
ou fabrica a cópia ao invés do original, num imenso projeto de “mesmificação” que
consiste em nascer original para morrer cópia.
Temos nossa subjetividade produzida e compramos bem caras as codificações que
nos vendem. Mas qual é esse grande Rosto? Qual é esse grande muro branco de códigos
que a máquina abstrata produz para depois imprimir nossa subjetividade nele? Segundo
Deleuze (1996, p. 43) “é o próprio Homem branco, com suas grandes bochechas e o buraco
negro dos olhos. O rosto é o Cristo. O rosto é o europeu típico”. 8 Trata-se do típico homem
branco, europeu, cumpridor de suas funções sociais e deveres, além de produtivo e
consumidor. Essa máquina de rostificação vai julgar e escolher quais os Rostos que serão
ou não adequados, para depois se encarregar de rostificá-los:

Se o rosto é o Cristo, quer dizer o Homem branco médio qualquer, as primeiras desvianças, os
primeiros desvios padrão são raciais: o homem amarelo, o homem negro, homens de segunda ou
terceira categoria. Eles também serão inscritos no muro, distribuídos pelo buraco. Devem ser
cristianizados, isto é, rostificados. (...) O racismo procede por determinação das variações de
desvianças, em função do rosto Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez mais
excêntricas e retardadas os traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determinado lugar e
em determinadas condições, em certo gueto, ora para apagá-los no muro de jamais suporta a
alteridade. (...) do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só
existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem. (DELEUZE, 1996, p. 45)

Na nossa cultura contemporânea, como já dissemos antes, o Capital e seus


tentáculos, as Corporações, podem ser analisados como a grande máquina abstrata de
rostidade, capaz de transformar em culpados aqueles que na verdade são suas vítimas. Ele é
responsável por levar a cabo o processo de homogeneização de todos os homens,
imprimindo seus buracos negros no grande muro branco de significantes, com todo cortejo
de codificações e signos, confiscando cada pessoa para enfiá-la no grande Rosto. Virtual e
8
Não por acaso o título do texto é “Ano zero – rostidade”. Segundo Deleuze, a grande máquina de rostidade
começa no ano zero, com Cristo, através do imenso projeto civilizatório de cristianização do mundo que
construiu e penetrou em todas as estruturas culturais. Neste caso, podemos falar que o cristianismo rostifica
quando imprime a subjetividade dos diferentes no mesmo muro branco de seus códigos e signos. Em todo
caso, essa mesma máquina de rostidade opera também em várias estruturas sociais. Tome-se, p.ex., o caso do
racismo ou mesmo da produção social do “louco”.
invisível, o capital opera produzindo as territorializações necessárias para que todos sejam
comportadamente rostificados.
O mais interessante é que essa máquina produtora de códigos se encarrega de
sobrecodificar todo aquele que pretenda “fugir” do código ou do Rosto. Deleuze se refere a
esse processo como um mecanismo empregado pelos agenciamentos de poder despóticos
que re-territorializa tudo que pretende se desterritorializar, quer dizer, todos os desvios
padrões são imediatamente re-disciplinarizados: “Ora, são esses agenciamentos de poder,
essas formações despóticas ou autoritárias, que dão à nova semiótica os mesmo de seu
imperialismo, isto é, ao mesmo tempo os meios de esmagar os outros e de se proteger de
qualquer ameaça vinda de fora” (DELEUZE, 1996, p. 49. O grifo é nosso).
Vejamos um exemplo para entendermos como o capital sobrecodifica os desvios do
Rosto. Originalmente, quando a cultura hip-hop é importada para o Brasil, ela se pretendia
um movimento alternativo e desviante em relação aos agenciamentos de poder
estabelecidos. Para o capital, uma ameaça externa. Cria seus próprios códigos e signos,
linguagem e estilo de vida no interior dos guetos do país. Surge como suposta resistência
montada contra a máquina de produção do Rosto. Imediatamente, porém, o capital se
encarregou de sobrecodificar essa desviança que a cultura havia criado. É como se o capital
dissesse: “Isso mesmo! Eu não valho nada! Critiquem-me pois eu sou um monstro”. O que
ocorre depois é que essa máquina abstrata confisca a cultura hip-hop e a vende sob a forma
de um novo modo de vida. Cria uma grife, um modismo, recodifica a linguagem alternativa
em mais um objeto vendável, mais uma engrenagem da grande máquina. O inconformismo
e a indignação desviantes do jovem do gueto, p.ex., são comprados e sobrecodificados na
medida em que o capital vende a ele um estilo de vida, ou seja, dá a ele um Rosto. De
alguém desviante ou desterritorializado, o capital o converteu em alguém recodificado e
novamente territorializado, pois teve sua indignação seqüestrada depois de ser metido num
Rosto: a máquina abstrata do capital acabou de homogeneizar e sobrecodificar a ameaça
vinda de fora. Em suma: o capital produz capital mesmo daquilo que o pretendia
inicialmente destruí-lo; ele rostifica novamente o desviado. E o que é pior: por ser uma
máquina abstrata, tudo ocorre como se nada estivesse acontecendo. Como foi dito antes,
nunca fomos tão seqüestrados, controlados e rostificados, ao mesmo tempo em que,
paradoxalmente, também falamos muito de liberalização: “O déspota ou seus
representantes estão por toda parte. É o rosto visto de frente, visto por um sujeito que, ele
mesmo, não vê propriamente, mas, antes, é tragado pelos buracos negros” (DELEUZE,
1996, p. 51s.).
Essa máquina abstrata não atua mais sobre o corpo diretamente, mas sobre desejo.
Ela produz desejo e o vende sob a forma de modo de vida. Assim, se o preço do silêncio e
da adaptação custa preço baixo, comodidade ou um estilo de vida, a máquina abstrata se
encarrega de produzir um Rosto para fazer falar precisamente o silêncio. Pensemos na
clássica imagem de Che Guevara estampada nas camisetas: o símbolo por excelência do
capital transformado em código vendável, em signo do capital. Isso é paradoxal!!! E é
assim que a máquina abstrata do capital sobrecodifica as ameaças externas, imprimindo-as
novamente no grande Rosto. Deleuze fez esse prognóstico em Mil Platôs:

Os corpos serão disciplinados, a corporeidade será desfeita (...). Produzir-se-á uma única
substância de expressão. Construir-se-á o sistema muro branco-buraco negro, ou antes deslanchar-
se-á essa máquina abstrata que deve justamente permitir e garantir a onipotência do significante, bem
como a autonomia do sujeito. Vocês serão alfinetados no muro branco, cravados no buraco negro.
(...) A desterritorialização do corpo implica uma reterritorialização no rosto; a descodificação do
corpo implica uma sobrecodificação pelo rosto (DELEUZE, 1996, p. 49. O grifo é nosso).

A frustração, os medos e o convencimento de que a vida é dura são alguns dos


operadores gerenciados pelo capital. A máquina de rostidade antes de suprir desejos, precisa
produzir um exército de homens cansados do mundo e da vida, a fim de que ela possa
produzir mais desejo sobre essa matéria-prima frustrada e esgotada. Daí o porquê da
atuação dessa máquina abstrata sobre o desejo humano. Em Diálogos – publicado com
Claire Parnet em 1977 e, portanto, três anos antes de Mil Platôs – Deleuze escreve:

Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o
padre, os tomadores de alma, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e pesada. Os
poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar (...). Os doentes, tanto da
alma quanto do corpo, não nos largarão, vampiros, enquanto não nos tiverem comunicado sua
neurose e sua angústia, sua castração bem-amada, o ressentimento contra a vida, o imundo contágio.
(DELEUZE, 1998, p. 75)

É como se a matéria-prima sobre a qual atua a máquina de rostidade fossem


precisamente as frustrações e impotências. Deleuze volta a reafirmar essa hipótese em Mil
Platôs, dizendo que a defesa do capital e a administração de toda segurança “tem por
correlato toda uma microgestão de pequenos medos, toda uma insegurança molecular
permanente, a tal ponto que a fórmula dos ministérios do interior poderia ser: uma
macropolítica da sociedade para e por uma micropolítica da insegurança” (DELEUZE,
1996, p. 94).
A produção do Rosto, portanto, está relacionada com a máquina abstrata que, por
sua vez, relaciona-se com os agenciamentos de poder para produzirem socialmente esse
Rosto: “É por isso que não cessamos de considerar dois problemas exclusivamente: a
relação do rosto com a máquina abstrata que o produz; a relação do rosto com os
agenciamentos de poder que necessitam dessa produção social” (idem, p. 50).
Diante do imperialismo da máquina abstrata produtora do rosto, uma pergunta se
impõe: “Como sair do buraco negro? Como atravessar o muro? Como desfazer o rosto?”
(idem, p. 56). A questão é complexa e abre espaço para outra longa reflexão. Em todo caso,
o primeiro passo é compreender que não há possibilidades para conservadorismos: “Não
podemos voltar atrás”, diz Deleuze, visto que somente do interior do próprio Rosto
poderemos nos desrostificar: “É somente no interior do rosto, do fundo de seu buraco negro
e em seu muro branco que os traços de rostidade poderão ser liberados” (idem, p. 59).
Da mesma forma que Deleuze compreende Mil Platôs – um livro nômade, não
capturável e que põe em curso uma práxis que resiste e escapa às codificações –, assim
também Deleuze reconhece a tarefa do homem contemporâneo e, de modo geral, da ética:
resistir às codificações, ao Rosto. Segundo Deleuze, o próprio homem precisa se converter
em algo clandestino e nômade, pois resistir é precisamente se tornar imperceptível. 9 Ao
invés de se render aos gozos da submissão irrestrita, das territorializações e rostidades,
Deleuze insiste em perder o Rosto e escapar às codificações, ou melhor, desterritorializar-se
ou traçar uma linha de fuga. Mais ou menos como se disséssemos que traçar uma linha de
fuga ou se tornar imperceptível significa um certo ocultamento aos dispositivos
rostificadores e codificantes.
Fugir não é se acovardar e nem transportar um eu: Deleuze pensa numa “viagem
imóvel” própria dos nômades que são capazes de renunciar a todo lugar fixo, a qualquer
território ou porto seguro. Tornar-se imperceptível é renunciar a ser metido no muro dos
significantes e das codificações, no Rosto. Aliás, significa ser capaz de se desprender de si

9
É possível falar também em impessoalidade, ou ainda, “uma vida”. O número especial da Revista
Philosophie, publicada em 1995, traz o artigo de Deleuze intitulado A imanência: uma vida..., em que se fala
em substituir a “vida do indivíduo”, marcada pelas subjetivações e rostidades, por uma “vida impessoal,
embora singular, que produz um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior ou exterior (...): vida
de pura imanência, neutra, além do bem e do mal”. (DELEUZE, 1997, p. 17s.).
mesmo, ou seja, aprender a trair10: traidor de seu próprio reino, de si mesmo, das próprias
convicções, das verdades absolutas, dos desejos mesquinhos, pois quem possui é possuído.
O traidor é capaz de criar e, portanto, de resistir: “É que trair é difícil, é criar. É preciso
perder sua identidade, seu rosto. É preciso desaparecer, tornar-se desconhecido”11
(DELEUZE, 1998, p. 58).
Trair as rostidades, as codificações que nos rotulam, a subjetividade que nos
produzem. Trair a si próprio e ao território, pois quem permanece preso a um único e fixo
território não é o nômade e clandestino, mas o covarde, o reprodutor do Rosto e das
codificações. Por isso trair é resistir. Cada vez que traímos, escapamos de permanecer fixo
e idêntico; e cada vez que resistimos, tornamo-nos imperceptíveis e nômades. Um dos
estatutos da ética, pois, é precisamente resistir ao Rosto, ou escapar dos processos de
rostificação empenhados pela máquina abstrata. Em outros termos, para além de todos os
mecanismos que a máquina abstrata do capital emprega para nos rostificar, através dos seus
tentáculos e engrenagens que penetram em toda estrutura social codificando-a, isso não
deve ser um argumento contra nossa principal possibilidade: a resistência.12
Resistir ao Rosto não é uma fórmula que se esgota em si mesma, pois ela precisar
dar um passo e mais e caminhar para a reinvenção ou criação e novas formas de vida. A
resistência é o mecanismo para a reinvenção dos espaços pré-fabricados pelo Rosto, para a
criação de novas possibilidades de vida, para a reinvenção de novos modos de existência, e
nisso consiste o segundo estatuto da ética. Neste ponto Deleuze considera o homem como
obra de arte: a vida mesma é obra de arte que precisa ser reinventada a cada instante: “trata-
se de regras facultativas que produzem a existência como obra de arte, regras ao mesmo
tempo éticas e estéticas que constituem modos de existência ou estilos de vida”
(DELEUZE, 1992, p. 123). Deleuze vê na resistência e na criação de novos modos de
existência, mais do que uma simples reinvenção ética: ele também vê uma estética: “mas se

10
Segundo Deleuze (1998, p. 58), trair é traçar a linha de fuga, ou seja, tornar-se imperceptível e nômade para
perder o Rosto: “Perder o rosto, ultrapassar ou furar o muro, limá-lo pacientemente (...): a linha de fuga, não a
viagem nos mares do Sul, mas a aquisição de uma clandestinidade (...). Ser, enfim, desconhecido, como
poucas pessoas são, é isso trair”.
11
Cf. entrevista já citada In: ESCOBAR (1991, p. 17): “Criar não é comunicar mas resistir”.
12
No comentário que Deleuze faz a Michel Foucault, ele se refere ao homem como “foco de resistência”
(DELEUZE, 1988b, p. 113), desde que esse homem compreenda a si mesmo como alguém sempre em vias de
se fazer, in-acabado e, portanto, nômade.
há nisso toda uma ética, há também uma estética (...), a invenção de uma possibilidade de
vida, de um modo de existência” (DELEUZE, 1992, p. 126).
O estatuto da ética em Deleuze resume duas esferas: por um lado, resistir aos
espaços pré-fabricados, ao muro branco das codificações e ao buraco negro das
subjetividades: resistir ao Rosto; e, por outro lado, a resistência implica a criação de novas
formas de vida: a reinvenção da própria vida. Resistência e reinvenção, portanto, são as
linhas gerais com as quais podemos pensar o estatuto da ética em Deleuze.

Questões para debate


1. O que significa Rostidade?
2. Faça uma análise relacionando ética, máquinas abstratas e Rosto.
3. O que significa pensar a ética como resistência e reinvenção?

Filmografia
The Corporation. Dir.: Mark Achbar e Jennifer Abbott. EUA, 2003.
Surplus. Dir.: Erik Gandini. 2003.
El taxista ful. Dir.: Jordi Rediu e Norbert Llaràs. Barcelona, 2005.

Textos para discussão


Os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de rostidade, que irá produzi-los ao
mesmo tempo que der ao significante seu muro branco, à subjetividade seu buraco negro. O
sistema buraco negro-muro branco não seria então já um rosto, seria a máquina abstrata que
o produz, segundo as combinações deformáveis de suas engrenagens. Não esperemos que a
máquina abstrata se pareça com o que ela produziu, com o que irá produzir. (DELEUZE,
1996, p. 33).

Se o rosto é o Cristo, quer dizer o Homem branco médio qualquer, as primeiras desvianças,
os primeiros desvios padrão são raciais: o homem amarelo, o homem negro, homens de
segunda ou terceira categoria. Eles também serão inscritos no muro, distribuídos pelo
buraco. Devem ser cristianizados, isto é, rostificados. (...) O racismo procede por
determinação das variações de desvianças, em função do rosto Homem branco que pretende
integrar em ondas cada vez mais excêntricas e retardadas os traços que não são conformes,
ora para tolerá-los em determinado lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora
para apagá-los no muro de jamais suporta a alteridade. (...) do ponto de vista do racismo,
não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser
como nós, e cujo crime é não o serem (DELEUZE, 1996, p. 45).
Os corpos serão disciplinados, a corporeidade será desfeita (...). Produzir-se-á uma única
substância de expressão. Construir-se-á o sistema muro branco-buraco negro, ou antes
deslanchar-se-á essa máquina abstrata que deve justamente permitir e garantir a onipotência
do significante, bem como a autonomia do sujeito. Vocês serão alfinetados no muro branco,
cravados no buraco negro. (...) A desterritorialização do corpo implica uma
reterritorialização no rosto; a descodificação do corpo implica uma sobrecodificação pelo
rosto (DELEUZE, 1996, p. 49).

Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O
tirano, o padre, os tomadores de alma, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e
pesada. Os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar (...). Os
doentes, tanto da alma quanto do corpo, não nos largarão, vampiros, enquanto não nos
tiverem comunicado sua neurose e sua angústia, sua castração bem-amada, o ressentimento
contra a vida, o imundo contágio. (DELEUZE, 1998, p. 75).

É que trair é difícil, é criar. É preciso perder sua identidade, seu rosto. É preciso
desaparecer, tornar-se desconhecido (DELEUZE, 1998, p. 58).

Sugestões de leitura
DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988a.
_______. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988b.
_______. (c/ F. GUATTARI). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1996.
______. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.
DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.
______. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
______. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. In: Conversações. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1992.
______. Signos e Acontecimentos. In: ESCOBAR, Carlos H (org.). Dossiê Deleuze. Rio de
Janeiro: Hólon editorial, 1991. p. 9-30.
______. “A imanência: uma vida...”. In: VASCONCELLOS, J. Deleuze: imagens de um
filósofo da imanência. Londrina: EDUEL, 1997.

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