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8:00 | Segunda-feira, 11 de Fev de 2008

Os livros

OS livros são um amor pesado. Arrastam-se atrás de nós como fantasmas, mesmo antes de
arrastarmos fisicamente com eles, de lugar para lugar. Os livros tornam-nos conservadores:
naqueles momentos em que nos apetece mudar de casa, de país, de mundo, eles perfilam-se
diante dos nossos olhos, solenes, um exército de capas rijas desafiando o nosso desejo de
mobilidade. Revoltamo-nos: decidimos deixá-los para trás, oferecê-los, esquecê-los - mas eles
não deixam. Porque quando passamos as mãos nas estantes, medindo forças com eles, há-de
tombar-nos aos pés um livro que no chão, aberto, tem alguma coisa para nos dizer, alguma
coisa que esquecêramos ou que agora subitamente descobrimos. Alguma coisa tão nossa que
não reparámos nela. Um verso sublinhado, uma imagem, uma página que nos acelera o bater
do coração e o galope do cérebro. Quantas vezes utilizámos os livros como refúgios do cérebro
contra as investidas do coração? Quantas vezes os usámos como trincheiras sentimentais
contra as razões da vida? Quantas vidas vivemos dentro deles, por procuração? Quantos anos
passámos escondidos nas esquinas daquelas páginas, à espera que delas saltasse a surpresa
redentora que, de tanto esperarmos, se esfumou? Os livros são os guardiões das nossas
culpas: da muda acusação inscrita nas lombadas velhas e virgens dos que nunca lemos ao
grito silencioso dos que se desmoronam nas nossas mãos, riscados, batidos, cheios de areia,
manchas de café, marcas de lágrimas e até - nefando crime - sombras de tabaco. Por que
gostamos tanto de alguns livros maus e nos negamos a conhecer tantos livros bons? Por que
insistimos em levar até ao fim alguns livros que parecem recusar-nos? Por que mergulhamos
em livros que sabemos que nos vão magoar? O que faremos às horas que perdemos a ler livros
de que não recordamos uma frase? Poderemos ainda reencontrar aqueles que só depois de
perdidos descobrimos que amávamos de verdade? Quantas vezes sacrificámos a escuta das
nossas verdades à leitura das verdades de um livro? Quantas vezes nos enganámos nos livros,
quantas vezes nos enganámos por fugirmos dos livros?

Decidimos então escolher - mas os livros ensinaram-nos também a precariedade das escolhas
e das decisões. Há uma época da vida em que descobrimos que aquilo a que chamámos
escolhas fundamentais resultou de um conjunto de factores e circunstâncias que, afinal, não
dominámos. Fomos arrastados na enxurrada, sobrevivendo a temporais diversos - e agora, no
promontório a que damos o nome de maturidade (porque ganhámos nos livros o vício de dar
nome a tudo, classificar, organizar, compreender, explicar) olhamos para as escolhas que
esboçámos e abandonámos, e esforçamo-nos por recomeçar o desenho da nossa vida, numa
página em branco. Mas aprendemos que o branco puro não existe - nem o negro, nem o
amarelo, nem o azul ou o vermelho. Nenhuma cor é afinal absoluta como nós pensávamos,
nesse tempo em que chamávamos razão ao instinto, paixão ao desejo, amor ao medo,
originalidade à arrogância e ousadia à provocação. Ou vice-versa - tínhamos um feixe de
certezas absolutas, e uma incapacidade atávica de escutar as várias versões de uma mesma
história. Talvez fosse apenas impaciência - mas nós chamavamos-lhe idealismo. Gostávamos
tanto de livros que nos tornámos caçadores de palavras - e deixávamo-nos balear por elas,
como se fossem canções. Agora olhamos para os livros como sinfonias, feitas de
deambulações em torno de um tema recorrente, que se vai revelando em diferentes tons - à
semelhança das nossas vidas.

Quando éramos jovens, sabíamos arrumar os livros. Agora não sabemos - cresceram,
multiplicaram-se, por dentro e por fora. Sociologia ou Filosofia? História ou Economia? Quanto

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mais lemos, mais difícil se torna decidir. A Ficção nas estantes de cima - como se lêssemos um
romance de cada vez; sempre pensámos que quando acabássemos de crescer seríamos
menos sôfregos. Mas o que fazer aos romances que nos habituámos a reler como ensaios ou
poemas, e que sentimos necessidade de folhear ao acaso, com uma saudade sensual, numa
tarde de chuva?

Os inclassificáveis empilham-se pelos cantos da casa, à espera de uma hora iluminante - e os


recém-chegados acabam por se misturar com eles. Ao fim de uma semana já não conseguimos
encontrar nada, e odiamos os livros por atacado, bradamos contra eles, juramos livrar-nos
deles. Depois folheamos um e dizemos: vamos escolher, separar, deixar para trás, mudar. Mas
os livros agarram-nos, lambem-nos as mãos, atiram-se ao chão para que olhemos para eles,
seduzem-nos através do cheiro, do toque, do pó das memórias. Encaixotamo-los, e
mudamo-nos, de novo, com eles - embora saibamos que nunca teremos tempo para os ler
todos, e que continuaremos a ser injustos com eles, a amá-los mal, a perdê-los, a maltratá-los,
a emprestá-los e a arrependermo-nos. "Antes a experiência que a nostalgia", disse-me certa
vez uma amiga. Um bom conselho serve para tudo, até para arrumar bibliotecas e perder o
medo do caos e o travo da culpa que assombra o amor dos livros.
Inês Pedrosa

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