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“Um dia o século será deleuzeano”: de modo bastante profético, assim Michel
Foucault se refere a propósito da envergadura que a filosofia de Gilles Deleuze ainda
receberia, na medida em que seu pensamento fosse gradativamente sendo maturado mundo
afora, inclusive no Brasil. Professor na Université Sorbonne Paris VIII – fundada no bairro
Vincennes após o maio de 1968 –, o pensamento de Deleuze (1925-1995) passou a exercer
uma profunda influência nas últimas décadas não apenas no âmbito da filosofia, mas
também na política, artes, cinema e psicanálise.
Numa entrevista publicada em setembro de 19882, Deleuze faz um auto-esboço
cronológico de sua trajetória intelectual que consiste em três períodos. O primeiro, grosso
modo, inscrito entre 1952-1970, inicia-se com livros de história da filosofia a partir de um
comentário que Deleuze faz de filósofos como D. Hume, Nietzsche, Kant, H. Bergson e
Espinosa. Embora comentários, os livros de história da filosofia não se limitam a ser apenas
meio de reproduzir o que pensou determinado autor.3 Antes disso, Deleuze direciona seus
comentários de modo que eles se convertem num programa preparatório de sua própria
filosofia.4 O segundo período é marcado decisivamente pelos dois volumes de “Capitalismo
e Esquizofrenia”, vale dizer, O Anti-Édipo (1972) – escrito logo após o fervor político do
maio de 68 – e Mil Platôs (1980) – uma continuação e finalização de algumas questões
iniciadas n’O Anti-Édipo –, ambos escritos em parceria com Félix Guattari. Ao longo dos
anos 80 Deleuze esboça seu terceiro e último momento intelectual registrado, segundo o
próprio Deleuze, sob a rubrica das reflexões sobre “pintura e cinema, de imagens
aparentes” (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 11). As reflexões sobre o estatuto da ética
1
Professor do depto. de filosofia da PUCPR e pesquisador da Universidade de Greifswald/Alemanha. É autor
de A Grande Política em Nietzsche. (Annablume Editora).
2
Publicada na revista Magazine Littéraire, a entrevista se chama “Signos e Acontecimentos”. In: ESCOBAR,
Carlos H (org.). Dossiê Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon editorial, 1991. p. 9-30.
3
Em O que é filosofia (1997, p. 74), Deleuze escreve: “A história da filosofia é comparável à arte do retrato.
Não se trata de ‘fazer parecido’, isto é, de repetir o que o filósofo disse, mas de produzir a semelhança,
desnudando ao mesmo tempo o plano de imanência que ele instaurou e os novos conceitos que criou”.
4
Dois textos marcam o fim da primeira fase: Diferença e Repetição (1968) e Lógica do sentido (1969).
se situam em torno dos textos do segundo período, com especial atenção ao texto de 1980:
Mil Platôs.
Segundo Deleuze (1997, p. 10), “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de
fabricar conceitos”. O exercício filosófico precisa lançar luz sobre as estruturas da cultura,
do mundo, o homem, a morte, etc., a fim de que se converta em práxis de resistência.
Quando Deleuze (1988a, p. 225) pergunta: “Que é um pensamento que não faz mal a
ninguém, nem aquele que pensa nem aos outros?”, na realidade enfatiza que um
pensamento precisa violentar, precisa se dirigir ao encontro de algo que force a reflexão e,
sobretudo, que se imponha como resistência.
Pensar, inclusive, também significa ser violentado por forças externas; o exercício
do pensamento não brota de um “Eu” metafísico e abstrato, mas do encontro com forças
que rompam as nossas cercas, que esvaziem nossos punhados de convicções ilusórias que
só têm valor na medida em que nos dão uma falsa sensação de segurança: “que violência se
deve exercer sobre o pensamento para que nos tornemos capazes de pensar, violência de um
movimento infinito que nos priva ao mesmo tempo do poder de dizer Eu?” (DELEUZE,
1997, p. 73). O pensamento, pois, ao ser exercício de fabricar conceitos, deve violentar e
sacudir as teias de aranha da estabilidade e quietude e, neste aspecto, ele se configura
também como capacidade de resistir.5
O texto Mil Platôs expressa muito bem essa práxis filosófica inventora de conceitos.
Na verdade, podemos nos referir a ele como a operacionalização de um projeto de filosofia
que consiste precisamente em criar novos conceitos, modos de vida e formas de resistência.
Trata-se de um livro que experimenta ao fabricar conceitos, especialmente porque Deleuze
o pensou, junto com F. Guattari, como livro que expressa resistência ou máquina de guerra
contra os espaços pré-fabricados: “Estão nos fabricando um espaço literário, bem como um
espaço judiciário, econômico, político, completamente reacionários, pré-fabricados e
massacrantes (...). A mídia desempenha nisso um papel essencial, mas não exclusivo. É
muito interessante. Como resistir a esse espaço literário que está se constituindo? Qual seria
o papel da filosofia nessa resistência a um terrível novo conformismo?” (DELEUZE, 1992,
p. 39).
5
Cf. Deleuze (In: ESCOBAR 1991, p. 10): “A filosofia não é comunicativa, nem contemplativa ou reflexiva:
ela é, por natureza, criadora ou mesmo revolucionária na medida em que não cessa de criar novos conceitos”.
Mil Platôs é uma cartografia, uma geografia do pensamento, do desejo, da política,
da ética e da linguagem, que pretende desvendar quais são esses espaços pré-fabricados, a
fim de resistir a eles.6 Cada um dos títulos do livro compõe platôs, um experimento ou
resistência que podem “ser lidos independentemente uns dos outros, exceto a conclusão,
que só deveria ser lida no final”. Um platô não é uma metáfora, mas sim “zonas de variação
contínua, ou como voltas onde em cada uma se vigia ou sobrevoa uma região, e se fazem
sinais uns aos outros” (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 16). Cada título ou platô
significa o traçado de um mapa de circunstâncias que possuem datas fictícias e ilustrações.
Como fala Deleuze (1992, p. 38), trata-se de “um livro ilustrado” que se interessa pelos
“modos de individuação”, ou seja, os processos de codificação do homem bem como as
produções de signos que vão compor os espaços pré-fabricados da cultura contemporânea,
que nos seqüestra e controla a todo instante. É possível entrar por qualquer lugar do livro,
como um rizoma, sem uma entrada ou saída específica, mas que todo lugar se soma para
decodificar as estruturas fixas e rígidas do homem e da cultura contemporânea.
Não por acaso os platôs (títulos) do livro são aleatórios e podem ser lidos
independentemente uns dos outros. Trata-se de um livro nômade sem lugar fixo e estável,
sem momento histórico definido e, por isso, não capturável. É comum seqüestrar o que é
estável, mas o aleatório e nômade escapa a todo instante dos aparelhos codificadores da
sociedade. Assim é Mil Platôs: não é constante, nem capturável, nem estável e, sobretudo,
não é um livro que não oferece riscos; ao contrário, ele violenta, rompe as cercas da falsa
segurança, força-nos a pensar e, sobretudo, a resistir para inventar novas possibilidades de
vida. Em Mil Platôs, Deleuze faz da própria escrita um processo de resistência e liberação,
o que ele chamou de traçar uma linha de fuga: “Escreve-se sempre para dar a vida, para
libertar a vida lá onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga. Para isto, é preciso
que a linguagem não seja um sistema homogêneo, mas um desequilíbrio, sempre
heterogêneo” (DELEUZE, In: ESCOBAR, 1991, p. 14s.). Para Deleuze, escrever é criar, e
criar é resistir para que se inventem novas formas de vida que escapam às codificações e
seqüestros.
6
Para Deleuze (1992, p. 47), na medida em que Mil Platôs é um livro que leva a termo um projeto filosófico
que fabrica conceitos, é preciso compreendê-lo também como um livro que não mais pretende dizer a essência
ou fundamento das coisas, como o foi a tradição filosófica. Deleuze supera esse modelo, uma vez que o
conceito está relacionado à circunstâncias e, portanto, tem interesse em construir uma geografia, um mapa ou
cartografia das mais variadas linhas, fluxos, signos e códigos que atuam ao mesmo tempo sobre o homem e a
cultura.
Investigar o estatuto da ética em Deleuze significa compreendê-la tal como essas
características do livro Mil Platôs, mas que nos interessam apenas duas questões principais
que, em resumo, podem ser apresentadas nos seguintes termos: a) ética é a decodificação
das linhas que nos atravessam e nos codificam a fim de sermos capazes de resistir a elas; e
b) na medida em que se resiste aos mais variados modos de produção de subjetividade, de
tipos codificados, essa resistência já é uma criação e, neste caso, a ética é também
resistência que reinventa novos modos de existência e novas formas de vida. Em suma, a
ética em Deleuze pode ser compreendida através de dois movimentos que implica em
resistência e reinvenção.
A máquina abstrata não tem forma, embora seja ela que crie os mais variados
códigos e signos culturais, uma máquina de binarização social: branco/negro,
homem/mulher, adulto/criança, rico/pobre, europeu/latino americano, homem-útil-
consumidor/homem-desempregado. O engraçado é que a máquina abstrata mesma não tem
um rosto, e por isso Deleuze fala que a máquina de rostidade nunca vai se parecer com o
que ela produz. Ela está em toda parte ao mesmo tempo em que não podemos capturá-la. É
como se disséssemos que, atualmente, o inimigo não possui mais fisionomia. Se no século
XVIII quiséssemos fazer uma revolução, atacaríamos diretamente o inimigo, por exemplo,
o Rei. A cultura contemporânea possui máquinas produtoras de códigos mas que oculta o
nome dessa máquina produtora de normas, regras, signos, códigos, etc. Não por acaso
temos dificuldades em lutar contra algo, pois sequer conseguimos identificar quem é o
inimigo. O sistema não tem rosto, embora produza o Rosto.7
O mecanismo oculto que a máquina abstrata emprega para produzir Rosto (o
sistema muro branco-buraco negro) é um grande agenciamento de poder que opera mais ou
menos assim: ao mesmo tempo em que a cultura contemporânea necessita convencer que se
vive um momento de extrema liberalização, paradoxalmente, sentimo-nos reprimidos como
nunca antes. É como se disséssemos que para controlar e dominar melhor uma pessoa
precisamos antes falar que ela é livre. É uma máquina abstrata que opera sem ser vista e,
por isso, extremamente perigosa. Podemos nos referir ao Capital contemporâneo, por
exemplo, como uma grande máquina abstrata que está aliada às suas principais
engrenagens: as Corporações, com seu regime de signos, códigos, condutas, regras, enfim,
com a produção de seus lugares comuns ou territorializações, como fala Deleuze.
A máquina abstrata de rostidade é fabricante dos códigos (os significantes), e das
subjetivações (a formatação da consciência): “essa máquina é denominada máquina de
rostidade porque é produção social do rosto, porque opera uma rostificação de todo corpo,
de suas imediações e de seus objetos, uma paisagificação de todos os mundos e meios”.
7
Impossível deixar de mencionar dois textos de Deleuze em que ele abre melhor esse diálogo, através de uma
lúcida interpretação das sociedades de controle atuais: “Controle e Devir” e “Post-scriptum sobre as
sociedades de controle”, ambos publicados no Brasil no livro Conversações (1992).
(DELEUZE, 1996, p. 49). Segundo Deleuze, a subjetividade do homem é alfinetada e
introduzida no muro branco. Na medida em que a máquina abstrata produz os territórios – o
lugar comum dos signos, das codificações, das moralizações, etc. – ela também vai
alfinetando cada homem nesse grande regime de signos, dando a eles um grande Rosto
unitário. Podemos perceber, portanto, que a máquina abstrata (o capital e suas corporações)
opera por “identificação” do diferente, quer dizer, um processo que torna igual o diferente
ou fabrica a cópia ao invés do original, num imenso projeto de “mesmificação” que
consiste em nascer original para morrer cópia.
Temos nossa subjetividade produzida e compramos bem caras as codificações que
nos vendem. Mas qual é esse grande Rosto? Qual é esse grande muro branco de códigos
que a máquina abstrata produz para depois imprimir nossa subjetividade nele? Segundo
Deleuze (1996, p. 43) “é o próprio Homem branco, com suas grandes bochechas e o buraco
negro dos olhos. O rosto é o Cristo. O rosto é o europeu típico”. 8 Trata-se do típico homem
branco, europeu, cumpridor de suas funções sociais e deveres, além de produtivo e
consumidor. Essa máquina de rostificação vai julgar e escolher quais os Rostos que serão
ou não adequados, para depois se encarregar de rostificá-los:
Se o rosto é o Cristo, quer dizer o Homem branco médio qualquer, as primeiras desvianças, os
primeiros desvios padrão são raciais: o homem amarelo, o homem negro, homens de segunda ou
terceira categoria. Eles também serão inscritos no muro, distribuídos pelo buraco. Devem ser
cristianizados, isto é, rostificados. (...) O racismo procede por determinação das variações de
desvianças, em função do rosto Homem branco que pretende integrar em ondas cada vez mais
excêntricas e retardadas os traços que não são conformes, ora para tolerá-los em determinado lugar e
em determinadas condições, em certo gueto, ora para apagá-los no muro de jamais suporta a
alteridade. (...) do ponto de vista do racismo, não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só
existem pessoas que deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem. (DELEUZE, 1996, p. 45)
Os corpos serão disciplinados, a corporeidade será desfeita (...). Produzir-se-á uma única
substância de expressão. Construir-se-á o sistema muro branco-buraco negro, ou antes deslanchar-
se-á essa máquina abstrata que deve justamente permitir e garantir a onipotência do significante, bem
como a autonomia do sujeito. Vocês serão alfinetados no muro branco, cravados no buraco negro.
(...) A desterritorialização do corpo implica uma reterritorialização no rosto; a descodificação do
corpo implica uma sobrecodificação pelo rosto (DELEUZE, 1996, p. 49. O grifo é nosso).
Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o
padre, os tomadores de alma, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e pesada. Os
poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar (...). Os doentes, tanto da
alma quanto do corpo, não nos largarão, vampiros, enquanto não nos tiverem comunicado sua
neurose e sua angústia, sua castração bem-amada, o ressentimento contra a vida, o imundo contágio.
(DELEUZE, 1998, p. 75)
9
É possível falar também em impessoalidade, ou ainda, “uma vida”. O número especial da Revista
Philosophie, publicada em 1995, traz o artigo de Deleuze intitulado A imanência: uma vida..., em que se fala
em substituir a “vida do indivíduo”, marcada pelas subjetivações e rostidades, por uma “vida impessoal,
embora singular, que produz um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior ou exterior (...): vida
de pura imanência, neutra, além do bem e do mal”. (DELEUZE, 1997, p. 17s.).
mesmo, ou seja, aprender a trair10: traidor de seu próprio reino, de si mesmo, das próprias
convicções, das verdades absolutas, dos desejos mesquinhos, pois quem possui é possuído.
O traidor é capaz de criar e, portanto, de resistir: “É que trair é difícil, é criar. É preciso
perder sua identidade, seu rosto. É preciso desaparecer, tornar-se desconhecido”11
(DELEUZE, 1998, p. 58).
Trair as rostidades, as codificações que nos rotulam, a subjetividade que nos
produzem. Trair a si próprio e ao território, pois quem permanece preso a um único e fixo
território não é o nômade e clandestino, mas o covarde, o reprodutor do Rosto e das
codificações. Por isso trair é resistir. Cada vez que traímos, escapamos de permanecer fixo
e idêntico; e cada vez que resistimos, tornamo-nos imperceptíveis e nômades. Um dos
estatutos da ética, pois, é precisamente resistir ao Rosto, ou escapar dos processos de
rostificação empenhados pela máquina abstrata. Em outros termos, para além de todos os
mecanismos que a máquina abstrata do capital emprega para nos rostificar, através dos seus
tentáculos e engrenagens que penetram em toda estrutura social codificando-a, isso não
deve ser um argumento contra nossa principal possibilidade: a resistência.12
Resistir ao Rosto não é uma fórmula que se esgota em si mesma, pois ela precisar
dar um passo e mais e caminhar para a reinvenção ou criação e novas formas de vida. A
resistência é o mecanismo para a reinvenção dos espaços pré-fabricados pelo Rosto, para a
criação de novas possibilidades de vida, para a reinvenção de novos modos de existência, e
nisso consiste o segundo estatuto da ética. Neste ponto Deleuze considera o homem como
obra de arte: a vida mesma é obra de arte que precisa ser reinventada a cada instante: “trata-
se de regras facultativas que produzem a existência como obra de arte, regras ao mesmo
tempo éticas e estéticas que constituem modos de existência ou estilos de vida”
(DELEUZE, 1992, p. 123). Deleuze vê na resistência e na criação de novos modos de
existência, mais do que uma simples reinvenção ética: ele também vê uma estética: “mas se
10
Segundo Deleuze (1998, p. 58), trair é traçar a linha de fuga, ou seja, tornar-se imperceptível e nômade para
perder o Rosto: “Perder o rosto, ultrapassar ou furar o muro, limá-lo pacientemente (...): a linha de fuga, não a
viagem nos mares do Sul, mas a aquisição de uma clandestinidade (...). Ser, enfim, desconhecido, como
poucas pessoas são, é isso trair”.
11
Cf. entrevista já citada In: ESCOBAR (1991, p. 17): “Criar não é comunicar mas resistir”.
12
No comentário que Deleuze faz a Michel Foucault, ele se refere ao homem como “foco de resistência”
(DELEUZE, 1988b, p. 113), desde que esse homem compreenda a si mesmo como alguém sempre em vias de
se fazer, in-acabado e, portanto, nômade.
há nisso toda uma ética, há também uma estética (...), a invenção de uma possibilidade de
vida, de um modo de existência” (DELEUZE, 1992, p. 126).
O estatuto da ética em Deleuze resume duas esferas: por um lado, resistir aos
espaços pré-fabricados, ao muro branco das codificações e ao buraco negro das
subjetividades: resistir ao Rosto; e, por outro lado, a resistência implica a criação de novas
formas de vida: a reinvenção da própria vida. Resistência e reinvenção, portanto, são as
linhas gerais com as quais podemos pensar o estatuto da ética em Deleuze.
Filmografia
The Corporation. Dir.: Mark Achbar e Jennifer Abbott. EUA, 2003.
Surplus. Dir.: Erik Gandini. 2003.
El taxista ful. Dir.: Jordi Rediu e Norbert Llaràs. Barcelona, 2005.
Se o rosto é o Cristo, quer dizer o Homem branco médio qualquer, as primeiras desvianças,
os primeiros desvios padrão são raciais: o homem amarelo, o homem negro, homens de
segunda ou terceira categoria. Eles também serão inscritos no muro, distribuídos pelo
buraco. Devem ser cristianizados, isto é, rostificados. (...) O racismo procede por
determinação das variações de desvianças, em função do rosto Homem branco que pretende
integrar em ondas cada vez mais excêntricas e retardadas os traços que não são conformes,
ora para tolerá-los em determinado lugar e em determinadas condições, em certo gueto, ora
para apagá-los no muro de jamais suporta a alteridade. (...) do ponto de vista do racismo,
não existe exterior, não existem as pessoas de fora. Só existem pessoas que deveriam ser
como nós, e cujo crime é não o serem (DELEUZE, 1996, p. 45).
Os corpos serão disciplinados, a corporeidade será desfeita (...). Produzir-se-á uma única
substância de expressão. Construir-se-á o sistema muro branco-buraco negro, ou antes
deslanchar-se-á essa máquina abstrata que deve justamente permitir e garantir a onipotência
do significante, bem como a autonomia do sujeito. Vocês serão alfinetados no muro branco,
cravados no buraco negro. (...) A desterritorialização do corpo implica uma
reterritorialização no rosto; a descodificação do corpo implica uma sobrecodificação pelo
rosto (DELEUZE, 1996, p. 49).
Os poderes estabelecidos têm necessidade de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O
tirano, o padre, os tomadores de alma, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e
pesada. Os poderes têm menos necessidade de nos reprimir do que de nos angustiar (...). Os
doentes, tanto da alma quanto do corpo, não nos largarão, vampiros, enquanto não nos
tiverem comunicado sua neurose e sua angústia, sua castração bem-amada, o ressentimento
contra a vida, o imundo contágio. (DELEUZE, 1998, p. 75).
É que trair é difícil, é criar. É preciso perder sua identidade, seu rosto. É preciso
desaparecer, tornar-se desconhecido (DELEUZE, 1998, p. 58).
Sugestões de leitura
DELEUZE, G. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988a.
_______. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988b.
_______. (c/ F. GUATTARI). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1996.
______. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.
DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998.
______. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
______. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. In: Conversações. Rio de
Janeiro: Ed. 34, 1992.
______. Signos e Acontecimentos. In: ESCOBAR, Carlos H (org.). Dossiê Deleuze. Rio de
Janeiro: Hólon editorial, 1991. p. 9-30.
______. “A imanência: uma vida...”. In: VASCONCELLOS, J. Deleuze: imagens de um
filósofo da imanência. Londrina: EDUEL, 1997.