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Entretanto, este modelo começou a ser criticado por pesquisas mais recentes,
habitantes da cidade de São Paulo no início do século XIX, demonstrou que uma parte
1
Oliveira Vianna, Populações meridionais: populações rurais do centro sul; Gilberto Freyre, Casa-
Grande & Senzala e Sobrados e Mucambos; Antonio Candido, The Brazilian Family.
2
Conferir Eni de Mesquita Samara. Patriarcalismo, Família e Poder na Sociedade brasileira (séculos
XVI-XIX) p. 11-16.
3
SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo, século XIX. Além das
obras de Samara, os trabalhos de Iraci Del Nero da Costa e de Maria Luiza Marcílio tiveram destacado
papel na crítica do modelo patriarcal tradicional.
2
significativa dos domicílios locais eram bem menos complexos do que se pensava: “Em
resumo, percebemos que as famílias eram em sua maioria nucleares, com poucos filhos,
familiar único. Corrêa defende que a família patriarcal pode ter existido de fato, mas ela
não existiu sozinha e nem foi o modelo preponderante da família brasileira no passado 7 .
4
Conferir Eni de Mesquita Samara. Patriarcalismo, Família e Poder na Sociedade brasileira (séculos
XVI-XIX) p.23.
5
“A história das formas de organização familiar no Brasil tem-se contentado em ser a história de um
determinado tipo de organização familiar e doméstica – a família patriarcal –, um tipo fixo onde os
personagens, uma vez definidos, apenas se substituem no decorrer das gerações, nada ameaçando sua
hegemonia, e um tronco de onde brotam todas as outras relações sociais” em Mariza Corrêa, Repensando
a família patriarcal brasileira, p. 13
6
Mariza Corrêa, Repensando a família patriarcal brasileira, p. 17.
7
“A ‘família patriarcal’ pode ter existido, e seu papel ter sido extremamente importante, apenas não
existiu sozinha, nem comandou do alto da varanda da casa grande o processo total de formação da
sociedade brasileira” e continua “O conceito de ‘família patriarcal’, como tem sido utilizado até agora,
achata as diferenças, comprimindo-as até caberem todas num mesmo molde que é então utilizado como
ponto central de referência quando se fala de família no Brasil” em Mariza Corrêa, Repensando a
família patriarcal brasileira, p. 25.
3
numa sociedade onde apenas uma minoria das famílias realmente se organizava nesses
moldes?
patriarcal não seria um modelo válido para todo o Brasil. Ao contrário, seria um modelo
regional típico da sociedade do açúcar seicentista. Logo, o erro de autores como Vianna,
Freyre e Candido foi desdobrar essa realidade específica para a colônia como um todo.
8
“The beginning of the revision of the great myths and archetypes of Brazilian society in the 1970s laid
the groundwork for greater pluralism in the studies undertaken in the 1980s. These studies dealt with
gender roles, marriage, cohabitation, sexuality, families in the despossessed sectors, and the process of
transferring fortunes” em Eni de Mesquita Samara e Dora Isabel Costa Paiva, Family, Patriarchalism,
and social change in Brazil, p. 215.
9
José Flávio Motta deixa bem claro essa identificação de família patriarcal com família extensa: “(...) na
medida em que se identificou a família patriarcal com a família extensa, isto é, com as estruturas
domiciliares mais complexas, verificou-se que, em muitos casos, a família patriarcal teve de fato pouca
expressão” em Demografia histórica no Brasil, p. 477-478.
4
que patriarcalismo não é sinônimo de família extensa e que autores como Gilberto
que ele chamou de refutações indiretas. Como a maior parte dos estudos demográficos
analisam a região centro-sul (especialmente São Paulo) no final do século XVIII e XIX,
e Freyre privilegiou em suas análises o nordeste, não é possível um confronto direto dos
que esses trabalhos tendem a identificar família patriarcal com domicílio extenso,
10
Ronaldo Vainfas. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil Colonial; Sheila
de Castro Faria. História da Família e Demografia Histórica; B. J. Barickman. E se a casa-grande não
fosse tão grande? Uma freguesia açucareira do recôncavo baiano em 1835.
11
Ronaldo Vainfas. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil Colonial. p. 110.
(grifos nossos). Esta ressalva é importante, contudo, nem todas as pesquisas que criticaram o modelo de
família extensa negaram a importância das relações familiares na constituição das estruturas de poder.
Neste sentido, Eni de Mesquita Samara é bastante clara quando diz que “No plano social mais amplo,
laços de solidariedade, parentesco e trabalho redundavam em dependência mútua entre os indivíduos e as
famílias locais. Assim, articulação de poder também se insere no plano das relações familiares, se
pensarmos que os grupos sócio-econômicos definiam estratégias para a sua sobrevivência” em Eni de
Mesquita Samara. Patriarcalismo, Família e Poder na Sociedade brasileira (séculos XVI-XIX), p.31.
12
“No entanto, apesar de suas valiosas contribuições, a literatura revisionista tem pelo menos um ponto
fraco: quase todos os estudos baseados em censos nominativos focalizam São Paulo e Minas Gerais. (...)
Como resultado, as pesquisas revisionistas podem, no máximo, refutar de modo indireto a visão
tradicional da casa-grande patriarcal que se associa a Freyre” em B. J. Barickman. E se a casa-grande
não fosse tão grande? Uma freguesia açucareira do recôncavo baiano em 1835, p. 83-84.
5
com a presença de noras, genros, netos, filhos casados, sobrinhos e outros parentes
poder pátrio, à autoridade dada aos pais e aos maridos, como pais e maridos, sobre
Nossa idéia de realizar uma releitura dos “clássicos” nesse trabalho segue essa
trabalhos que lançaram as bases do referido conceito. Assim, tentaremos aqui retomar
tais obras buscando entender de que modo os três autores – Vianna, Freyre e Candido –
Nesse sentido, são duas as questões centrais de nosso trabalho: o que significa
Raízes do Brasil e Casa Grande & Senzala – marcando a produção intelectual da época.
13
B. J. Barickman. E se a casa-grande não fosse tão grande? Uma freguesia açucareira do recôncavo
baiano em 1835, p. 120-121.
6
Como aponta Lucia Lippi Oliveira, a reflexão de Vianna foi fortemente marcada
por seu tempo, sendo este autor o elo de ligação entre a chamada geração de 1870 e o
pensamento nacionalista brasileiro pós Primeira Guerra Mundial 14 . Sua obra, assim
Estado Novo 16 , Oliveira Vianna foi praticamente esquecido pela tradição acadêmica por
muitas décadas. Foi apenas a partir de 1980 que seus trabalhos começaram a ser
revisitados e relidos.
Entretanto, mesmo com essa acolhida crítica bastante desfavorável, sua obra
sua visão política. A lista é grande: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Nestor
Nesse sentido, parece-nos ideal começar o percurso desse trabalho com a leitura
--- x ---
ressaltar quanto somos distintos dos outros povos, principalmente dos grandes povos
europeus, pela história, pela estrutura, pela formação particular e original” 18 . Essa
caracterização, entretanto, não pode ser homogênea. O autor acredita que existam três
obra se volta apenas paras as populações do centro sul, já que cabe a estas o papel
Le Play e outros 20 . Esse conjunto de autores dá o tom evolucionista que marca com
tanta força sua obra. Logo, determinismos raciais ou geográficos estão presentes a todo
brasileiro.
acostumado a vida em cidades, e o novo meio inóspito e selvagem. Logo, nos primeiros
18
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 15
19
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 282
20
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 14
21
Um exemplo claro desse tipo de determinismo é quando Vianna aponta que “não há tipos sociais fixos,
e, sim, ambientes sociais fixos” Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 18.
8
tipicamente rural.
verdade é que este retraimento [das cidades] significa apenas que a vida social dos
fisionomia própria” 22
encolhendo e a vida no campo vai florescendo. E este florescimento vai ter uma atuação
organização dessa sociedade vai sendo mais e mais voltada para a vida doméstica.
Oliveira Vianna aponta que essa preponderância da vida familiar vai influenciar
Dessa forma, sob a influência desse modo de vida rural a família se torna a
forma mais importante de organização social desse tipo de sociedade. No entanto, para
Vianna não existe apenas uma forma de família. Ele vai identificar uma diferença
22
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 31
23
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 49.
9
Logo, a família dos grupos superiores é marcada pela estabilidade, pela ligação
marcado por aqueles que não possuem terra e escravos, o que reina é a instabilidade, as
“os que não conseguem um grande domínio agrícola com farta escravaria
Quem tem terra consegue se classificar socialmente. Quem não tem terra vive a
margem da sociedade, sem um lugar definido e claro. A única alternativa que resta a tais
apenas através do grande domínio rural que se fundamenta o poder nessa sociedade
ruralizada. Surge daí a imagem dos senhores envoltos por uma vasta parentela e
24
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 49 (grifos nossos)
25
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 60
26
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 65
10
Para Oliveira Vianna, esses homens agregados se diferenciam dos escravos pela
sua origem étnica, pela sua situação social um pouco mais favorável e, o mais
familiar nessa sociedade. De um lado, esses homens livres pobres que habitam em casas
outro lado, temos os grandes fazendeiros habitando em imensos solares, assim descritos
por Vianna:
27
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 65-66
28
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 66 (grifos nossos)
11
sua sobrevivência. Logo, não existe espaço para cidades, comércio ou indústrias nesses
territórios 30 . A grande fazenda basta por si só, e é ela sozinha que sustenta os pilares da
sociedade colonial.
Essa caracterização é importante para Oliveira Vianna pois é através dela que se
não é difícil de perceber que todas as relações sociais convergem na direção do grande
agregados, a única fonte de poder e justiça nessa sociedade. Vianna caracteriza essa
estrutura como o “clã fazendeiro”, sendo nessa sociedade simplificada a única forma de
branca”. Estando o poder nas mãos desses oligarcas locais fica claro que a justiça e
qualquer amparo social ficam marcados pela vontade dos potentados locais. São eles
histórica, não amparam nunca de modo cabal, os cidadãos sem fortuna, as classes
29
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 113
30
“Em síntese, [não existe] nem classe comercial; nem classe industrial; nem corporações urbanas” em
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p. 119
31
“é o clã fazendeiro a única forma militante da solidariedade social em nosso povo” em Oliveira Vianna,
Populações meridionais, p. 145
32
Oliveira Vianna, Populações meridionais, p.142
12
fazendeiros 33 . Existe uma lógica circular que rege essa sociedade: o poder dos
vida social da colônia. Sustentados por imensas hordas de capangas, parentes, agregados
sociedade. Não existe nenhuma instituição que possa fazer frente a tal poderio.
Essa sociedade é patriarcal porque tudo converge para o patriarca dos clãs rurais.
Nesse sentido, patriarcalismo significa muito mais do que família extensa ou imensos
domicílios. Esse talvez seria o aspecto material e concreto dessa sociedade. Mas além
fragmentado pelos diversos potentados locais, onde reina uma espécie de anarquia
espírito faccioso tão presentes na política brasileira. O objetivo de seu livro não é
dessa família as bases de uma estrutura de poder que tinha profundas implicações na
Logo, esse nos parece ser um caminho mais fecundo para entender o conceito de
patriarcalismo na obra de Oliveira Vianna. Como um conceito que não se limita apenas
33
“Só à sombra patriarcal deste grande senhor de engenhos, de estâncias, de cafezais vivem o pobre e o
fraco com segurança e tranqüilidade” em Oliveira Vianna, Populações meridionais, p.142 (grifos
nossos)
13
uma forma de exercer o poder e a sociabilidade nessa sociedade do que um tipo definido
de família.
imaginário social foram, sem nenhuma dúvida, elaboradas nas diversas obras de
Gilberto Freyre 34 .
leituras feitas de sua obra a partir da década de 1930. Dessas leituras se consolidou uma
na vida social. Nesse sentido, a família patriarcal extensa se tornou a base e o modelo da
sociedade colonial.
34
“(...) foi Gilberto Freyre o grande idealizador da noção de família que predominou durante décadas na
historiografia brasileira” em Sheila de Castro Faria, História da Família, p. 252. Eni de Mesquita Samara
é da mesma opinião: “É inegável a importância e influência da obra de Gilberto Freyre na historiografia
brasileira, especialmente nos estudos de família” em Relendo os “clássicos” e interpretando o Brasil, p.
303
14
família extensa? A dificuldade em responder tais questões justifica uma releitura dos
--- x ---
No entanto, Freyre nunca chegou a definir com clareza o que entendia por
referências a tal expressão sem um maior cuidado com a clareza. Assim, Freyre fala de
35
Os quatro livros são: Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de
economia patriarcal; Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento
urbano; Ordem e Progresso: processo de desintegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal
no Brasil sob o regime de trabalho livre; O quarto e último volume, com título provisório Jazigos e
cova rasa não chegou a ser preparado.
36
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 136, nota 55
37
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 44
38
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 47
15
diante. Nessa profusão de conceitos já notamos aquela imprecisão apontada por muitos
sociedade brasileira. O que Freyre tentou com suas obras foi explicar a formação, a
América já que para Freyre está é a chave para o entendimento dessa sociedade 42 .
E é sob o efeito desses traços que vai se formar na colônia uma sociedade distinta da
portuguesa.
39
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 48
40
Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 67
41
“Efetivamente, a ‘imprecisão’ conceitual é vista como um dado constitutivo da argumentação freyriana”
em Jessé Souza, Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira, p. 73
42
“Freyre propôe diversas teses fundamentais em Casa-Grande, que são repetidas ao longo do livro. A
mais importante é seu argumento de que o Brasil moderno foi indelevelmente marcado pelo legado do
complexo colonial do latifúndio escravocrata e plantações (...) e a estrutura familiar patriarcal que o
acompanhava” em Thomas E. Skidmore, Raízes de Gilberto Freyre, p. 52
43
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 79.
16
América. Sobre ela o rei de Portugal quase que reina sem governar” 44
Igreja).
de sua economia. Desse modo, quando Freyre fala de uma economia patriarcal está se
Portanto, sociedade patriarcal é aquela que possuiu como unidade social básica a
família. Nessa sociedade não existem limites para autoridade pessoal do senhor de terras
44
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 92
45
Ana Cristina Veiga de Castro, Intepretações da colônia no pensamento brasileiro, p. 26-27.
46
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 96.
17
e escravos 47 . Para Gilberto Freyre, nem a Igreja e nem o Estado conseguem se impor
primeiro seria essa preponderância da família sobre as demais instituições sociais, seria
desse patriarcalismo. Seria ao redor dessas famílias patriarcais que flutuaria a sociedade
colonial. E em nenhum momento Freyre identifica essas famílias como do tipo extenso
Para Freyre, a família patriarcal não é única e nem a mais numerosa, ela é apenas aquela
moderno (o burguês).
47
“Por muito tempo as Câmaras, os juízes, as Ordens Reais, quase nada puderam contra particulares tão
poderosos. A sombra feudal da casa-grande do rico ou do jesuíta caía em cheio sobre as cidades” em
Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 34.
48
“Parece-nos inegável a importância da família patriarcal ou parapatriarcal como unidade colonizadora
no Brasil. É certo que o fato dessa importância antes qualitativa que quantitativa, não exclui o fato,
igualmente importante, de entre grande parte da população do Brasil patriarcal ‘a escravidão, a
instabilidade e segurança econômicas’ terem dificultado a ‘constituição da família, na sua expansão
integral, em bases sólidas e estáveis’” em Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 136, nota 55.
49
Jessé Souza, Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira, p. 72
18
vinda da família real, são alguns dos fatores que começam a transformar a sociedade
patriarcal que foi se consolidando na América Portuguesa. Com isso, o poder patriarcal
patriarcalismo. Longe disso, o que se deu foi uma certa transplantação da sociedade
patriarcal agrária para as cidades. E no prefácio do livro Freyre retoma e explica com
um pouco mais de clareza o que entende por patriarcalismo, já que este continua sendo
para o XIX.
menos do seu domínio de homem, que do domínio da família representada por ele” 50
Essa passagem é reveladora. O poder do pater familias não vem de seu poder
enquanto homem, mas vem do poder que a família tem sobre a sociedade. Portanto,
patriarcalismo não tem a ver apenas com a esfera privada da família, mas com a família
50
Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 52.
51
Outra passagem igualmente interessante é a seguinte: “[Família patriarcal] ou ‘tutelares’, como diria o
professor Zimmermamm, a quem repugna a expressão ‘patriarcal’ pelo que parece atribuir de absoluto ao
poder do patriarca-indivíduo, quando esse poder seria antes da família investida de funções tutelares do
que do seu chefe” em Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 58.
19
Essa passagem sintetiza bem tudo aquilo que viemos apontando até agora.
unidade” é a família, onde esta subordina e se impõe a todas as demais esferas sociais.
Além disso, temos a própria família patriarcal, materializando essas relações sociais.
É importante não perder de vista essa perspectiva sistêmica adotada por Gilberto
Freyre. É nessa perspectiva que a família torna-se uma “instituição total” 54 que explica
e da sentido ao conjunto das reflexões do autor. É sob a lógica familista que Freyre
52
Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 63.
53
“A verdade é que foi o sistema patriarcal-escravocrático, ou tutelar escravocrático, que, de suas bases
(...) deu efetivo significado econômico e importância política ao Brasil, identificado principalmente com o
açúcar aqui produzido. Foi o sistema patriarcal-escravocrático que se tornou a base principal da cultura
diferenciada de Portugal que foi aqui se desenvolvendo” Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 67.
54
“Acredito que o patriarcalismo familial rural e escravocrata para Freyre envolvia a definição de uma
instituição total, no sentido de um conjunto articulado onde as diversas necessidades ou dimensões da
vida social encontravam uma referência complementar e interdependente” em Jessé Souza, Gilberto
Freyre e a singularidade cultural brasileira, p. ?
20
Logo, muito mais do que uma reflexão sobre um tipo de família o que Gilberto
Freyre faz é construir uma reflexão sobre o ethos social do brasileiro. Essa organização
famílias nucleares e simplificadas, como poderia ficar subentendido por certas leituras
afirmação do individualismo 56 . Nesses termos fica muito mais clara a oposição entre
tradicional/moderno que percorre sua obra. Patriarcalismo está para o tradicional assim
sociedade não será mais ou menos patriarcal de acordo com o número de domicílios
55
“Para Freyre, houve no passado um estilo brasileiro de sociedade baseado no patriarcalismo, com seus
atributos de personalismo, familismo e privatismo, atributos esses que são despóticos e segregadores,
de um lado, mas democráticos e inclusivos, de outro. É a dialética desses pólos que tem garantido a
longevidade do patriarcalismo brasileiro” em Lucia Lippi Oliveira, Ordem e Progresso em Gilberto
Freyre, p. 143.
56
Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 90.
57
“A casa-grande, embora associada particularmente ao engenho de cana, ao patriarcalismo nortista, não
se deve considerar expressão exclusiva do açúcar, mas da monocultura escravocrata e latifundiária em
geral” em Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, p. 55.
58
Ver nota 48.
21
coletânea de textos sobre o Brasil voltada para o público americano 59 ocupa um lugar
central nas críticas feitas pela historiografia revisionista. É nesse texto que, salvo
brasileira. Logo, grande parte das críticas feitas pelos revisionistas é feita a partir de
Ainda assim, esse é um ensaio pouco lido. É uma daquelas obras mais criticadas
talvez ajude a entender essa situação. Apesar disso, essa breve reflexão retoma de modo
sociedade patriarcal.
--- x ---
família sob três perspectivas: sua estrutura, sua função e seus aspectos morais. Daí, seria
possível identificar de que modo transformou-se a família brasileira desde sua forma
family).
59
Lynn Smith e Alexander Marchand (org.), Brazil portrait of half a continent.
22
Isso não significa, entretanto, que houve uma simples transposição das famílias
se definir sobre novas bases. É dessa adaptação que surge a famosa estrutura dual da
família brasileira:
legalized, composed of the white couple and their legitimate children; and a
periphery not always well delineated, made up of the slaves and agregados,
similar com a noção de clã familiar de Oliveira Vianna. A função da família seria antes
60
“The emphasis upon the patriarchal family of the past centuries is justified by the fact that it was the
base upon which developed the modern conjugal family, whose traits can be understood only if we
examine its origins” em Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 291.
61
“Actually, although in theory and, in many cases, in practice the Portuguese familial organization was
transplanted here at the beginning of the colonial period, it did no find a favorable environment in the
colony” em Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 292.
62
Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 294. (grifos nossos)
23
de tudo dar estabilidade para as discrepâncias sociais. Como veremos depois, aqueles
O núcleo central era a base da família e da sociedade. Era dentro desse grupo
que se encontravam os elementos socialmente mais destacados e era daí que emanava o
poder e prestígio social. Novamente, como em Oliveira Vianna, era o chefe de família a
“The legal nucleus was the core of the domestic organization and from the
and the command over a numerous labor force of slaves. It was a type of
social organization in which the family necessarily was the dominant group
social mais ampla. Era ela a fonte de poder e de controle da sociedade. Numa economia
estrutura, a família patriarcal era definida por dois grupos distintos mas relacionados: o
núcleo e a periferia. Quanto a sua função era dupla: garantir a coesão social e assegurar
63
Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 294. (grifos nossos)
24
A decorrência direta disso era o pleno poder da autoridade paternal. Era ao pai
de família que cabia a ação da justiça e do policiamento, era ele quem decidia os rumos
dos demais membros da família, bem como de todos aqueles elementos agregados que
papel da mulher nessa sociedade. Ainda que subordinada ao marido, esta ocupava uma
função complementar aquela do marido 64 . De qualquer modo, ainda que com certa
política-econômica.
Esta era completada pela sua periferia composta de agregados, escravos, parentes
distantes, capangas, etc. Era essa extensão da família, englobando todo um conjunto de
pessoas ao redor do pai de família que dava as bases do poder político e econômico à
família patriarcal.
Todos aqueles que não fossem amealhados pelas estruturas desse sistema
determination of the group we may say that colonial society was divided into
two parts, familial and nonfamilial. The former, composed of the double
group (the nucleus) and a heteronomic one (the periphery). The nonfamilial
portion consisted of a nameless mass of the socially degraded, those cast off
64
“They are two complementary spheres, each with its ethos more or less differentiated from that of the
other, often in conflict, but generally supporting each other in the maintenance of a considerable
sociological balance” em Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 295-6.
25
entanto todos aqueles que não estivessem ligados de alguma forma a esta organização
estavam excluídos das redes de poder e sociabilidade nesta sociedade. Portanto, para
Antonio Candido a família patriarcal era mais do que uma estrutura definida de família,
ela era a base da sociabilidade nesta sociedade 66 . Nesse sentido, os aspectos funcionais
sociais.
“The history of the Brazilian family during the last 150 years consists
political function and the concentration upon the more specific functions of
67
the family (from our point of view)”
urbanização o pai de família começa a perder seu poder e sua liderança. Daí, os
65
Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 304. (grifos nossos)
66
“To some extent it may be said that it [a família patriarcal] constituted the fundamental organization of
the colonial period, production, administration, defense, and the social status of the individual being
dependent upon it. It is as a function of this organization that we are able to understand the society of the
time, because one who did not belong to it lacked means of participation in the collective life” em
Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 303
67
Antonio Candido, The Brazilian Family, p. 304.
26
Nesse sentido, o significado de família patriarcal para Candido vai muito além
da pura morfologia domiciliar como certas críticas apontam. Família patriarcal seria
Parece-nos que essa acepção é mais adequada com aquilo proposto por Candido em seu
texto. Logo, provar que a maioria dos domicílios não são extensos é uma crítica
Considerações finais
trabalhos de Oliveira Vianna, Gilberto Freyre e Antonio Candido. Com isso, pudemos
notar uma profunda semelhança na argumentação dos três autores. Essa convergência
pode nos ajudar a estabelecer uma definição, ainda que provisória e incipiente, do
conceito de patriarcalismo.
sociedade patriarcal. Foi com o processo colonizador que essa sociedade foi ganhando
27
uma feição particular, um modo de organização que privilegia a família como elemento
de sociabilidade central.
de outro todos apontam para sua centralidade nas relações sociais, políticas e
desenvolver. Era também no seio da família que se encontravam as bases de poder nessa
sociedade.
familismo. Para todos os autores a superação dos traços tradicionais do Brasil está
família e que sufoca outras instâncias sociais como o Estado ou a Igreja. Portanto,
Nessa sociedade não seriam os indivíduos, mas sim as famílias que ganhariam
organização que privilegia a família, fica difícil concordar com a crítica dos
Assim, fica claro que o problema das críticas é muito mais um problema
Mas não é isso. Ou melhor, nossa leitura não aponta nesse sentido.
Com tudo isso, ficou claro que o conceito ainda apresenta uma grande
É evidente que isso não significa reificar o conceito. Colocar a família como um
nexo fundamental das relações sociais não significa dizer que ela é o único nexo. Outras
tratar o conceito como ele é, ou seja, como um modelo, não como a realidade concreta.
sociedade pode inviabilizar sua própria compreensão. É preciso, portanto, mais do que
Bilbliografia
79-132, 2003
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