You are on page 1of 270
Organizacao de: Mariza de Carvalho Soares e Jorge Ferreira A: Historia vai ao ac. Cinema comentados.por historiadores s s Eg . : K PS Sen es, Minha geragao é “cinemeira’, como dizia minha avd; como Lenin, acho que o cinema foi a arte do século XX, e os filmes agora nao sao mais vistos somente no delicioso escurinho do cinema mas também na_televisdo ou video. Os intelectuais, mesmo aqueles mais isolados em sua torre de marfim, apreciam cinema. "Papos-cabeca", tentando entender e/ou mudar o mundo ou o pais (ou mesmo a nds mesmos, 0 Gue é tao dificil Quanto o resto), se deram muitas vezes a partir de discussdes sobre filmes que nos toca(va)m mais profunda- mente. E ver o filme como recurso didético vem do velho Jénatas ‘Serrano no comego do século. Assim, esta coletdnea tem papel importante e Util, e sur- preende-me Que esta idéia — com filmes nacionais com sucesso de plblico-e critica — nao tenha surgido antes. A selegao dos filmes e comentadores (especialistas nos temas e objetos) é feliz por cobrir temidticas fundamentais. Nas andlises dos “filmes de autor", de- ‘fsrugades Sobre 0 povo e histéria do Brasil, em diversos tempos e espagos, surgem nossas grandes Questdes: a questao democratica e a nacional, a desigualdade social, nossa identidade cultural, as cha- madas "minorias" (mulheres, negtos, trabalhadores...), como se pen- sar 0 individuo na historia ete. Cinema, literatura, histdria tratam de estdrias e historias de formas cada vez mais préximas. Numa diversidade do caleidoscopio, a historia — cada vez menos uma régua de medit, com seu relato li- near.— me parece progressivamente mais fascinante: néo é um pas ‘sado nico, morto, mas diferentes representagdes Que, através de documentos do passado, so passiveis de construgao. ‘0 tempo é intrinseco ao homem, em toda sua concretude, € se efetiva nas andlises num feixe de temporalidades em cruzamento: 0 tempo do objeto do filme, o do momento em que o cineasta fez 0 cap-trbi. Catalogagio-na-fonte | Sindcato Nacional dos Eaitores de Livros, 30 decors se Kae ey 2 Soares, Mariza de Carvalho: sessh A Wistria vai ao cineha / Mariza de Carvalho Soares, Jorge 3H ed Foe, He - Re de Jani: Ree, 208 1. Cinetia'@Fistria. 2. Filmes histricos - Brasil. 3. Cinema - Brasil - Historia. T Femeira, Jorge. 1. Titulo, 00 - 791.430981 00.0751 cu - 791.43(81) Copyright © 2001 by Mariza de Carvalho Soares e Jorge Ferreira Design: Tita Nigri Editoragio: Cristiano Terto Fotos dos artigos: “Dona Flor e seus dois maridos", “Memérias do cércere” e “De razées e sentimentas”, de producées Cinematograficas L. C. Barreto LTDA; “Aleluia Gretchen”, de Sérgio Sade, do acervo CEDOC/FUNARTE; “Carlota: caricatura da Histéria’, de Elimar Producoes Avtisticas: “Imagens de Canudos”, de Morena Filmes LTDA “As ts faces de Kica”, de Rio vermetho Filmes; “Central do Brasil’, de Video Filmes. ‘As imagens dos demais artigos pertencem ao acervo CEDOC/FUNARTE. Diretos exclusives desta edicdo reservados pela: EDITORA RECORD LDA, Rua Argentina, 171 - Rio de Janeiro, R) ~ 20921-380 - Tel 2585-2000 Impress no Brasit 1S8N 978-85-01-05872-0 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Casa Postal 23.052 Rio de Janeiro, Rd - 2092-970 2 DOACGAO VENDA > \ PROIBIDA a o Prefécio Silvio Tendler Introducso Marisa ce Carvalho Soates e Jorge Ferreira Dona Flor e seus dois maridos: viagem a um mundo que muda Joa José Reis Aleluia, Gretchen: um hotel para 0 Reich Marion Brepohl de Magathaes Emecio e razio numa ligdo de amor Manica Pimanta Veloso As ts faces de Xica aviea de Carvalho Soares Lice Flavio, passageiro da Histiria Marcos Luiz Bretas Bye bye Brasil e as fronteiras do nacional-popular Ana Maria Mauad Armadilhas nordestinas © homem que virou suco Frederico de Castro Neves Gaifin. 0s caminhos da tiberdade: tempo e Historia Maria Ligia Coelho Prace Pixote: a infancia brutalizada André Luie Vieira de Campos Eles no usam black-tie: virias histérias, muitos protagonistas (alos Fico Pra frente Brasil: @ retorno do cinema potitico Claudio H. M. Batatha 2 ‘Sumatrio} Memérias do carcere: do livro a0 filme, do filme & Historia Eliane de Freitas Dutra Como as sociedades esquecem: Jango Jorge Fernira Cabra marcado para morrer entre a memoria ¢ 2 Histéria Antan‘o Torres Mantenegio Marvada carne: uma comédia caipira épica Jayme de Almeida Eternamente Pagu: impressoes de uma historiadora Rachel Soihet De razées e sentimentos: 0 quatritho na tela Sandre Jatahy Pesavento Carlota: caricatura da Hist Ronaldo Veinfas Imagens de Canudos Jacqueline Hemann Histéria e mobilidade em Central do Brasil Bias Thowé Saliba Ficha técnica dos filmes 0s autores CARLOTA JOAQUINA PRINCEZA DO BRAZ ORDEM DO DIA Teese ‘el, 268 3588 - S37 0330 Jia a6 Producdo DATA * < INT #X< a 22501 DIA —-NOITE * acacko SRA AR. DA FHOERATRE® : SEQ giuseto de 54 Be F1& ones ba EQUIBE seenpeeteensh - | LENCO oe Seq ‘Personagem | Ator (Fig Maq | Se roranos Hesin Catete Mevctn NEB AS Produtora Few | Kea 401 Modis tokS tS Set {4 0t FA earn, MA Giga 1590 | 46 Filmande fy 40 “pA | Fedentn ne] Romen Praudy 45: BO | tS re : 5 a a Amey ok v4 | end fiteg 4 Braun Fr i 46 6 | OBS | CONTRA-REGRA ~ FIGURAGAO on. esc Nos idos dos anos 60, estudante que se prezasse e quisesse jogar pedras na ditadura deveria buscar fundamentos te6ricos em Historia do riqueza do homem, de Leo Huberman. Logo nz aberture, o autor, para falar de dinheiro, usa uma cena de cinema como exemplo; Georges Duby, um dos mais importantes medievalistas franceses, abre um de seus ensaios sobre a Idade Média escrevendo: "Imaginemos." Desde sempre, imagem e imaginacao fazem parte do conhecimento da historia. Quando em 1974 Jacques Le Goff e Pierre Nora coordenaram a publicacao de Faire de (Histoire, estavam evidenciando novos horizontes para 2 historia, que saia entao da dicotomia factual versus interpretativa para buscar novas relagdes com seu objeto de estucdo. Nos rescaldos pos-maio de 1968, uma série de historiadores franceses discutiam novos problemas, novas abordagens, novos métodos. Marc Ferro participa desta coletnea com seu artigo ‘0 filme: ume contra-andlise da sociedade?”, no qual aborda a questo do cinema como fonte da histéria. Mais do que introduzir, esse artigo servira para legi- timar uma relago que ja vinha se desenvolvendo havia muitos anos e que Ferro trans- forma em seminério, com o nome de Cinema e Historia. Por outro lado, desde o nascimento do cinema, a historia é sua fonte. 0 nasci- mento de uma no¢do, de David Griffith, nos Estados Unidos, e 0 encouracado Potemkim, de Sergei Eisenstein, na Uniao Soviétice, so alguns dos muitos filmes em que, através de cowboys, carruagens, reis e rainhas, a historia esta presente. MR 2a ‘Gacques Le Gofi e Pierre Now. Histéia: novos objetos. Kio de Janeiro. Livrara Francisco Alves Editcra, 1976. Em 1937, 0 documentarista holandés Joris Ivens, ao filmar a Guerra Civil Espanhola em parceria com Ernest Hemingway, registra nos créditos do filme Terra espanhola a pro- dugdo da Contemporary Historians Inc. Neste caso o cineasta define-se como historiador e, mais do que um documentério de dentincia da ascensdo do fascismo ao poder na Europa, sente-se fazendo historia. A coletdnea de artigos que compée este tivro segue na trilha original apontada por Marc Ferto: o estudo de filmes como fonte de conhecimento e 0 que Ferro chama de contra- analise da sociedade. Em seu artigo, considera que o estudo da imagem pode fornecer ele- mentos de andlise que ultrapassem 0s limites das intencies do autor ou de quem as captou. A "leitura” dos filmes nao se restringe a uma interpretaco "colada" na obra. No caso deste livro, os autores fizeram uma releitura da obra cinematogrifica, relacionando com uma abordagem histérica, confrontando filme e histéria. Esta coletanea de ensaios chega em boa hora. A hist6ria do século XX sera con- tada com recursos audiovisuais e a partir da producao audiovisual do século XX. 0 con- junto de artigos € de alto nivel, merecedor de leitura, exercendo importante funcao didatica que aponta mais um territério a ser explorado pelo historiador. Alguns limites foram estabelecidos no critério de selecao dos filmes: apenas filmes nacionais, e 0 corte temporal foi determinado pelo periodo de producio dos filmes, que foi de meados dos anos 70 ao final dos anos 90. Os temas sao 0s mais diversos, nem sempre trabalhando a historia de forma direta, mas refletindo a formacio brasileira a0 longo dos séculos. Diversos historiadores dividiram entre si a missdo de esmiugar @ pro- ducao cinematografica, 0 que transforma este livro num raro painel que retrata a plurali- dade e a diversidade de nossa producao. Por nao ser obra de um autor mas uma coletanea de textos com enfoques diferen- ciados, torna-se mais rico ainda devido variedade de olhares que se projetam sobre a diversidade das obras. Tem, além disso, o mérito de registrar a fecundidade do cinema brasileiro nesses anos 70/80/90 e sobretudo sua importancia cultural, tornando-se o melhor amrazoado em defesa do cinema brasileiro, de sua pluralidade, diversidade e criatividade. Em sua maioria, os estudos aqui desenvolvidos servem também como uma aula de historia, uma vez que sio acompanhados de citacdes que transcendem a obra abor- dada para situd-las em seu tempo, cescrevendo suas fontes, influéncias ou precedéncias. Esse universo que circunscreve a obra faz com que este livro se torne objeto de consul- ta essencial para quem estuda ou quer conhecer mais profundamente as obras e o tempo abordados dentro do trinémio cineme/Brasil/historia. Aqui esto sendo analisados fimes que retratam migrantes e imigrantes, a mulher, (0 negro, as circunstancias histéricas, 0s acontecimentos e as personalidades. Filmes de ‘Jodo Batista de Andrade (0 homen que virou suco, 0 migrante massacrado), Tizuca Yamasaki (Gaijin, a imigracao japonesa), Eduardo Coutinho (Cabra marcado para morrer), ‘0 meu (Jango, reconstrucao da histéria), Norma Bengell (Pagu, a mulher libertaria que foi contra a corrente de seu tempo mas a favor da historia). 0 Brasil dissecado pela lite- ratura e o incrivel desafio de transformar letras em imagens: Mario de Andrade, Jorge ‘Amado, Graciliano Ramos imaginades pel cinema; livros que se tornam filmes pelos othos de Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro, Eduardo Escorel, Bruno Barreto. A pluralidade registrada pelos filmes e os estudos correspondentes aos anos de chumbo observadas nao apenas pelo viés da politica mas com ampla visdo da época do "seja marginal, seja herdi", grito ce rebeldia do artista plastico Hélio Oiticica sobre a imagem do bandido Cara de Cavalo, marca dos anos 70: 0 cinema mostra, com Licio Flavio, o passageiro da agonia, o marginalnecessario para apontar as mazelas da policia ("Policia é policia, bandido é bandids"), tanspassado das reportagens literarias de José Louzeiro para as imagens de Hector 8abenco; 0 mito registrado em Xica da Silva ou o pats trocando de pele em Bye bye Brasil, Fimados por Carlos Diegues. Em Eles néo usam black-tie, de Leon Hirszmann, a classe operdria vai ao cinema, e o Brasil caipira em A marvada carne, de André Klotzel. Este livio também supre uma lacuna: como a critica cinematografica pratica- mente desapareceu, e a cada dia tomam-se mais raras as publicacdes especializadas, e por conseguinte a analise e o debate em torno da produco cinematografica, transferiu- se pata o historiador a tarefa da critica, 0 que valoriza ainda mais o presente livro. A abordagem diferenciada do historiador — profunda e analitica — foge da superficiali- dade da informagao jomalistica, necessaria para divulgar a existéncia da obra mas insu- ficiente para informa-lo sobre a obra. Mesmo quando a andlise é desfavoravel ao filme, ainda assim & melhor a publi- cacao, que abre caminho para ¢ discussao e a polémice, do que condené-lo ao siléncio e a0 esquecimento. Nos anos 50, época de nacionalismo na politica ("0 petréleo & nosso") e das "chanchadas" no cinema, em sua defesa foi cunhada a frase: "Falem mal, mas falem do cinema nacional", logo sintetizada no bordao '0 abacaxi é nosso’. "Avacalhar” (expresso propria da época) era a forma de proteger e divulgar. Logo, este livro ajuda a resgatar nossos filmes, rompendo o cerco do sil€ncio e do esquecimento. 0 filme torna-se matéria de sala de aula, servinéo como objeto de estudo e conhe- Cimento. Em hipétese alguma o filme substitui o professor. Sua "leitura” correta esta condicionada a um corhecimento prévio, sujeita a orientacdo do professor. Confrontar veracidade com verossimilhan;a — real versus aparéncia do real — € uma das responsa- bilidades do professor que evitaré a trilha de um caminho equivocado e cuja auséncia oder induzir a erros de abordagem diante do fascinio e da facilidade da histéria recria- da em imagens. Quanto a psssado versus presente, é bom dizer que o filme de tema histérico geralmente tem maisa ver com a época em que é produzido do que com a época abordada. Assim, por exemplo, uma abordagem do passado muitas vezes ¢ mais rica quando analisada sob 2 luz do conhecimento e das angistias do tempo presente. Um grito de alerta: querem apagar a historia. Jovens de 20 anos ndo sabem o que foi a Guerra do Vietnd, como foi a descolonizacao da Africa, as lutas populares por liberdade, contra a ditadura, a tortura. E 0 mais grave: livros, filmes, pecas de teatro, pen- samentos e personalidades que escreveram um projeto de Brasil so apagados da histéria. Em tempos que privileciam o efémero, 0 volatile o descartavel, este livro é pega essen- cial na "guerra santa" que travamos contra a amnésia historica que querem nos impor. Silvio Tendler Introdu As vésperas do século XXI, constituimos sociedades dotadas nao apenas de tex- tos escritos e falados, mas de um vasto conjunto de imagens. Um filme nao é um Livro. No entanto, estatica ou em movimerto, uma inagem pode ser "lida" de naneira similar a um texto escrito, Quando um filme é apresentado ao piiblico, ele surge como o resultado de uma intertextualidade que combina diferentes linguagens: textos orais — a palavra fala- da ou cantada —, escritos — letreins e legendas — e visuais — a propria imagem pro- jetada, os cartazes publicitarios, a propaganda dos jornais, entre outros. Na intersecao entre elas, surgem nos filmes personagens que muitas vezes podem ser ficticios, mas onde as cenas vividas sao "reais", pois as elacdes sociais e o mundo representado na tela foram retirados da propria sociedade. £ justamente essa riqueza e multiplicidade de linguagens que vem despertando a atencao dos historiadores. Na conversa entre Cinema ¢ Historia, para usar a expressdo cunhada por Marc Ferro, um longo caminho tem sido percorrido e as possibilidades vao desde o uso didati- co até biografias e andlises sobre aindistria cultural. Uma das alternativas, talvez das mais instigantes, ¢ a que explora a relagao entre memoria e historia, Parte representati- va da filmografia brasileira, por exenplo, trarsita justamente neste campo, no qual lem- brancas pessoais, memérias de grupos e mesmo pesquisas historiogiaficas mais sis- tematicas tem levado a elaboracio ¢e filmes que constituem, hoje, quase um género nar- rativo, com caracteristicas proprias. Assim, desde os primérdios da producdo cinematografica no Brasil, surge uma vertente que privilegia o que se poteria designar como um cinema hist6rico-social. Um dos ramos mais ricos € 0 que exploa, sob varios pontos de vista, temas “cléssicos" da s 3 2 : : Hist6ria do nosso pais: 0 descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, Sinhd Moca (1953), de Tom Payne, Paixdo de gauicho (1958), de Walter G. Durst, Deus e o Diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, Como era gostoso o meu francés (1971), de Nelson Pereira dos Santos, Os inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade, Os libertérios (1976), de Lauro Escorel, 0 pais dos tenentes (1978), de Joao Batista de Andrade, Coronel Delmiro Gouveia (1978), de Geraldo Sarno, séo alguns exemplos. Nesse sentido, a repre- sentacdo da Historia na obra de um grupo significativo de cineastas nos permite con- siderar que este segmento do cinema brasileiro se instituiu, no dizer de outro historiador, Pierre Nora, como “lugar de meméria" onde diretores, roteiristas, atores e produtores, bem como o proprio publico que prestigiou os filmes, se esforcaram em retomar e monu- mentalizar certos acontecimentos ou problematicas da Histéria do Brasil. Mas 0 trabalho do historiador vai muito além do esforco de preservacao de uma memoria da produgao cinematografica. A questo de como filmes e videos poderiam se constituir como mais um suporte possivel para a divulgacao da narrativa historica € importante porque permite, entre outras razées, alertar para o lugar do trabalho do his- toriador em uma obra memorialistica coletiva. Foi com olhos de historiador que con- cebemos esta coletanea e, enquanto tal, estamos tomando 0 cinema como um importante veiculo para a construgao da meméria de determinados grupos da sociedade brasileira contemporanea. Voltamos, novamente, aos "lugares" de que fala Pierre Nora, para indicar como a meméria nacional, antes expressa em prosa, verso e bronze, comeca a se expres- sar em filmes e, mais recentemente, numa quase infinita producao de pequenos videos, mais ou menos bem acabados, que circulam tanto no ambiente das elites quanto nos movimentos sociais. 0 historiador tem hoje uma consideravel intimidade com fontes nao escritas, mas que sio, de alguma forma, controladas por processos cognitivos semelhantes ao da andlise desta documentagao. Por exemplo, os depoimentos orais sao transcritos e, na ver- dade, mais lidos do que ouvidos. A fotografia e outras imagens fixas, como gravuras e cartuns, so consultadas nos arquivos, muitas vezes em livros ou Albuns, e 0 contato do historiador com elas nao deixa de ser uma forma especial de leitura. Diferente dessas aa experiéncias, em que o historiador nao se afasta do documento escrito, o filme projeta~ do a distancia, numa tela de cinema ou TV, resulta de uma combinagao de técnicas e suportes que ainda the so pouco familiares. Por outro lado, acostumado & solidao de suas pesquisas, lie é também muitas vezes estranka a experiéncia do trabalho em equipe. A autoria de um filme ¢ muito mais explicitamente compartilhada por um conjunto de profissionais envolvidos do que no caso da autoria de um livro. E verdade que o histo- riador nao produz sua obra individualmente: diversas contribuicdes, académicas ou nao, influenciaram nas suas reflexdes. No entanto, se observarmos a ficha técnica de um filme, a autoria (mais estritamente entendida como direcao) € compartilhada pela producao, argumento, reteio, fotografia, misica, montagem, figurinos, enfim, participagées indis- pensdveis e insubstituiveis. Neste caso, o resgate do passado e 0 dominio do diretor sobre seu tratamento séo apenas alguns dos comporentes ¢a obra. Portanto, nosso objetivo, com a coletanea, nao é oferecer uma receita de como 0 historiador pode fazer historia através do cinema, mas sim contribuir, de maneira bastante diversificada, para a discussdo das relagies entre Historia e Cinema, Embora muitos cen- tros de ensino e pesquisa venham produzindo reflexdes nesse sentido, s80 escassas as pu- blicagées que alcngam um pablico mais amplo. Preocupados com a lacuna, selecionamos vinte filmes que, por razes diversas, convenceram milhares de pessoas a irem ao cinema assisti-los. € verdade que, pera um critico de arte, mais preocupado com aspectos inter- nos a obra, 0 critério que alude ao sucesso de piblico e de critica nao € 0 mais impor- tante. No entanto, para o historiador trata-se de um critério que néo pode ser despreza- do, pois a sua preccupacdo nao € apenas com o filme, mas com a sociedade que 0 pro- duziu e se utlizeu dele para discutir determinados temas que the interessam. Assim, de Dona Flor e seus dois maridos (1976) a Central do Brasil (1998), percorremos vinte anos do cinema brasieiro, abarcando um period importante na producéo cinematografica nacional. Conbirando algumas preocupacdes do Cinema Novo com um maior espirito empresarial, alén do trabalho de divulgagao junto a um pdblico mais amplo e diversifi- cado, nos anos 70, 0 cinema nacional, mais uma vez, "renasceu'. Um exemplo dessa receptividade é 0 filme Dona Fior e seus dois maridos, cujo pablico atingiu 10.735.000 espectadores, uma bilheteria comparavel a de Tubardo que, na mesma época, levou 13.035.000 pessoas ao cinema em todo o Brasil.* Como em qualque: escolha, o critério adotado pode ser questionado. 0 leitor, cer- tamente, se ressentira da falta de um ou outro filme. No entanto, toda selecdo é, tam- bém, um ato de excluir. Os cortes, assim, sao diversos. Alguns filmes foram inspirados na literatura, revelando situagdes da vida cotidiana e da familia, a exemplo de Marvada carne, Li¢do de amor e 0 quatritho; das mulheres em Dona Flor e seus dois maridos; e de temas da histéria politica contemporanea, como em Memérias do cdicere, Eles no usam black-tie e Pra frente Brasil. Os temas politicos se repetem também nos documentarios Jango @ Cabra marcado para morrer. 0 esforco de reconstrugio do pasado historico brasileiro esta presente com Canudos e, enfatizando novamente o papel das mulheres na sociedade, em Xica da Silva, Carlota Joaquina e Etemamente Pagu. Aqueles voltados para temas da sociedade brasileira contemporanea surgem em Licio Flavio, 0 passageiro da agonia, 0 homem que vircu suco e Pixote — a lei do mais fraco, todos focalizando a vio- lencia urbana; Aleluia Gretchen, Gaijin — os caminhos da liberdade, Bye Bye Brasil Central do Brosil, por sua vez, apontam para a diversidade da sociedace brasileira. ‘Além da selec dos filmes, nosso outro desafio foi o de convidar historiacores, reconhecidos pela sua producdo académica, originérios de universidades de varios esta- dos brasileiros, para refletirem a partir de um suporte que thes é, por tradigdo de oficio, como dissemos, pouco faniliar. A escolha dos autores procurou levar em conta as temati- cas estudadas. Mas insistimos com eles que as andlises abrangessem, tal como os filmes, um pablico mais amplo: aquele que gosta de cinema. Nossa intencao foi que cada um — a partir de sua trajetéria intelectual, suas leituras e suas reflexdes sobre metodologia, arte, literatura etc. — eleborasse, com liberdade de interpretacdo e escrita, uma andlise uO 27.3 ‘Embora faja a propos desse live ¢ importante lembar que entre 1977 2 1982 a Embraflme langou quatio filmes dos Trapalhbes que, somades, ultrapassaam 20 ruilhées de espectaores, transfornando-se er. clasics da fimografia infantil brasilexa, Sobre os aimeros aqui ctados ver Faulo Sérgo Almeida. “Por dentro do mevcae". oiler. x13, juno, ano 2, 00. p. 28 sobre o filme indicado. Trata-se de uma oportunidade em que o historiador, sem abrir mao de seu rigor profissional, faca suas idéizs chegarem ao publico nao especializado. E como se ele comentasse 0 filme com um amigo, an6s sairem do cinema. Este, portanto, foi o desafio do Livro: convidar um grupo de historiadores, reconhecidos por seu trabalho académico, a escrever para pessoas que gostam de cinema — 0 que nao é pouco —, em- bora nem sempre leiam livros de Histora, Trata-se, igualmente, de uma rara oportunidade de conhecermos uma outra face de nossos colegas, mais a vontade para escrever e menos cerceados pelas regras de nosso propio oficio. Portanto, o livro apresenta os varios olhares que historiadores brasileiros ocdem lancar sobre a filmografia brasileira nos Ulti- mos vinte anos. Convicamos, entao, o leitor air ao cinema conosco. Ao final da fita, iremos comentar 0 que vimos. Muitos concorcardo com nossas idéias; outros irdo aceitar parte do que dissemos, acrescentando obse-vacdes sob critérios diferentes; outros, por sua vez, categéricos, irdo discordar. Mas nao pederia ser de outro modo. Afinal, nao é assim que fazemos quando saimos do cinema? A coletanea 6 0 resultado co pojeto Historia em Video desenvolvido no Setor de Tconografia do Laboratério de Histéria Oral e Iconografia, vinculado ao Departamento de Histéria da Universidade Federal Fluminense, Agradecemos a Angela de Castro Gomes pelo apoio constante, aos bolsistas CNPq/UFF Francisco C. Marques e Samuel D. Tavares, aos fun- cionarios do Centro de Pesquisa e Documentagio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e do Centro de Documentagao da Funarte. Por fim, agradecemos a todos os profissionais de cinema e aos colegas historiadores que colaboraram nas varias etapas de elaborac3o desse livro, que resultou, antes de tudo, da confianga no sucesso do trabalho coletivo. Mariza de Carvalho Soares e Jorge Ferreira ® mundo que muda I aie Bitte cache Joao José Reis Dona Flore sus dis mardos:viagem aur mundo que mide Nao se trata de fazer aqui critica de cinema, mas quero comecar dizendo que acho o filme Dona Flor e seus dois marides (1976), de Bruno Barreto, uma boa adaptacao da obra de Jorge Amado. Assim, tal como 0 comance, o filme pode ser visto como uma janela através da qual se descortinam diversos temas do imaginario, dos valores e do comportamento brasileiros num passato relativamente recente.* Ambientado numa Salvador provinciana da década ce 40, 0 filme é a historia de uma bela muther, da classe média baixa, esposa fiel, integra, trabalhadora, professora de culinaria, cujo marido € vadic, mutherengo, jogador inveterado, desonesto e arrogarte, bom de cama, malandio tipico, antipatizado por alguns, amado por muitos, inclusive pela esposa. 0 mari- do, Vadinho (José Wilker), morre, caracteristicamente, em plena folia de um domingo de car- naval, dos maus-tratos a que submetera seu corpo durante longos anos de farras cotidianas. Sua viva, Dona Flor (Sénia Braga), sofre profundamente a perda, enluta, mas termina por casar-se de novo com Teodoro Madureira (Mauro Mendonca), um farmacéutico metédico, tra- balhador, apreciador e praticante da misica erudita, esposo decicado e respeitoso, mas um incompetente na cama. O inverso do primeiro marido. Um ano apés 0 casamento, bate em Flor uma saudade profunda do defunto, que assim invocado se materializa nu para a ex-mu- ther, e s6 para ela, que, honesta, inicialmente resiste a seu assédio mas termina cedendo aos proprios desejos. Passa entao a viver com os dois maridos, tendo do vivo a seguranca de uma vida provida e regular, e do morto (sempre nu) uma relacao amcrosa intensa e picante, Sexo, morte, festa e comida sio elementos que estruturam a narrativa e a concepcao da trama, evocados como valores fundamentais e culturalmente entrelacados no imaginério Ts A Wissre val ae cinema brasileiro, particularmente 0 baiano. 0 filme comeca num dia de carnaval. com Vadinho fan- tasiado de mulher — inverso carnavalesca que acentua o carter transgressor do personagem —, bebendo e cantando numa mesa de bar com amigos, um dos quais alerta para a aproxi- macio de uma "gostosa mulata” que sobe a rua a frente de um bloco camavalesco. 0s ami- gos vao ao encontro do grupo e Vadinho danca lascivamente em torno da mulata, balancan- do um pénis postico de pano instalado sob a saia que veste, 0 que radicaliza a dubiedade da fantasia de inversdo sexual. Acometido de mal sibito, neste exato momento tomba morto. Morte dangando e imitando 0 ato sexual, na rua, quase defronte a sua casa, de onde sai Flor desesperade ao saber 0 que acontecera. Nesta cena se realiza imageticamente a dialética entre casa e rua sugerida por DaMatta — a rua como lugar do homem, da liberdade car- navalesca e da aventura, mas também do perigo; a casa, 0 espaco da mulher, da contencio doméstica e também da seguranca fisica e moral. No entanto, a proximidade entre casa e rua 6 tamanha que sugere mais contiglidade do que oposico, como ainda acontecia numa Bahia tradicional, conhecida por seu longo século XIX, que se estenderia até a década de 50 do século XX, quando a instalacgo da Petrobrés "modemizou" o lugar. A mencionada contigiii- dade se confirma nas cenas seguintes. Sao cenas do vel6rio de Vadinho, velério feito em casa, como era o mado antigo de morrer, tempos da morte assistids, domesticada, quando ainda predominava, mesmo no mundo urbano dos anos 40, a contigiidade entre vida e morte que corria paralela aquela entre casa e rua. 0 defunto é velado noite adentio na indiscriminada companhia de adultos e crian- 25, homens e mulheres, parentes, amigos, vizinhos.* No caso desta morte, ha uma dot maior Por ter sido inesperada e prematura, acontecida aos 31 anos de Vadinho. Mas a morte no Perde seu aspecto celebrativo; pelo contrario, intensifica-o com o objetivo de melhor satis- fazer 0 morto, em consonincia com sua trajetéria terrena e em beneficio de sua gléria extraterrena. No filme, 0 camaval progride na rua em frente a casa do boémio, ndo como uma antitese da morte, mas como vida que celebra a morte, uma festa que celebra o morto. A mera por um instante divide a imagem da tela entre o afoxé na rua e — penetrando através da janela da casa de Flor — 0 velério que se realiza na sala de visitas, 0 morto instalado em seu caixdo preferido, doado por um agente funerario que era seu companheiro de jogo. Eis que escrevi um livro sobre antigos ritos fnebres na Bahia, ndo pude deixar de apreciar a cena com particular interesse.’ E a tomada se prolonga, como antigamente se esticava noite aden- ana Flore seus dois marios: viagem a um mundo que rude tro esse ritual de separacao entre mortos e vivos, uma verdadeira manifestacao social. Ao ato nao faltam bebidas espirituosas e comida, nao faltam as conversas que celebram e as que detratam © morto em vida. Um amigo de Vadinho se aproxima da vidva e garante: "Era um batathador!" Ja a sogra, confirmando a mé reputagio que tém as sogras em nossa cultura, celebra a morte mas nao 0 morto, que segundo ela seria "um sujeito vagabundo, cachaceiro, gigol6... picareta, sem-vintém e jocador". Durante o velério a vidva descobre, nos olhos umedecidos de uma aluna de culinéria, que nao apenas a ela faltaria, doravante, o prazer da vadiacao com 0 defunto. Do ponto de vista etnografico a cena é um ponto alto do filme. 0 filme é, em grande medida, sobre a morte e sobretudo o morto, em torno de quem giram personagens e emocdes.* Assim se desenrola a viuvez ortodoxa de Dona flor, sempre cercada de amigas e comadres que lhe aconselham a deixar 0 luto fechado e providenciar novo casamento. Mas 0 luto serve precisamente para piolongat, como meméria, a presenca do morto. Uma presenca que, no caso de Vadinho, tera funcao estruturante nesta histéria. Num dia de luto, a caminho do cemitério, uma negra informa a Flor que seu defunto é filho de Exu, orixa dono da encruzilhada, mensageiro também fortemente associado a sexualidade e personagem matreiro, enganador, um trickster que no entanto funciona como elo de ligacao entre devotos e divindades, entre este e 0 outro mundo. A negra comunica @ vidva que o espirito de Vadinho esta desassossegado. Ela insinua que ele ainda daria trabalho a Flor, que continuaria rondando e brincando com os vivos, conforme se comportam entre nés as almas penadas. E realmente, bastou que ela pensasse mais ardentemente no morto para que ele retornasse a ela, exatamente quando se cumpria um ano de seu novo casamento. Neste ponto dos orixés & novamente trazida para o centro da trama porque Flor, nao desejando trair 0 segundo marido, busca no candomblé meios de se livrar do espirito do primeiro, de fazé-lo integrar-se definitivamente ac mundo dos mortos. Mas ao mesmo tempo deseja com tanta forca o amor vadio de Vadinho que prejudica o ritual que o afastaria de vez de sua vida. Seu desejo demonstra mais eficdcia do que o ritual dos mortos. 0 amor derruba a barreira da morte, ou Eros vence Tanatos, como gostavamos de dizer na época da contracultura. Morto Vadinho, Flor pensa nele ao cozinhar uma deliciosa moqueca de siri-mole, prato predileto do defunto, cuja receita é ditada e ilustrada na tela, a camera passeando gos- tosamente entre a comida e as coxas da professora de culinaria, que cozinha de camisola preta, pois o bom luto também se expressa nas pegas intimas do guarda-roupa feminino. Ela a aa Eee lembra dos labios e da lingua compe- tentes do marido, molhados de azeite- de-dendé: "seus dentes mordiam siri mole... nunca mais seus labios, sua Uingua". Siri que é na Bahia um dos muitos vocétulos para designar 0 sexo da mulher. Um mergulho da camera no prato de moqueca nos leva ao passado, a vide que Flor © tit (PUTED yacinho tiveram juntos, a cena seguinte, de sexo na noite de ndpcias. E uma refe- PT i Fencia didatica, Gbvia até demais, 2 comida como metafora do ato sexual. A meméria de Flor nos revela nao apenas o lado bom de sua relacio com Vadinho. Na mesma noite nupcial, depois de “vadiar’ com a esposa, ele troca a cama conjugal pelo Cassino eo castelo. Até os companheiros de farra estranham vé-lo ali, chamam-no de malu Co, mas ele era sim um boémio radical. E seguem-se muitas noites nas quais Flor é por ele abandonada. Ela n3o se conforma com o estilo de vida ¢o marido, pois “queria ser um casal igual aos outros’, queria filnos etc. Vadinho ironiza, e quanto a filhos diz que haveria tempo para pensar nisso. Suas diferen¢as provocam violéncia numa cena fundamental do filme. Sem dinheiro para jogar, ele toma o dela debaixo de pancadas. Depois volta, arrependido e roman- tico, dedicando-the serenata sob a janela e presenteando-a com um colar trocado por uma ficha de jogo com uma dama da noite. Flor perdoa a surra que levara. A posicéo subalterna das morenas e mulatas amadianas — anteriores a Tieta e Teresa —, boas de cama e azeite- de-dendé, que aceitam maus-tratos de seus homens, reforca estereotipos consagrados em nossa historia cultural e jé foi assunto de uma critica, azeitada a diesel, de Walnice Nogueira Galvéo.’ 0 filme, como boa parte da obre do escritor baiano, retrata mulheres que parecem adaptar-se ao absolutismo patriarcal. Num momento (1976) em que o feminismo ainda era incipiente no pats, a pelicula aparentemente reforcava o papel subalterno das mulheres em nossa sociedade Mas conforme Roberto DaMatta, a critica social esta presente no romance, nao na luta de classes que marcara uma fase anterior da obra de Amado, mas no cardter hedonista, tora Flor e seus dois mardos: viagem a1um mirdo cue muda carnavalesco de Vadinho, que supostamente subverte os velores burgueses do trabalho e a moral sexual pequeno-burguesa do casamento convencional. Sexo e trabalho, alias, sao ter- mos antagénicos na narrativa, dai o termo vadiagem como sindnimo do ato sexual. Dai Vadinho. Sua preguiga e sensvalidade se erguem como elementos subversivos do mundo da ordem, do trabalho e da temperanca representado pelo segundo marido de Flor. Teodoro da a ela conforto, reqularidade, segurenca, e também busca envolvé-la em sua vida social: leva-a para sonolentos concertos de mésica enudita ou para palestras incompreensiveis sobre far- macologia. Ela, em seu reduzido alcance intelectual, encara a cultura livresca de Teodoro com grande admiracao: ele "sabe de tudo". Aceita inclusive que ele mude as regras do Gnico espaco reservado ao peder feminino, o ambiente doméstico. Em casa, 0 fermacéutico impoe seu lema: um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. Acometido de uma mania clas- sificatéria, 0 marido chega a etiquetar 0 lugar dos objetos nos cémodos e comodas da casa, etiqueta inclusive o lado que cada cOnjuge devia ocupar na cama. Regulamenta com precisao © espaco, e também o tempo. Sexo sé em dias marcados, uma cépula burocratica sob os lencéis, estilo papai-mamae, temperado a ejaculagao precoce. Eis a vidinha ordinéria de Flor que o marido morto ven subverter, mas atendendo a uma convocacao dela. Flor no desgosta de tudo nos modos do segundo marido, ordinario mas, como acabei de dizer, respeitador, provedor, presente. Entretanto, dengosa amadiana que é, quer também a excitagéo amorosa, a desordem moral promovica pelo primeiro marido. E quando este retor- na, depois de alguma hesitacao, ela o aceita e sua vida fica dtima. Ao decidir manter os dois maridos, Flor conquista o melhor dos dois mundos, como fica registrado na Gltima e otima cena do filme. ‘A obra de Jorge Amado — e 0 filme lhe é fiel — propde uma saida negociada para a mulher, Apesar de Flor manter-se perfeitamente dentro dos padres de comportamento vigentes, sem abalar estruturas patriarcais na sociedade dos vivos, ela consegue o que afinal deseja através de uma digamia clandestina, invisivel e silenciosa, envolvendo um membro da sociedade dos mortos. Ela explora a terceira via, a via do meio, aquela que segundo DaMatta melhor expressa a dinamica da cultura brasileira. Nao se rebela contra sua condicdo, mas nao desiste de ser feliz, sobretudo de assumir sua sexualidade explosiva. A historiografia republi- cana recente revela que Flor nao estaria sozinha nessas demandas, embore a maioria dos estu- dos se refira a mulheres das camadas populares, o que nao era exatamente o caso dela.’ 0 fato A iscia vai 20 crema 6 que a personagem nao se acomoda a sua condi¢do. Essa é uma leitura do filme que tem um Pé também na teoria da resisténcia social molecular, que privilegia os pequenos gestos indi- viduais de ruptura no cotidiano opressor, em lugar da ruptura coletiva com as estruturas que condicionam este cotidiano. Nesta perspectiva, escravos, operarios, mulheres e outros gru- Pos sem poder estrutural garantiriam alguns ganhos através de artimanhas pessoais e da manipulagéo dos que detém tal poder. Com isso, sem se transformarem em herdis, seriam liberados daquela posicao de eternas vitimas a que os empurram as teorias convencionais de dominacao social.” Esta é uma leitura possivel da posicao da personagem central. Mas ha um herdi nessa historia, embora daqueles quase sem carater, um vencedor chamado Vadinho. Se a historia é de Flor, Vadinho também conquista o melhor dos dois mundos. Malandro fino, na vida e na morte ele parece existir para ser servido. Na morte, alids, ganha condicdes de melhor ser servi- do, mas também de servir, como € 0 destino dos herdis. Reconquista o amor de Flor, agora em Perfeita harmonia, e adquire sucesso permanente na roleta, cujo resultado antecipa através de seus poderes de entidade do além. 0 jogo e Flor, esses os dois amores definitivamente ganhos Por Vadinho. £ realmente um porreta, como afirma 0 amigo preto no seu entero Esse negro é interpretado pelo ator baiano Mario Gusmao, que trabalhou fazendo Pontas com Glauber e outros diretores do Cinema Novo.* Gusmao, que morreu na miséria em 1996, € um bom guia para um outro aspecto do filme que quero comentar. 0 negro diz que Vadinho um porreta — e o que ele (0 negro) &? Em primeiro lugar, parece uma sombra que vaga silenciosa na tela entre os amigos do morto e cuja Gnica fungio 6 precisamente dizer, em duas cenas, no cassino e no cemitério, que o branco louro Vadinho & um porreta. Ah, ele também acende, solicito, 0 cigarro de Vadinho numa das cenas. Os personagens negros sao raros neste filme ambientado numa Bahia tao cultural e demograficamente negra, e, em geral, se encaixam nos papéis tradicionalmente reservados a eles na sociedade baiana: prostituta, praticante de candomblé, folio de afoxé, mtisico, malandro (embora o rei dos malandros aqui seja 0 branco Vadinho, a0 que voltarei adiante). Esto todos ali principalmente para servir e homenagear os protagonistas centrais, que séo brancos ou mesticos claros. Inclusive Flor/Sénia Braga, que aparece como branca baiana na Gnica fala em que o discurso racial emerge explicitamente. E quando a prostituta negra Dionisia, inquirida sobre 0 assunto por Flor, lhe responde que o pai do filho dela, também apelidado Vadinho, nao é 0 Vadinho de Cena For e seus dois mares: viagem a um mundo que muda ee 67.) homem de Dionisia € negro e nao gosta de branca. Este ¢ 0 Gnico toque de tensao racial no filme, e vem da boca de uma negra. E de se refletir por que, entre os varios contrastes que separam os dois maridos de Flor, nao se inclui o contraste da cor, no filme ou no romance. Vadinho nao podia ser um negro? Fiel ao romance, no filme ele também é branco e louro, se " fixando nos limites da civisdo de classe e cultura, 1 a Re, Mew. AD certamente mais palataveis pare a indUstria cultural da 6poca. Pois como seria empregar, ha trinta anos — e talvez ainda hoje, ano 2000 —, um ator negro nas cenas ardentes que José Wilker divide com Sonia Braga? Teria a censura mili- tar, que inicialmente proibiu tais cenas, liberado tudo como mais tarde o fez, embora ja pas- sados quatro anos do langamento do filme?’ E teria o filme resultado ne sucesso de piblico que teve? Para além da ditadura militar, é importante considerar o Brasil que entao tinha- mos, onde, tal como no caso do feminismo em relacao a mulher, os movimentos negros eram embrionarios e ainda nao haviam levado o pais a pensar suas mazelas raciais. Na época teria sido realmente iconoclasta um negro no papel de Vadinho, porque, apesar da nossa mestigagem cantada em prosa ¢ verso, estariam sendo levadas para a tela, para o plano da arte visual de massa, relacdes que na verdade pertenciam aos bastidores e as margens da nossa sociedade.” A mesticagem & um dos mitos de origem do pais, e em Jorge Amado repre- senta quase uma ideologia politica. Mas na pratica ela em geral ocorre fore da familia legiti- mamente constituida. Casamentos inter-raciais na altura do lancamento do filme Dona Fior, apesar de mais fregiientes aqui do que nos Estados Unidos, por exemplo, continuavam minoritarios no nosso mestico pais. Segundo 0 censo de 1980, apenas cerca de 20% dos casa~ mentos no Brasil eram inter-raciais, a maioria acontecendo nas fronteiras do gradiente de cor de pele, ou seja, entre pardos e pretos ou entre pardos e brancos. Em Salvador, a proporcao dobrava para 40,5%, mas a de brancos casados com pretos representava apenas 3,2%, peque- nna mas mesmo assim a segunda maior proporcdo num centro urbano (a primeira seria Sao Luts, com 3,3%)." Seria politica e comercialmente temerério fazer um filme sobre casamento que, no caso do pblico baiano, refletisse a realidade de apenas 3,2% da populacao casada, pro- a A Historia a 2 cinema orgao perto de zero no caso da maior parte do Brasil urbano. Para serem amados pelo pabli- Co pagante brasileiro, majoritariamente branco, Vadinho precisava ser branco, e Flor também. Como sao varios os angulos de uma historia, € possivel também argumentar que a presenca de um malandro branco, além de ser fiel a0 texto amadiano, tinha seu charme de subversao, sobretudo sob um regime militar, enquanto a de um malancto negro apenas con- firmaria esteredtipos racistas consagrados no Brasil. Com o capital simbolico que representa- va a cor de sua pele, Vadinho poderia ascender socialmente, mas preferiu a vida de boémio Pobre. Era um branco porreta, afinal de contas. 0 problema é que neste filme todos parecem sé-l0 quando a questio é racial. Acompanhando o diagnéstico — alias predominante na lite- Tatura académica dos anos 40 e 50 — de que existia na Bahia preconceito de classe e nao de raca, o filme silencia sobre 0 assunto. Um siléncio revelador. No filme, a aparente demo- cracia racial, com seu equivalente sincretismo cultural, suporta a presenca de apenas um negro no circulo de amigos de Vadinho — um verdadeiro token black —, uma negra entre as amigas de Flor, mesmo assim nao do seu circulo mais intimo de amizades. Ambos repre- sentam negros que ganham espaco social através da associago com brancos, e nao de acaes solidarias dentro do proprio grupo (a0 contrario, por exemplo, do personagem Pedro Arcanjo de Tenda dos milagres, romance e filme). Ele & 0 Gnico negro entre os freclentadores do cassi- no, ela, uma prostituta ligada ao candomblé, que se torna comadre de Flor — esta lhe bati- za 0 filho —, sendo o compadrio uma forma consagrada de aproximacao entre desiguais no Brasil, e 20 mesmo tempo um rito que consagra a desiqualdade. Assim, embora com algum esforco, € possivel perceber uma Bahia mais real, com componentes de segregagao racial, mas onde brancos da classe média beixa provinciana, ou melhor, da pequena burguesia baiana — aqui representada por Dona Flore seu primeiro mari- do — circulam por ambientes e praticas culturais que seriam predominantemente negros. Tanto Flor como Vadinho tém contatos com o candomblé, ela & mestra da culinéria negrobaiana, ele gosta de samba etc. etc. Havia e hé gente assim na Bahia e pelo Basil afora. Resultou @ @ desses comportamentos ndo convencionais de brancos remediados que muitas manifestacoes da cultura deixassem de ser consideradas "coisa de preto” para se legitimarem como parte da “identidade nacional’. Mais do que Flor, é Vadinho, no entanto, quem desempenha um papel mais ativo de medizdor cultural, porque circula também nas esferas afluentes da sociedade, sobretudo entre os elegantes que freqiientam 0 cassino, dos quais, quando vivo, arrancava Dora Flere seus co's mars: visgem a um mundo que muda favores, Ainda como mediador, circula também entre 0 mundo dos vivos e 0 dos mortos.* Neste sentido contrasta mais uma vez com o segundo marido de Flor, um personagem social e culturalmente fixo, freqiientador apenas da "boa sociedade’, dos circulos académicos, dos concertos de musica erudita e da Igreja Catélica carola. 0 catolicismo é um outro espaco fisico e mental de circulac3o constante dos per- sonagens, Lé esta Dom Venancio, um padre disposto a emprestar a Vadinho dinheiro da paréquia a fundo perdido, ou que ouve paciente as confidéncias de Dona Flor a respeito de uma espécie de mal-estar existencial causado pela falta de emogdo em sua vida afetiva com o farmacéutico. 0 padre é um sujeito compreensivo, personagem apropriado para uma religiao representads como tolerante diante dos desvios de seus adestos, nao a igreja inquisitorial de 0 pagador de promessas, de Dias Gomes. 0 malandro Vadinho sente-se em casa nessa igreja. Na visita em que arranca um empréstimo 2 Dom Venancio, ele comenta com este sobre a cara descarada da imagem de um anjo no altar de Nossa Senhora, "cara manjada de gigol6", de "anjo fretando a santa*. Para Vadinho sexo & coisa sagrada, "vadiagem & coisa de Deus", pois Ele teria dito: "Vo por ai, meus filhos, fazer neném." E a religido sensualista de Gilberto Freyre a Jorge Amado, um catolicismo cujos devotos desde os tempos coloniais brincam de sexo pra valet, € das mais diversas e criativas formas, como revelam os estudos recentes baseados nos documentos do tribunal da Inquisicao portuguesa.” Entre os pecadores incluam- se 0s padres, como atesta aquele olhar interesseiro que Dom Venancio dirige 4 magnifica bunda de Flor. Mas hé também a Igreja hipécrita, aquela das amigas beatas de Flor, a quem \Vadinho ofende e espanta mostrando-thes seu traseiro branco na entrada da missa. Essas mes- mas mulheres conversam sacanagem entre si, em geral tematizando o luto excessivo de Flor. Quando esta queixa-se de uma dor de cabeca, Dinord (Nilda Spencer) comenta: "Enxaqueca de vitiva é falta de homem." 0 filme trabalha bem 2 idéia, antropologicamente correta, de que afinal de contas quem faz a religiao sio os devotos e nao os tedlogos. Ou melhor, estes fazem 2 religiao, aque- les a religiosidade. 0 proprio retorno de Vadinho do mundo dos mortos nao esta previsto na doutrina, sempre desconfiada de que tal fendmeno — espécie de atavismo pagao relaciona- do com 0 culto dos antepassados — desviasse o fiel da devogao devida exclusivamente aos santos e 3 Divindade. A relacdo com os mortos é um aspecto da religiao vivida, e realmente assunto mais bem tratado fora da Igreja, através do espiritismo ou do candomble, no qual a7 Astra val ao cinema, alias a catélica Flor vai buscar remédio. Remédio para tratar de morte mas também de vida, pois é lé que ela procura meios para engravidar, ‘Apesar de inevitavelmente caricatural em muitos aspectos, Dona Flor e seus dois Imaridos é prato cheio para se pensar historia e cultura brasileias, sob diversos dngulos. Mas 0 Brasil urbano de Fir e Vadinho é um mundo que, para melhor ou pior, estamos rapidamente deixando para tras, diante da emergéncia de outros valores e comportamentos, manifestos por @eemplo na expansio de novas formas, ideologicamente mais militantes, de religiosidade; no avanco de formas mais competitivas e individualistas de trabalho e lazer, de viver e de mor- ‘er; na formagao de identidades coletivas que celebram e defendem a alteridade e nao a mis- tura social, racial e sexual. Mudancas sobretudo no que diz respeito ao papel da mulher na Sociedade brasileira. Embora os Vadinhos continuem a brotar, mesmo se de roupa nova, quase nao existem mais Flores como antigamente. deco os comentarios fetos fer Mariza de Carvalho Somes a este text Roberto DaMatta escreveu un ensio impersivel sobre o scmance de Jonge Amato on objetivos semelhantes, o qui estarei sempre retorrando neste texto. Micha discussdo do filme converge om a tos aspectos, mas também tems nos- sas Giferencas. Ver Roberto DaMaca, A case & a rua: especo, cidadenia, mulher € norte no Bras, ¢*ed., Rio de Jara bara Kogan S.A., 1961, pp. 103-161 séptica, solitaria e hospitalar de or ons dit Seal. 197 nice Nogueira Galva, "énadk creas (Sa0 Paul, D por exemgplo alberta ke 0, "Salvador das mulheres: condiso feminina e cot ita, Dissertacéo de Mestrado. UFBa Faz e Terra, 1989. Ver a este respets a excelete atordagem de personagens machatlianos por Sidney 0s politico: em Machado d: Assis’, in Sidney Chalnoub e Leonardo (orgs.).A hist cavitulos de histéria socal da iterate Janeiro: ova Fntera, 198, cp. 4 ver Jeferson Bacel, "Matic 1920-1996): 0 Sante Guerreiro Dragio ds Maldade’, frodsia, n° 19/20 (1997), pp. 257-27 1976, apenas er fe se: exibido por inteiro. eracio pelo Conselho Saperia mente noticiaia. Ver po Sto imprecisos os dados «bre na Bahia de Dona Flor. Em meados da léada de 30, Pietson acho: que» mntos inter-racais andavam. na casa dos 3% de uma amostra de 1.219 ti jesconfiava ser esta uma prozoryéo astante subestimada; ja Tales ene, que aquela. prozor Ps, MS, as Pa A Pa a il atingir 20 por cent cose pret Nacional, 19 Ver Eiza Bercué, “Como se cazam negras € no Brasil” in Peggy Lave (0 30 Bras pordneo, Belo Horizonte: UFMG/Cedoplay, 1 Racial Distance and Region in Brazil: Interma Research Review, p assurto, Nelson do Valle 5 Hasenbalg, Relap de Janeiro: Ric Fundo Etitora, 1992, caps. 2,32 4; eF 4ecismo cordial, Seo Paulo: Atica, 1995. yp. 181-191, em que, a partr de uma ampl: Pesquisa (5.081 entrevistados) feita em 1995, cencluise que a esmagedora maior dos brasilaincs ce todas as cones se declara sem preconceito quanto 20 casanent por exempl ahia, oviginalmente publiceéo em 42; € Azevedo, At elite Ver Peter Fry, Fora inglés ver: identidace e politica na cultwa brasie Janeiro: Zahar, 1882, cap. 1 # Hermano Vianaa, 0 mistério do samba. Jorge Zaha: /EDUFRJ, 1995. DaMatta, op. cit, p. 168, prefer acer‘uar 0 papel de Fl ¢ da magicamente ertze dois mundes, ser relaconal sor excelénc, por exemplo Ronaldo Vans, Tépices d Rio de Jareir: Canpus, 18 a7 AE TP Pk MF PP Mg MP al Pa ill PY MW in ct situaitn Thabe Marion Brepohl de Magalhaes Alluia, Gretchen: un hotel para © Reich a A imaginagao é a memoria que enlouqueceu. Mario Quintana A semeltanga do historiador, o diretor de cinema faz uma montagem do passado, real ou imaginado, ¢ 0 revela, a partir do filtro de sua camere, ao espectador. Ali, cada imagem- movimento — angulagao, enquadramento e composicae, iluminagao, edigao de som, e ainda © ritmo (mais apressado, sugerinco acao, mais lento, sugerindo reflexio) — sera integrada as demais, cuidadosamente produzidas e ordenadas en seqiiéncias, cujo produto final é o filme: uma visdo de mundo, um fragmento do acontecico, que se expressa ao oltar do espec- tador, desocuttando' detalhes que escapam a fugacidade do olhar natural. Como no oficio do historiador, 0 que é elidido da "montagem" nem sempre & mostrado ao piblico; o que ele recebe é uma filtragem mediatizada pela experiéncia de outrem. Mas, diferentemente do historiador, que busca atingir a consciéncia do leitor, o filme penetra nas fantasias e nos sonhos do espectador, dialogando todo 0 tempo com o seu in- consciente visual. € a partir dessa interacao — o olhar do que produz o documento a ser revelado de acordo com uma determirada lente, e 0 do espectador — que me proponho a comentar Aleluia, Gretchen. Eu, espectadora privilegiada, uma vez que, como Sylvio Back, também reali- zei um percurso pela documentacao que trata da imigrecéo alema e do comprometimento de muitos membros desse segmento social com o nazismo.” Aleluia, Gretchen na obra de Sylvio Back Um dos grandes méritos de Aleluia, Gretchen é que ele representa a primeira elabo- taco a tematizar o fendmeno nazista no sul do Brasil. A istéia vai ao cinema Antes deste filme, a influéncia nazista entre os imigrantes de origem germanica so fora tratada na literatura, por Erico Verissimo (1935) e Vianna Moog (1940), ou em livros n3o- académicos, de autoria de jornalistas ou delegados de policia, em tom panfletario e conspi- fat6rio, caracteristico do nacionalismo xenofobico dos anos 30. Da parte dos historiadores brasileitos, a imigragao germanica fora até entdo celebrada como uma contribuicgo de ines- timavel valor para 0 progresso da racdo brasileira: afinal, aqueles homens eram brancos, Morigerados e laboriosos, 0 que cooperaria para o desenvolvimento econdmico do pais e para © branqueamento da raca.* E neste contexto que o filme de Back, produzido em 1976, intervém como uma con- tra-historia, 0 que ros remete ao contexto cultural da cinematografia brasileira daquele perio- Go; da mesma forma como 0 Cinema Novo elegeu a "realidade nordestina" como parabola Politica do Brasil moderno, com uma estética desagregadora e agressiva, Sylvio Back “deso- culta" @ regiao Sul freqiientemente enaltecida pela historiografia como sinénimo de pro- gresso € convivéncia harmoniosa entre racas e classes sociais. Por esta razdo, creio ser inte- ressante resgatar dois outros longas-netragens de Back: Lance maior (1968) e A querra dos pPelados (1971) que com Aleluia, Gretchen compdem uma trilogia considerada por alguns criti- Cos como “a fase regionalista" do cineasta, posicdo da qual nao compartilho inteiramente. Lance maior € um filme que trata, nas esteiras da nouvelle vague, muito mais do moralismo classista e da sedugao da sociedade de consumo do que de uma tematica especificamente regional. 0 filme narra as angdstias cotidianas de trés personagens que compéem 0 tridngulo amoroso do enredo: a burguesinha alienada Cristina (Regina Duarte), 0 estu- dante universitario e bancario Mario (Reginaldo Faria) e a balconista de subirbio Neusa (Irene Stefania) Nesse filme, segundo o proprio autor, elu, Gretchen: um het para o Reich ‘A cidade de Curitiba e o Parané sulino e litordneo assumiam uma visibilidade fiecional imagética e verbalizada a partir de um projeto autéctone. A alma do roteiro e o olho no visor tinham cordées umbilicais atados a realidade paranaense [...] no entanto, 0 filme guardava indisfargavel parentesco com ‘0 cinema renovador dos anos 60, como Sao Paulo $/A, de Luiz Sérgio Person, e Barravento, de Glauber Rocha.’ Em A guerra dos peiados, Back representa o conflito do Contestado, ocorride na divisa do Parana e Santa Catarina ne primeira década do século XX, em que os "pelados' (posseiros da regio) sao massacrados pelos "peludos" (os latifundiarios, as empresas estrangeiras de colonizacdo e 0 exército). Apesar de ser um dos capftulos mais contundentes da historia suli- na, 0 filme parece dialogar, enquanto universo ficcional, com Os sertdes, de Euctides da Cunha, ou com Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. Finalmente, em Aleluia, Gretchen a regio Sul € novamente 0 cenério em que se desen- volve o enredo, mas as seqiiéncias, a sonoplastia, as imagens-movimento evocam temas uni- versais, como 0 racismo, as relacoes familiares, a ditadura (hitlersta, getulista e peronista). Imigrantes e nacional-socialismo: fragmentos de um diario 0 filme narra a saga da imigracdo de uma familia alema para 0 Sul do Brasi, @ familia Kranz, um microcosmo por onde circulam, ao longo de 40 anos, varias conviccies e senti- mentos que convergem a experiéncia social do nazi-fascismo. Na primeira parte (1937), a chegada desses imigrantes e seu estranhamento 2 comu- nidade local. Na segunda parte, as vésperas e durante a Segunda Guerra, a familia, que se soli- darizou ao nazismo e ao integralismo, softe violentas represétias por parte dos “naciorais", 0 que nao a faz abdicar de suas idéias, Na terceira parte, anos 50, ex-oficiais das SS, em trinsito para a Argentina, hospedam-se no hotel dos Kranz, fazendo-os reviver sonhos e frustragies da ‘Alemanha nazificada. Finalmente, nos anos 70, a familia se reine em tipico piquenique alemao para homenagear sua matriarca, momento em que, 20 som da “Cavalgada das Valirias”, em ritmo de rock," e de uma batucada tipicamente carioca, inicia-se uma danca que encera o filme. Para intercalar as seqiiéncias do filme, interpdem-se fotomontagens que mesclam imagens da Juventude Hitiersta, desfile marcial, marchas e outras, as quais deven dotar de AWistéria vai ao ciema significado, segundo o autor, a propria narrativa.’ Afora essas imagens, os personagens falam mais do que 0 propio argumento: mas nao se trata de um filme de carater psicoldgico, que busca aprender 0 universo subjetivo dos individuos; pelo contrario, cada um deles é uma alegoria a respeito ¢e sentimentos @ conviccSes cue tornaram possivel 0 nazismo. Na primeira tomada, 0 foco da narrativa se concentra na chegada e instalacéo dos Kranz no Hotel Florida, que acabaram de comprare que sera "seu negécio" no Brasil, A esco- tha do hotel como cenério principal nao se da obviamente ao acaso. Num hotel, nao se tem Passado ou futuro, 3 intimidade do lar impde-se 0 contato com gente de todo tipo. Trata-se de uma estadia provis6ria, como certamente os imigrantes nazificados passaram a imaginar 0 Brasil. Além disto, todo o seu interior foi decorado com moveis e objetos tipicamente alemdes, 0 que simboliza as fronteiras entre Brasil e Alemanha: o primeiro, ensolarado e ale- gfe, 0 segundo, escuo e misterioso. Alias, & curioso observar como raramente os membros da familia deixam este espaco circunscrito; algumas vezes aparecem na janela, tecendo comen- tarios sobre seu novo ou velho mundo, e quando saem, limitam-se ao seu proprio jardim, sem manter contato com quaisquer outras pessoas. Dos personayens, Heike (Kate Hansen), filha mais velha dos Kranz, est gravida; foi seduzida (ou violent:da?) por um oficial das SS, nao por amor, mas pela intencao dele em gerar filhos arianos ara Hitler. Dela nascera Gretchen, que simboliza a esperanca de se criar uma outra Alemanhaem solo brasileiro. Gudrun (Selna Egrei), a outra filha, representa a miscigenacdo — ela se casa com um brasileiro, Eurico (Carlos Vereza), oportunistz para quem nao importa qualquer ideologia, e sim suas chances de ascensao social. Josef (Lorival Gipiella), 0 filho mais novo, encama a Hitlejugend; fanatico, violen- to, voluntarista, logo se decide pelo retorno 2 pitria de origem (sonho alias acalentado por todos), de onde nunca voltara; “ha mais juventude na guerra do que no amor’, declara. O negro Repo (Narciso Assumpcao), servil criato, e a cozinheira Frau Minka (Lala Schneider) epresentam, para a imtacéo das esquerdas dos anos 70, a classe trabalhadora sem qualquer cons- ciéncia revolucionaria. Repo revela, com toda @ nitidez, como o imaginério politico do colonizador subjaz na consciénciz do colonizado; sob a coergo moral dos Kranz, ele absorve as seus valores, tomando-se inclusive anti-semita. Sua maior devogao é para com Mami, matriarca da familia. Frau Minka, 20 contrario, odeia os Kranz, mas também rejeita a sua propria classe a Alslua, Gretchen: um hotel paz o Reich social, depositando suas esperancas de libertacio no "retome a patria de origem” ou ro filho Wilhelm (Rafael Pacheco), um arrivista cuja subserviéncia sugere o colaboracionismo. Nao menos importarte é 0 agregado Aurélio (José Maria dos Santos), um brasileiro que j4 pertencia ao mobilirio da casa, adepto fanatico do integralismo e admirador incon- teste de Hitler. Tannenbauer (Joel de Oliveira) & o pastor luterano, dersonagem ambiguo, que reve- rencia os Kranz, mas também se afasta da ideologia nazista e deruncia o antigermanismo do Estado Novo e as persegui¢des de que foram alvo os imigrantes e a propria Igreja Luterana, enquanto uma confissao religiosa a-catélica. E a personagem principal, Lotte (Miriam Pires), @ a figura central, que exerce domi- ago sobre todos cs membros da familia; Mami, alegoria da mae-patria Alemanta, ¢ espe- cialmerte caracterizada em seu relacionamento com o marido, Ross (Sergio Hingst), um live- ral que fugiu da Alemanha por suas conviccdes politicas. Este professor, permanentemente culpado pela sua propria derrota, rejeita todos os aspectos co comportamento de Mami: sua postura assexuada, sua hostilidade aos intelectuais, a rigidez moral, mas subordina-se a ela, pois dela depende seu sustento. Ross deixz-se torturar todo o tempo pela sua mé conscién- cia (schlechtsgewissen), nutrinéo uma secreta simpatia pelo Brasil. Quando a pequena Gretchen morre, ele, sozinho no cemitério, confessa: — Eu pretendia resistir. Juro pra mim mesmo. Sabia de antemdo que acabaria encurralado pelos outros. Toda uma geracao contra a parede, professor Huller. Quando vi, queimavam meus mestres. Cada pagina que virava cinza retorcia no meu coragio. Me enganei. Outros também... Resistir passivamente, ficar na segunda fila, no canto da sala, em siléncio. [...] Como é que eu podia agiientar 0s questionGrios, acareacdes com os alunos? Uns meninos, garotos que vinham de uniforme me acusar. Dedo em riste. Lotte, e vocé? Nosso proprio filho... Fingi tanto, menti, desmenti. [...] Fui fraco, ndo, sou fraco, Ou minhas idéias que sao velhas? Desde quando discordar é anacrénico, Lotte? [...] A maldigao foi cairem cima desta crianga. Queriam o qué? Meu internamento? Que eu morresse? Por acaso jé ndo mort? [...] Fique aqui, Gretchen (chorando) [...] vocé precisa viver, Gretchen, eu cuido de vocé, Gretchen, nao deixo a Lotte te pegar. Aeesta Alemanhaa fragilizada e impotente se contrapde a Alemanha de Lotte. Na noite de Natal, ela se levanta do lugar principal da mesa e discursa para a famili — Hinguém, nenhum de nés se acostuma com a auséncia do pequeno Josef [...] fico até envergorhada com o meu egoismo [...] Quando todo o pais entregou sua juventude para defender um ideal, ficamos nés a lamentar a falta de um ente querido. £ um tempo de miséria e salvagao nacional [...] é © prego de um futuro glorioso. Ha luta e os nossos estéo lutando. Eles per- tencem é nossa querida Alemanha. As cenas entrecortadas, as elipses propositadamente exageradas, o uso de tons escuros quando 0s didlogos remeten ao quinta-colunismo, sugerindo complé, adquirem maior intensidade no momento em que os amigos de Kranz chegam ao Brasil, na década de 50. Refugiados da Alenanha p6s-hitlesista buscam acolhida na Argentina de Perén, o que nunca se realiza, para desgosto de Eurico — que acaba pagando a conta quando da decadéncia econdmica da famitia —, e para o prazer de Lotte, que naturalmente odeia o genro, e que vé em seus eternos hispedes um pedaco da Alemanha em seu hotel. Serdo eles, numa cena grotesca, que representerio as conexdes entre a ditadura militar brasileira e a alema. Face a resisténcia de Eurico em permitir que permanecessem no hotel, os héspedes, vestidos de SS, o seqiiestram no meio da Noite, com o consentimento de Gudrun, e 0 torturam com técnicas semelhantes as do DOI-Codi e da Gestapo: quem nao quiser ser expulso deve saber expulsar.. Ao Nesta seqiiéncia, ao mesmo rev es, (PP ee AT tempo em que se tortura, Rose Marie (Lilian Lemmertz) acaricia as coxas e 0 pénis da vitima, e por este gesto excitam-se também os dois SS que, de repente, abracam-se e passam a dancar freneticamente com a mulher. Alluia, Gretchen: um hotel gate o Reich Esta cena prepara o final da narrativa. Vinte anos depois, os personagens, com a mesma idade do inicio, aparecem no piquenique para homenagear Mami, e neste momento quase todos so tomados por uma euférica nostalgia, ao som de Wagner e de uma batucada tipicamente carnavalesca, cena que nos faz lembrar Terra em transe, de Glauber Rocha. E Ross declara a ume amiga da fami — Que bela Hitlerandia, hein, inge? — Professor, uma coisa é certa. Passaram tantos anos mas ainda esta fecun- do o ventre de onde saiu essa gente imunda. 0 filme e seu ditetor Contrariando as expectativas de fimes nacionais daquele periodo, Aleluia, Gretchen teve uma excelente bilheteria. Foi também um filme que recebeu diversas premiagées e, logi- camente, pelo tema abordado, suscitou muita polémica. Admiradores de Getiilio Vargas sen- tiram-se insultados, a censura cortou algumas imagens dos jovens nus, a colOnia alema sen- tiu-se ultrajada. Merecem destaque es afirmativas de que o filme de Syivio Back ndo possuia uma unidade dramatica que estabelecesse unidade causal entre a totalidade das seqiiéncias, 0 que dificultava a compreensao do roteiro, e que 0 filme retirava dos personagens sua respon- sabilidade pelo nazismo." Segundo nossa avaliagao, este ¢ um julgamento que exige do filme a mesma inteligibilidade de uma narrativa literaria ou hist6rica. Nao € esta nossa posi¢ao. Ainda que em Aleluia, Gretchen, como é freqiiente no cinema brasileiro desse perio- do, realizem-se enquadramentos muito proximos a linguagem do teatro, e ainda que os dialo- gos muitas vezes estejam descolados da imagem, o filme deve ser interpretado enquanto dis- curso cinematografico. Cabe portanto atertar para as cenas que escapam ao saber dos per- sonagens, € que sao expressas apenas ao olhar do espectador," a quem cabe produzir suas proprias intervencées na narrativa: referimo-nos aqui a algumas imagens que se interpoem entre os quatro episédios narrados. Se estes so apresentados como fragmentos de meméria, aquelas dotam de significado a saga dos Kranz, desfazendo ou pelo menos atenuando as elipses entre uma e outra experiéncia. Sao elas, talvez, 0 meganarrador do filme. Citemos alguns exemplos, a guisa de ilustragao. yv A istra ai 20 cinema Antes mesmo de se iniciar a trama, © nome do filme ¢ apresentado em letras goti- Cas, seguindo-se a apresentacao do elenco e da equipe, ao som da “Cavalgada das Valquitias”, A miisica de Richard Wagner, que evoca 2 Alemanha hitlerista, reapareceré quando da chega. da dos $8 no Brasil, e ao final, durante o piquenique. Esta sonoplastia conduz o espectador 2 um outro lugar que nao o Brasil, e que assume forma no Hotel Florida, primeira cena do filme, cujo interior, como ja se mencioncu, reproduz uma tipica residéncia germanica, Uma outra seqiiéncia que € exclusiva ao olhar do espectador: um acampamento da Hitlerjugend, com a bandeira nazista no centro do quadro. Jovens nus correndo na floresta, fute bol, 0 som da cometz, fogueira. Nos fotogramas que sucedem, o nascimento de Gretchen, que no entanto teré curta vida, 0 que leva sua jovem mae & loucura. No funeral de Gretchen, que rep- resentava 2 nova Alemanha no Brasil, (é-se 2o fundo da sala numa grande flamula: “Wir lieben unseren Fiihrer” (nés amamos nosso lider). A terceira cena que destaco é a que apresenta as evolugdes de um desfile de uma banda escolar," sobre a qual se sobrepde a imagem (em primeiro plano), e depois, misturan- Go-se aos integrantes da banda, de criancas trajadas com uniformes da $5, maquiadas de branco. De metrathadoras na mao, atiram em direcdo a cémera. Atrés delas, no terceiro plano, imagens répidas e entrecortadas de pessoas mortas, caidas no cho. Apenas um menino fan. tasiado de indio permanece de pé. Os fotogramas que se sucedem, apds abrupto corte, sao de retaliagdes dos "nacionais" ao Hotel Florida, no meio da noite. Inicia-se a guerra na Europa, mas também no Sul do Brasil, entre dois nacionalismos irredutiveis: 0 dos adeptos do nazismo e 0 dos adeptos do regime de Vargas. E a quarta cera, talvez a mais importante de todo o filme: no discurso de Mami na de Natal, em camera alta, Lotte esta em primeiro plano, na cabeceira da mesa de jantar, Porém de costas para o piblico. Conforme ela vai falando, a camera abaixa até o eixo do olhar, focando, em close, 0 perfil da mulher. No fundo, ocupando todo o espaco da tela, a bandeira nazista. Em sequida, sio filmados os semblantes dos membros da familia: respeito, medo e édio. E firalmente, no epilogo, a fuséo da misica de Wagner ¢ a batucada carnavalesca, aludindo ao 1V Reich e a ditadura brasileira. Assim compreendo esta narrative cinematografica, cuja linguagem ngo pode ser confundida com nenhuma outra. As imagens adquirem sentido no momento em que atingem 0 olhar do espectador. € a ele que cabe dotar de unidade 2 meméria da familia —n Aleuia, Gretchen: um hotel para 0 R'ch Kranz. De resto, lembre-se que Sylvio Back nasceu em 1937, em Blumenau, descendente de alemaes e de htingaros, e estreou seu filme primeiramente na Alemanha, em Berlim, @ no Brasil, em Curitiba. Gracas as técnicas do cinema, o diretor conduziu esta hist6ria para © lugar em que ela foi produzida. MR. ao 1 termo, empresado com toda a propriedate,é de Isnail Kaver. "Cinema; revelaio ¢ engeno". In Novaes, Adauto (ot). 0 ofa. SP, Companhia tas Letras, 1988, pp. 367-383. ‘Além das refertacias citadas nas notas, yaa o maior aprofundamento do assurto ver Back, Sylvie. Syvio Back no ci do. Cur Brepohl de Magilhdes, Marionilde Dias. Pangermanismo alert rumo a0 Easi. Campinas, Editor d Unicamp/Fape Cinena a 0 Brasiense, 1985; Le. Goff Documento-Mozumento pédia Finale, Memoria-Histia Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984, pp. 95-106; Moog, Vanna, Petto Alege, Globo, 1940; Verissimo, , dose Aguilar, 1966. pp. 579-8 se dois trabalhos coetdneos ao de Syvio Back, mas que foram levados a p 0, como lio, em data posterior: A sudstica sobre o Basil, de Stanley Hilton (Rio e Janeizo, Civiizacio Brasleza, 1977), e Nacionaismo e identidade étrica, de ja Seyferth (Roriandpolis, Findacao Catarinense de Cultura, 1981). Mencione ainda um Uo de 1968, publica na Alenanha, listsche ‘Aussenpoiiit, de Hans-Adolf Jacobsen, (Frankfurt: Alfred Metzner, 1968), que foi tadurido para 0 portugués mse, plo mi titulos que denunca lson Martins (2° ed, Sto Paulo, 7.* Queioe, brasileira, de Kar. Oberacker Jr. (Rio de Jato, Pesenca, Back, Sylvio. Files noutra margem. Cuitha, Secretaria de Estado da Cultara edo Esporte, 1992, p Arranjo do conju ‘Folha de S. Pa oct esté neste filme’ p32 nome do hotel um anagrama de Adolfo Hite, segundo Carls Alberto de Matto (in Back, Syvio. Op lo tratamento é foi inclusive taxado de fascist. Ver, a Sher. polémica em Sao Paulo. 0 Liberal. Belém, 27.5 Aleluic, 6 Carlos Etuardo Nac duard Carll, “Aelia, Gretchen, etica Movirento. RI, 1.4 'Arespeito da importancia da focalizaco de espectador num fica, ver Baptista, Mauro. “Naratologia: panorama de uma nova teora do cinema”, In 1agens. Campin, Editora da Unicamp, v Banda marcial da Escola Técnica Federal de Parand —2 PDP la PN le Al DT ad 7 5 a 1 + Emogao e razao Mure de amor MD asin outs Trellis Ménica Pimenta Velloso + Emogao e tazao numa liad CMW dain suit el Ménica Pimenta Velloso Emocio ado numa lcie de amor a\\ 0 texto e o filme “Meu destino ¢ lembrar que existem mais coisas que as vistas e ouvidas por todos." Esta frase Mario de Andrade confidenciou a Manuel Bandeira, em carta datada de outubro de 1924.’ Na ocesiao estava as voltas com a pesquisa de um "linguajar brasileiro", tentando romper a imensa distancia cue sentia existir entre a linguagem falada e a palavra escrita. Nas péginas de Amar, verbo intransitivo (1927) Mario iria reinventar os registros da cul tura brasileira, revirando pelo avesso formas de ver, de ouvir e de dizer. Transposto para o cine- ma, em 1976, © texto resulta no sensivel e belissimo Ligdo de amor, dirigido por Eduardo Escorel. Construindo o seu filme sobre algo que necessariamente "nao € mostrado", Escorel buscou criar uma nova tarrative, trabalhando com o voyeurism do espectador.' Por meio da expresso facial dos atores, dos seus gestos e cenografias, sugere a existéncia das coisas, sinalizando malti- plas possibilidades de compreensdo. Desdobramento incansdvel da linguagem no esforco de buscar novos significados além do ja visto, além do ja cuvido... E nesse ponto que percebo a sintonia profunda entre o texto e o filme, Ambos explo- ram de diferentes maneiras, é claro, 0 universo sinuoso e sutil da linguagem. Inspirado na estética expressionista cos anos 20, Mario trabalha com cenas e quadros, criando uma atmos- fera suspensa parecida com a do cinema.’ Para os modernistas, desejosos de romper com a narrativa linear, a linguagen instantanea — estilo "kodak"— impunha-se como conquista dos novos tempos. Egresso do Cinema Novo de meados da década de 1960 e inicio dos anos 70, Escorel vai redimensionar a forca dessa narrativa sofisticando ao extremo as técnicas de captar ima- gens, envolvendo e impactando 0 espectador. Nesse processo € que se percebe mais clara ‘A Histria val ae cinema mente a releitura do texto de Mario. Eduardo Escorel se detém preferencialmente em algumas cenas, concentrando ai a trama que vai dar sentido ao seu filme. A estrutura da familia burguesa com o seu bem-articulado jogo de controles rouba a cena (no bom sentido). Este é um dos fios que ligam fortemente o Brasil da década de 1920 20 Brasil de 1970. La tinhamos uma burguesia ainda balbuciante mas ja se impondo poderosa © auto-suficiente, conforme a percebeu Mario. Em meados da década de 1970, a idéia do milagre econ6mico jé nao convencia. Respiravamos fortemente os ares da contracultura, dos ideais libertarios e da rebeldia afiada a todo e qualquer tipo de autoridade. 0 discreto charme da burguesia era altamente mobilizador, desvendando mascaras sociais, estruturas de poder e microfisicas do desejo. Tomando 0 pulso do texto por ai, Eduardo Escorel conseguiu passar um quadro vivo do pats, fazendo-o respirar ritmicamente dos anos 20 aos 70, com igual intensidade. Entrando no time... ‘Ao abrir 0 pesado portao de ferro da mansdo dos Sousa Costa, 0 mordomo Tanaka convida 0 espectador a entrar no filme. 0 cenario é Sao Paulo, décade de 1920. Junto com o taxi que traz a governanta alema ao convivio dos Sousa Costa, somos leva- dos a penetrar na vide privada da nascente burguesia urbana paulista. Felisberto Sousa Costa, © chefe da familia, € quem preside 0 jogo do poder na mansdo. £ € em tomo da sua figura que se movimentam a esposa, o filho, as filhas, a governanta e os demais empregados da casa. 0s protagonistas séo Carlos — 0 primogénito da familia Sousa Costa — e Elza (Fraulein) —, a governanta contratada para dar aulas de piano, alemao e também de sexo. 0 close dos olhos, ouvido e boca é insistente, delicado, as vezes provocante. Oscila entre Elza e Carlos, Carlos e Elza. Encontro de duas pessoas que se traduz no encontro de duas culturas: Brasil e Alenanha. Ligdo de amor? Quem aprende com quem? 0 qué? E sobretudo, como se aprende? Vamos tentar seguir 0 percurso de algumas cenas do filme, na perspectiva de con- textualizar determinadas questies. Algumas dessas cenas — as mais significativas — se passam no escritério da man- 0 dos Sousa Costa, que se configura como espago do aprendizado e do exercicio da seducao. Emocio e rezio numa licao ce ano: Elza, de costas para Carlos, vai a0 quadro-nesro para escrever a licao. Carlos distrai- se em devaneios... Vé nao mais 2 Fraulein que ensini: de cabelos presos, trajes vetustos, ar professoral. Vé Elza: a linda Elza, que se desnuda 1a intimidade do seu quarto. Deixando lentamente a Agua cair do jarro sobre seu corpo, eb se olha no espelho, cabelos soltos... Idilica, a imagem de Elza se descola co cotidiano suyerindo uma tela de Ingres. Corpo alon- gado, as costas voltadas para a tele. £m primeiro plano, o enigma. Sibito, Carlos sai do seu devaneio. — Fraulein, seu grampo caiu! A partir desse momento 0 "icilio" entre Carlos ¢Elza comega a tomar forma. Desprendido ‘0 grampo dos cabelos de Fraulein, desencadeia-se a aptoximacdo. Elza e Carlos esto no jardim da mansio dos Sousa Costa. E @ ai precisamente que # estabelece 0 dislogo. Algo que parece casual mas nao é. Elza é a professora contratada per Feisberto Sousa Costa, patriarca da fam para iniciar 0 seu primogénito nas artes amorosas. Elatem, portanto, uma meta a cumprir. Por {sso age, visando a esse fim. Tentando entabular assurto, ela interpela Carlos: — Jogou muito? — Assim... Carlos & monossilabico. Nao s6 por timidez. 4 incompletude, as retic€ncias, 0 deixar a frase no ar parecem fazer parte da fala de Carlos, & sua propria identidade. Ele é assim. Ja Elza se apresenta como assertiva, pratice, embora no intimo nao o seja inteira- mente. Quando indaga gosta de ouvir a resposia completa. Nao aprecia expressdes mem & & intefinidas, sensacies inconfessadas. Prefere infor- macées quea situem concretamente frente ao seu interlocutor A forma de expressio, os cédigos lingiiisticosa que recorrem Elza e Carlos traduzem diferentes fliacdes culturais que tem @ ver com a questo do carater nacional. Calos 6 0 impulsivo, 0 enamorado, aquele que lé nas entrelinhas e sobretudo intui, adivinha. Elza é a queindaga, cortige, direciona e raciocina. een i 2 ——45 ‘AWistéria ve ao cingma Podemos ver ai duas cultures em confronto: o volatil, o ar, representado pelo Brasil, © 0 sélido, a terra, pela Alemanha. 0 recurso as metaforas de oposi¢ao era freqiiente na obra de Mario de Andrade. Ele mostrava forte interesse pela cultura alema, numa época em que o modismo francés era forte nna nossa cultura. Conhecia a fundo a literatura cientificista, a estética expressionista e tam- bém alguns estudos alemées sobre a nossa cultura. De alguma maneira apreciava a acuidade desse povo e a queria ver presente no Brasil. Achava que o brasileiro, mais do que qualquer ‘outro povo, carecia de uma “base fisica bem cermanica para o seu espirito". Argumentava que nao nos faltava a "brilhacao espiritual’, o "fogo de artificio", a "inteligéncia fruque-fuque".* As metaforas do carater nacional — trabalhadas longamente por Mario — nos so sugeridas através das figuras fortemente contrastantes de Lilian Lemmertz (Elza) e Marcos Taquechel (Carlos), que representam respectivamente a maturidade e a puberdade, a razdo e ‘a emocdo, 0 senso pratico e a fantasia, mestre e aluno, Significam, enfim, uma possibilidade de uniao dos contrérios, através da qual se dé 0 equilibrio precario entre duas culturas. Esse confronto — que também é justeposi¢ao e interacao de identidades — segue por todo o filme. Uma outra cena, também passada no escritério da mansdo, vem reforgar essa idéia. Elza lé o texto para Carios em alemao. Em seguida indaga: — Entendeu, Carlos? — Nao, adivinhei Elza nao aceita a explicacao: — Vocé nao estava prestando atencao! Carlos, entao, lé em voz alta. Nas lé no que esté no papel, mas o que lhe sugerem a imaginagao e o desejo. 0 texto escolhido propositalmente por Elza trata de uma cena de iditio amoroso. Em vez ¢e ler 0 pronome singular, "ele", Carlos o pluraliza soletrando "eles"... Fraulein 0 corrige ternamente mas com firmeza. 0 que vale é o registro e nao 0 que se adivinha, ou 0 que se deseja que seja. E 6 ela quem encerra @ licdo: — Pronto, por hoje é s6! Ligdo de amor € rico em contectualizacio histérica, presentificando acontecimentos que marcaram vivamente a década de 1920. Mostra os resquicios da sociedade escravista, a ascensao da burguesia paulista e o seu carater compésito (agricola e industrial), 0 universo Emoclo ¢ razdo numa ticle de amor privado dos seus valores, 0 jogo dos papéis sociais na familia, a questdo da educagao e da sexvalidade, a problemética da imigracao, a questéo do cardter nacional. Essa tematica da jdentidade, t20 cara a Mario, recebe tratamento especial no filme intercalando-se no perfil dos personagens e nos seus dislogos. AA paulicéia da década de 1920 Licdo de amor mostra 0 encontro entre Carlos @ Elza como 0 embate classico de duas pulsées, presente tanto na histéria dos individuos como na das civilizagées: emocao versus razio. Contextualizando esse conflito no universo privado da burguesia paulista, na “paulicéia desvairada" dos anos 20, Escorel enriquece sobremaneira o tema. Felisberto e Friulein sé adeptos da razdo, mas divergem nitidamente quanto a maneira de ministrar a “ligao" em Carlos. Ensinar o amor disciplinado, privilegiando 0 "senso pratico" em vez da filosofia, era 2 prosposta de Fraulein. Ja para Felisberto a questo se reduzia simplesmente a assegurar o seu controle sobre a sexualidade do filho, garantindo os pilares da institui¢ao familiar. ‘A diversidade de perspectivas culturais, étnicas e éticas de Sao Paulo na década de 1920 @ um dos temas fortes do filme de Escorel. 0 Brasil "alma crivada de racas", o Brasil que veste uma "roupa arlequinal” em que cada parte traduz uma etnia, esté fortemente presente na década de 1920, na mansao dos Sousa Costa. Faz-se representar pela preceptora alema e pelo mordomo japonés Tanaka. Também 0 Brasil negro, recém-saido da escravidao, esta la. Ele aparece nos espacos mais recénditos da case, como no quarto das meninas, na cozinha, e também numa das fotos em familia na qual esta presente a baba das criancas. Apesar de transitarem no mesmo espaco — a manso des Sousa Costa —, essas culturas estio sensivelmente separadas. Eduardo Escorel usa um belissimo recurso de imagem para expres- sar tal idéia. Mostra, em imagens aiternadas, uma escultura feminina no jardim e a cozinheira sentada num canto da casa. Silenciosa, ela vistumbra pela vidraga o jardim da manso. 0 olhar (a camera) vai se deslocando entre o interior e o exterior. € a partir desse olhar que se estabelece © contraste e a distancia entre esses universos culturais. A que v8 e a que é vista. Os de dentro e 0s de fora e a simultaneidade dessas perspectivas no abrir e fechar as janelas. A figura da mulher negra € encorpada, pesada, imével, ¢ esta fixa num canto escuro da casa, Jé a branca, que se encontra no jardim, sugere leveza, luz, nudez. |) A Histone vai 20 cinema Ambas as mulheres esto, no entanto, imobilizadas e compartimentadas na mansao. A camera enfoca a distancia, quase intransponivel, entre essas figuras. forte 2 oposicao entre a situacao fechada dos Sousa Costa e as aberturas para a sociedade brasileira da época.” Encerrando-se entre os muros protetores da mansio, distanciando-se o quanto pos- sivel da vida cotidiana e da cultura popular, os Sousa Costa langam mao de uma série de artifi- Cios para ver salvaguardada a sua posigao de distinggo em relacéo ao conjunto social. Ensinar © idioma aleméo aos filhos, garantir uma prole saudavel (casamento entre *iguais"), controlar os impulsos libertarios das criancas, vigiando nao s6 Carlos mas também as meninas. Nas suas brincadeiras, elas dramatizam os acontecimentos Cotidianos da casa: seja através de uma conversa de bonecas, entre 0 bem-me-quer e o mal-me-quer das flores ou que- brando bruscamente as asas de uma borboleta. Tambémé no Jardim, fora do alcance do olhar materno, que as irmas trocam impressdes sobre as novidades da cidade, como o circo. Encenando as cags do pathaco Piolim, elas o arremedam. — Viva a Repdblica! No andar vacilante do palhaco, experimenta-se a danca ainda incerta do regime. 0 filme de Eduardo Escorel € particularmente rico nesse ponto, quando mostra os varios lugares sociais a partir dos quais se vivenciam as acdes. Os olhares das ‘meninas, do adolescente, da esposa, do negro, do imigrante, vao captando e reconstituindo o cotidiano nas suas mais distintas percepgdes. Cumpridas as obrigacdes da mansio, Friulein e Tanaka falam dos seus universos dis. tantes ¢ da imensa sotidao que sentem no Brasil. Um Brasil de “criangas mal-educadas" e vo- luntariosas, casas barulhentas, gente rispida que "olha de cima". Sao Paulo, considerada a “capital espiritual do Brasil", hes parece grosseira e superficial. Fraulein lamenta a falta de Gisciplina e de senso pratico do povo brasileiro. Reclama Sobretudo do “nariz empinado" e da empafia de Laura — esposa de Felisberto — ao pagar o seu ordenado. Sao as valores da nova burguesia paulista avaliados pelos que vieram "fazer a América". Premidos pelas dificuldades financeiras e sem lugar numa ordem que julgavam aberta, flexivel democrata, eles se rebelam contra a condicao servil que Lhes coube exercer. Criticam acida- mente © comportamento dos patroes, sobretudo a sua usura e mesquinharia de novos-ricos. Mario de Andrade criticava 0 “burgués-niquel", os "duques-zurros" que "vivem den- tro de muros sem pulos".* Felisberto Sousa Costa encarna justamente o protatipo desse bur- gués novo-rico que vive — junto com o seu cla — "dentro de muros sem pulos". io ¢ razio numa ligdo de anor A cidade e a casa Felisberto percebe a cidade como uma ameaca desestabilizadora para a ordem familiar burguesa. Por isso busca evitar 0 quanto possivel que os "seus" entrem em contato com esse tuniverso regido pelo vicio, pela doenca, pela exploracdo e jogatina. Tentando convencer a esposa do perigo que ameacava o filho, ele argumenta: — Vocé vive dentro de casa com as suas plantas. Nao sabe... No discurso higienista burgués do inicio do século, é clara 2 oposi¢ao rousseauniana natureza versus sociedade. A cidade aparece como foco irradiador de doencas e desordem, fre- qiientemente condenando-se as praticas e estratégias de sobrevivéncia das camadas popu- Lares. Felisberto Sousa Costa refere-se a Sao Paulo como "cidade invadida" por prostitutas, aventureiros, miseraveis e viciados. Considera que s6 0 lar, 0 ambito privado das relacGes poderia assequrar a ordem social. Felisberto faz um tipo sistematico, mantendo habitos de vida extremamente rotineiros. Quase todas as noites vai ao club. Porém, antes de sair de casa ou na sua volta, obriga-se a um verdadeiro ritual de passagem. Defronte 20 espelho, passando a escova no terno, confere cuida- dosamente cada detalhe fisionémico. Tentando apagar os vestigios da noite e da rua, ele recom- pée a face do marido exemplar, do pai de familia, do chefe e do abastecido negociante de gado. 0 seu referencial sdo os negécios. Avalia a vida como um livro em que sao com- putadas as perdas e ganhos. Observa, um tanto contrafeito, que a iniciagao sexual do filho the custou 0 mesmo preco de um “touro caxambu". Defensor da assepsia, da moral e dos bons costumes, ele nao hesita em armar uma verdadeira cilada contra seu proprio filho. Deixa que Carlos exponha seus sentimentos, envol- vendo-se amorosamente com Elza, para depois "pega-lo em flagrant” com o consentimento da esposa e também de Elza. ‘A cena funciona como um alibi para legitimar a expulsdo de Fraulein, dando por encerrada a sua fun¢ao na casa. Na sociedade de valores ainda patriarcais que é o Brasil da década de 1920, Felisberto é€ quem traca as regras do jogo. As mulheres — tanto a esposa e as filhas quanto 2 governanta — nao tém saida senao acaté-las. Mesmo que sejam prejudicadas — no caso principalmente de Elza — elas sao obrigadas a fazer o jogo do mais forte. Uma das idéias centrais do filme — conforme destaca a critica da 6poca — é justa- mente essa habilidade da familia para reverter os impulsos libertarios do filho em seu préprio proveito.’ Mas esse jogo de controle — longe de ser transparente e unilateral — marca-se pelas ambigilidades profundas. lis 2 storia vai ao cinema, Estrangeiros: os de dentro e os de fora A figura do outsider, no caso a Fraulein — a estrangeira —, se constréi em intima conexao com a de um membro da familia, que é Carlos. Fraulein pretende ensinar o amor sem sentimentos e emocies desenfreadas, mas ela propria nao consegue manter total controle sobre a situacao. Entra no jogo — quando contratada por Felisberto para ministrar a sua licdo — mas ao mesmo tempo é vitima dele. Nao consegue encontrar safdas e por isso joga, vis- (umbrando na prostituigéo uma forma para obter recursos que a possibilitem voltar para sua terra natal. Deixar para trés a ‘América das ilus6es", retornar aos seus. Apesar da atracao que sente por Carlos, esse é 0 objetivo que acaba prevalecendo na escolha de Elza. No filme, a tematica do estrangeiro é tratada com profundidade e sensibilidade. Ha um flash particularmente expressivo: recostado ao colo da Fraulein, Carlos recita a "Cancdo do Exilio" em alemao. Irmanados no desenraizamento — ela longe da patria, ele antevendo a proximidade da separacéo —, ambos sao estrangeiros de uma ordem que nao controlam. Trabalhando fundo a visio de mundo dos seus personagens € as emocées que os movem, Eduardo Escorel nos da uma belissima licdo de cinema e de apurada sensibilidade historica. Tematizando questdes do nosso passado com o olhar atento no presente, ele vivifi- ca muito claramente 0 espectro do autoritarismo politico dos anos 70 e dos "podres poderes" que pairavam como ameaca aos impulsos libertarios das relagdes pessoais e afetivas. hee Notas ‘Lopes, Telé Ancona. "Uma dificil conjugacio", In Amer, verbo intransitive. Belo Horizonte, Itatiia, 1989 neon, Randal. “Lesson of lore’ In Johsor Randal ¢ Stan, Robert. Bresifon Cinema. anlegh Dickinson Univenty Pres, 1s82. ‘Lopes, Tel@ Ancona. Op. cit, p. 13 ‘Sebre o assurto consultar Neves, Margarida de Sousa. "Da waloca do Teté 20 império da mata virgem: Mirio de Andrade”, In Chalhoub, Sicney eFereira, Leonardo Affonso de M. A Historia contada. 83, Nava Fronteira, 1998, e Sandroni, Carlos. Mario con tsa Nacunaimra. SP, Wertice, 198. Figueiredo, Tom. "Licdo de amor, uma licio de cinema’. In 0 Estado de S. Paulo, 16 de maio de 1976. ‘Ver a poesia "Ode ac burgus" Figusitedo, Tom. Op cit. ohson, Randal. Op. p. 212, = ry ees ’ As trés faces de CMW din ait Shade Mariza de Carvalho Soares As tids faces de ica As ertnicas de Joaquim Fico dos Santos Em 1860 comeca a ser publicado ra Vila do Principe (antigo Arial do Tijuco e atual cidade de Diamantina) 0 jornal 0 Jequitinhonha. No ano de 1862, seu principal redator, Joaquim Felicio dos Santos (1828-1895), escreve uma série de artigos sobre o Distrito Diamantino. No ano de 1868, a Tipografia Americana da cidade do Rio de Janeiro redine esses artigos no livro Menérias do distri- to Diamantino da comarca do Ser Fiio (Provincia de Minas Gerais).' Entre os temasai tratados esta a historia de Joao Fernandes de Otiveira, dltimo contratador de diamantes do Tijuco.! Joaquim Felicio dos Santos descreve Joao Fernandes como um homem que, ..rico como um nababo, poderoso como um Principe, tornara-se um pequeno soberano do Tijuco. [...] Sé uma mulher partilhava 0 seu poderio; era a sua amante Francisca da Silva, vulgarmente conhecida por Chica da Silva. Quanto a Chica, ele diz: Francisca da Silva era uma mulata de baixo nascimento. Fora escrava de José da Silva e Oliveira Rolim, que a libertou a pedido de Jodo Femandes. Tinha as feigdes grosseiras, alta, corpulenta, trazia a cabeca raspada e coberta com uma cabeleira anelada em cachos pendentes, como entiio se usava; néo possuia grara, néo pos- suia beleza, néo possuia espirito, ndo tivera educagao, enfim, nao possuia atrati- vo algum que pudesse justificar uma forte paixéo. A Historia val a0 cinema Anarrativa de Joaquim Felicio termina com o retorno de Joao Fernandes a Portugal. Sua volta é associada ao clima revolucionério que se espalha pelas colGnias americanas e & dentincia de que o contratador guardaria para si os diamantes que, por contrato, devia enviar aos cofres régios. Segundo 0 cronista, o governador da capitania da Minas (0 conde de Valadares) teria sido enviado ao Tijuco com a incumbéncia de levar Joao Fernandes de volta a Lisboa. Joaquim Felicio dos Santos nao fornece detalhes sobre a vida de Jodo Fernandes e Chica da Silva. Nos fatos narrados, a paixio que Chica desperta em Joao Fernandes fica sem explicagao, mas seu poder é atribuido ao proprio Joao Fernandes: 0s grandes, os nobres, que vinham ao Tijuco, os enfatuados de sua fidalguia, ndo se dedignavam de render-Ihe homenagem, curvavam-se a beijar a mao & amante de um vassalo do Rei. Tal é 0 poder do dinheiro! Esse vassalo era um miliondirio, e em todos os tempos o ouro foi sempre o escolho em que se que- brou o orgulho da fidalguia, ° A memoria também nao vai além de breves informacées ao tratar do destino dos filhos do casal ou da vida de Chica apés o retorno de Joao Fernandes a Portugal. A partir da volta de Joao Fernandes a Portugal, Joaquim Felicio narra os fatos ocorridos no Reino: descreve a disputa pela heranca do velho capitdo-mor do qual Joao Fernandes fora feito herdeiro, da o rol de seus bens e seu Morgado. A crénica termina informando ter o desembargador Joao Fernandes morrido em Lisboa, no ano de 1799.* Nao ha, nas memérias de Joaquim Felicio, qualquer mencio a Chica depois da partida do contratador ou a existéncia de filhos, frutos desta relacdo. Ao contrario do que fazem crer as cronicas de Joaquim Felicio, Chica subverte a ordem, desmonta hierarquias mas quer um lugar naquela sociedade e, ao que hoje se sabe, acaba conseguindo. Chica da Silva tem ao todo qua- torze filhos com Joao Fernandes, sendo que os quatro homens acompanham 0 pai quando de seu retorno a Portugal. As filhas casam-se com homens bem situados na sociedade local. A propria Chica, num sinal de aceitago de sua presenca na cidade, entra para varias irmandades. Ao morrer, em 1792, é enterrada na Igreja de Sao Francisco, com funeral reservado aos bran- cos, de "sangue limpo".* Seu funeral € uma mostra de que consegue, nos vinte anos, a contar do retorno de Joao Femandes a Portugal, impor sua presenca na Vila do Principe.* 6 As ts faces de ica ‘A selegao dos fatos narrados e 0 modo como a natrativa é apresentada mostra que 6 Joao Fernandes, e nao Chica, o alvo da atengdo do cronista diamantino, Se a vida do con- tratador explica sua riqueza e seu poder, nao explica sua paixdo por Chica. E este vazio nao preenchido pela meméria que abre as portas para o surgimento de uma outra Chica. Enquanto 0 contratador se perpetua no campo da hist6ria e da meméria no século XIX, Chica atravessa dois séculos e reaparece na misica, na poesia, no cinema. Por fim, através de cada uma dessas manifestacdes invade a intimidade das mulheres. Sejam elas negras ou nao, colocando em xeque seus cabelos, sua forma de vestir, sua sexualidade e seu lugar na sociedade contemporanea. Chica na “cultura popular": de Cecilia Meireles a Arlindo Rodrigues 0 barroco, visto na Peninsula Ibérica como culture propria a uma sociedade conser- vadora,’ o chamado Antigo Regime, é revalorizado pelas artes e pela literatura contemporanea como 0 primeiro movimento artistico e literdrio latino-americano. Escritores contemporaneos de varios paises latino-americanos como Lezama Lima, Alejo Carpentier e Octavio Paz vao buscar inspirag0 no passado colonial. Em 0 reino deste mundo (1949), Alejo Carpentier, escritor cubano, narra a luta dos negros no Haiti contra os franceses. Outros tantos romiancis- tas da vanguarda literaria modemista e pés-modernista colocam a questao do barroco, atribuindo-the um caréter ndo apenas de subverséo da ordem no interior de uma sociedade conservadora — j4 proprio ao barroco seiscentista europeu —, mas revolucionario, capaz de alterar efetivamente a ordem das coisas. Eo neobarroco.” Também a poesia de Cecilia Meireles (1901-1964) volta-se para o passado colonial. Em Cecilia, o resgate do barroco transparece em sua ligacao com a poética luso-brasileira e com uma literatura calcada no que se convencionou chamar "raizes da cultura brasileira’, tematica to cara aos intelectuais brasileiros dos anos 30.’ Em 1953 conclui seu Romanceiro da Inconfidéncia.® © Romance VIII fala de Chico-Rei, o IX de Santa Efigénia, o XIII do con- tratador Jodo Fernandes, o XIV e o XV de Chica da Silva. Assim, inspirados no texto de Joaquim Felicio, Chica & descrita em alguns trechos do poema: ‘A Wistéria vai a0 crema Cara cor da noite, olhos cor de estrela. Vem gente de longe para conhecé-la. (Por baixo da cabeleira, tinha a cabeca rapada @ até dizem que era feia.) [...] E curvam-se, humildes, fidalgos farfantes, a luz dessa incrivel festa de diamantes. [...] Nem Santa Efigénia, toda em festa acesa, britha mais que a negra na sua riqueza. Contemplai, branquinhas, na sua varanda, a Chica da Silva, a Chica~que-manda! Mas Chica tem mesmo vocacao para o barroco e para o “popular”. No ano de 1963, Chica da Silva faz sucesso no carnaval carioca. A escola de samba Académicos do Salgueiro ganha 0 campeonato com um enredo do carnavalesco Arlindo Rodrigues, que revoluciona os desfiles das escolas de samba e forma uma nova geracdo de carnavalescos, entre eles Joaosinho Trinta. Terminado o desfile na avenida, a Chica do Salgueiro, Isabel Valenca, con- corre com a mesma fantasia & categoria de luxo feminino no Teatro Municipal e ganha o primeiro lugar. Fica na meméria popular a imagem de Isabel Valenca, também parda, ja sem As tres Faces de Mica juventude e de beleza duvidosa. Isabel Valenca, a Chica da Silva do Salgueiro, € mulher do bicheiro patrono da escola que financia o desfile. A Chica do Salgueiro esta muito proxima Chica de Joaquim Felicio e de Cecilia. Todas ganham poder por meio de seus homens que, por sinal, enriquecem e tornam-se poderosos pelos escusos métodos da contravencdo e do “descaminho", como entao se denomi- nava 0 desvio do oure e dos diamantes. Mais uma vez € a “Chica-que-manda". Mas por que essas mulheres pardas e feias des- pertam paixao sobre esses homens ricos poderosos? Mais uma vez a pergunta fica sem resposta. LOT NE AT ET MTT TT 0 novo cinema novo de Caca Diegues: A historia de Chica da Silva chega as maos do cineasta Caca Dieques através de Joao Felicio dos Santos, autor do argumento do filme e sobrinho-neto do cronista mineiro. Inspirado nas memérias do tio-av6, 0 romancista Joao Felicio escreve, em parceria com Caca Diegues, 0 roteiro de Xica da Silva. Terminado o roteiro escreve Xica da Silva: 0 romance. Livro e filme sao lancados, simultaneamente, em 1976.” Chica da Silva, parda, forra como tantas outras da Minas setecentistas, destaca-se por usar todos os recursos que tem para, como qualquer fidalgo de seu tempo, ascender na hierarquia social. Segundo Joaquim Felicio, além da réplica de um navio, Joao Fernandes da a Chica um teatro onde sao encenadas conhecidas pecas teatrais da época.” Tudo em sua vida é extravagante, falso e transgressor. Talvez, sem que 0 proprio Joaquim Felicio perceba, 0 cronista deixe, ao descrevé-la, transparecer o perfil de uma mulher que é emble- ma de seu proprio tempo e da sociedade onde vive. £ a Xica setecentista, barroca e, no dizer do Modernismo e do Cinema Novo, revolucionéria, que os dois roteiristas vao buscar nas entrelinhas dos escritos de Joaquim Felicio. Como alguém que abre uma janela para outro tempo, eles véem a Xica barroca, que eles escrevem com "X", como entao se usava. 0 roteiro do filme mostra uma Yica vista "através", ou melhor, “por entre" as palavras do critico cronista do século XIX. ys A Wistiia vai ao cinema Rompendo a associacao da imagem de Chica da Silva a do homem poderoso (no dizer de Cecilia, a "dona do dono do Serro Frio"), Chica reaparece, nos anos 70, com uma nova face: sensual e aliada aos persequidos. 0 jovem com quem rola no porao nas primeiras cenas do filme que reaparece no final dando-the abrigo € o padre Rolim, importante inconfidente. A novi- dade é que o filme Xica da Silva promove um deslocamento tanto no que diz respeito ao género = narrativo quanto a construcao da personagem de Xica. 0 filme abandona o tom dos textos ante- s riores, preocupados em "tecontar" a historia (a memoria, a poesia e mesmo o enredo de car- naval pretendem essa aproximacao com a verdade historica), e cria uma narrativa alegorica. Para 0 critico José Carlos Avellar, em artigo publicado no Jornal do Brasil,” Caca Diegues retoma em Xica da Silva (1976) a idéia de alterar a ordem prevista das coisas pre- sente em outros filmes do Cinema Novo. Em Deus e 0 Diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964) 0 cangaceiro Corisco propde desarrumar o que esta arrumado; em 0 bandido da luz ver- metha (Rogério Sganzerla, 1968) fica marcade a frase: “Quando a gente nao pode fazer nada, a gente avacalha." O proprio Cacé Diegues em Quando o carnaval chegar (1972) inverte a sabedoria popular e propée agir antes de pensar. Ainda segundo Avellar, agir sem pensar, desarrumar, enfim, avacalhar é o ponto de vista da Xica: ela morde o intendente, enche a cara de p6-de-arroz, cospe na comida. E essa avacalhacao que, segundo Avellar, liga Xica da Silva a0 Cinema Novo e, acrescento eu, também as farsas do século XVIII a que Chica certamente assistia, em seu teatro particular. 0 que diferencia a avacalhacdo de Xica daquela de Glauber Rocha e Rogério Sganzerla € que Xica é popular no porque fala do "povo" ou em nome do “povo", como pregam os cinemanovistas, mas porcue fala a lingua do "povo". Por isso faz rir, como faziam as chanchadas, e atrai piblico: 0 que eu gostaria mesmo é que este filme trouxesse um pouco de esperanca a cada um que o visse e, em cada um que o visse, fortalecesse a fé nas quali- dades do povo deste pais, que é sempre maior que as circunstdncias histéricas que, as vezes, o imobilizam. * Caca Diegues quer, ao mesmo tempo, o piiblico das chanchadas e o discurso "intelectual, de esquerda” sobre o carater popular da cultura brasileira. Desde menino, através de seu pai, con- oe As tbs faces de Mica vive com os estudiosos da “cultura popular". Cacé é filho do sociélogo e antropélogo alagoano Manuel Diegues Jr. (1912-1991), que foi membro do Consetho da Campanha de Defesa do Folclore e do Consetho Federal de Cultura. Numa carta escrita a José Carlos de Oliveira e publicada no Jomal do Brasil, Cacé Dieques afirma: "Gostaria de ser reconhecido como um cineasta popular brasileiro, na mesma e humilde medida em que existem 0 compositor ou 0 poeta brasileiro."* Xica da Silva é o primeiro grande sucesso de bilheteria do cinema brasileiro desde o tempo da chanchada. Com milhdes de espectadores no Brasil e no exterior, Cac Diegues chega onde queria. De Gonga Zumba (1964) a Xica da Silva (1976) percorre um longo camin- ho entre um cinema que pensa 0 "povo” e um cinema que fala, se nao para 0 "povo" (cate- goria de dificil identificacao), pelo menos para uma ampla platéia que enche os cinemas das principais capitais do pafs. Seu filme atinge aquela parcela do piblico que vai ao cinema porque "cinema ainda é a melhor diversdo". Xica da Silva atrai um piblico que ia assistir as chanchadas e que nao viu 0 Cinema Novo passar. E assim que, segundo seu proprio diretor, 0 filme inaugura uma nova fase do Cinema Novo: "O Cinema Novo, nesta segunda denticao, morde mais fundo: o povo nas telas e nas salas.""* A Xica de Cacé Diegues e Joao Felicio — a diferenca da de Joaquim Felicio, Cecilia e Arlindo Rodrigues — troca 0 poder dos diamantes pelo poder da sensualidade. £ esta imagem que chega as telas, a critica e ao pablico, no Brasil e no exterior. A nova imagem de Xica é tao forte que ela até parece ter sido sempre assim: "simbolo de sensualidade mas tambén de liberdade, Xica tornou-se uma lenda, um mito da tradigo brasileira transmitido através de poemas, pecas de teatro ou sambas do car- naval do Rio. Ela agora é a heroina do primeiro filme brasileiro historico, ‘en costumes’: Xica da Silva, de Carlos Diegues. Lancado esta quarta-feira em Paris ja ¢ um triunfo nacional: 5 milhdes de espectadores no Brasil." ‘Ao contrério do que diz a noticia, é apenas no filme que Chica se apresenta como sim- bolo da sensualidade, explicitado na masica de Jorge Ben: "Xica da, Xica da, Xica da Silva Enquanto no Cinema Novo é comum a trilha musical nerrar uma histéria paralela, em ica da Silva a masica nao narra, ela identifica, representa, emblematiza: "Xica dé, Xica dé, Xica da Silva". Numa releitura peculiar da obra de Gilberto Freyre e das teorias sobre a miscigenacao e democracia racial, Xica ascende socialmente pela seduco, deixando de lado a procriacdo e 0 embranquecimento. Talvez por isso, no filme, sua queda seja tao rapida. A Chica do filme é uma A tisca vai ao cinema negra que nao quer ser branca e que usa os signos do embranquecimento de forma grotesca (cena em que se veste de branco dos pés a cabeca e cena em que cobre o rosto com po-de- arroz bem branco). De parda ela se faz negra. A careca é substituida por um corte de cabelo e uma maquiagem com visual "black is beautiful” que antecipa a "beleza negra’ dos anos 80. A atriz Zezé Motta, que faz o papel de Xica, é alcada a simbolo da mulher negra, da beleza e da sensu- alidade. Se a Chica recentemente ip crit pela historiaora Junia alk Fy é mai filhos,” a Xica Mitral (Muu AW APMNER ST Facade a de 14 Fis a ca servico da seducao dos homens que deseja: nao tem filhos, nao resiste aos homens, e € — tanto para os homens que com ela convivem quanto para o publico que a assiste — assustadoramente atraente e bela! Esta nova versio de Chica da Silva se consagra na cena da farta ceia oferecida ao conde como Gltimo recurso para livrar Joao Fernandes. A recep¢ao 20 conde é descrita por Joaquim Felicio como bailes, teatros, cagadas, passeios, ricos presentes, jantares opiparos cotidiana- mente, para os quais se convidavam as principais pessoas do Tijuco, nada poupou o Contratador para obsequiar seu nobre héspede.” No filme, além dos presentes, @ oferecido ao conde um banquete. Ao servir variados pratos da "comida africana", dispostos no chao a moda de um feitigo, Xica se oferece, ela mesma, ao conde, Os opiparos jantares freqlientados pelas "principais pessoas do Tijuco” séo transformados numa bacanal negra que termina com Xica se entregando ao conde. Joaquim Felicio narra a histéria de Chica da Silva do ponto de vista dos descendentes dos moradores do Arraial do Tijuco, no século XIX. Para uma sociedade que procura espelhar- As tes faces de ica se na Belle Epoque européia, Chica no poderia mesmo ter qualquer encanto. J4 no filme, o roteiro mostra uma Xica que vai ser vista por mulheres que, justamente nos anos 70, quando o filme é langado, esto discutindo sua sexualidade e seu lugar na sociedade. No filme é Chica que otha a sociedade que a rodeia, e nao a sociedade que olha para ela como na narrativa de Joaquim Felicio. 0 que 0 filme mostra sao seus desejos, seus valores, sua maneira de ver mundo. € 0 olhar de Xica que conduz a narrativa. 0 filme deve ser visto como uma autobiografia. Accena em que Xica anda em direcao a platéia indica que é ela quem fala ao piblico. E a propria Xica quem responde a pergunta sobre que encantos teria ela para des- pertar tao forte paixdo. A resposta esta em sua sensualidade, esta nos segredos da mulher que muitas vezes s6 se manifestam as escondidas, longe dos olhares curiosos do pilbtico € até da camera. 0 filme termina sem que seja revelado o segredo de Xica para agradar seus homens. E nesse sentido que a narrativa de Joaquim Felicio € como uma cortina que oculta © palco onde Xica se mostra. Quem ilumina a cena e permite ver Kica é justamente a sen- sacao de desconcerto do cronista que nao consegue explicar @ paixdo de um homem rico e poderoso por uma escrava. E a partir do nao-dito (da paixdo inexplicada) que Joao Felicio e Carlos Diegues concebem a "Xica da", que transforma o poder que advém do homem no fascinio que ela exerce sobre eles. Todos os homens do filme deixam-se encantar por Xica: 0 velho, seu filho José, Jodo Fernandes, 0 conde e até mesmo Teodoro, que arrisca a vida por sua mulher que acaba de ter um filho. ‘Ao construir uma Xica da Silva diferente da de Joaquim Felicio, estariam os roteiristas do filme mudando 2 historia ou teria sido ela mudada pelo cronista do Oitocentos? Nao teria ele encoberto o poder de seduco da came, tema malvisto no Oitocentos (embora tao caro aos escritos barrocos), para destacar a sedugao do dinheiro? "Chica" vira "Xica" nao como uma novidade, e sim como um proposital arcaismo. E com 0 "X" usado no século XVIII, um arcatsmo ortografico, que 0 filme escreve Xica. A Xica do filme representa a possibilidade de subversao da ordem escravista da ditadura militar vigente nos anos 70. Na segiiéncia do confronto entre os poderosos e oprimi- dos (0 conde versus 0 garimpeiro), Jo30 Femandes fica do lado do poder e entrega Teodoro, 0 garimpeiro quilombola goliticamente correto. Numa trajetéria oposta a de Joao Fernandes, Xica vai de encontro a José, filho de seu antigo senhor, ja entao feito padre e inconfidente. A politica entra no filme através de José (0 padre Rolim) e de Teodoro (negro garimpeiro e quilombola, inspirado em Chico Rei). Ambos sucumbem aos encantos de Xica, € A Histeria vai 20 cinema & com eles que Xica termina, juntando-se aos revoltosos. Xica representa o préprio "povo brasileiro” num momento em que, no Brasil, sé é possivel falar de politica por alegorias. No fim do filme, depois de perder tudo que conseguira, Xica recomeca sua vida de posse apenas de sua carta de alforria e, como sempre, caindo na tentacao da carne... Como quer seu dire- tor, Xica "da” esperanca a cito milhdes de espectadores que vao ao cinema para vé-la. £ para ‘sso que, segundo o préprio Cacé Diegues, ele faz o filme: Eu andava muito triste, emburrado, pessimista [...]. Entdo eu achei que esta- va na hora de alguém fazer um filme que “desemburrasse” a gente, que desse algura esperanga e jé no povo.” No filme, sexo e escravidéo sio pretextos para falar de relacdes de poder: submissao e subverséo da ordem. Xica é vista como uma figura carnavalesca que danca e ri e busca seu proprio prazer. S6 que faz isso fora do carnaval. Ao contrario do samba-enredo, que leva o Piblico as arquibancadas da avenida durante o camaval, o filme carnavaliza o cotidiano da cidade de Diamantina e também as tardes € noites do espectador que sai de casa para ir ao cinema. No ano de 1976 esse piiblico, assim como o préprio diretor, est em busca de alguma esperanga, de crer na possibilidade de, pelo menos num sabado a noite, numa sala de cinema, subverter 2 ordem. A esquerda critica, ‘patrulha", mas 0 pablico gosta, paga para ver Xica. "Nao, Kica, iss0 nao, isso nao, Xica!l!" Xica subverte. Assumindo atitudes que desafiam 2 moral e 0 comportamento, Xica faz ver que — seja na sociedade mineira setecentista, seja na sociedade contemporanea —, para além dos cédigos e das normas estabelecidas, existem outras coisas... 0 filme transita entre sexo e politica o tempo todo. E 0 piblico sai do cine- ma curioso, se perguntando: afinal, 0 que Xica faz para levar seus homens ao delirio? E per- gunto eu: quais seriam, em 1976, os atos de prazer inenarraveis? Estariam eles restritos a epressao sexual ou abrangeriam também outros prazeres proibidos, frutos de outras repressdes, como enfrentar os politicos corruptos, cuspindo em seus pratos, como ela cospe no prato do conde? No fim do filme Xica perde seu contratador, suas escravas, e vira alvo do deboche dos moradores do Arraial. Ela "cai" como haviam “caido" os inconfidentes do século XVIII e os militantes dos partidos politicos clancestinos nos anos 60/70. Mas o final de Chica é como o == pe: As tts faces de X final da HistOria: Tiradentes vira martir, nome de cidade, praca piiblica e Chica vira crénica de jornal, enredo de escola de samba, filme, novela de TV e tema de pesquisa historica. Todos querendo mostrar, afinal de contas, quem € Chica da Silva, Nota: sn uin Felico dos Santos. Memérias dio distrito diemantino dia comarea do Serro Fri fe Mario Guimaraes Ferri. Prefcio bistiogafia de Alexandze Euldlio qu coligiu os spandices; notas de Nazazé Menezes (1924) e José Teixeira Neves (1956), 4 tdigdo 1868). Belo Horizonte/Sio Paulo, atiaia/ EAUSP, 1976. de dianartes por conta éa Fazen es 2 Portugal (1772), foi estabeleciia a extr Real e nao mais pot contrato com partic: Joaquim Felicio dos Sintos. Op sit., pp. 123-124 ir de 1770, com a instituigdo do morgadio, 2 nobreza portuguesa passa jestinar a herarga paterna ao filho primogénite, o que garante a integrida adas de "sengue limpo" as pessoas que nic descendem de judeu: Entrevista da historiadora mine 1a Furtado que atualmente pesqu sobre Chice da Silva, para 8. (Arquivo da Cinemate do MAK/R3, s/éata) ozo, Ansdlise de uma estrutura histérica. ica, Modalidades poéticas colonia". Ia Ana Pi 1A situagio colonial. 5 993, pp. 299-336; Balla Josef. Histéria de o revista e axpliaa. Ri de Janeiro, Francis Alves, 1989. MEP Re a MR ad A a A A Histiia vai ao crema neste ambiente de construgdo de uma “cultura brasileira” que, a parts de 1948, ecfia passa a colaborar coma Comisséo Wacional de Folclere, tendo tido par pacio ativa no I Congresso Nacional de Felclore, em 1951. Cecilia Meiseles, Romanceiro da Inconfidéncia. SE/Cizculo do Livro, 1975, f. 267 Cecilia Maireles. Op. cit JoHo Felicio dos Santos. ica da Silva: o romance. Nota introdutéria por Catl Diegues. Rio de Janeiro: Civiizagéo Brasileira, 1976. Em 1954 Caca Diegues havie feit Zumba, cujo roteize baseia-se no romance Ganga Zumba (1962), do préptio Joie Felicio dos Santos, “ais como Encantos de Medéla, 0 anfitedo, Pocfia: anando, Xiguinha por amor de Deus. Joaquim Felicio des Santos. Op. cit, >. 124 José Carlos Avelar. "Uma grande festa”. Filme Cultura, 29 de maio, 1978 (Clos Diegues, revista Filme Cultura, n? 29. 1978, p Entrevista de Caci Diegues ao Joma do Brasil (Arquivo da Cinemateca do MAM/32, s/ ata) ‘Cais Diegues. “Dossé crtico'. Filme Qultura. n® 29. 1978, gp. 81-93. Materia do Le Journal du Dimanche (Arquivo da Cinenateca do NAM/RD, s/deta). una Fervera Furtado, na ja citeda entrevista aquim Feliio des Santos. Op. cit. p. 126. Entrevista de Cacé Diegues 20 jomal 0 Globo (Arquivo da Cinerateca do MAM/R0, s/éai). Mm Ta TP PA le, Al Marcos Luiz Bretas Lic Rivio, passageio da Histria Ao dar os Gltimos retoques neste artigo me vem as maos uma noticia de jornal: em meio 4s indmeras curiosidades encontradas nos depositos da Justica so mencionadas duas pulseiras de ouro pertencentes a Licio Flavio, um famoso bandido da década de 1970. 0 personagem, que enchia as paginas dos jornais tao censurados do governo Médici, hoje um passado razoavel- mente distante, tornou-se uma peca de curiosidade hist6rica, um sabor de seu tempo, que talvez encontre sua melhor preservacdo no filme de Hector Babenco, langado em 1978. A dura- bilidade da obra "ficcional” suplanta 0 personagem real e ganha foros de verdade historica, con- tando como tudo aconteceu... Para meus alunos, nascidos quando Liicio Flavio morria, ele "aquele do filme". Importa, entao, perguntar ao filme: afinal, o que foi que aconteceu? Cenario | - De volta aos bons tempos Os anos 70 ja representam, na discussao da violéncia urbana, um agradavel passado ao qual muitos gostariam de retornar. 0 filme pode muito bem ser visto por este angulo. E claro que poucos gostariam de retornar aquele horroroso visual que nos sentiamos orgulhosos de ostentar — os mais otimistas diriam que, naquela época, a0 menos tinhamos cabelos, € como tinhamos —, mas a impress saudosa se instala no primeiro assalto a banco. Os meliantes simulam um defeito no carro em frente a uma pracinha — com direito a coreto, bancos de pedra e arvores pintadas de branco — e, enquanto um finge consertar, os outros atravessam a porta do banco — sem travas ou detetores de metal! —, rendem um sonolen- to seguranca posto em sossego a ler o seu jornal junto a porta, e, com seus poderosos 38, roubam 0 semivazio estabelecimento, onde nao havia sinal de computadores, caixas eletroni- a oe AWistria vai a cinema cos ou outras engenhocas semelhantes que contribuem para fazer de nossa vida o que ela 6, Na saida, Licio Flavio da mostras de sua maldade: chuta o saco do seguranca... Sem diivida podemos encontrar muito do que sentir saudade; tanto as armas dos meliantes, suas maldades, como a seguranca bancaria fariam corar de vergonha qualquer Jovem olheiro de boca habituado ao manejo de fuzis AR-15. Mesmo a policia é capaz de ati- tudes surpreendentes: ao encontrar num bar o velho padrinho do assaltante, opta por tortura lo com o oferecimento de largas doses de cachaca. De todos os lados brota uma impressio de que havia ainda algum respeito a populacao civil, Nao havia ainda um general para esclare- cer que em toda guerra existem vitimas entre a populacio civil... Mas se & possivel ler o filme através deste cendrio de um bom tempo que nao mais retorna, talvez seja também possivel olhé-lo de forma menos agradavel. Cendrio 2 — Os anos de chumbo ‘Ao mesmo tempo em que as imagens produzidas ainda nos anos 70 nos mostram uma realidade que em tudo parece mais amena, o filme todo transcorre sob uma sombra, um fan- tasma que pesa sobre a hist6ria narrada e mesmo sobre sua estruturacdo cinematogréfica, E © peso de lembrancas ruins reconhecidas como censura, tortura e ditadura. 0 fecho do filme um momento significativo: os bons policiais federais — explica-nos um texto escrito apos- to as imagens — puniram os maus policiais envolvidos com o crime... 0 que se iniciou como tragédia termina como farsa; os autores se permitem facilmente esta concessao a censura cer- tos de que 0 piiblico compreenderia nao ser aquele final parte do filme, mas dos tempos vivi- dos. Eram tempos em que todos se especializavam na arte de tresler. Boa parte de nosso desconforto no filme se origina nao do que € exposto como crime e violéncia, situagdes que ainda nos so dolorosamente familiares, mas do que perpassa e nao se esclarece devidamente. Policiais batendo em meliantes ou suspeitos séo imagens identi- ficéveis, mas quem — ou 0 qué? — sao aqueles torturadores profissionais, ou amadores que participam das sessdes e que, mesmo 2o se transformarem em vitimas, num momento em que 0 bandido vira herdi, tém o direito de nao ter sua morte anunciada? Amadores/profissionais da tortura estatal que saem de suas prosaicas casas de subiirbio para extrair "informacées", palavra magica que gerou a perversio de um servico nacional. Constancio Ramos € um dos muitos Monsieur Verdoux do cotidiano das ditaduras. Licio Flavio, passageiro da Histéria 0 filme ja parte da presenca ra sociedade carioca do esquadrao da morte, mas, 20 mesmo tempo, acompanha a elaboracio de seu ideal. Assim como a ditadura e a esquerda valorizavam os ideais de organizacao, os policiais ligados ao crime e 2o exterminio anunciavam também sua adesdo aos valores organizeconais. Nao admira que pouco depois o crime também passasse a se fazer organizado. A celebridade Sem divida, um historiador con espirito de antiquario pode ir longe ao tracar a meméria dos grandes criminosos cariocas, gente como o Carleto ou o Dr. Anténio, para ficar no inicio deste século. Mas ha que recontecer cue sao em sua quase totalidade figuras esque- cidas que teriam de ser explicadas pare 0 pablico. A meméria mais antiga diz respeito talvez a crimes mais que a criminosos, como os casos Aida Curi ou Dana de Teffé, 0 crime da ladeira Sacopa, crimes envolvendo a elite da cidade, mais lembrados pelas vitimas do que pelos acu- sados. E nos anos 60 que comecam a apatecer nomes identificdveis, inimigos pablicos no sen- tido norte-americano, como Tigo Medonho — também personagem de cinema —, Cara de Cavalo ou Mineirinho. A criminalidade pooular, ao se armar, comega a ter uma cara, ainda que de cavalo. Nesta fase herdica, a policia tanbém busca produzir nomes reconheciveis: Le Cocq, Perpétuo ou os Homens de Ouro — dos quais fazia parte Mariel Mariscott, alter-ego do Moretti, policial do filme. Com o passar do tempo, de um lado e de outro, o desenvolvimen- to organizacional, cu em escala, acelenara a rotatividade e tornaria mais € mais dificil 0 surgi mento da celebridade individual, substituida pelos quinze minutos dos Buzunges. Lacio Flavio talver tenha sido o iiltimo inimigo pddlico da fase heréica, anterior 20 Comando Vermelho. Vale lembrar que o jornalista Carlos Amorim sugere que o assassinato de Licio Flavio pode- ria ter como motivo a tentativa de grupos organizados de presos — origem dos atuais coman- dos — de fazé-lo parte de uma organizayao. Mas ainda permanece uma questio importante: por que Lécio Flavio adquiriu tamanha celebridade? Sem diivida, as fugas da prido tiveram muita importancia. Os muros das prisdes constroem uma barreira entre o interior e o exterior que sé pode ser derrubada pela imagi- nacdo, De formas diferentes, mesmo artes da generalizacdo da pena de prisio no século XVIII, j4 existiam 0 fascinio pelo cércere e um largo ramo da literatura popular composto de historias — se possivel veridicas ou que o parecessem o mais possivel — sobre fugas de ee ae A Mistrial ao cine prises. Licio Flavio toca neste ponto da sensibilidade popular: muros e algemas parecem incapazes de conté-lo. Mas 2 escolha popular através da imprensa nao se da apenas pela capacidade de escapar. Licio tinha outros apelos. Nao foi despropositada a escolha do gala Reginaldo Faria para representar 0 personagem: Licio apresentava um visual que ndo se encaixeva no estere6tipo de bandido construfdo através da midia, que povoava os pesadelos da pequena burguesia. Ao contrario, o meliante de olhos verdes, articulado, oriundo de uma baixa classe média, dotado dos recursos de poder que suas aces armadas the conferiam, parecia ao pabli- co leitor parte de uma charada magnifica, uma sedutora opcao por enfrentar o “sistema” — neste caso nao o da ditadura, mas o da ordem, que talvez naquele momento se confundisse. Um lutador admiravel diante de um opositor terrivel: até quando ele poderia resistir? De forma reprimida ou nao, havia uma expectativa de que ele mais uma vez se sairia bem, escaparia mais uma vez. 0 Licio Flavio visivel nao era a outra face dos policiais coruptos, mas um grande burlador, que deixava em aberto a possibilidade de revanche contra a ordem, nao podia ser equiparado a criminalidade pé-de-chinelo que andava por ai. Lucio Flavio: o filme Lucio Flavio encontra seu destino esfaqueado numa cela carioca, em janeiro de 1975, €0 filme € produzido dois anos depois. 0 momento histérico da chamada abertura promovi- da pelos militares no poder permitia uma certa discussdo dos problemas sociais, e motivava uma expectativa sobre o que viria a aparecer no campo artistico, supostamente impedido de se desenvolver por causa da censura e da repressao. Da mesma forma, o cinema brasileiro bus- cava recuperar 0 seu piiblico, desviado para as pornochanchadas pela falta de apelo popular da linguagem do Cinema Novo. 0 filme Lucio Fidvio tinha um tema de apelo popular e fazia questao de afirmar a moderidade de seus recursos técnicos; ao cortrario da caracteristica geral do cinema brasileiro, nao seria malfeito, podendo ser equiparado as produgses de Hollywood. Revisto hoje, este aspecto técnico nao parece tao evidente, mas ainda assim o filme apresenta qualidades que nao fariam inveja as mais recentes produces hollywood'anas. 0 filme € agradavelmente moderno em sua recusa a oferecer explicacies para o comporta- mento dos personagens, apresentando uma narrativa que se aproxima tentadoramente do que poderiamos chamar de neutra. € claro que a intencao nao é de neutralidade, que talvez essa ico Flivio, pasagere da Histria estratégia de evitar conflitos com a censura — que poderia nao gostar das respostas dadas. Mas a qualidade do resultado € 0 espaco de interpre- tagao deixado ao espectador. Visto apés uma avalanche de filmes que explicam como criminosos viraram criminesos por eventos de sua infancia — 0 que seria perfeita- mente cabivel no caso deste crimi- oso diferente, vindo de um extrato mais elevado, onde as concepcdes usuais sobre por que dedicou-se ao crime nao se aplicam —, 2 op¢ao do filme de nao mostrar © pequeno Doquinha faz um enorme bem. No maximo temos Grande Otelo a nos explicar que © descaminho se deu por desatencao a Mae Janaina, versio que nao ocorreria a Brian de Palma e, provavelmente, tao valida como qualquer outra. Outra verso paralela que é igualmente evitada é fazer de Licio um bandido social, na melhor tradicao de Hobsbawm; neste caso mais para bandido Giuliano do que para Robin Hood. Argumentos para isto nao faltariam: o proprio Liicio falava que roubava bancos — dinheiro sem dono, coberto por seguradoras — e nao trabalhadores. Além disso, a onipresenca da ditadura militar permite o argumento da resisténcia, de tentar ler 0 crime como uma forma de protesto contra a exploracao, ainda que desprovida da verdadeira consciéncia necessaria na luta contra o regime. Naquele momento, assaltos 2 banco eram de fato formas de luta. Mas 0 filme nao se permite qualquer proselitismo através do personagem; prefere fazé-lo individualista e violento em suas circunstdncias. Aqui mais uma vez as possibilidades sao indmeras. Quando lembramos que, mais recentemente, o cinema através do filme 0 gue é isso, companheiro? procurcu nos mostrar que os revolucionarios eram, de fato, individualistas e violentos, talvez reste uma porta aberta para concluir que Licio Flavio foi também um militante. ‘A expectativa gerada pelo final da ditadura era de uma exploséo de grandes obras artisticas, escondidas nas gavetas pelo temor da censura. Como isso nao ocorreu, surgiu uma contra-hipétese sugerindo que o exercicio metaforico promovido pela necessidade de viver A Wiseria vai ao cinema sob censura teria gerado um periodo artistico de grande qualidade. Colocado no quadro da abertura, 0 filme Lucio Fidvio permite pensar esta questdo: optando pela narrativa seca — sinto-me tentado a dizer académica, mas, para tantos, infelizmente, este termo se tornou pejorative —, o filme evita problemas, escapa de fazer cinema dendncia, e por isso, volun taria ou involuntariamente, escapa de ser um filme de época, datado pela excessiva contex- tualizacao, para abrir-se a leituras temporais diferenciadas. Impossivel dizer até que ponto esta op¢do é resultado do britho de diretor e roteirista ou parte da datacao do filme, mas, de qualquer maneira, contribui enormemente para que ainda seja atual. Para todos aqueles que buscam compreender as razdes para o crescimento da violéncia carioca ou brasileira, o filme talvez ofereca elementos de reflexio, mas nao respostas. Licio Flavio nao é nem tenta ser chave de compreensao nem do passado nem do presente, mas um resgate de uma peca do imenso quebra-cabeca da nossa realidade. e as fronteitas do nacional-payie ‘cs = 1m con Miva Our Ana Maria Mauad Bye Bye Basil eas fonteras do nacional-popular “Eu vi um Brasil na TV... Aquarela mudou Na estrada pegou uma cor” (Bye Bye Brasil, Chico Buarque) O cineasta e 0 poeta Em 1957, a peca 0 Auto da Compadecida, do autor pemmambucano Ariano Suassuna, é encenada no Rio e em Sao Paulo com grande sucesso. Um ano depois, ja com idéias na cabeca, mas ainda sem uma camera na mao, Glauber Rocha vai procurar Suassuna. Desta con- versa, Suassuna relembra o fascinio de Glauber pelo Auto, sua intencao de leva-lo para o cine- mae a confissao do poeta de que seu sonho cinematografico era o de fazer uma épica pobi um espeticulo total brasileiro, com 0 canto, a miisica e a imaginacao do povo.' Este sonho embalou toda uma geracao de intelectuais associados aos Centros Populares de Cultura, aos ‘deais do nacional-populare aos movimentos de vanguarda artistica. Uma expressao tipica~ mente popular que criasse uma identidade nacional, possivel de resgatar uma brasilidade per- dida em alguma reviravolts da historia. Os anos 50 embalaram sonhos que os 60 teriam a obrigacao de atualizar e 0s 70 de colocar um definitivo ponto final. Bye Bye Brasil, filme escrito e dirigido por Cacé Diegues, cineasta integrante do movi- mento cinemanovista e embalado pelo mesmo sonho de sua geracio: dar conta do pais em que vivia através de sua arte, 0 cinema. Antes de Bye Bye, Diegues ja havia realizado varios filmes, uns mais ligados a estética classica do cinema novo — camera na mao do fotografo sem preocupa¢de com a nitidez da imagem, uma cémera "nervosa", para dar conta da pulsdo edo movimento —, tais como: A grande cidade, Ganga Zumba e Os herdeiros; outros, inscritos uma outra temporalidade, voltada para as transformagdes do pais e da indiistria cine- matografica, dentre os quais destacam-se Joana francesa, Chuvas de verdo e Xica da Silva, este iiltimo um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema brasileiro. 7 ais: A Historia vai ae nema Comentar o filme Bye Bye Brasil através do olhar do historiador nao é tarefa facil, pois, sendo um filme recente, corre-se o perigo de cair nas armadilhas do devaneio, ou até mesmo no impressionismo de uma pseudocritica cinematografica. Para evitar estes dois peri- gos, mas sem deixar de confessar que rever Bye Bye Brasil me fez lembrar de muitas coisas (ai, 0s meus idos dezoito anos), vou embarcar na trupe da Caravana Rolidei com Lorde Cigano, 0 magico dos magicos, Salomé, a rainha da rumba, Andorinha, o homem mais forte do mundo, Cico, 0 sanfoneiro e Dasd6, sua mulher, e tentar detimitar as fronteiras do nacional-popular no mapa da internacionalizacdo da cultura, ponderar até que ponto o ideal antropofagico modernista nao € 0 alimento, ainda hoje, de nossa substancia cultural e quem sabe, com isso, entender o sonho de Suassuna. Memorias de uma garota bem-comportada Fui ver Bye Bye Brasil, em 1979, no cinema Veneza, um cinema de grandes e con- fortéveis poltronas vermelhas, ali perto da UFRJ, no finalzinho da Av. Pasteur, no limite dos bairros da Urca e de Botafogo, no Rio de Janeiro. Depois do cinema a gente ia direto para a cantina Fiorentina, no Leme, aquela que tinha a parede cheia de assinaturas de artistas famosos. Até Vinicius de Moraes, o poeta maior, jé havia deixado sua marca por la. Casquinha de siri, chope gelado e papo cabeca no menu principal. Em volta da mesa, criancas vagando em grupo ou dependuradas no colo das irmas mais velhas, vendedores de flores, ciganas, a eterna noite de Copacabana. 0 ano de 1979 nao foi daqueles glamourosos, a0 qual alguém dedicasse um livro. Mas foi o ano da revogacao do AI-5; da anistia; da extincao da Arena e do MDB; de uma série de shows no MAM; da estréia da peca Rasga coragdo, de Vianinha; do lancamento do livro do Gabeira; da gravagao de Calice e Apesar de vocé. Foi o ano das bombas; do novo sindicalismo. Foi, também, o ano em que eu entrei na UFF, para cursar Historia. Um ano para o resto de nossas vidas. Uma avaliacéo interessante desse momento foi feita por Caca Diegues na apresen- tacdo que faz de seu filme, na versao para videocassete. A idéia do filme surgiu quando o cineasta, numa tipica viagem de redescobrimento do Brasil, fazia um documentario sobre reli- giosidade indigena, no Amazonas. A permanéncia no interior do Brasil, no coracdo e no est- Bye Bye Bresi e as fronts do nacional-popular mago do Brasil, como ele mesmo denomina, serviu a Diegues de inspiracao para elaborar a historia que iria filmar logo depois. Nela o Brasil que se vé na TV da de cara com o Brasil mambembe, circense, latino-americano, mestigo e tenso. Essa tenséo é interpretada pelo Cineasta com base na teoria dos dois Brasis: [...] a idéia era exatamente fazer um filme sobre um pais que comecava a nascer no lugar de um pais que comegava a acabar, a troca de pais, quer dizer, e num momento em que esta troca néo havia sido feita, que ainda coexistia 0 arcaico com o moderno, em que ainda havia aquele Brasil antigo, existindo ao mesmo tempo que o Brasil moderno [...] de certo modo eu estou anun- ciando um Brasil novo, um Brasil diferente daquele que a gente conhecia, sobretudo um Brasil que fosse baseado, inspirado na mistura disso tudo, mis- tura das mais diferentes culturas, sejam aquelas da nossa origem enquanto nagdo, sejam aquelas que estéo nos influenciando hoje no dia-a-dia, e por- tanto eu acho que este filme foi feito com muito amor, um amor muito grande ndo s6 pelo pais onde se passa, mas também pelos personagens que atraves- sam este pais. [...] Neste sentido, eu acho que Bye Bye Brasil é antes de tudo um filme sobre a mudanga. Mais uma vez a busca de um Brasil essencial é atropelada pelo caminhao hibrido e antropofagico que se alimenta das novidades de outras paragens para deglutir sua propria cultura. 0 contetido da mudanca apontado por Dieques é 0 eixo condutor de sua narrativa cinematografi- ca, marcada pela capacidade dos personagens em serem os agentes deste processo. Todo 0 filme & acompanhado pela mudanca dos lugares, da atitude dos personagens, das condigbes de vida, das emogGes e relacdes. No filme de Diegues, nada seré como antes neste Brasil de amanha. ‘Um filme dedicado aos brasileiros do século XXI A Caravana Rolidei, trupe mambembe, dona de um caminhao com eletrola e alto- falante, faz do Nordeste seu publico-alvo. Em seus shows realizados nas cidadezinhas do sertdo, misturam ntimeros de magica, danca sensual e demonstracao de forca. Em uma dessas cidades — Piranhas, no serto alagoano — deparam-se com Cico, 0 sanfoneiro, e sua mulher, Rv i : , : A Wit vai a0 cinema Dasd6, em avancado estado de gravidez. Do encontro do grupo surge uma historia que, no cinema americano, poderia ser considerada um road movie (filme de estrada). Como foge a uma busca individual e introspectiva tao propria a esse género de filme, Bye Bye Brasil pode ser considerado uma comédia que trata de assuntos sérios, talvez um pretexto para, como diria a Gradina do Henfil, o "sul maravilha” redescobrir o Brasil. A historia € a seguinte: o grupo da Caravana Rolidei encontra 0 sanfoneiro e sua mulher, € todos juntos partem rumo a Altamira, na Transamazdnica, coracao do Brasil. Descrita pelo caminhoneiro incentivador da viagem como 0 paraiso na Terra, como a realizacao do mito do El Dorado, Altamira torna-se o objeto de desejo do grupo. Comeca ai uma aventura cheia de adver- sidades, caminhao atolado, animais mortos, indios ouvindo Chico Buarque, Dasd6 dando a luz nia boléia do caminhao, um malfadado destino. 0 sonho de nao trabalhar e parar de envelhecer € na verdade um engodo. Altamira é uma cidade de passagem, lugar para arregimentar mao-de- obra barata para projetos suspeitos, como o Projeto Jari, mencionado no filme. A expectativa de riqueza e abundancia é revertida em pesadelo total. Perdem tudo e partem rumo a Belém do Para. La chegando, o grupo se separa. Para Lorde e Salomé as alter- nativas sao a prostituicgo e os negécios escusos. Cico e Dasd6 vao para Brasilia, em busca de trabalho decente. Alguns anos depois a sorte volta a sorrir para 0 grupo, o reencontro se da quando a Caravana Holiday, com 0 nome redigido em nova grafia, recomega a sua viagem Brasil adentro, rumo a Rondénia. Antes desta nova viagem, Lorde e Salomé convidam Cigo e a mulher para se juntarem novamente ao grupo. 0 sanfoneiro, j4 entao estabelecido, com uma casa de espetaculos para forr6, rejeita o convite, desejando-Lhes boa sorte. 0 filme termina com Lorde fazendo um novo amanha com suas palavras magicas, algo em torno de: "Ora arri- ba me voi", falado bem depressa. Uma historia simples, que a principio parece linear, aos poucos transforma-se num mosaico de tipos e idéias, depois de um olhar cuidadoso na dinamica dos personagens, lugares e situagées. A narrativa esta estruturada em toro de oposicdes: umas so fundado- ras da ideologia do nacional-popular e da construcao da nacionalidade; outras jé anunciam a reconfiguracao do espaco cultural e 0 processo de internacionalizacéo da cultura. Como o objetivo aqui nao € analisar o filme como linguagem ou obra estética, mas pensar a partir dele a realidade que ele encena, optei por trabalhar com trés niveis que integram a narrati- va do filme, a saber: a dinamica dos personagens, dos lugares e das situacdes. Bye Bye Brasil eas fonteiras do neconel-pepuiat A dinamica dos personagens Lorde Cigano é o lider da caravana que anda nas estradas em busca de "um lugar onde este negécio brochante de televiso nao tenha chegado’. Salomé € a dancarina de rumta © prostituta nas horas de necessidade. Faz par com 0 Lorde e & objeto do desejo de Cico. Cigo 600 sertanejo sanfoneiro que quer conhecer o mar e Dasdé é sua mulher. Com 18 anos, grivi- da, e depois mae, é o contraponto de Salomé. Calada, consente que o marido se deite com Salomé, mas na oportunidade certa, se entrega aos carinhos de Lorde. Na dinamica dos personagens, Lorde se opde a Cigo. Enquanto o primeiro recebe atributos de amoral, trambiqueiro, alegre, sacana, aproveitador, civilizado, internacionaliza- do e moderno, o segundo é justamente o oposto: moralista, certinho, sério, acabrunhado, ingénuo, incivilizado, preso as raizes nacionais e arcaico. Lorde € o bandeirante cesbravador tenquanto Cigo € 0 sertanejo atavico. Ao longo da histéria Cico vai se tornando cada vez mais parecido com Lorde, até que na seqiiéncia final ele aparece maquiado tocando sanfona, lideran- do um conjunto de forrd, juntamente com a mulher ea filha. € a transmutacao do velho no novo, do arcaico no modemo, é a atitude antropofagica da cultura brasileira, pois em vez de assumir caracteristicas de uma nova identidade, atualiza suas proprias caracteristicas trens- formando-se numa nova imagem. Salomé é o reverso de Das, muito mais na aparéncia do que na esséncia, posto que é a maternidade que vai estabelecer a oposicao entre as duas. Mas é Salomé quem traz a filha de Dasdé a0 mundo, quem a recebe quando ela entra meio sem jeito no meretricio e quem devolve Ciga a pee eee, Dasdé na rodovidria para que os dois sigam para Brasilia. Aos poucos uma teia de cumplicidade se estabelece entre as duas, por meio de olhares gests, 30s poucos também Salomé torna-se mae de Dasdo. Na seqiiéncia final, em que os personagens se transformam, Dasd6 é ela mesma, so que mais arru- mada, nao se tornou uma Salomé, criou sua propria r alteridade. c A dinamica dos personagens deixa evidente 4" Sa: Uttar meee am mote da mudanca, apontado como o principal tema do filme pelo seu diretor. Mast Smt, A Wistécia vai ae 20 mesmo tempo permite que esta mudanca seja qualficada a luz da problematica da hibridiza- sto cultural na América Latina, resultante do processo de massificaco engendrado pela expan- so da midia.’ Nao € a toa que 2 televisdo, antes execrada pela caravana, é tempos depois assimilada e passa a compor tanto a mise-en-scéne da casa de espetculos de Cio — um palco odeado de aparethos de TV — quanto 0 novo caminhéo da caravana, que possui dois aparelhos encrustados, como diamantes, na carroceria. A dindmica dos lugares 0 filme mostra pequenas cidades do sertio, paisagem agreste, chao de terra batida, casas baixas, um povo pobre, de rosto marcado € temente a Deus. Um povo que faz procis- ses, que acredita em politicos e que esta sempre a espera da chuva chegar. E 0 cenario tam- bem das feiras de artesanato e comidas tipicas, e das caravanas itinerantes, comerciando ale- gria e outros produtos. Surgem na tela sempre embaladas por misicas regionais. Mostram tam- bem as cidades do litoral, agitadas, urbanizadas e cheias de gente e de carros. Marcadas por todos os tipos de poluicao, longe de serem o lugar ideal para se viver, so espaco do dinheiro facil e da oportunidade imperdivel. Alucinadas pela televisdo, sdo o espaco da degeneracao dos costumes nacionais. Aparecem sempre acompanhadas por uma trilha sonora de sucessos estrangeiros ou misicas pasteurizadas. Por fim, a estrada 6 0 elo de ligagao, espaco de destrui¢ao, desolacao e morte. Purgatério entre o inferno da seca e o paraiso tropical. £ 0 espaco da mudanca e da transitoriedade, surge na tela acompanhada da misica-tema do filme, tocada em ritmo alegre. A estrada é o caminho para a realizacao do desejo. Os espacos se opdem em termos de arcaico e moderno, traduzindo a modernidade tanto como a destruicao dos valores nacionais quanto o prendncio da mudanca. Estamos fada- dos a ser modernos, a todo custo. 0 litoral e o sertao sao oposicdes que se atualizam a cada Nova tentativa de se pensar o Brasil como uma unidade, como nacdo. No século XIX estao presentes na natrativa euclidiana, atualizam-se em Silvio Romero e, posteriormente, no pen- samento isebiano. 0 ponto novo, neste cuadro, é a estrada, que, de acordo com a légica da ditadura militar, seria 0 elemento de integraco nacional. A Transamaz6nica surge para levar civilizagao ao interior. No entanto, na leitura do filme, a estrada é como as pontes dos Prefeitos das cidades pequenas, leva 0 nada a lugar nenhum, com o agravante que no meio do seu caminho deixa um rastro de morte e destruicio das culturas marcantes de nossa . lB Bye Bye Brasil ¢ as fromeiras do nacional-popular nacionalidade, como a indigena. Nao é a estrada a responsavel por civilizar o sertao, e sim a televisdo, que transforma 0 povo em espectador da sua propria tragédia. A dinamica das sitvagoes ‘Algumas seqiiéncias do filme so chaves para se entender a dindmica de transformacao cultural pela qual o Brasil passa neste momento, de acordo com a interpretacao de Diegues. A primeira 6 a seqiiéncia trés, que se inicia com 0 panorama noturno da praca e as luzes e movimento, misica. Comega 0 espetéculo com Andorinha comendo e soprando fogo. Na platéia, o sanfoneiro e sua mulher, criancas, 0 prefeito comendo, com pose de paxa. 0 prefeito pede siléncio e Lorde Cigano entra, ao fundo 0 tema do filme tocado por um sax. Lorde anuncia seus poderes sobrenaturais e a capacidade de tudo conseguir. Indaga a platéia seus desejos: 0 prefeito pede fartura, prosperidade e progresso; seu assistente, agarrado a uns papéis, pede para ser eterno. Lorde responde que nem o melhor dos magicos pode conseguir isso, mas anuncia que, como senhor do tempo, podera fazer nevar no sertdo. "Esta nevando no sertao, esta nevando na minha administragao", grita 0 prefeito. Ao fundo toca uma misica romantica dos anos 60, em inglés, e Lorde continua valorizando seu feito: "Est4 nevando como na Franca, como na velha Inglaterra, ai que saudade, como na Europa em geral, como nos EUA, como em todo pais civi- lizado do mundo, o Brasil também tem neve." A platéia entra em delirio. Dasdé compara a neve a coco ralado. Lorde olha para cima e manda parar de nevar: "Agora chega, ta bom." Em seguida anuncia Salomé, que entra a0 som de uma rumba, sob luzes vermelhas: biquini cavado, estola de arminho e coroa brilhante. Lorde descreve seus dotes de mulher fogosa, Salomé danca e diz: "El amor, el amor como solamente se faz en el Caribe." Salomé, sedutoramente, se insinua para a platéia, A segunda é a seqiiéncia nove. Dia de fun¢ao noturna. Salomé dan¢a ao som da sanfona € do triangulo de Cico e Dasdé, sem eletrola. A platéia est vazia. Andorinha faz seu niimero de facas. Depois, do lado de fora da tenda iluminada, Lorde comenta que @ casa estava fraca, Salomé conjectura se nao foi dia de procisséo, final de futebol, ou outra coisa. Lorde levanta a hipétese de que o "prefeitinho de merda tenha inaugurado..." Neste momento hé um corte na imagem da igreja iluminada e ouve-se ao fundo a misica da novela "Dancing Days", da Rede Globo. Lorde e Salomé andam pela cidade atras da misica e se deparam com uma platéia de olhos vidrados na televisio pablica. Lorde reclama e aplica "o de sempre": explode a televisdo. Bs [Wists vai ao cinema Nesta segiiéncia, a TV é a modernidade, responsavel pela alienacdo do povo, pela perda da identidade nacional, e sua explosdo é a traducao do desejo apocaliptico de literal- mente destruf-la antes que ela nos destrua. 0 interessante é que os protagonistas da cena — Salomé (Bety Faria) e Lorde Cigano (José Wilker) — sao dois reconhecidos artistas de TV, criando uma outta oposicao entre 0 dito e 0 nao dito. Ao mesmo tempo coloca-se uma outra questao: no filme, seja como espectador da TV ou da caravana, 0 povo aparece como mero receptor que assiste a tudo que the é imposto. Onde esta a diferenca? Somente na seqiiéncia treze 0 povo sai de seu estado de letargia para interagir com os personagens princi- ais. Na cidadezinha castigada pela seca, a caravana apre- senta seu espetaculo em troca de comida e objetos. Um dos nGmeros é o de adivinhacao, encenado por Lorde. Luzes apa- gadas, Lorde ilumina sua cara com duas lanternas e diz ser discipulo de Nostradamus e S30 Malaquias e pergunta se alguém quer saber alguma coisa. Como ninguém se manifesta, resolve ler pensamentos por telepatia. A camera em travelling passeia pelos rostos tristes da platéia, Lorde ilumina cada um e comeca a falar como se estivesse falando ao telefone com alguém. Camera na sua cara, como se estivesse recebendo um pedido de informacao sobre alquém que ja havia morrido, Lorde fala e entreabre os olhos para ver se alguém se comove. Passa a lanterna pela platéia e vé uma senhora coberta de lagrimas que, ao ser descoberta, chora copiosamente. Satisfeito com o resultado, Lorde se empolga, a platéia pergunta quando vai chover. "Seré que Deus t4 distraido?”, pergunta um. Logo em seguida, uma senhora, com um véu na cabega, comeca a cantar, £ noite de So Joao. Uma outra aproxima-se e pergunta sobre a familia que partiu. Lorde, atdnito com o resulta- do inusitado de seu ndmero, responde com um "eu sei la", depois retoma a postura de Lorde @ chuta alguma coisa. A senhora o chama de "meu santo”. Ao responder sobre o lugar onde a familia da senhora esta, Lorde vai aos poucos mudando o tom da voz, de encenacio. Passa 2 um discurso interior em que ele vai descrevendo, para si mesmo, sua imagem de Altamira, paraiso na Terra. Fartura, juventude e forga sao as idéias que associa a Altamira. Termina a cena com um grande sorriso de esperanca, repetindo "Altamira". 2 a ‘Bye Bye Brasil e 2s fronteiras de naconal- popu 0 delirio de Lorde cria uma identidade entre o povo e 0 personagem. Os dois lados bus- cam na elaboragio de sua identidade algo que ficou perdido 10 passado. 0 Brasil de antanho, de natureza idilica, fartura e abundancia. O delirio passadista atualiza imagens da religiosi- dade popular, que, se em Lorde transmuta-se en movimerto e busca por mudanca, nos espec- tadores @ mais um alento, uma confirmacao de que Deus nao os abandonou. Mais uma vez reiteram-se as oposicoes entre 0 arcaico e o miodemo e entre o personagem agente de trans- formagées e 0 povo, que reza pela chuva enquanto assiste pacientemente a mais um espetaculo de pura ilusao. Sobre finais felzes Quando foi lancado, Bye Bye Brasil causou controvérsia. Para uns, configurava-se como uma verdadeira declaracao de amor zo Brasil e todas as suas contradicées.” Brindave-se, nesta tendéncia, a realizacdo de um filme esteticamente bom, com tematica interessante, intetigente que, acima de tudo, havia conseguido trazer o pablico para ver um filme nacional que nao fosse pomochanchada. A vertente oposta condenava o diretor por ter cedido ao cinema comercial e Assuumido a estética hollywoodiana. Em suma, o debate mais uma vez voltava-se para a polémi- ca entre cinema entretenimento e cinema conscientizador. A resposta do diretor foi categérica: Nao adianta se querer separar as coisas [...] Estou tentando me dirigir 4 totalidade: & consciéncia, ao prazer, & vontade e ao desejo. Se isso for uma forma de entretenimento, entéo viva o entretenimento. * Toda essa polémica foi gerade, entre outros motivos, pelo final feliz do filme. Todos acabam satisfeitos e de bem com a vida, abrindo um novo amanha. Depois de digerirem as espinhas de peixe” (antenas de TV) cue se espalhavam pelo Brasil (hoje em dia seriam as parabéticas), redefinindo as fronteiras do nacional, os membros da trupe se transformam, assumindo um perfil de internacional-popular.’ Apesar de todos estarem satisfeitos, muito mais do que um final feliz, 0 encerramento do filme nos faz pensar até que ponto 0 ideal da antropofagia modernista conseguiu alimentar nossa cultura. Vendo a Salomé loire com cabe- los entremeados de néon e o Sinatra cantando Aquarela do Brasil, € como se o hoje prefi- gurasse naquela cena do passado. Lar Os indicios da modernidade brasileira indicam, como reflete Renato Ortiz, o que real- mente somos, natureza contra a qual ndo hé por que se voltar, Para que um outro futuro? Vivemos sob o dominio da maxima "se estd ruim com ele, pior sem ele’. A modernidade brasileira, ao contrario daquela proposta por Octavio Paz’, é, neste sentido, acritica. Ou ainda, como quer Jesiis Martin-Barbero, surrealista, pois nao s6 converte a riqueza da terra em pobreza do homem como transforma as caréncias e as aspiracdes mais basicas do homem em desejo de consumo. Me. oo Susssuna, Ariaro. "0 cinema, o Brasil eu. SP, Bravo, ano 2, n° 18, pp. 18-16, 3", marco 1999, ‘xiste uma bibliografiarelevante para ce tratar este agsunto dente as qual desta cco Nestor Garcia Candlni e Renato O:tz Bstado de Minas, BE, 26/1/1980 Tribuna da Imprense, 9, 27/1/1980 ato Crtis cra imo x pitalo do line ‘SP, Brasiense 10 modemo, de acordo e que se torna uma espécie de senso comum, ali- mentando a intoleréncia € o etnocentrismo. 0 estereitipo torna-se uma caracteristica da "regionalidade" e, desta forma, ganha uma forca de redidade. Faz parte, agora, de uma “natureza" que marca todos aqueles que nascem naquele territério, pasteurizando as diferencas sociais e tornando homogéneas as particularidades culturais. € como se fosse uma segunda pele, uma lente cultural permanente e indelével, um estigma que acompanha todos os "nordestinos" onde quer que estejam. Os rostos de Severino, o operario assassino, e Deraldo, o poeta, sao iguais, "tém a mesma cara, cabeca chata, fala arrastada, olhos acuados", como assinala o jornatista Orlando Fassoni. Q filme os identifica pelas caracteristicas mais superficiais, assim como senso comum, banalizando as diferencas: "paraiba", "baiano". Uma identidade cultural é estabele- cida definitivamente com base nos mesmos estereétipos, demarcando o que "é muito comum no norcestino, sempre fatalista e quieto, que passa a renegar desde a peixeira até o cangaco ea cachaca" —e 0 proprio diretor, aqui, cai na armadilha da identidade regional... Um Noréeste assim construido nao possui origem nem historia. Perde-se no tempo, como se sempre touvesse existido, associado a natureza agreste e hostil do sertéo e ao atra- so econdmico e politico. Uma referéncia mitolégica que, todavia, nao perde sua forca sim- bolica; pelo contiério, é através dessa operagio imagindria que o preconceito ganha ares de verdade, de repreducao fiel da reatidade. Neste aspecto, o filme aponta para um tema de grande complexidade, levando o espectedor a indigar sobre a multiplicidade étnica e cultural brasileira. Na narrativa, a nocao de "Nordeste" s6tem sentido como preconceito, e ndo como uma defesa da verdadeira iden- tidade regional. Deraldo, em momento algum, manifesta-se contra o preconceito afirmando uma realidade contraria a ele, fugindo, assim, de suas armadilhas simbélicas. Desta forma, 0 5 A Wists ai a0 cinema preconceito aparece como preconceito e nao como caricature da realidade. A desconstrugao de ‘sua operacdo discriminatéria, que tem origem nas proprias contradicées do social, revela a ambigiiidade das relacées sociais beseadas na exploncéo e na negacao dos miltiplos valores culturais. 0 proprio diretor afirma que sua historia é ée um "paraibano cuja poesia e rebeldia revelam 0 que é a vida do trabalhador brasileiro, a que massacres esta sujeito em todos os setores em que trabalha, forcado pela situacao inesperada em que se vé em Sao Paulo".’ Sua preocupa¢ao, portanto, nao é reafirmar identidades regionais, mas denunciar a situacao da classe trabalhadora no Brasil, cuja caracteristica mais visivel € a heterogeneidade cultural. Essa perspectiva evita a possibilidade de banalizar 2 questo através de um maniqueismo sim- plificador: 0 "nordestino preguicoso" versus 0 "noréestino trabalhador". Se assim fosse, 0 filme nao sairia das malhas do tegionalismo conservador, que define a regido pelos seus aspectos mais superficiais com o objetivo de gerar solidariedades que apagam as divisoes sociais, os interesses antagonicos e a diversidade cultural. A idéia de "Nordeste” tem uma histéria, que remonta aos embates culturais da década de 1920 — através, principalmente, da obra genial de Gilberto Freyre — e, se o filme nao desenvolve essa trama, pelo menos nao reproduz desavisadamente a versao corrente de um 'Nordeste sofrido e pobre, onde a seca ‘0 atraso econémico predominam" etc. etc.’ No entanto, quando se rebela contra as arbitrariedades do mestre-de-obras, Deraldo canta Mulher rendeira enquanto opera o elevador de madeira, fazendo seu desafeto subir e descer rapida e descontroladamente. £ um retomo 2 uma cancao de guerra, de luta, que a tradigéo popular podia the oferecer. Uma amadilha contra a violéncia do preconceito. 0 enredo, aqui, entre num impasse. Como resolver as angistias de Deraldo? Qual a saida para desenrolar 2 trama da cultura ameacada sem cair na mera defesa tradicional da regio? Como evitar 2 completa degradacao cultural do poeta? A resposta esta... na Historia, Ao refazer © tragico percurso de Severino, 0 operario que assassinou 0 patrao, Deraldo retoma sua propria condi¢ao de homem da culture, comprometido com as camadas populares, com os oprimidos e desafortunados. 0 poeta percebe que 2 sombra de seu sosia permanecera pairando sobre sua vida, ameagando-o com a confusio de identidades e impedindo-o de seguir seu caminho de poeta popular 0 conhecimento do passado o levara a Amadihas nordestinas -O homem que virou suco conhecer-se melhor e possibilitara uma aio mais efetiva na defesa de sua cultura. Além disso, a historia renderé um novo folheto ce poesie popular com um lugar certo na prateleira do comerciante de revistas populares. 0 conkecimento histérico, aqui, se reveste de uma utilidade pratica poucas vezes assinalada pela propria historiografia, embora nao exatamente no modelo instrumental de uma Histéria que serve a interesses politicos imediatos. A formacio de uma visao "cidada® do mundo e da sociedade garante a discipina uma fungo social e um inegavel compromis- so politico. A reconstrucdo da historia de Severino é feita aos poucos, pacientemente, reunindo depoimentos e juntando informacdes desconexas. Apés achar o fio narrativo que levou o operdrio 20 assassinato e a loucura, Deraldn surpreende-se com 0 que acha. Severino chegou 0 prémio de “operario-simbolo” apés denunciar os lideres grevistas de sua Fabrica. Contudo, sua atitude o levou a um isclamento contnuo que acabou por levé-lo ao estresse, @ queda de rendimento , finalmente, ao desemprego. Na ceriménia de entrega do prémio, o operério ja estave desesperado, sem emprego e sem amigos. De fato, o poeta percebe que Severino é o verdadeiro "Antonio Virgulino", e nao ele préprio. Derrotado pela maquina capitalists, espremido até virar suco, 0 operario — bom pai, marido amoroso — foge para dentro de simesmo, recluso em suas ilusdes de valentia, ate- cando, com a peixeira, as estacas de madera do cercado em que passa a viver, recluso, fugi- tivo e solitario. 0 filme, 20 final, redime a todos. Deraldo recupera a compaixao pelos outros que, como ele, softem num mundo injusto e deigual; retoma sua vida de poeta popular e, ainda mais, conquista Maria, a vizinha, que havi se prostituido ap6s ser abandonada pelo marido trabalhador — este também um derrotado que voltou para Natal. Severino tem sua historia narrada sem pretensdes moralistas: nem herdi nem vilao, nem justiceiro — 0 patrdo, ainda por cima, € norte-americano — nem dedoduro, apenas mais um operario brasileiro destrui- do pela engrenagem do capital. Todavia, a redenco maior é da prosria classe trabalhadora, que descobre, nas historias de Deraldo, a forca da uniao e a consciénci da exploracao. As panorémicas tomadas finais da cidade de S30 Paulo ao som de versos que feam da forca da classe trabalhadora sugerem, talvez, uma ampliago dos espacos operdrios, tomando de assalto as cidadelas do capital. ~~ 0 futuro € promissor... pelo menos nos versos de Vital Farias. Quem trata o povo com desdén Se atrasou neste mundo e ndo entende Que é no grito, na forza e na mente E na unido que é uma semente A forca que 0 povo tem. ‘0 flme recebeu a medalha de ouro no Festival Internacional de Moscou em 1981 € o prémio da critica no Festival de Nevers, na Franca. Citado por Fassoni, Orlando L."A Folha de S. Paulo. SP, 15.12.80, 1oda histéria de umn hamem que viroe suco. (0s jovens, dancanéo na beira da piscina, bebendo e fumando maconha, parecem nie perceber 2: rexdes da revelta da dona da casa quando 0 poeta se incorpora a darga (censualnente, a moda sertancja), nem muito meros entendem a violenta [i reazdo do proprio Deraldo, que joga o presen:e do coronel na agua e rouba o bife do cachono: *cachoro viado" Holand2, Firmino, “O homem que virou suco." Nogdo Cari. Fortaleza: Ano I, n' 8, maio/junho de 1983, p. 6. Martins, Paulo H. "0 regional e o nacional no imazinésio desenvolvimentista brasileiro: da nostalgia oligirquice ao fim do nordeste."In Ximenes, Tereza (or3.) Tove Peradigmas e Realidade Breilzia. Belém: UFPA/YAEA. 1993. p. 13, Fassoni, Orlando L. “A incémoéa histéria de um homem que vou suco.” olka de S. Pio, SP, 15.12. 80. 0 ator, ese Dumont, ¢ muito requsitaco para este tipo papéis, em que seu tipo fisico se estocia as imagens comans do “nordestine’, mar ando-o como “o aor do drama Ga migiacio". Cf. Reportagemr de Ligia Sanches Paulo, SP, 15 de dezembro de 1930. Esta ientificaréo fez com que a interpre tazdo de Dumont — que ganhou o prémio de melhor ater no Festival este papel — fosse marcada especialmente pela improvisigac. Ct. Veja, (cata de Jodo Batista de Andrade & redacio do jornal 6 Liberl, 6.3.83, ‘Ct, por exempla: Silveira, Resa M* Godoy. 0 Regionaliorc Mordestino. Bxstincia @ conscéncic de cesigualdade regional. SP, Mocerxa, 1982: Albuquerque JR, Duval M. 0 Engenho Antinoderro. A Invengio do Wordeste e Outias Artes. Tese de Doutorado em HistSria apresentada 4 Unicamp. Campinas: 1994; Neves, Frederico de Castro. Fnagens do Novdeste, A constragao da meméria regional. Fortaleza: Secult-CE, 1996, OM haan lena eal Maria Ligia Coelho Prado afin. 0s amintos da berdade: tempo e Historie Gaijin conta a historia de uma familia que fazia parte do pimeiro grupo de imigrantes japoneses que desembarcou no Brasil, em 1908.’ 0 pibblico prestigiou o filme e a critica, quase unanimemente, o aplaudiu, sempre ressaltando 0 fato de sua diretora, Tizuka Yamasaki, ser estreante em filmes de longa metragem.’ As criticas insistiam que o filme, narrado de forma simples e direta, acertava ao contar a histéria com emiocao e conseguia atingir 0 obje- tivo de fazer bom cinema.’ Tenho lembrancas muito nitidas da minha reacdo ao assstir a Gaijin pela primeira vez, em 1980. Recordo-me da surpresa positiva de ver, naqueles anos da ditadura, um filme que corria o risco de dar ao roteiro uma conotacio politica ao abordar criticamente 2 explo- racao dos trabalhadores rurais. Rever Gaijin, praticamente 20 anos depois de sua realizado, me fez pensar sobre tempo e historia ou a inexorabilidade da mudanga do olhar diante da passagem do tempo. Espero, por me "colocar a escuta de nosso tempo de incertezas, ape- gando-me a tudo 0 que ultrapassa o tempo da narracao ordenada’, néo ser acusada de anacro- nismo, "o pesadelo do historiador, pecado capital contra 9 método histérico’." Como bem se sabe, para o historiador, ao refletir sobre uma obra cinematografica, tempo e espaco sao os alicerces para o inicio de qualquer andlse. Nao se pode esquecer, ainda, que diretor ou roteirista, ao escolher um argumento, «sta realizando um ato de selecdo, com motivacdes mais ou menos corscientes, mas que esto indelével e intrinseca- mente marcadas pelas circunstancias geogréficas e cronolégicas? Além disso, como afirma Marc Ferro, o filme deve ser entendido como um produto, uma imagem-objeto, cujos signifi- cados nao sao apenas cinematograficos. Cumpre tecer as relacdes entre o filme e 0 piblico, A Hstria vai ao cinema a critica, o regime politico. A andlise nao se limita ao filme, integrando-se a sociedade que 0 envolve e com a qual se comunica necessariamente.’ Assim, o historiador, ao analisar um filme, nao precisa obrigatoriamente fazer uma abordagem semiolégica ou estética ou, ainda, enquadra-lo dentro da historia do cinema Como ja afirmei, quando o filme estreou em 1980, estévamos em plena ditadura, ape- nas entrando no periodo da abertura. 0 ditador era o general Joao Figueiredo, aquele que preferia cheiro de cavalo a cheiro de povo. Tomara posse em marco de 1979. A lei de anistia fora aprovada em agosto de 1979, depois de uma longa luta de entidades democraticas, luta esta que remontava a 1975, quando surgiu o Movimento Feminino pela Anistia. Como a anis- tia era para todos, garantia que os militares nao teriam que responder por seus crimes con- tra os direitos humanos. 0 movimento operario vivia tempos herdicos. Luis Inacio Lula da Silva, a frente do Sindicato dos Metalirgicos de Séo Bernardo e Diadema, despontava como lider dos traba- thadores. A crise econdmica aliada ao arrocho salarial contribuia para que @ oposi¢ao ao regime aumentasse. "“Exportar € 0 que importa", proclamava Delfim Neto, ministro da Fazenda. As comemoracées do 1° de maio de 1979 foram particularmente importantes. Foi rezada uma missa em Sao Bernardo, com a presenca de trinta mil pessoas que depois se deslo- caram para o Estadio ce Vila Euclides, onde cem mil participantes se reuniram num ato de desafio ao gaverno. Foi um grande protesto da oposi¢o contra o governo. No final de outu- bro, outra greve de metelirgicos em Sao Paulo termi nou com a morte de um operario, Santo Dias, ligado Igreja Catolica, assassinado durante um piquete na porta de uma fabrica.” Em novembro de 1979 terminava o regime de bipartidarismo politico, era o fim da Arena (da situa¢ao) e do MDB (de oposi¢io). A Arena passava a se denominar PDS e o MDB se transformava em PMDB. Surgiam outros partidos de oposicao, o PDT de Leonel Brizola e 0 PT, que se organizara no ano anterior, a partir de sindicalistas, militantes da Igreja, intelectuais ¢ setores das classes mécias. ‘aifn. Os caminhos ¢a liberdade: tempo e Historie. Por volta de 1980, apesar da consolidagdo da politica de abertura, as tensdes entre o estado autoritario e a sociedade civil chegavam a um nivel critico. Nesse sentido a greve dos metaliirgicos deflagrada no final de marco de 1980 representou um dos momentos de maior conflito entre ambos, uma vez que a sociedade civil apoiava macigamente as reivindicagées dos operdrios. 41 dias de greve, 130.000 trabalhadores parados, 7% de ganhos por produtividade e estabilidade por 12 meses no emprego eram as reivindicagées basicas, ambas recusadas pelos patrées. Em 19 de abril, Lula e mais 19 pessoas (incluindo 15 lideres sindicais) foram presos sem mandado judicial. * A linha dura dos militares nao aceitava a abertura. Bombas explodiam em jornais de oposi¢ao e na Camara Municipal do Rio de Janeiro. Esses atos terroristas culminaram com a tentativa frustrada de explodir o Riacentro, em 30 de abril de 1981, onde se apresentavam varios intérpretes de masica popular, entre eles Chico Buarque, um dos baluartes da resistén- cia a ditadura militar.* Nesse contexto, Gaijin era um filme didatico, um filme de combate. A narrativa direta e segura pretendia provar uma tese, a necessidade da liberdade diante da opressao. Contava a saga de Titoe, personagem central do filme, inspirada na av6 da diretora, e de sua familia, desde a partida do Japio até a chegada a uma fazenda de café no interior de Séo Paulo em 1908. De forma delicada, 0 espectador ia entrando no mundo dos imigrantes japoneses, o trabalho inten- so, 05 costumes, as dificuldades com a lingua, a comida, a nova terra. A terra do café. Mas 0 que era café? Em dtima cena, José Dumont, que representa um trabalhador nordestino da fazen- da, explicava aos recém-chegados como se devia fazer para apanhar o café. Ele puxava o café do galho e dizia que nao se podia bater na planta porque sendo ela moreeria. Sua demonstracao falada na lingua natal era incompreensivel aos japoneses, que o olhavam estupefatos, sem ter a minima idéia do que aquele homem estava dizendo. Ele entao pegava uma espécie de vas- soura e batia com ela no pé de café, repetindo que nao se podia bater na arvore ou ela morre- ria, e estatelava-se no chao para ilustrar a morte. Em outra cena, Antnio Fagundes, que faz 0 contador da fazenda, levava umas costelas defumadas para a alimentacao dos imigrantes, info mando que aquilo era muito bom. Os japoneses zbominaram aquela "coisa" gordurosa e ins tiam que queria arroz. 0 roteiro conseguia, assim, de maneira feliz, indicar como foi dificil a adaptacao. Tudo era novo, o clima, a fazende de café, 2 comica. Interessante lembrar que no se discutiram questdes ligadas a religido, sem diivida outro ponto de confiito. A Hiria vai 20 cinema Gaijin poderia ter sido um filme circunscrito a narrativa do choque de culturas difer- entes ou 2 dramatizacao de uma historia de amor frustrada. Entretanto, o roteiro pretendeu dar outra complexidade a trama. Os ares do tempo presente penetraram a composicao da nar- tativa. E significativo que o filme abra e feche com cenas atuais da cidade de Sao Paulo, enquanto se ouve a voz da narradora, Titoe. Ao final do filme, novamente com cenas da cidade de Sao Paulo de 1980, ela diz: "0 passado faz parte das minhas recordacées." Esta forma de apresentar a narrativa parece ser um convite para pensar temporalidades distintas, estabelecendo uma ponte entre passado e presente, que permite possiveis associagies por parte do espectado:. 0 tema da longinqua imigracao se transforma em canal para refiexao, no presente, dos conflitos, do abuso do poder politico e da exploracao do trabalhador. As greves sindicais a repressée por parte do regime militar dos anos 70 instigaram os autores a trans- Por, para cutro tempo e espaco, lutas sociais que guardavam o mesmo significado.” Ahiist6ria acompanha a libertacao da jovem protagonista, que descobria, num deter- minado momento, a possibilidade de quebrar o dominio do patrao, escapando das garras do sistema opressor. Tendo suportaco toda sorte de infortinios, decidiu ultrapassar a submissai fugindo da fezenda. 0 refiigio era a cidade, apresentada no filme como o lugar onde se fazia Possivel alcancar uma vida mais digna. A fabrica, ainda que nao fosse o paraiso, era melhor que a servidio no campo. A idéia de que uma dificil escolha politica tinha que ser feita é 0 fio condutor da historia. Era preciso estar do lado da justica e da liberdade, contra a opressio e a tirania. 0 personagem do contador da fazenda exemplifica didaticamente o caminho que devia ser sequido. Nascido e criaco na fazenda, tendo os estudos pagos pelo patrao, ele estava encar- regado de fazer as contas dos trabalhadores. Tinha que se submeter aos ditames do fazendeiro, roubando os trabalhadores na hora de fazer suas contas. Estava dividido entre sua conscién- cia, que pendia para o lado dos explorados, e 0 mado de se arriscar a enfrentar os poderosos. Quando os japoneses decidiram fugir da fazenda, ele fez sua opcao e os ajudou, pondo fogo no cafezal. No final, anos mais tarde, o filme o focalizava na cidade, discursando em praca Piblica, denunciando os horrores pelos quais passavam os trabalhadores urbanos e os imi- grantes que chegaram para trabalhar nas fazendas. O ciclo se completava. Daquele que presen- ciara a injustica, que ficara dividido, que ndo conseguira conciliar inteiramente com os Poderosos, nascera 0 rebelde que assumia o papel de lider contestador. Gaijin, Ds caminhos da libertad: tempo e Historia ‘Sao ainda os olhos cravados no presente da ditadure que compéen a cena da violencia policial a mando dos poderosos, cuja vitima era o trabalhador italiano "subversivo" que prega, na fazenda, um anarquismo moderado, dando aulas 2os seus companheiros sobre a questao da propriedade. Dizia ele que o fruto da riqueza da terra devia pertencer a quem nela trabalhava." Portanto, assistir a Gaijin em 1980 tinha, pare os que combatiam 2 ditadura, um sen- tido bastante particular. Nosso desejo politico de liberdade estava representado pelos per- sonagens do filme, estabelecendo-se uma imediata identificacdo entre "n6s", espectadores, “eles”. A critica a0 poder era percebida como parte da "nossa luta", incorporando o filme ao debate da oposicao 20 regime. Ali estava a classe trabalhadora, como sujeito da historia, desempenhando o papel que dela se esperava, a de vanguarda rebelde que deveria transfor- mar a sociedade, rompendo com o sistema estabelecido. Entretanto, alm dessa estreita liga¢ao entre o filme e a conjuntura politica daquele periodo, é preciso lembrar a incorporacao ao roteiro de certas interpretagbes da historiografia sobre os temas em pauta. Conforme as proprias deciaracées de Jorge Duran, foi realizada "muita pesquisa histrica"."* € possfvel notar como certas discusses préprias da bibliocrafia forneceram elementos importantes para compor a narrativa, conferindo um sentido historico 8 saga da imigracao. Nessa perspectiva pode-se compreender, por exemplo, a maneira pela qual © capital inglés e o poder dos ingleses no Brasil do comeco do século so apresentades no filme. Apareciam os britanicos como mentores, como agentes determinantes de certas polifti- cas, como a inevitabilidade da modernizacao da producéo cafeeira ou a necessidade da repressao aos trabalhadores "subversivos". Nessa mesma linha, acompanhando a bibliografia, mostra 0 italiano como o lider contestador da ordem, pregando idéias anarquistas. A dicoto- mia campo/cidade, ainda t4o presente nas construcdes historiograficas, também é nitida. No campo, a opressao era tal que nao restava altemativa além de escapar, enquanto que a cidade era um espaco mais democratico, onde havia condicées de alcancar uma nethor vida material, assim como de se organizar para contestar a ordem vigente. Quando o filme foi lancado, as imagens sobre os japoneses em Sao Paulo estavam cristalizadas, de forma homogeneizante, quase que chapada. Eran bons trabalhadores, pas- sivos e pacificos, sem muita cultura. As associagdes livres sobre suas profissdes levavam a certos estereétipos, quase que tipificados: o sitiante, o feirante, o tintureiro. 0 Japao surgia como pais "feudal", exético, atrasado. Os simbolos desse Japao tradicional se resumiam ao guerreiro samurai, as queixas, ao harakiri, aos camicases da Segunda Guerra Mundial. A Historia vai ao cinema Neste fim de século, as imagens sobre o Japao no Brasil foram bastante alteradas. 0 pais agora é mostrado como rico, poderoso, polo avancaco di tecnologia mundial, Lugar de muito tra- balho, onde o moderno e 0 tradicional convivem e se conpletam. Com relacdo aos imigrantes no Brasil, também ocorreram mudancas significativas. Isto se deu particularmente depois das cele- bragdes, em 1988, dos 80 anos da imigracéo japonese zo Brasil, que ganhou muito espaco na midia em geral e trabalhou com outros simbolos e imagers.” A nova visdo oficial mostra os Japoneses como vitoriosos — médicos, engenheitos, advogados, comerciantes —, reforcando a idéia do éxito da imigracao. Segundo Célia Sakurai, incrementou-se, nesse periodo, a publicacao — em geral apenas em japonés — de memérias e ronances escritos por imigrantes ou seus descendentes. Contavam das dificuldades e dos protlemas da chegada ao Brasil e de sua aceitagao pela socedade brasileira. "A leitura dos romances nos induz a analisar a presenca Japonesa no Brasil de modo linear, sem conflitos, a nao ser pelos conflitos pessoais, que so o cerne dos enredos. No mais nao se percebe nenhim ctoque, especialmente na interacdo entre ‘brasileiros’e ‘japoneses’ (com excecio do periodo da guerra, que foi uma situacao excepcional). Nos outros momentos, os ‘brasileiros’ parecem aceitar sem restricdes 0 japonés’ como colega de escola, como concorrente no mercado de trabalho, e até como cénjuge."* No entanto, para complicar essa disputa de inagens, contrapondo-se a visdo do imi- grante vitorioso, assistimos, nos iltimos 15 anos, 20 movinento intenso dos nisei e sansei — os descendentes de japoneses — voltando a terra de seus antepassados, em busca de trabalho temporario que [hes garanta melhores condicdes de vida e a realizacao de sonhos, como haviam feito seus familiares no passado. Isto significa constatir que parte dos descendentes — esses dekassegui — fracassou, e como brasileiros/japoneses pobres precisaram fazer 0 movimento inverso 20 de seus antepassados." Portanto, Gaijin coxflita inteiramente com essa: programades, nao se enquadrando dentro da versio oftial da imigracao que mostra sempre o sucesso dos japoneses, sua "vocacao" para o trabalho e seu devotamento a ordem constituida, nem contempla — é dbvio — essa nova e particular situarao de volta ao Japao. As observecées de Sakurai nos remetem a outa questao central no filme de Tizuka, o tema da identidade nacional, que tem assumido importancia, ultimamente, tanto em termos politico/culturais, quanto historiograficos. Gaijin constriia uma imagem de identidade nacional muito clara, tendo a fazenda como microcosmo que representa o Brasil. Ali se encontravam caipi- ras paulistas, nordestinos, negros, imigrantes italianos, portugueses e japoneses, todos irmana- —r Gaijin. Os caninhos da Uiberdaie: temyo e Histor, dos como trabalhadores brasileiros.* Para Tizuka, o Brasil é este compéndio de nacioralidades diversas que se dissolvem na brasileira. Nume cena quase 2o final, expressa-se uma sintese dessa visdo. A filha da personagem principal — que brinca com criangas brancas e negras — diz para a mae que s6 vai voltar ao Japdo se puder levar os amiguinhos. Negada a permissdo, entende que é melhor a me ir sozinha e que ela espereria por aqui sua volta. Anteriormerte, outra cena bastante simples mostrava o trabaltador nordestino ensinando portugués as crian;as japonesas, A Giltira palavra ensinada e bastante enfatizada é Brasil. A identidade nacional se traduz na idéia de um pais no qual todas as racase nacionalidades podem viver em harmonia, mistuando-se tumas as outras. As cenas finais que mostram as pessoas ceminhando no centro de Séo Paulo, entre elas muitos rostos japoneses e negros, apontam para essa diversidade. Todos juntos caminhando no presente, olhando para o futuro, carregando as memérias do passado. Rever Gaijin em 1999, sitiada em outra conjuntura politica, envolvide por debates historiograficos diferentes, tocada por tantos filmes que se seguiram a ele, me traz 3 mente registros também diversos.” Nao ta mais ditadura, nem militares no poder. Lula se transfor- mou numa figura fundamental no quadro da oposi¢ao politica ao governo. Depois de un longo periodo de inflagio, a moeda, o real, parecia oferecer as solugdes para os problemas brasileiros. Entretanto, a crise voltou e a sensa¢o dominante passoua ser de incertezi e inse- guranca. Os indices de desempreco nunca foram tao altos quanto neste momento. Na cidade de Sao Paulo estao baterdo na casa dos 20%. Com 0 desemprego, as possibilidades de greves vitoriosas ficam muito distantes e os trabalhadores temem fazer greves e perder o emprego. 0 desencanto e a desesperanca atingem os coracées. As certrais sindicais, muito éivididas, nao parecem guaréar aquelas caracterisicas herdicas. S6 se fala em sindicalismo de resultados. Os lideres sindicais ap6iam o governo, apenas a CUT permanace na oposicao. Vivemos o perfodo da globalizaczo. 0 FMI conduz nossos negécios econémicos, ditando as regras de seu fun- cionamento. A violéncia urbana toma conta dos noticidrios. 0 mercado e suas regias tudo determinam. As utopias se desvanecem. A possibilidade da revolucao socialista é vista como algo do tempo dos "dinossauros", produto da 'retaguarda’ politica, constantemente desquali- ficada nos discursos oficiais. Tudo deve ser moderno, técnico, sem ifeologismos. Para mim, em 1980, Gaijin era um épico que denunciava a exploragdo do tratalhador brasileiro, que o apontava como o verdadeiro gaijin do sistema socia, nacional. A resposta era do se conformar, lutar para abrir os caminhos da liberdace que estavam diante de nés. 0 filme nT _ A Histie vai ae cinema parece hoje simples demais, diteto demais, sem sutilezas politicas, com uma "mensagem" linear jingénua. Passa uma visdo um tanto adocicada das relacies raciais, a auséncia de preconceitos, a falacia da harmonia entre todos os trabalhadores. Os conflitos ficam restritos ao embate dos oprimidos contra os ricos e poderosos e seus asseclas como 0 malvado capataz. 0 mundo era ‘njusto, os trabalhadores eram os produtores da riqueza, lutavam e algum dia sairiam vencedores. Todos deviam buscar seus caminhos da liberdade, que de alguma forma iriam encontrar. Titoe transformou sua vida, com coragem e sentido do coletivo, e conquistou a dignidade. Nessa perspectiva, talvez se compreenda por que Gaijin é um filme esquecido, quase fora de seu tempo historico." Numa cidade como Sao Paulo, fui encontrar uma copia em pés- simo estado numa Gnica loja da melhor locadora de filmes de arte da cidade. De um lado, 0 filme fica deslocado ao celebrar a luta dos imigrantes nos tempos dos dekassegui, que nao acreditam nem mais no Brasil como lugar de trabalho. De outro, o contexto politico, as questées culturais propdem problemas diversos daqueles que o filme apresenta. A idéia do pais das oportunidades, o lugar que a todos acolhe, a grande naco cordial, a importancia da luta dentro do pais para melhorar de vida, o resultado positive da rebeldia, perderam sua forca. Transforma o filme num ‘documento historico" datado. Estariam os descendentes de Japoneses pretendendo apagar a memoria das lutas e das esperangas no pais escolhido por seus antepassados? Como ja indicou Pierre Nora, a memoria est4 em transformacao perma- nente, inconsciente de suas mudancas sucessivas, vulnerével a todas as utilizagdes e manipu- lagdes, suscetivel a repentinas revitalizacdes.”” 0 filme, em 1980, estendia diante de nés 0 caminho da liberdade e da esperanca. Hoje representa uma memoria dos sonhos destruidos, das esperancas frustradas, da ingenuidade das propostas, da fragilidade das utopias. 0 historiador tem, no entanto, condigdes de imaginar outros tempos hist6ricos no futuro, j@ que a dindmica da histéria nao nos cansa de surpreender. £ possivel que a este Periodo tao embagado, tao cinico, outro se seguird (diferente, por certo), no qual, mais uma vez, mulheres e homens se unirio para pensar o futuro, construir utopias e delinear sonhos que sero capazes de encantar e mobilizar a humaridade. Entdo outros olhares poderao desco- brir em Gaijin, uma simplicidade e um apelo que hoje no estamos sendo capazes de perceber. oo... Em 1508, entraram no Brasil 830 japoneses. Até 1950 chegaram 189.764 imigrantes desta nacicnalidide. Arlinda Rocha Nogueira. A imigragto japonesa e c lavourc 1a (1908-1922). SP, Instituto de Estudes Braileires, 1978 eo do flme eram de Tizuka e de Jorge Duran, ctilenc exiladc ede 1974, Gaijin significa estzangeiro, deslccado socialmente. ‘iginm-se a diregio, a0 rotsiro e ao trabalho dos atores. 0 papel da rincipal potagensta, Titoe, fi desempenhado por K'yoro Tsukamots e seu mai e+ japoneses contratados especialmente para o filme io ainda 0 ast aL que viria a ser —, Gianfrance acronismo’. In Te: ‘a a Historia ne, Barcelona, \o material para la erst aqui Romaguera e Est Historia y rial Fontamaa, re-analyse de la société’. In Jacques Le Gott e Pier s, Fais, Gallimard, 1974, p. 241, de UHisteire. Nouveau Ob ema incorpor dio. 0 filme de 2981, cor de Leon Hirszm também um sice ico e de cr lero: 1964-1985. SP. Atval, 1958. xército, matando-o e ferindo um ado. Na época, 0 caso foi abafado pele governo, que cite de todas as evidencia ‘Jage Duren, o wteiista chileno, também carregava corsigo as fortes referéncias, olicial, vale lembraro filme de Hec neo, geircd 1977, que traz uma critica bastance dara ac sist ree. Bea atara-2e de um bandido cemum. 0 roteio era assinado uzeizo, Bagenco e Jonge Duran. 0 argumento baseava-se no livra de Louzesn (Cuta a0 Jornal do Brasil. RI, 3/6/80, Caderno B, p. 2 m 1958, howe comemoragbes des 50 anos da imicrazio japonesa no Brasil, mas 0 detaque na micia. Em 1°88, segurdos di a de Es ios, iavie no pais 1.228.000 descendentes de :aponeses; pela estimati ada pelo Centro, em 1998 seriam 1.400.0 nigrogéo japonesa. SP, Weep, 1993, pp. 29-100 Yamasaki tem um projeto de fazer um filme sobre 0¢ dekassegui mbrai que nos iltimes dois anos, a crise da economia japonesa fez dssimiro fluxo brasileiro 20 2apda. Seguado o Centze de Estudos Nipo-Brasileros, sio 250.000, kassegui trabalhando no Japio. fem conas do comeco do filme, na Hospedaria des Imigantes, também sio mostra dos imigrantes espantois interegindo com imigrantes ¢e outras racionalidades. (Dutros filmes nessa mesma linha foram Fle no usar: black-tie, de Loon Hliseman 681) e Cabra marcado pare more, de Eduardo Coutinko (1984), cocumentério caliente extraordinaio. Mais recentemente, 0 quatrita, de Fabio Barreto, trouxe a da ing ‘Surpreendeu-ne bastante rdo vé-o incluio na filmogafia de Ricardo Mendes no zo organizado por Fernao Ramos, Histéna do cinema brasileiro, SP, Art BAitorz, 987. 4 Unica we‘eréncia & ditetora @ brevssima e diz respeito ao filme Petriemade, de 1985. alias Ismail Xavier também 36 fez referéncia a esse mesmo filme num comentario negatvo, no attigo "Do golpe militar A aberura: e resposta do cine de auter" in Ismail Xavier, Jean-Claude Bemadet e Miguel Feceira (orgs). O desafio do cinema. RY, Zaha, 1 ior, Pere, Les liewx de mémoir. La Régublque. Faris, Gallimard, 198 PRD MT Pk a, PT A a DP A a AD ay a A ’ André Luiz Vieira de Campos s | 23 & = & 2 = = < a 3 £ 2 2 Piaote: a infin brutalzad A versao em video do filme Pixote: a lei do mais fraco abre com um curto documen- tario no qual um locutor, tendo ao fundo cenas do cotidiano de um bairro miseravel da perife- ria de Sao Paulo, descreve as condicdes de vida dos moradores daquela regido. 0 narrador chama especialmente a atencao para as criancas do lugar, enfatizando varias vezes a cate- goria “crianca® como que propositadamente, querendo distanciar-se da categoria "menor", usada no jargao oficial para designar criancas pobres e/ou infratoras. Finalizando a breve introdugdo, o locutor revela que o filme foi protagonizado por um menino daquela periferia. A camera focaliza um barraco e na porta uma famitia composta pela mae e seus nove filhos. Dentre eles se destaca Fernando Ramos da Silva, o Pixote. Um ténue limite — talvez pelo tom jornalistico dos cinco minutos iniciais do filme — separa a "realidade’ mostrads no breve documentario introdut6rio da "ficcaio" que se seque. 0 fato mais emplematico desta fronteira ouco definida entre reatidade e Ficcao esta no fim trégico do menino Fernando. Como milhares de outros "pixotes',’ seguindo a trajetoria provavel de seu personagem, o jovem Fernando morre dez anos depois de estrelar o filme, num tiroteiro com a policia de Sdo Paulo. 0 filme divide-se nitidamente em dois momentos: no primeiro, de um nivel de ten- sao que chega a hipnotizar o espectador, aborda a vida de criancas e adolescentes internos de uma instituigao corretiva. A segunda parte do filme gira em torno da vida de um grupo deles ap6s fugirem desta instituicao. Em ambas as partes dos filme imperam a violéncia, criminali- dade, drogas, prostituico e homossexualismo. 0 tom de dentincia jornalistica caracteristico de Pixote reflete néo apenas a intencao do diretor, mas também o Livro que serviu de base para o roteiro: A infancia dos mortos, de José Louzeiro. 0 tivro baseia-se num fato real, 0 caso A Mistria vai a cinema Camanducaia, quando 102 menores foram espancados e atirados num despenhadeiro pela policia de Sao Paulo, 0 filme comega com a chegada de um grupo de criancas numa unidade de triagem de menores infratores, que sao encaminhados para uma institui¢ao corretiva nos molces da Fundacao Nacional do Bem-Estar do Menor — Funabem. La, sio saudados pelo inspetor "Sapato" (Jardel Filho, sempre calcando um sapato branco), que os adverte: "Aqui ninguém apanha de bobeira.” Logo na primeira noite passada na institui¢ao, Pixote vé, assustado, um vizinho de cana ser violentado. Na primeira parte do filme, a trama desencadeia-se a partir de um conjunto de acon- tecimentos tigados ao habito de um grupo ce policiais conuptos, associados a funcionarios da instituicgo igualmente corruptos: valer-se dos menores internos — irresponsaveis perante a justica — para praticar assaltos nas ruas. 0 camburao chega no internato e leva, come sem- pre, um grupo de internos. Nesta noite, um imprevisto vem atrapalhar os planos dos policiais. Os meninos deixados nas ruas para praticar os habituais assaltos provocam, involuntaria- mente, a morte de um desembargador. Sob a pressdo da familia e da imprensa, a policia e 0 diretor do reformatério tém que encontrar "um" culpado. A vitiva do desembargador (Beatriz Segal) nao corsegue reconhecer nenhum dos meninos que lhe séo apresentados: "afinal todos eles sao iguais', diz ela, "Se nao ha um suspeito, trata de conseguir", grita o diretor do refor- matério pare um policial. Na “fabricacao” do culpado, policiais e funcionérios do reformatorio acabam provocando a morte de dois meninos. A tensao cresce e a violéncia explode em rebe- Lido no reformatério, seguida da fuga de um grupo. Na segunda parte do filme, Pixote, Dito, Lilica e Chico, os fugitives do reformatério, saem pela cidade de Sao Paulo, praticando pequenos furtos. Lilica, a "bicha" do grupo, ini- cia um relacionamento com Dito. Através de Cristal (Toni Tornado), amigo de Lilica, o grupo vai ao Rio de Janeiro traficar cocaina. A primeira tentativa de vender a droga no Rio fracas- sa: 05 meninos so enganados por Débora (Elke Maravilha), que nao thes paga pelo produto. Dias depois, Picote e Chico vao vender a droga para um desconhecido num cabaré e, por coin- cidéncia, encontram Débora. Ao cobrar a divida, os dois meninos envolvem-se numa luta cor- poral que termina com a morte de Chico Débora. Pixote sobrevive e tem seu primeiro canho efetivo: um revolver, roubado da bolsa de Débora. Pixote: a infdecia bralizada Ja desfalcado de Chico, o grupo é apresentado a prostituta Sueli (Marilia Péra). "Essa mulher € uma maquina’, diz seu cafetdo ao crupo, ja agora nitidamente sob a lideranca de Dito. 0 “negécio” de Sueli, além da prostituigao, 6 a pratica ce “suadouro”, expediente no qual a prostituta atrai seus clientes para serem assaltados pelo seu cafetdo. Os meninos acer- tam com o cafetéo um prego, e ficam com Sueli. A “sociedade” entre os meninos e Sueli pro- gride e eles fazem dinheiro. Dito assume a lideranga do grupo e o lugar de cafetao de Sueli. Lilica, enciumada, vai embora e o grupo fica novamente desfalcado: a sociedade reduz-se a trés: Pixote, Dito e Sueli. Tudo parece ir bem para o grupo até que nova reviravolta acontece. Ao atrair um gringo para um suadouro, 0 grupo se atrapalha com a reacio violenta do cliente. Mais uma vez Pixote briga, atira e mata o gringo. Acidertalmente, mata Dito também. De volta ao quar- to, agora sozinhos, Sueli e Pixote protagonizam a famosa cena em que a prostituta coloca Pixote no colo e o amamenta dizendo "mama, meu filhinho; mamae esta aqui com vocé". No mesmo instante Sueli se arrepende do gesto ¢ rejeita sua postura maternal. Talver repelisse a idéia de que o menino Pixote viesse a ser seu novo "macho", seu cafetao. E grita: "Me larga, Pixote, tira essa boca suja de cima de mim. fu nao quero filho; odeio crianca. Vai viver sua vida. Cada um se vira como pode. Some!" Pixote pde sua arma na cintura, olha para Sueli e sai. Na Gltima cena — numa evidente metafora de sua vida —, Pixote esta sozinho e cami- nha, até desaparecer no horizonte, equilibrando-se sobre os trilhos de uma estrada de ferro. Ao ser lancado em outubro de 1980, Pixote provocou muita polémica. Apesar de con- tuncente e violento, 0 filme foi sucesso de pablico e critica. Os jornais da época registravam que, em cinemas lotados, as platéias, emocionadas, aplau- diam ao final da projegdo.’ A grande repercussao do filme nos Estados Unidos, onde chegou a ser aponta- do pela critica especializada como 0 terceiro melhor filme estrangeiro da década de 1980, possidilitou a carreira internacional de seu diretor, o argentino- brasileiro Hector Babenco.” Entretanto, se por um 20 A a AP ce fD lado o filme foi sucesso de piblico e cftica, por outro provocou reacdes indignadas por parte dos A Hite vat 20 cinema representantes dos Orgios de assisténcia ao menor como a Funabem. Reunidos para assistir a0 filme em sessao especial, um curador de menores, assistentes sociais, professores e peda- gogos — todos profissionais integrantes ou ligados a instituigSes oficiais ou privadas para “"menores carentes" — foram unanimes en condenar o "cardter negativo" do filme. Algumas reagdes foram mais violentas, como por exemplo 2 do promotor Carlos Mello, entio curador de menores do Rio de Janeiro, que classificou o filme como "um verdadeiro atentado a propria seguranca nacional’. 0 curador considerou que Pixote "viola a Constitui¢ao" e advertiu que "o decreto-lei 1.077, assinado pelo ilustre ex-presidente Emilio Garrastazu Médici e pelo ministro Alfredo Buzaid, considera que matérias (grifo meu) como essas atentam contra a sequranca nacional".* E a que “matérias” referia-se 0 curador de menores? Assaltos, mortes, corrupcao Policial, trafico de drogas, prostituico, homossexuatismo? Por que Pixote provocou reacSes tao dispares por parte do piblico e dos represen- tantes das instituig6es? Por que as platéias comovidas aplaudiam sensibilizadas a saga de Pixote e seus companheiros? Por que 2s instituices de assisténcia aos menores carentes rea- giam incignadas? Comecemos por tentar responder sobre a reacao do pablico. Nao podemos dizer que, em 1980, a problematica do menor infrator fosse uma novi- dade para a sociedade brasileira. Se nos limitarmos apenas a historia republicana, podemos identificar que, desde 0 final do século XIX, jomalistas, politicos e autoridades mostravam- se alarmados com a crescente delingiiéncia entre criancas e adolescentes, reivindicando medi- das mais severas de repressao. Este apelo pode ser percebido no Cédigo Penal de 1890, cuja politica repressiva em relacdo aos menores infratores era mais severa do que a até entao prati- cada pelo Império. Enquanto o Cédigo Penal de 1830 estabelecia a idade de 14 anos como limite para responsabilidade criminal, 0 Cédigo republicano de 1890 considerava criminosos os "menores" acima de 9 anos que praticassem infracdes a lei. A propria categoria "menor" ja aparece no Cédigo republicano, tomando de uso corrente no discurso oficial desde o final do século XIX. Porém a Repibiica nao praticou apenas medidas repressivas; existiam também politi- cas piblicas de ressocielizagao e recuperacao de menores. Se elas foram eficientes, é uma per- gunta 2 ser respondida. Em relatorio de 1904, o entdo ministro da Justica considerava que as altemativas ao problema do "menor abandonado” nao podiam limitar-se a punicdo dos Fixote:_a infincs brucatizada infratores, devendo estas ser complementadas com a implementaséo de condicdes para a ressocializacao dos menores. Nesta perspectiva, foi criada a Escola Quinze de Novembro, no subirbio carioca ce Quintino, uma das mais antigas escolas correcisnais do pais, ainda hoje em funcionamento.’ Se o “menor abandonado” era preocupacdo de juristas e autoridades poli- Ciais, era também, na mesma época, objeto de atencdo da imprensa. Ja em 1917, 0 jomalista Alcindo Guanabara alertave as autoridades do Rio de Janeiro: "A infancia abandonada esté crescendo, acompanhando o zumento demogréfico da populacao, e continua a viver em pro- funda pobreza, transformando-se nz sementeira ca delingiiéncia, prostituicao e do crime."* ‘A questio, portanto, nao era nova e continou a preocupar legistas e autoridades e a inspirar politicas institucionais de ressocializacdo, Ainda em 1940, dona Darcy Vargas criou a Casa do Pequeno Jornaleiro, destinada a “curar, amparar e educar menores abandonados". 0 Estado Novo também criou 0 Servico de Assistércia aos Menores — SAN —, cuja ma fama podia ser percebida, nas décadas de 1950 e 1960, através das ameacas que pais rigorosos lancavam sobre seus Flhos: "Se vocé nao se comportar vou te mander para o SAM!" 0 regime militar de 1964 subordinou o SAM a Funabem e, posteriormente, extinguiu aquela instituicao. A criagéo da Funabem, entretanto, nao significou uma melhoria nas condicoes de tratamen- to dos internos. Em 1965, um jornatista denunciava que entre os 22 mil intemos da Fundacdo de Bem-istar do Menor estiéo numerosos portadores de moléstias contagiosas, onde a tuberculose predomi- na, permanecendo os menores em completa promiscuidade. Quatro criancas morreram recentemente [...] e no Pavilhdo Anchieta, 48 camas acomodam 163 mogas, algumas gravidas ou sobracando seus bebés. ” Ora, se a questdo nao era nova e estava freqiientemente estampada nos jornais e no discurso oficial, podenos voltar nossa pergurta inicial: por que o filme causou tanta polémica junto aos radios de assisténcia aos menores? Por que provocou reacdes tao dispares por parte do pablico eda critica, de um lado, e por parte dos representantes das instituicdes reformadoras, de outro? Talvez a chave para compreender esta disvaridade seja entender o momento hist6rico em que o filme foi lancado.* O filme chegou as telas no ano de 1980, ini- cio dos utdpicos anos da abertura, um momento em que, depois ce 20 anos de censura, a wT ‘AWistora vai 20 cinema sociedade brasileira estava reaprendendo a conviver com a liberdade de imprensa. 0 AI-5 tinha sido revogado em 31 de dezembro de 1978 e o presidente Figueiredo, que prometera a abertura politica (por bem ou "prendendo earrebentando"), tomara posse em marco de 1979,’ Portanto, Pixote sensibilizou platéies de brasileiros cue estavam "amordacados" havia vinte anos, impedidos de ler, ouvir e ver as mazelas de seu proprio pais. Neste senti- do, € no minimo curioso que Babenco seja brasileiro naturalizado e que o locutor que intro- duz o filme tenia um leve sotaque argentino, como se precisassemos de um olhar estrangeiro @ nos apontar nossos dramas. Pixote como que "revelou" aos brasileiros uma realidade que, apesar de nao ser nova, estava encoberta pelo siléncio da censura da ditadura militar. Havia, com certeza, a violéncia politica contra os cpositores do regime militar. Apesar de toda a cen- sura, essa violéncia era de dominio piiblico. Mas essa outra violéncia, a violéncia cotidiana contra menores, pobres, negros, homossextais excluidos em geral, continuava relegada as paginas policiais dos jornais, nao tendo ainda sido “descoberta" pela opiniao publica, 0 proprio livro que da origem ao roteiro, assin como seu autor, o jornaiista José Louzeiro, saem das paginas policiais. 0 fim da censura possibilitou a aplicagao do argumento da defesa dos direitos humanos, antes restrito ao campo estritamente politico, a outras formas de violén- cia que, com isso, adquiriram, também elas, um status de denincia politica. A emergéncia do discurso dos direitos humanos nos remete 2 uma segunda variavel para explicarmos a razao do sucesso de Pixote. As platéias brasileiras do inicio da década de 1980 tiveram uma percepcao positiva ao que poderiamos chamar de "sociologizacao” do tema do menor abandonado e das instituicdes corretivas. Essas platéias ndo apenas eram parte integrante da politizacao generalizada daqueles tempos como também, de alguma maneira, estavam familiarizadas com a leitura foucaultiana — entdo bastante difundida no Brasil — das "instituigdes repressivas’ e dos grupos "marginalizados", como prisioneitos, loucos ete." Por outro lado, ha um terceiro fater explicativo nao apenas para a boa recepcio do filme mas também pela polémica que causou. Se, como vimos, o tema do menor abandonado do era novo para a sociedade brasileira, sendo registrado na imprensa e nas leis desde o final do século XIX, também temos que reconhecer que o tema freqiientava a imprensa exclusiva- mente através do discurso oficial. No filme Fixote, pela primeira vez, o menor é visto de frente e fala diretamente ao publico mostrando a complexidade da condi¢ao de infrator. 0 filme nao € um documentério, nao tem o narrador, figura intermedigria entre o fato narrado e o publi- Pixote: a infanca brutaizaéa co. 0 piblico brasileiro poderia até estar fami- liarizado com 0 discurso sobre o menor, através de falas de autoridades e jornalistas, mas com certeza nunca havia ouvido e visto, na tela do cinema — e muito menos de TV —, esta questdo abordada sob a Otica dos menores. Pixote é ficcdo-verdade. Menor de verdade, na tela do cinema, sem intermediarios. E a reacdo negativa ao filme por parte dos representantes das instituicdes, como pode AWWW), Lia WP wT), Coat 0 aT, Sea ay ser explicada? Por que curadores, professores, assistentes sociais e outos profissionais ligados a instituigdes para menores reagiram to negativamente? Neste caso, arriscaria afirmar que essa reacdo negativa estdassociada ao fito de o filme desmascarar as instituicdes, nao apenas denunciando sua incapecidade de ressocializer seus internos, mas também responsabilizando-as pela reproducao dascondi¢des de pobreza e violéncia que deveriam combater. € esta abordagem da questao que da ao filme um carater politico e no apenas policial. A dentincia das instituicoes @ feitando por palavias, mas através do proprio comportamento dos personagens. De um lado, pormeio de Valmir (0 poli- cial), Mario (0 diretor do reformatério) e Sapato (0 inspetor de distiplina), a instituicao é mostrada como violenta e corrupta; de outro, por meio do juiz de meiores (Rubens de Falco) € da psicologa/professora, ela se apresenta paternalista, moralista e iveficaz. Esta abordagem faz com que o filme desagrade a todos os envolvidos com instituicdescorretivas, pois mesmo os funcionarios honestos e bem intencionados tém, no filme, uma inagem negative. ia do juiz de menores é emblematica da distancia entre o ‘mundo legal" e a reali- dade violenta daquelas criancas e da incapacidade das instituigdes em ressocializar seus internos. 0 discurso do juiz mostra o representante da lei numa tre de marfim, desco- nhecendo completamente as condicdes de vida daqueles internos. Ojuiz pode nao ser cor- tupto como 0 diretor do reformatério, que ao que parece nem é dos piores, mas é, no mini- mo, incompetente e conivente. A cena protagonizada pelo juiz se pasa ap6s as denincias de morte de dois menores e da rebelido que o fato provoca entre os interros. Diante de um grupo de meninos reunidos no patio, o juiz pergunta: A Histria vai 20 cirema Por que tanta destruigao? Isto aqui por caso ndo é a casa de vocés, da qual todos ns devemos cuidar? Mas que loucura é esta, de brigarem e até mesmo se matarem? (pausa longa enquanto caminha) Vocés vieram para cd para se reintegrarem é sociedade como cidadéos titeis e estao desperdicando a maior oportunidade de suas vidas. Por qué? Alguém pode me responder? Pode? (siléncio entre os internos; ao fundo, ouvem-se 0 som das sirenes). Além da critica feita através do comportamento do juiz, do delegado e do policial, uma outra forma de o filme mostrar a inoperancia das instituicdes & através do comporta- mento dos menores diante de seus representantes: os internos nao tém a minima confianca nas autoridades. Algumas autoridades se encarregam, elas mesmas, de deixar claro para 0s intemos que eles nao devem acreditar no discurso da legalidade: "Neste pais, a legislacao Protege 0 menor, mas comigo esta de menor nao cola" —, grita o policial, enquanto inter- Toga um grupo de criancas. Qutras, como o juiz, tentam se aproximar dos meninos, mas 0 fazem de forma tao distante daquele cotidiano de violéncia que também acabam se mostran- do pouco dignos de crédito. 0 juiz nao percebe que conceitos como "casa", "cidadaos iiteis" e “reintegracao a sociedade", através dos quais pretende sensibilizar os internos, nao fazem parte daquele mundo. Tenta interrogar os internos individualmente, mas se rende ao fato de que nenhum deles "sabe de nada" do que ocorreu no reformatorio. Sao todos "cegos, surdos, mudos" conclui o juiz. Ao ver Lilica com os pulsos cortados para fugir ao pavor de ser acusada no assassinato de seu grande amor, o juiz desabafa: "Que horror...” Enquanto isso o policial Valmir replica: "Eles procu- ram se cobrir porque todos se sentem culpados.” Concluindo, Pixote foi um filme que provo- cou polémica e reacdes tao dispares porque sensi- bilizou platéias através da abordagem de um tema i : oe que, se nao era novo, foi abordado de forma nova: be, © cinema “dando voz" a menores infratores. Por outro, vivendo 5 Pixote: a infrcis brutalzada estertores da ditadura militar, o filme provocou ainda a rearao daqueles que achavam melhor "silenciar" temas que "atentavam contra a seguranca nacional’. ‘Além disso, € importante registrar aqui, embora nao tenha me aventurado @ conside- racdes de ordem estética, que o filme também foi um sucesso porque é bom como obra cine- matogréfica. Pude concluir isto ao revé-lo para escrever este artigo. Entretanto, apesar de continuar a ser um bom filme, perguntei-me: seré que Pirote provocaria tanta polémica se fosse lancado hoje? Nao acredito. Nos nossos dias de despolitizacio da sociedade civil e, parafreseando Hannah Arendt, de "banalizacéo do mal", Pixote nao fica nada a dever ao que assistimos cotidianamente nas telas éa TV." Curiosamente, tal como pensaram os legisladores de 1890, 0 que percebemos como proposta “alternativa” para a violéncia juvenil na voz de alguns juizes, politicos e autoridades é a reducao da idade de responsabilidade penal, neste caso d2 18 para 16 anos, como se esta medida exclusiva resolvesse 0 problema. a Notas ‘Um des sgnificados para pixote ou pexote xa lingua yortucuesa é: menie novo, Hector Iabenco a saga de Pisce’, Jornal de B 20. ote €9 tesceixo melhor filme da década", Folha da Tarde, 6/12/88. A rea (sempre negativa) de uma plitéia sledonada’, Jornal de B ‘A Escola Quinze de Novembro ndo é mais uma insituikdo corretiva. Atualmente uma excol profssionilizante, con um projeto pedayogico corsiderado de ato niv (Guanabaa, Alcindo. ela de Janain: Tipografi do Machado, Lindolf. "Fundagio do Bem-Estar ndo asiste menores do SAM". Correio ih, 4 de setembro de 1955, (0 fiine rio se localiza explicitamerte no tempo ando ser por um quase impercep- detahe: em una das cenas, um notidrio de 1V aruncia ura viagem do pres te Figeiredo. Ficusiredo declarou em entrevista que "yrendia e arebentave’ quem se cclocasse jlitica corti a dertura 0s tio: do pensador francés Michel Foucaut (1261984) foram publicalos em gués e tiveram grande repercussio no Brasil. 0 bvio Vigiar e purr: 0 nasc ublicado pela Editor Vozes en 1977; Histria da loucwa, ed foi publicado em 1978 pela Ferspectiva; Micrfision de ela Editora Graal, eo primsio velume da tilogia Hitéria d ra noticia de destaque na CE. “Dez foyeme sete ficam feridos durante nto 0 autor est wm cempexo da Febem smprensa scrta e ros naticiaris mplexc da Febem em SP", 0 Gobo, 5/5 Fa ae a a Ta OP el . Carlos Fico les ndo usam bbeck-tie: vrias histrias, mitos prtagenistas “Liberaram 0 corpo s6 depois das cinco da tarde” é frase apenas entreouvida 1a cena do vel6rio do pai de Maria, uma das personagens do filme Eles ndo usam black-tie. Menc3o ligeira, de passagem, @ uma cas dificuldades cotidianas daqueles que tém de lidar direta- Mente com a policia ou o Instituto Médico-legal. £ também discreta a insercao de rufdos que lembram vidro se quebrando, forma que o diretor musical, Radamés Gnattali, encontrou para sublinhar a dramaticidade das cenas de violéncia policial contra os operarios, nas queis tam- bém se podem ouvir as passadas dos soldados, o ruido provocado por suas botas. Ru‘dos, siléncios, falas e suas auséncias também marcam a famosa cena final em que Romana, a mulher do lider operario Otavio, depois dos muitos reveses sofridos, cata feijao silenciosamente e 0 deixa cair numa tigelinha de metal, diante do marido que a observa e que compartilha com ela esse momento de balanco final, de refledo. Nesta cena nada é falado, mas muitas flases supostas nos diriam da melancolia, da resignacao e também da necessidade de reunir forcas Para prosseguir na luta diéria pela vida. Muitas historias estdo sendo contadas. Muitas vozes € ruidos podem ser ouvidos no filme. Na verdale, € dificil saber cuem so os protagonistas. Pode-se tomar a génese do proprio fime como objeto principal. Eles ndo usam black-tie & um dos textos que melhor representam ceito tipo de dramaturgia combativa de esquerde, na qual, como dizia Cacaso,’ a obviedade da solucao dos conflitos propostos (operario vers bur- Qués, democracia contrapondo-se a autoritarismo) torna magante o recurso aos “cacoates literarios antiautoritarios”, para usar expressio de Flora Sussekind.’ 0 filme é uma adaptagao da peca homdnima escrita por Gianfrancesco Guarnieri, em 1955, montada pela primeira vez em 22 de fevereiro de 1958 pelo Teatro de Arena de Sao Paulo, sob a direcao ce José Renato. Guarnieri escreveu-a aos 21 anos ¢ pretendia, inicialmente, mostrar aspectos de uma festa de noivado de operarios num barraco de favela, impresses que recolhera na adolescéncia. A cena esta la, no fim do primeiro ato, um dos momentos marcantes do texto, pois o samba que anima a festa mescla-se a gritaria ocasiona- da pelo nascimento de ¢émeos, num berraco préximo — parto que estava sendo aux‘liado WE por Romana. No filme, a cena nao existe, tal como outras, suprimidas quando da elaboracao do roteiro, discutido meticulosamente pelo proprio Guarnieri e por Leon Hirszman. A peca, ao contrario, “nasceu de jorro, ia-se estrutu- rando conforme 0 didlogo era posto no papel’.’ Portanto, quando a escreveu, em 1955, Guarnieri nao tinha consciéncia de que estava tendo sua primeira experiéncia séria come dra- maturgo. Até entdo ele atuara no Teatro Paulista do Estudante e ja havia escrito um pequeno ‘exto para o teatro do Colégio Santo Antonio Maria Zaccharia. Jovem e com pouca experién- cia, foi o proprio Guarnieri quem chamou a atencao para a espontaneidade e a visio roman- tica de mundo presentes em Eles ndo usam black-tie.* Mas a peca tem grande importancia na trajetéria do teatro brasileiro. Em primeiro lugar, sublinhou a existéncia de uma dramaturgia de cunho social, que punha em cena a dasse operdria, definindo pardmetros para um novo tipo de teatro urbano no Brasil. Nao se pense que a vida social das cidades estivesse ausente dos palcos nacionais, mas agora fala- va-se da cidade tipicamente capitalista, industrial, e do operdrio, sujeito histérico novo no cenario politico brasileiro. Ademais, 0 panorama teatral brasileiro quando da estréia de Black tie era dominado pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), companhia que alternava monta- gens comerciais e obras do repertério classico, dando preferéncia a autores estrangeiros. Segundo Sabato Magaldi, “no comeco o Arena era um TBC pobre, sem muita diferenca na escolha de pecas” Foi com a bem-sucedida peca de Guarnieri que o Teatro de Arena encon- trou o seu rumo, criando, inclusive, um Seminério de Dramaturgia que, se nao chegou a gerar textos definitivos, colaborou bastante pera 0 surgimento de um “jeito brasileiro” de escrever teatro, de conceber pecas que falassem diretamente ao piblico. = ee: les no usm black-tie viras historias, mits poraconistas Hirszman, estudante universitério, assistiu @ mortagem carioca da pera, en 1959, no palco que mais tarde seria o do Teatro Opiniao. Emccionou-se com a encenagao e par- ticipou das discussdes polticas suscitadas pela obra. Eles ndo usam black-tie seria seu quar- to longa-metragem, quase dez anos depois do elogiado Sio Bernardo (1971), cuja interdicao e censura iniciais (depoiso filme foi um sucesso de pablico) levaram sua produtora — Saga — a faléncia. Somente en 1978, depois de conseguir cagar suas dividas, Leon Hirseman comecou a planejar concretamente a realizacao de Black-tz, que permaneceu espera de um financiamento da Embrafilne desde 1975. Norou em Sao Paulo por un ano e meio, trabalhando © roteiro com Guarnieri. Fortanto, a historia de Otavio, Romana, Tiio e Maria serviu também como ponto de encontro de trés momentes de busca de uma “cultura brasileira”, lida — muitas vezes de maneira obtusa — sob a itica politica da esquerda: a dramaturgia partici- pante sobre a realidade brasileira do Teatro de Arena (de cuja criagao Guarnieri participou); a preocupacio de fazer filmes autenticanente nacionais do Cinema Novo, do qual Leon Hirszman era a “cabeca politica’, conforme defini¢ao de Glauber Rocha, e o movimento dos Centros Populares de Cultura, os CPCs, que patrocinou nova montagem de Black-tie e teve em Hirszman um de seus funiadores. Em Eles no usam black-tie, Otdvio é um lfder sincical as voltas com a eclosao de uma greve na fabrica em que trabalha. Consciente e trabalhador, conte com o respeito de seus colegas e conduz sua famfia com zelo. Mas sua atividade po'tica preocupa Romana, sua mulher, dona de casa abnegads e rigorosa que nao quer ver o marido novanente preso, como se deu em outro episédio politics, em funcao do cual Otavio amargou trés anos de cadeia. Foi jus- tamente nessa ocasiao que Tigo, filho mais velho do casal, teve que ser mandado para a casa dos padrinhos, onde conteceu methor padrio de vida, embora, na pratica, fosse apenas um empregado deles. Agora, ja de volta a casé dos pais, Tido também trabalha na fabrica onde atua OtAvio, mas nao the copia o interesse pela politica sindical. Preocupa-se, isto sim, com 0 sustento da futura famtiz, pois vai ter que se casar as pressas com Maria, gravida de um filho seu. Em fungdo disso, acaba por furer a greve organizada por seu pai e que também conta com o apoio de Maris. Na peca de 1955, Naria era auxiliar de costura de uma “madame”; no filme € empregada da mesma fabrica em que trabalham Tido e Otavio. Tal como esta iltima, hé outras diferengas entre a peca e o filme, como nao poderia deixar de ser, pois surgiran em contextos bastante diferenciados. No final dos anos 1950 0 ‘A Histéra val 20 cinema Brasil era goverrado por Juscelino Kubitscheck (1956-1961), presidente da Repdblica que expressot a vit6ra do projeto industriaizente apoiado no capital estrargeiro e que propunha mmudancas estruturais profundas e acelendas, baseadas na criagao de um setor industrial dinamico. Porém, as circunstdncias histéricas que mais diretamente parecem presentes na peca séo anteriores ao governo JK. Desde 1930 uma questo preocupave a todos: a irrupgio, ra cera politica, das massas populares uibanas. Aqui no importa discutir as teses sobre a institucionalizacéo das relagdes entre Estado, empresariado e operarios, o corporativismo posteriora 1937, ou o populismo de Getito Vargas, que mesclava o reconhecimento de direitos os trabahadores com graus diversos de nanipulacae politica. 0 fato é que o “povo" estava ra ordem do dia. Tanto quanto as discussées sobre o que era popular e o que era nacional. Os intelectuzis do periodo buscavam explica: 0 Brasil, edescobri-lo, con‘orme detectou Carlos Guilherme Mota,*e transitariam de uma consciéncia amena do atraso para a tragice percepcéo do subdesenvolvinento, conforme anotou Antonio Candido.’ Portanto, inserir o “povo” na cena cultural correspondia aos anseios de modemizacao e desenvolvimento do Brasil, na medida em que, assin, praticar-se-ia uma arte e cultura genuinamente nacionais. Tais circunstancias eram bastante diferentes no final da décata de 1970, quando o filme foi produzico. Os técnicos a servigo da ditadure militar levaram ao limite mais extremo 6 discurso otimisa do planejamento quando, por exenplo, pretenderam substituir, no ambito a poitica salaril, as presses politicas e greves por um simples célculo aritmético. Vivia-se a crise do ckamado “milagre brasileiro”, expresso com que a imprensa estrangeia, logo sequida pela nacional, designou o periadode ele- vados indices de crescimento do PIB e de inflacao, sob controle, ente 1969 e 1973. Vivia-se, sobre- tudo, o final do periodo mais duro do regime mi- litar, instaurado desde dezembro de 1968 atraves do AI-5, com cassacdes de mandatos parlanentares, prisées arbitrarias, torturas e Ml assassinatos. Com 0 projeto de cistenséo juan 7 politica de Emesto Geisel (1974-1979), abran- WT UD I, daram-se 0s rigors da censura e as manifestacdes artistico-culturais perderam esse referen- — les ndo usandackte: vrs histérias, muitos protagonistas cial de univocidade, 0 “inimigo comum” repressive, tanto qunto se esgotaram as verbas, em funcao da crise econémica, do “talvez amigo”," isto 6, das wéncias oficiais de apoio a arte e a cultura. A Campanha pela Anistia, iniciada em 1975 elo Movimento Feminino pela Anistia, j4 animava debates na imprense. Em 1978, Lula icerou uma greve vitoriosa que reuniu milhares de trabalhadores, chamardo a atercdo da ingrensa para o ressurgimento do movimento operario, episédio que funcionou com “laboratirio” para a defini¢éo do roteiro de Eles ndo usam black-tie: Leon Hirszman péde ciservar 0 omportamento de operarios em greve e ainda recolheu cenas para um outro filme 0 docunentario de longa-metragem ABC da greve, Finalizado somente apés sue morte premetura. Certamente deve-se a esse contexto imediito o trabuho minucioso de Hirszman com as cenas de repressao policial aos grevistas, que nao existemra peca orginal. Ha bombas de gas lacrimogéneo, ha o tipico ethos repressivo pés-8, que mesclava policiais civis e militares em acdes grotescas de violéncia e brutalidade, ré poupant velhos ou mulheres gravidas, como Maria, que no filme por pouco nao perde a cianca depis de levar um soco de um poli- cial (um quase, aborto que nao havia no texto original). A fabrica é bastante presente no filme, diferentemsite da peca, em que apenas & mencionada e nunca vista. Na tela se pode ver Maria preparando maganetas de porta de automéveis, referéncia explicita a recente industralizacao basileira e a uma das principais categorias de trabalhadores que participeram das greves de978/1979. Cenas de operérios trabalhando com solda ou no torno enfatizam a alisdo. Deve-se, também, a historia recente do pais a mote de Braulio, o lider operario negro, companheiro de Otavio. Interpretado por Miton Goneives, tanto na montagem teatral de 1958 quanto no filme de 1981, Braulio nao moria no text original. Com uma tosse crdni- ca, na peca e no filme, Braulio parece ter algum tip: de problna pulmonar, referéncia difusa, talvez, as doencas profissionais que vitimaram tanios operars nos primérdios da Repiblica. Na peca Braulio sobrevive, mas no filme morre, naode tuberalose, mas assassinado por poli- ciais durante uma tentativa de piquete na porta c: Fabrica. for que essa morte? Nao é difi- cil responder, em se tratando de obra com refererciais politcos e histéricos tao explicitos. Trata-se de um aproveitamento da figura do marti politico # esquerde, como foram Edson Luis de Lima Souto, estudante secundarista morte pela poltia em margo de 1968 e, espe- cialmerte, Manoel Fiel Filho, lider sindical assassinado nas tependéncias do II Exército, em Ba = Astoria vai ao cinema Janeiro de 1976. A peca encerrava-st com a cena ja mencionada em que Romana cata feijao, marcando a continuidade da vida apesar de tudo. No filme, ‘a luta continua”, a luta explici- tamente politica, simbolizada na cera final, em que 0 caixZo de Braulio é acompanhado por uma multidao portando faixas e catazes, num enterro que é uma auténtica manifestacao politica, fenémeno infelizmente conum durante a ditadura nilitar. Outras mortes também maram diferencas entre a peca e o filme. Ha o pivete que morre assassinado pala policia que 0 persegue até os fundos de um betequim por onde ten- tava escapar. Referéncia a violéncia urbana contempordnea, em funcao da qual a favela nada mais tem de romantico — trago que ainda se podia admitir no contexto em que a peca foi escrita. No final dos anos 1950, a fwela foi lida por Guarnieri segundo a dtica de valoriza- 20 moral da pobreza, o lugar do qual Maria nao queria sair, porque a cidade “é fia’, ou antes, s6 sairia se pudesse carregar consigo todos os favelados, todo o ambiente de soli- dariedade comunitaria dessa favela idealizada. Para Otdvio, Maria seria, de bom grado, a mulher de seu filho, mesmo sendo analfabetz: “analfalbeta mas honesta, mal-educada, falando errado, mas com aquele treco que s6 a gente tem aqui dentro”. Porcue, como dizia a letra da masi- ca-tema da peca (da qual s6 a melocia é ouvida no filme), “nosso amor é mais gostoso (...) tuas mao sao mais pura” porque “nés nao usa as ‘bleque-tais!” Letra que, diga-se, lembra muitfssimo as do célebre introdutor 4a “modinha” brasileira nos saldes lisboetas, Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), que falivam de um amor brasieiro que “eu nao sei por que é mais doce’.’ Agora a favela @ valhacouto de marginais-vitimas, que maiam para sobreviver e so mortos pela violéncia policial, eitura sociologizante de facil compreensao. Lugar de mortes estipidas, como a do pai de Maria, que também nao acontecia na peca: ele é assas- sinado por um assaltante, embora néo passe de um velho operario de construcao civil que gasta todo 0 seu dinheiro em cachaaa. Aliés, nem mesmo se trata da “velha e boa” favela: no filme ela surge como um bairro pobre de periferia, e Juvéncio, o violeiro que tocava até na chuva, pelas ruelas da favela teatrl, agora sé aparece tocando abrigado no cinematogra- fico bar do Alipio e quase vai preso, por engano, durante uma batida policial. Se a favela outrora romantizeda agore é pintada com as cores realistas da violéncia, © pragmatismo dos jovens operdrios que furam a greve também é explicado, no filme, segun- do uma leitura sociologizante. Tio néo apenas tem medo de perder 0 emprego: nas telas ele desenvolve um discurso politico que, amparando-se no seu conceito de democracia, justifica eo mo ao ao We LE ee les nio usam black-tie: vrias histiis, muitos protagowstas a decisio isolada de nao participar da greve, de nao usar esse direito. Porém, é Jesuino o caso mais visivel de adaptacao sociologizante aos tempos presentes. Se na peca ele pretencia furar a greve para agradar ao patréo, e, ao mesmo tempo, fingir que apoiava o movimento, no filme o amigo de Tido € indiscutivelmente um traidor, dedo-duro que entrega os nomes dos lideres que devem ser demitidos e que assume a defesa do condenavel jeitinho brasileiro: “E preciso levar vantagem em tudo [...] com um jeitinho aqui, outro ali, pronto!”, afirma Jesuino, 0 tema do trabalho, como nao poderia deixar de ser, ¢ abordado centralmente no Black-tie de Hitsaman. Esta presente um discurso ético-moral de valorizagao do trabalho, 10 qual 0 operério orgulha-se do conhecimento ¢ habilidade que possui. Quando Tiao recomen- da ao pai que se acautele para nao perder o emprego em funcao de suas atividades politices, Otdvio responde-the que, mesmo conhecendo sua militancia, os patrées ndo o despedem porque ele € competente, capaz: “Eu sou bom operario", afirma. Do mesmo modo, o sentido da vide 6 dado pelo trabalho, cuja auséncia perverte: 0 pai de Maria, bébado contumaz, regenera-se momentaneamente porque conseguiu um emprego. Sobrio, reconhece seus desacer- tos diante da filha, desculpando-se, e afirma orgulhoso: “Amanha vou me sentir um cabra itil. Cedinho comecarei na obra!” No dia seguinte, enquanto se lava depois de um dia estafante de trabalho, recebe mais uma confirmagao de sua condicdo de detentor de um saber valoriza- do: 0 encarregado o consulta sobre a possibilidade de recuperar uma viga rachada, cujo con- serto o velho operério assevera ser vidvel. Porém, outras verossimilhancas impoem-se & coeréncia intema da obra atualizada: 0 pai de Maria, com 0 cinheiro da jornada, embriaga- se novamente e acaba morto num assalto, quando retorava ao bairro violento. € curioso lembrar que a corrente anarco-sindicalista, predominante em certos momentos do movimento operirio organizado da Primeira Republica, condenava o alcool e as “diversdes mundanas” populares, tidas como formas de desvio das lutas principais. Seria pos- sivel perceber-se, na tentativa do pai de Maria de se manter sobrio, algum eco anarquista? A naturalidade com que Otavio e Romana encaram a gravidez sem casamento de Maria, tanto quanto a disponibilidade de Maria para o aborto, seriam reminiscéncias da liberalidade com que 0 anarquismo encarava a sexualidade e o casamento?” Ha também a figura do militante radical, que no quer perder muito tempo com discussées sobre organizacéo e mobilizaczo, e deseja partir logo para a “acéo direta” — é Sardini, justamente um italiano esquentado... tm A Wistia vai ao cinema O filme de Hirszman obtém seus melhores resultados quando nao opta por “cenas de politica explicita’. 0 cotidiano marcado pelas mulheres fala-nos de uma historicidade que transcende o maniqueismo das opcbes politicas imediatas. Elas sao as personagens que fun- cionam como contraponto realistico a um mundo idealizado do trabalho e da politica. A mulher do pai bébado de Maria, mesmo muito doente, insiste em se manter acordada, enquanto o espera para servir o jantar. Maria se oferece para substitui-le, porém, ainda que mal se man- tenha de pé, ela reafirma sua inten¢3o — que 6 também funcao, necessidade e dever. Maria também nos fala da vida, mesmo 20 admitir 0 aborto de seu filho, e situa-nos no tempo pre- sente, ao néo admitir receber ordens de Tido, que pretendia proibi-la de participar da greve. Mas & Romana quem exerce com maior veeméncia esse papel. £ ela, provavelmente, quem arranca a folhinha do calendario pendurado na parede da sala, fazendo o tempo passar. Quando tenta bater no filho mais novo com uma cother de pau, em funcao de uma travessura qualquer, a colher se quebra e ela ri de si mesma, ao se perceber xingando e rindo ao mesmo tempo. Tomando rotineira a repressao politica, ela a banaliza, pois se é preciso ir ao Dops tentar soltar 0 marido preso, isso s6 pode ser feito depois ce providenciar alguem que enxagiie a roupa e ponha 0 arroz e o feijao no fogo. Do mesmo modo, ao despachar o mari- do € 0 filho para um dia de greve e piquetes, sua preocupagao é pratica, rotineira, cotidiana: eles devem levar 0 endereco de casa no bolso porcue, assim, “se te acontece alguma coisa a gente sabe logo”. £ por isso que, na cena em que cata feijao, observada pelo marido, nada precisa ser falado, tudo ja esta dito em funcao de sua prépria maneira de ser, do seu tino, dos seus cuidados, de suas atencdes — como o café que prepara ao fogao, durante o velério do pai de Maria. Pequenas providéncias, que fazem o tempo passar, empurrando para tras os problemas e sugerindo que outro tempo viré. Melhor ou pior, mas pelo menos outro. oS nein de Brito, Ndo que pross. Organizar3oe selecio de jcamp; RJ, UFRJ, 1997, p. 284, evida li nl is & retrctos. RI, Jorge cesco Guarnieri publi ier, RS, Civiizaglo Bi alcanti, Jarde! Dias. stio 4a moral (Brasil — 1889/193% a a & 5 3 oe ee Claudio H. M. Batalha Pa fente Brasil. 0 retoro do cine politico A memoria de Cldudio Renato de Moraes Moreira Um executivo engravatado embarca em um véo da ponte aérea voltando de Sao Paulo para o Rio de Janeiro. Nesse mesmo v6o, conhece um homem que aparenta ser apenas mais um homem de negécios. Convesam sobre futebol. 0 ano é 1970 e o assunto do momento é a Copa do Mundo. Ao chegarem ao aeroporto Santos Dumont, Jofre (interpretado por Reginaldo Faria) aceita carona 0 téri de seu companheiro de viagem (Claudio Marzo) e, no trajeto, o taxi é interceptado e metralhaco. 0 homem que oferecera a carona puxa uma arma e tenta reagit, mas & morto juntamente com o motorista de taxi, e Jofre é seqiiestrado pelos ‘ocupantes do outro veiculo, embarcando em uma viagem sem volta para os pordes do aparelho de repressao. Com esse inicio hitchcackiaio (como nao lembrar de 0 homem errado ou Intriga internacional?) — um inocente confundido com outra pessoz cu tomado por culpado — 0 filme consegue através desse attificio sensibilizar o espectador, afinal qualquer um poderia ser vitima do engano. A formule é engennosa, ainda que ja consagrada. Mas as semelhancas com Hitchcock param por af, 0 resto do filme — a busca da mulher Marta (Natalia do Valle) e do irmao Miguel (Antonio Fagundes) pelo desaparecido, passando do apoliticismo ao pro- gressivo envolvimento — lembra mais Costa Gavras ou alguns thrillers politicos americanos dos anos 70 (as eventuais incursdes no género de diretores como Sidney Lumet, Alan Pakula, Sidney Pollack). Com Costa Gavas hé uma grande coincidéncia, ja que o filme daquele dire- tor que trata mais ditetamente do tema do desaparecimento politico, que no Brasil recebeu o redundante titulo de Missing — 0 desaparecido (1982), foi langado no mesmo ano de Pra frente Brasil A Histécia vai ao cinema O filme tem a fama ce ser o primeito a ten tar lidar com o tema da tortura e do desapareci mento politico e de forma relativamente indireta (como veremos) com a natureza ditatorial do regime, tendo sido realizado em um momento ainda evidentemente dificil sob 0 govemo Figueiredo. A série de percalcos pelos quais passou mostrou 0 carater limitado da abertua politica e a persistén cia de instituicdes como acensura. 0 co-patrocinio pela Embrafilme provocou 2 ewneracéo em 1982 do presidente da estatal, Celso Amorim (oosterior- f-MMIEM 0 ASH WAT Da? mente ministro das Relacdes Exteriores durante 0 coverno Itamar Franco). Ao ser lancado, o filme chegou a sofrer uma censura proviséria, 0 que fez com que a Embrafilme o retirasse do Festival de Cannes, once seria exibido em uma das “sessdes surpresa” sob a responsabilidade da Sociedade Francesa de Realizadores de Filmes. Ironicamente, 2 Sociedade de Realizadores nicluira naquele ano, pela primeira vez na programacao do festival, o dia da liberdade de expresso. Roberto Farias, diretor e roteirista do filme, fora um dos expoentes do Cinema Novo com filmes como Assalto oo tem pagador (1962). Com a ditadura, voltou-se para filmes de contetido conformista, tendo o cantor Roberto Carios como heréi e realizando um documen- tario sobre 0 entao piloto de Formula 1 Emerson Fittipaldi. Mas & possivel que a experiéncia com 0s filmes de Roberto Cerles, que se pretendiam filmes de aventura, tenha contribuido para © ritmo dos iltimos minutos de Pra frente Brasil, quando ha uma sucessao de cenas de aco. Farias chegou inclusive a presidir a Embrafilme de 1975 2 1979. Ao retornar a um cinema politico, parecia —a julgar por suas entrevistas & época do lancamento do filme — acreditar piamente na abertura politica,’ pois nao cemonstrara anteriormente ser alguém dis- posto a embarcar numa aventura. Nesse filme, como em outros que se seguiran a exemplo de 0 que ¢ isso, companheiro? (1997), de Bruno Barreto, os asvectos mais violentos da repressio e da tortura sao resulta- do da aca de “grupos descontrolados”, sem participacao direta da hierarquia militar. Assim, © general tio de Rubens (Luiz Armando Queiroz), um amigo e colega de trabalho de Jofre e Pra frente Brasit: 0 vetorno do cinema palitco, Miguel, mostra-se estarrecido pela acdo da repressio, e um grupo do préprio aparato repres- sivo tenta sem sucesso tirar Jofre das maos do sadico dr. Barreto (Carlos Zara). Esse 6 um estratagema, freqiiente em thrillers politicos americanos: setores da comu- nidade de informacées, assessores do presidente, generais etc. envolvem-se em conspiracdes golpistas. A propria frase que encerra o filme, “Este é um filme de ficcao”, é tipica desses filmes americanos. No caso de Pra frente Brasil o espectador fica em divida se a frase é fruto da prudéncia do realizador ou se € uma ironia. Ha, porém, evidentemente nesse recurso do roteiro, uma tentativa de minimizar as responsabilidades do regime pelos desmandos do aparato repressivo, incorporando o discur- so oficial que (pelo menos desde as mortes de Wladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, respecti- vamente em outubro de 1975 e janeiro de 1976, nas maos dos torturadores do DOI-Codi de Sao Paulo) atribuia a grupos e elementos descontrolados a responsabilidade dos seqiiestros politicos e das mortes sob tortura. Isso nao quer dizer que nao houvesse uma certa autono- mia de alguns grupos repressivos e rivalidades entre os diversos servicos de informacao e repressio policial-militar. Entretanto nao se deve perder de vista que os desaparecimentos, a tortura, os centros clandestinos faziam parte da légica e da politica estabelecida pela cupu- la militar e politica do regime, modelo tao bem estruturado que acabou sendo exportado e posto em pratica com sucesso no Uruguai, no Chile e na Argentina. £, mesmo quando a a¢ao de determinados setores do aparato repressivo nao seguia diretamente as ordens da cipula militar, esta dltima sistematicamente thes garantis cobertura, como na patética versao ofi- cial para a explosdo da bomba no estacionamento do Riocentro em 30 de abril de 1981, trans- formando os militares terroristas, que sofreram um “acidente de trabalho” ao manusear 0 artefato que pretendiam colocar em supostas vitimas de um atentado. No entanto, a utilizago desse recurso em Pra frente Brasil foi possivelmente uma estratégia para tentar evitar a censura ao filme. Afinal, os proprios préceres do regime reconheciam na pratica a existéncia de “grupos descontrolados”, como vimos, e com isso pretendiam isentar-se da responsabilidade. E Roberto Farias nao deixou de isentar em suas declaragdes a imprensa todos os generais-ditadores de plantao, de Castelo Branco a Figueiredo, daquilo que acontecia nos pordes do regime.’ Afinal, dificilmente teria chegado presidéncia da Embrafilmes sem alguma capacidade de compromisso. Mas é de se supor que 0 roteiro do filme tenha sido construido nos limites, pouco precisos e movedicos, entre ear { A Wistia vai 0 cirema aquilo que seria tolerado pelas autoricades e o que seria censurado. Ja 0 uso desse recurso em 0 que é isso, companheiro? s6 pode ser atribuido a ambigiiidade politica do filme, uma vez que nao mais existiam injungdes externas que o obrigassem a recorrer a este subterfuigio Além dos diferentes momentos en que os dois filmes foram produzidos, outro aspec- to que os diferencia é que 0 prineiro ten uma trama ficcional, mesmo estando baseada na realidade daqueles anos. Ao passo que o segundo, a despeito de ter tomado varias liberdades com relagdo 20s acontecimentos, preterde retratar um episodio efetivamente ocorrido: o seqiiestro do embaixador americano no Brasil, Charles Ellbrick, em setembro de 1969 por um comando conjunto da Acao Liber‘adora Nacional (ALN) € do Movimento Revolucionario 8 de Outubro (MR-8). E claro que em Pra frente Brasil, o torturador dr. Barreto parece com varios torturadores conhecidos, e o grupo de enpresdrios que financia a repressao e participa de sessdes de tortura faz lembrar, enire outros, Henning Boilesen, presidente da Ultragas, finan- ciador da tristemente célebre Operacao Bandeirantes (Oban), coordenacdo policial e militar da repressao politica. Boilesen, asim como 0 ex-patrao de Jofre e Miguel (Paulo Porto) no filme, acabou sendo executado. Adespeito dessas semelhancas com pessoas e acontecimen- tos reais, o filme nao tem qualaver compromisso com a exatidao (por exemplo, a organiza- 40 de luta armada com a qual circunsancialmente Miguel acaba se envolvendo, ac voltar 3 ser procurado por sua ex- namorada Mariana/Elizabeth Savalla, nunca é nomeada) ou m @ precisae da anélise historic, e nem teria qualquer sen- tido fazer-the esse tipo de cobranca. Alias essa é uma polémica infindavel em torno desse tipo de filme, por meio ce criticas como a forma caricata em que este ou aquele personagem é apresertado ou, ainda, que ha uma tendéncia a transformer a histéria em uma disputa entre mocinhos e bandidos. Essa iltima critica foi feita, por exemplo, a Lomarca (1994) de Sérgio Rezende, que teria glamou-rizado a figure do capitao-guerrilheiro.’ Bruno Barreto em 0 que é isso, companheirc? taia caido no oposto ao criar © personagem ficticio de um torturador com dramas existenciais, ao passo que tiansformou o personagem que representa o nada en i Pra frerte Brasil: 0 etomo do cinena politico ficticio Virgilio Gomes da Silva, da ALN, comandante militar do seqiiestro do embaixador americano e que mais tarde morreria sob tortura, em um stalinista, frio e impiedoso, ou seja, na caricatura do comunista. 0 dr. Barreto € um personagem sem muitas nuancas, & verdade, um algoz que demonstra evidente prazer em exercer seu poder sobre sua vitima, a tal ponto que prefere maté-la a ter que abrir mao de sua custédia. No entanto, mesmo que lembre esse ou aquele torturador, a funcao do dr. Barreto em Pra frente Brasil é de encarmer 0 absurdo do arbitrio e a desumanidace da tortura. Seu papel é semelhante ao do odioso personagem de Donald Sutherland — criticado por Sérgio Augusto por ser uma caricatura do fascismo — no 1900 de Bernardo Bertolucci; aquele simboliza a tortura enquanto este, o fascismo. A situagao de Jofre, homem de classe mécia sem qualquer envolvimento politico, seqiiestrado, torturado e morto, que no filme @ um artificio para atrair a atencao do espec- tador, suscita uma questdo que talvez nunca tenha resposta: quantos casos como esse acon- teceram? Nos resultados do projeto Brasil Nunca Mais, que reuniu os processos politicos durante a ditadura instaurada em 1964, ha 18 casos em que a identificacéo da organizacao dos réus, acusados precisamente de envolvimento com as atividades de grupos clandestinos, nao figura nos autos. Esse fato mereceu dos pesquisadores do projeto a seguinte tentativa de explicacao: Isso pode ser decorréncia de falhas na formalizagdo dos inguéritos, ou da atitude dos indiciados de ndo prestarem informagées elucidativas ou ainda porque o grupo em questio efetivamente nao houvesse ainda adotado qual- quer designagio. * Todas essas hipdteses parecem plausiveis, no entanto os proprios pesquisadores do Brasil Nunca Mais parecem adotar sem questionamento a lgica dos que realizaram o inquérito e formularam a dendncia, ou seja, que todos esses réus efetivanente tomaram parte em grupos clandestinos. Nao poderia haver nenhum Jofre entre eles? Se era possivel chegar fase do processo sem que a participacdo em uma organizacao estivesse funda- mentada, 0 que dizer dos inquéritos que néo resultaram em processos, e de tocos acueles presos, torturados e até mortos por setores do aparato repressive sem que tenha sido aber- to um inquérito e sem que 2o menos a prisdo tivesse sido reconhecida? wa A Wstéra vai a0 cinema As possibilidades de que os grupos de repressao, acobertados pela auséncia de entraves legais 4 sua acio, cometessem enganos fatais é evidentemente grande. Basta ver, ainda hoje nos noticiarios, 2 artitrariedade que marca a a¢io das policias no Brasil. Os maus- tratos seguidos do assassinato de trés jovens no litoral paulista abordados por uma patrulha da Policia Militar a saida de un baile de carnaval, em fevereiro de 1999, so apenas um dos episédios mais recentes de uma série. Pessoalmente, vi de perto alguns episédios que demonstram com que facilidade esses “engaros” aconteciam. Em 1977, ano em que ingressei no curso universitério, um calouro do curso de Fisica, distribuindo material do DCE, foi seqiestrado na subida do moro do Valonguinho, em Niteréi (Rl), ro que era entao o principal campus da Universidade Federal Fluminense. Fora confundido com um veterano do curso de Ciéncias Sociais, mas a tnica semelhanga fisica entre os dois era que ambos eram “rucos” (alourados). Felizmente, depois de algumas horas sem que seus raptores soubessem o que fazer com ele, uma vez descober- to 0 engano, receberam ordens superiores para liberd-lo. Sua entrada triunfal na assembléia estudantil, reunida pare discutir que atitude tomar diente do acontecido, provocou uma exaloséo de alivio e alegria. Alguns anos antes, 0 desfecho desse epis6dio poderia ter sido tragico, mas desde as mortes de Wladimir Herzog e Manoel Fiel Filho o regime vira-se obri- gado a ser mais cuidadoso. Ha um outro aspecto da aco da represséo capaz de provocar casos como o de Jofre: a suspeigo generalizada pesando sobre setores inteiros da sociedade e certos grupos profis- sionais (operarios, estudantes, professores, jomalistas, membros do clero etc.). Aos olhos dos furcionérios da repressio nao havia inocentes, todos eram potencialmente culpados. Permite-me invocar, mais uma vez, uma lembranca pessoal bastante ilustrativa. Ainda no ano ce 1977, ocorreu a tentativa de realizacgo em Belo Horizonte do 3° Encontro Nacional de Estudantes que visava, entre outras coisas, discutir a reorganizagao da Uniao Nacional dos Estudantes (UNE) proscrita desde 1968. 0 local de realizacio do encontro foi cercado por poli- cizis e 0 delegados estudantis que ja haviam chegado foram detidos, em todas as entradas da cidade (estradas, rodoviaria, zeroportos) foram estabelecidos controles policiais para triar os evertuais participantes. As estimativas da época eram que os detidos somavam mais de 800. Nas dependéncias do Dops local, todas as celas, 0 patio, diversas salas e até corredores ficaram repletos daqueles que rao conseguiram provar que nao eram estudantes, incluindo: : Pra frente frail: o retiomo do cinema politico um domador de oncas, um Gnibus inteiro de funcionarios da Petrobras que formavam times de futebol da empresa, um sujeito que estava a caminto da igreja para casarse.. Nesse sentido, Pro frente Bros n3o & apenas uma metéfora sobre 0 arbitrio, mas aponta para uma hipétese plausivel o destino de Jofre poceria ter sido o mesmo de qualquer um que tivesse o supremo azar de estar no lugar errado e no momento errado. Isso leva a supor que a lista de mortos e desaparecidos politicos sob a ¢itadura, mesmo com os acrésci- mos de niomes nos diltimas anos, nunca sera capaz de incluir todas as vitimas. Ha hoje uma tendéncia crescente para enfocar as responsebilidades coletivas em episédios como o Holocausto. Parece-me que é algo a ser levado em conta, afinal cer- tas politicas teriam tido mais dificuldade de implementacao se mais gente tivesse se rebelado contra as ordens recebidas, protestado e abendonado as atitudes de indiferenca € neutralidade. A indiferenca, a hipocrisia ou a absoluta alienacio daquilo que ocorria a volta nao deixam também de ser um tema de Pra frente Brasil. Com excecao de Mariana, cujo envolvimento crescente a conduz a luta armada e a ruptura com Miguel, todos os personagens co circulo de relacées de Jofte e Miguel sao indiferentes, igno- rantes ou, no caso do patrao, cinplices da repressio. O deszparecimento de Jofre subitamente introduz em suas vidas algo que thes parecia tao distante como se ocor- resse do outro lado do planeta, como se fosse a Guerra do Vietna. Confrontacos com essa situacdo nova, os familiares de Jofre se depararao com a hipocrisia e o temor daqueles que eram seus amigos, portas se fecham e telefonemas deixam de ser atendidos. Afinal, a classe @ qual Jofte e ~~ Miguel pertencem deu apoio ao golpe militar de 1964 e durante algum tempo continuou 2 assegurar seu apoio ao regime. Entretanto, néo podemos esquecer 0 terror implantado por regimes autoritérios pare explicar 0 temor de envolvimento de muitos; e, sobretudo, nao podemos perder de vista que a existéncia de uma responsabilidade coletiva nao pode encobrir os dife- rentes graus de responsabilidade e exvolvimento, isto é, a hierarquia de responsabilidades, que debxa claro o papel dos mandantes na execucio de politicas criminosas A Histia val a cinema Ha, portanto, para o historiador, diversos aspectos a serem explorados em um filme politico dos anos 80: o filme propriamente dito, as questées que evoca, as condigdes de sua realizacao, a sua recepséo, e o papel que a resisténcia cultural desempenhou sob a ditadura. No que diz respeito a esse Gitimo aspecto, o cinema, assim como outras manifes- tagbes culturais, propiciou espago para a oposigio ao regime, pelo menos no periodo que vai do inicio ao final dos anos 1970, ou seja, até 0 momento em que outras formas de organi- zagao (estudantil, sindical, profissional etc.) voltaram a oferecer canais menos indiretos para as manifestagdes de oposicao. Nesse sentido, 0 contetido dos filmes importava apenas até certo ponto, o fundamental era o espaco de discussdo no caso do movimento cineclubista ou a possibilidade de, no anonimato da escuridao das sessGes de meia-noite do Paissandu ou do Cinema 1 (para \imitar-me a referéncias cariocas), manifestar-se com vaias ou aplausos. Vaiando, por exemplo, as autoridades cue apareciam no Canal 100 (retrospectiva, sobretudo, dos ltimos jogos de futebol que precedia os filmes). A €poca do lancamento de Pra frente Brasil, 0 espaco de resisténcia cultural que o cine- ma oferecia perdera peso, a oposicao ja assumira a forma de organizagées politicas e ganhara a ruas, 0 contetdo do filme tampouco trazia revelages que jé nao tivessem sido publicadas, mas a novidade era o meio para tratar da deniincia da tortura e do desaparecimento politico, capaz de atingir um piblico muito mais amplo do que aquele alcancado pelas dentincias da ‘oposicao ou pela imprensa escrita. 0 filme nao € em termos cinematogréficos revolucionario, longe disso, € muito menos em termos politicos. Adotou uma formule consagrada e uma estitica facilmente aceitavel para um piblico mais amplo, a despeito de ainda sofrer de alguns dos males crénicos do cinema brasileiro, como o som sofrivel. Farias buscou realizar um filme politico cue se reconciliasse com o piblico e, nesse sentico, foi pioneiro, inaugurou a via que mais tarde seria sequida pelo Lamorca de Sérgio Rezende 2 outros. Criou um pro- duto cultural de massa, que eventualmente — como de fato ocoeu ja sob a “Nova Reptiblica” — chegaria ao mais poderoso dos meios de comunicacao de massa: a televisao. Além disso, o filre de Farias dificilmente deixa o espectador inciferente, tem 0 poderoso efeito de provocar a indignacao. Por essas raz6es foi censurado em uma época em que a cen- sura j estava praticamente enterrada. Ao referir-se ao contetdo do filme censurado, 0 entio ministro da Educacao, Rubem Ludwig, indagou: “Isso serve a democracia?”* Fra frente Bras: 0 retorno éo cinema politi Certamente 0 contetido do filme nao servia a concepgao de cemocracia que tinha Ludwig e aqueles que com ele fizeram coro, invariavelmente adjetivada, “democracia restri- ta”, “democracia controlada”, enfim toda uma série de eufemismos para designar a ditadura. Mas a despeito de todas as suas ambigiiidades e dos seus defeitos, Pra jrente Brasil, com sua capacidade de causar a indignacao, serviu (e serve) cause da luta por uma democracia fun- dada sobre a plena liberdade de organizacio ¢ expresso, sobre o império do direito, e sobre 0 absoluto respeito pelos direitos humanos Notas pote Tener de Robert Faria’ RI, Jornal do Basi, Caderno B, Luis Cais Merten, “Rezende far de Lamarca um mocinho hollywoodiano”. SP S. Pauls, 24/8/1996, Projeto Brasil Nunca Mais. t. 3, Pel dos atingidos, Sio Paulo, Arquidiocese de Sto Paul, 1985, p. 13) recorter” RI, 0 Globo, ‘Censire veta Praifrente Brasil. Podutores dizem que 6/4198 TU DF el a ka a a a le, Memorias do C do livro ao filme, = do filme a Hi CLF) 1 soon V1 UaadlN omrry Eliane de Freitas Dutra Memérias do cércee: do lio a0 filme. do Flme a Histiris A experiéncia de rever, dezesseis anos depois de sua realizacio em 1983, 0 filme Memérias do cdrcere, de Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra marcante do escritor Graciliano Ramos, escrita, por sua vez, dez anos apés 0s absurdos e brutais acontecimentos por ele vivenciados em 1936, possibilita-nos aprender e refletir sobre o significado daquilo a que chamamos de “sentido histdrico”. E forcoso reconhecer, e incorporar a reflexao sobre o filme Memdrias do carcere, os dividendos analiticos da distancia que separa as narrativas memorialistica e cinematografica, respectivamente de 1946 e 1983, dos episédios de 1936. 0 referencial de base de ambas as narrativas so as insurreicées militares de 1935, e a feroz represséo desencadeada por Vargas contra os inimigos, reais ou virtuais, do regime ap6s as insurreig6es de novembro. Tal refe- rencial é 0 eco distante de um presente histérico em movimento, em ato de devir, cujo dinamismo e expectativa de futuro acionados pelas forcas entao em acao naqueles anos 30 dotou-o de uma qualidade intima fatalmente perdida quando ele tornou-se pasado, tornou- se objeto de memoria, de ficcdo, de histéria. Portanto tudo que diga respeito aquele passa- do, do ponto de vista dos sentimentos, dos pensamentos, das aces, ¢ incapaz de configura- lo em termos de uma reatidade auténtica. As narrativas de Gracitiano Ramos e Nelson Pereira dos Santos, pela forca das palavras e das imagens, conferiram existéncia aquele presente, dotaram-no de uma forca de realidade, sem no entanto anularem o tempo transcorrido entre o vivido e a narrativa desse vivido; o fato acontecido 0 fato evocado; o que foi e o que se tomou; e sem modificar 0 fato de que, a0 dar vida Aquele presente, reafirmaram sua condicao de “pasado”, ou seja, o que deixou AWistria vai ao cinema de ser, 0 que potencialmente viria a ser. Pode-se dizer que anbas as narrativas do carcere se ali- 0-080 9-9g mentam, tiram sua potéada, em moldes similares do que ja foi designado como um estranho pr cedimento da escrita da historia: apresentar a morte e necar a perda. £ a perceo¢ao acurada dessa tensao, 6 a capacidade de sentir e fazer sentir de maneira profunda, a le'tores e espec- tadores, a realidade do pasado e, ao mesmo tempo seu distanciamento do presente, que [rullly ‘eth Partoms nitty afreousss histota © SGT = TUT Py ‘Madi, episodios de 1935/36 tal como narrados no livo eno filme. € a presenca desse mesmo sentido histérico, traduzida para o plano epistemolégico, que permite ao historiador hoje se voltar para as narrativas mencionacas e revé-las, a luz das novas aquisicoes que — no inter- valo entre os anos de 1945 e 1999 — o debate sobre a natureza da escrita da historia e as formas de exposicao do conhecimento histérico aportaram aos historiadores, desvendando as relacbes, os pontos de atrito e de contato entre as narrativas ficcional, memorialistica/auto- biografica e historica. ‘Ao decidir escrever as memorias dos seus 300 dias na prisio, para onde fora levado sem culpa formada e sem processo, Graciliano Ramos, com sua acuidade intelectual e sensi- bilidade histérica, pontua uma interessante questo aos seus leitores. £ 0 autor 0 faz logo na abertura da primeira parte das suas Memérias do cdrcere, denominada de “Viagens”, a qual vai ter sua potencialidade capturada pelo cineasta que se dispds a filmar suas célebres memérias. Essa mesma questdo revelou-se-nos sugestiva de um percurso a ser trilhado aqui. ‘Ao se comparar aos seus companheiros de priséo, “sujeitos de mérito”, portanto capazes de fazer uma obra valiosa sobre os fatos por eles vividos, Graciliano demarca, com sutileza, o lugar onde vai se colocar para realizar 0 seu empreendimento memorialistico. De um lado, ele se separa dos “especialistas, eruditos, inteligéncias confinadas escrupulosa anétise do pormenor, olhos afeitos a investigagoes em especialidade”. Podemos vislumbrar facilmente nessa descricdo os portadores, ou praticantes, de um conhecimento de natureza ientifica e/ou académica. De outro, ele se distingue dos “narradores” mais afeitos as Menéras do circee: do lwo 20 filme, do filme 3 istria reportagens, “dessas em que é preciso dizer tudo com rapidez". Neste ponto, é clara a distan- cia pretendida para o seu texto de um documentario de tipo jornalistico. Passo seguinte, passa a falar de sua posicao pessoal frente aos colegas de carcere para escrever as memérias d:que- les absurdos e dolorosos dias. Em relagdo a eles, acho-me por acaso em situagéo vantajosa. Tenho exercido varios oficios, esqueci todos, e assim posso mover-me sem nenhum constran- gimento. Néo me agarram métodos, nada me forca a exames vagarosos, Por outro lado, néo me obrigo a reduzir um parorama, sujeité-lo a dimensées re- gulares, atender ao paginador e ao hordrio do passageiro do bonde. Fosso andar para a direita e para a esquerda come um vagabundo, deter-me em lon- gas paradas, saltar passagens desprovidas de interesse, passear, correr, voltar a lugares conhecidos. Omitirei acontecimentes essenciais ou mencioné-los-ei de relance, como se os enxergasse pelos vidros pequenos de um binéculo; ampiiarei insignificéincias, repeti-las-ei até cansar, se isto me parecer conveniente. E, portanto, com a liberdade do Graciliano ficcicnista que o autor se identifica: liber- dade de criar, de selecionar, de omitir, de expandir. Essé liberdade vai ser a ponte de ligacdo entre a experiéncia historica do passado e o presente danarrativa, o meio escolhido para me- hor permitir a0 autor tornar comunicavel, e compreensivel, a alteridade de um mundo hist6ri- co que aos poucos the escapa. 0 autor quer se livrar de constrangimentos outros para além da adequacao da sua prosa a uma experiéncia vivida em um pasado préximo. Como veremos em outra passagem de “Viagens”, ele parece sugerir promover as lembrancas imaginarias a cate- goria de horizonte da realidade, e a realicace 4 categoria de horizonte da dimensio postica das suas memérias. Ougamos mais uma vez Graciliano. E aqui chego @ iltima objegao que me inpus. Néo resguardei os aponta- mentos obtidos em largos dias e meses de observacao: num momento de aper- to fui obrigado a atiré-los na égua. Certamente me irdo fazer falta, mas terd sido uma perda irrepardvel? Quase me inclino a supor que foi bom privar-me desse material. Se ele existisse, ver-me-i propenso a consultd-lo a cada i A Histéria vai ao cinewa instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantes demoradas tristezas se aqueciam ao sol pélido, em manhé de bruma, a cor das folhas que tombavam das irvores, um patio branco, a forma dos montes verdes, tintos de luz, frases auténticas, gestos, gritos, gemidos. Mas que significa isso? Essas coisas verdaieiras podem néo ser verossimeis. E se esmoreceram, deixd-ias no esquecimeato: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam poucs. Oxtras, porém, corservaram-se, cresceram, associaram-se, e é inevitdvel menciond-las. Afirmarei que sejam absolutamente exatas? Leviandade. Em conversa ouvida na rua, a auséncia de silabas me levou a conclusdo falsa — ¢ involuntariamente criei um boato. Estarei mentindo? Julgo que nao. Enguanto néo se recenstituirem as silabas perdidas, 0 meu boato, sendo for absurdo, permanece, e é possivel que esses sons tenham sido eliminades por brigarem com o resto do discurso. Quem sabe se eles ai ndo se encaixaram com 0 intuito do logro? Nesse caso havia conveniéncia em supri- mi-los, distinguir além deles uma veriade superior a outra verdade conven- cional e oparente, uma verdade expressa de relance nas fisionomias. Um sen- tido recusou a percep¢ao de outro, substituiu-a. Onde estar o erro? Nessa reconstitui¢do de velkos fatos, nesse esmiucamento, exponho 0 que notei, 0 que julgo ter notedo. Outros devem possuir lembrangas diversas. Nao as con- testo, espero que ndo recusem as mirhas: conjugam-se, completam-se e me dao hoje impresséo de realidade. Nesta longa citacao podemos reconhecer a percepcao de Graciliano Ramos de que entre a escrita memorialistica/autobiografica, e a criaclo poética existe um espaco em ‘comum — alis 0 mesmo espaco comum ¢a criacao poética e da escritura da histéria — o do verossimil. Ora, 0 verossimil, tal como jé foi reiteedo por muitos daqueles que se ocupam das relacdes entre a histéria e 2 ficgdo, é 0 que faza mediacdo entre a ficcao e a verdade, e a0 mesmo tempo estabelece as funces cognitiva e comunicative do ficcional face ao factual. Nosso autor parece dar-se conta disso ao se admitir livre das anotacées perdidas que pode- riam the aprisionar a escritz e colocar peias ao seu exercicio de rememoracao. 0 verossimil parece-Lhe preferivel, mais realista, frente ao detahe, a mindcia, a exatidao, os quais ele, de ~~ Menéria: do cicere: do ivr 20 filme. do fle 2 Histria maneira insinuosa, nao vacila em alinhar C070 aa ilusdes de verdade e sinceridade. Da mesma forma nao the escapa que o intervalo entre o instante da experigncia e o momento do seu registro escrito nao 6 um espaco vazio. Antes, ele certamente foi preenchido, até o momento do ato da escrita, por provaveis alteragdes, responsaveis pelo esmoreci- mento de algumas lembrancas e pelo adensamen- to e ressignificacao de outras. Quen sabe devido a mudangas de percepcao experimentadas pelo escritor no plano do sensivel, ou no plano social politico; 4 aquisicao de novos valores; ou mesmo sua op¢éo politica de militancia partidaria concretizada pelo seu ingresso nos quadros do Partido Comunista Brasileiro, 0 PCB. E certo que Graciliano Ramos adverte o leitor de que é do lugar da lacuna, da perda, da impressao fugidia do instante, e mesmo do esquecimento, que o memorialista produz os sentidos da sua narrativa. Ele parece nao ignorar a fronteira frégil que separa 0 memorialis- mo autobiografico da escrita ficcional, uma vez que mesmo as memérias mais precisas nao dispensam, como ele mesmo reconhece, as lembrancas imaginarias, as sensacdes furtivas, as percepcdes enganosas, mas mesmo assim capazes de suportar, no contraste com outras lem- brancas igualmente volateis e prenhes de uma subjetividade essencial, 0 que o autor designa de uma “impressao de realidade”. Na sua busca, por que nao dizer, historiadore, do verossimil, na sua garimpagem de reminiscéncias, que ele qualifica como momentos de “vacilages dolorosas”, ele admite ter recorrido a testemunhos alheios para se “convencer de que a mint~ cia discrepante nao é ilusao”. Nessa operacdo critica de controle da lembranca para a construcao das memérias da prisdo, com vistas a uma aproximagao da realidade concretamente vivida, 2 sua lucidez adverte-o de que sem a imaginacao nao é possivel cobrir as lacunas dos vestigios restantes, 0s quais nao podem ser reconstruidos no seu estado primitivo. Assim, diante da fregmen- taco, da descontextualizacao, do espaco lacunar das lembrangas, somente a imaginacao cria~ dora the facultaré a organizacdo do enredo, 2 montagem do cenario, e a miseen-scéne dos personagens. Sem ela, a visibilidade dessa dramaturgia trégica, encenada no palco estado- (Da OP A Pk Tl [A Hist vai a0 cinema novista, e a aparéncia, igualmente visivel, do perfil e da dimensdo humana dos personagens dessa historia ficariam inacessiveis aos leitores, bem como a dimensao vivida desse passado. O que o fez afirmar: Formamos um grupo muito complexo, que se desagregou. De repente nos surge a necessidade urgente de recompé-lo. Define-se 0 ambiente, as figuras se delineiam, vacilantes, ganham relevo, a agio comeca. Com esforco dese: perado arrancamos de cenas confusas alguns fragmentos. Ditvidas terriveis nos assaltam. De que modo reagiram os caracteres em determinadas circunstan- cias? 0 ato que nos ocorre nitido, irrecusdvel, terd sido realmente praticado? Nao haveré incongruéncia? Certo, a vida é cheia de incongruéncias, mas estaremos seguros de néo nos havermos enganado? Como se vé, aqui 0 narrador, como o historiador cuando se encontra as voltas com as precariedades e incertezas dos dados que manuseia, é assaltado por duvidas. E mesmo reconhecendo, ainda ainda que intuitivamente, que na pratica da escrita memorialistica, como, alias, na escrita da histéria, se induzem efeitos de realidade e de verdade, isto nao obscurece a sua preocupacio e exigéncia com a veracidade do relato. A percepcao de que o seu texto nao é capaz de condensar “a realidade” e “a verdade” dos acontecimentos nao elimi- na o fato de que a sua exposicéo se apdia em uma experiéncia determinada da realidade historica por ele vivida, e se ancora em eventos factuais dos quais ele foi a um s6 tempo observador e participante. Muito embrora a sua relacao direta com os eventos rememorados, © narrador talvez preferisse passar da presenca a auséncia, o que faz dizer: Desgosta-me usar a primeira pessoa. Se se tratasse de fic¢do, bem: fala um sujeito mais ou menos imagindrio; fora dai é desagradavel adotar 0 pronomezinho irritante, embora se facam malabarismos por evité-lo. Desculpo-me alegando que ele me facilita a narragéo. Tinha razio, 0 Graciliano Ramos, em se preocupar com 0 regime de verdade da sua narrativa e os efeitos das suas memorias junto a um potencial piblico leitor. Tantos cuidados Memérias do circre: do lio ao file, do filmed Histra em indicar os limites de um relato de natureza autobiografica sdo reveladores, por un lado, da corsciéncia de saber-se estar elaborando um registro histérico, e de outro, da clarividén- cia de que 0 seu testemunho € portador de uma inquietude histérica. Esta se manifesta no desejo de fazer compreender e dar a conhecer um curso dos eventos, bem como em te: cién- cia que a concretizacao desse desejo pode engendrar novas questdes, suscitar controvérsias, colocar em causa vers6es jé consolidadas. De fato, as suas memérias tornaram-se um marco entre as referéncias documentais, historicas e literarias sobre o Estado Novo, e tém-se presta- do a fornecer elementos a varias leituras historicas sobre os acontecimentos de 1935, Nesse caso, 0 recurso a utilizagao das memérias de Graciliano Ramos tem sido freqiientemente assi- nalado por uma tendéncia — que desconsidera as adverténcias do autor — a consiceré-las como um documento extraido diretamente “do presente” dos dias de prisio, portante como um relato cujo principal atributo uma autenticidade de origem. Isto pode ser debitado 2 uma compreensivel apropriacao politica das memérias de Graciliano tomadas como um instru- mento de deniincia do varguismo na conjuntura de sua publicacio. Afinal, o livro, como o filme, embora mantido seu registro temporal, permite a aproximacao entre tempo percorrido pelo narrador, 0 tempo em que ocorreram os fatos narrados e o tempo em que se inscreve o leitor e/ou espectador. Saindo do livro para a tela do cinema, ou seja, para o filme Memdrias do circere, encontramos na leitura cinematogréfica de Nelson Pereira dos Santos uma sintonia com 0 “sentido historico” tal como percebido e preservado por Graciliano na escrita das suas memérias, @ nem sempre considerado nas leituras hist6ricas feitas a partir do seu tecto. 0 Graciliano do filme é um escritor que, embora no epicentro da trama, parece quardar uma certa distancia critica dos acontecimentos que o envolvem e que tém como pano de findo a mobilizagéo politica da Alianca Nacional Libertadora (ANL}, as relagdes entre a ANL e 0 Partido Comunista Brasileiro (PCB), e entre o PCB, o tenentismo, e outras correntes de esquer- da, como a anarquista. Nelson Pereira dos Santos se vale da figura fisica de Graciliano Ramos, na magnifica interpretacao de Carlos Vereza, para demarcar esse distanciamento. E 0 fiz sem prejuizo de um sentimento empatico com o idealismo, 2 utopia e o sofrimento dos revolu- cionarios de 1935, o que (he permite alcangar uma dimenséo compreensiva profunda eaguda do drama historico vivenciado por aqueles prisioneitos politicos e situar-se na perspectiva daqueles anos. Através de recursos estéticos que contrastam um solitério e distante Graciliano es . 155 A Wisteria vai ao cinema com o entusiasmo, a disposi¢ao de luta e a organizacao dos militantes que entoam hinos patridticos, falam por palavras de ordem, difundem principios doutrinarios e criam formas de resisténcia; com o voluntarismo dos tenentes, o preparo fisico e a auto-suficiéncia dos alunos da Escola de Aviacao Militar e do Terceiro Recimento de Infantaria, do Rio de Janeiro; com os aliancistas, postando-se com indiferenca, em momentos de manifestagdes de ardor mili- tante combativo, a0 lado da ireveréncia anarquista cue imita um cacarejar de desprezo. 0 desejo manifesto do escritor de se ausentar do texto, quando diz “Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros, fugirei as discusses, esconder-me-ei prudente por detras dos que merecem patentear-se”, se realiza em imagens que acabam por fixar a impressao desejada. E ainda o plano fisico que vai ser explorado imageticamente pelo diretor no tocante ao gesto e a linguagen filmica que exprimem o sofrimento e 2 experiéncia da tortura, nos varios carceres onde 0 escritor foi atirado. Sao corporais 2s imagens que transmitem os maus- tratos fisicos, a debilitacdo da satide cos prisioneiros, as mas condigdes de higiene e a pre- cariedade da alimentagio. A repulsa, 0 nojo, a dor sao sentidos pelo corpo de Graciliano/Vereza e transmitidos fisicamente ao espectador. O cineasta afirma ter se sentido mais livre ao fazer o filme do que Graciliano Ramos quando escreveu 0 livro, pelo fato de nao ter vivido 1935/1936. Por isso a sua escolha em eviter tracar um retrato biografico de Graciliano e gerantir, para o seu filme, um carater fic- ional, evitando, segundo suas palavras, o “documentario de época. Consciente de que o ci- nema como obra de arte nao tem nenhum compromisso com uma suposta verdade de tipo hist6rica, o filme de Nelson Pereira dos Santos declaradamente nao tem compromisso com o que poderia ser considerado a verdade de Graciliano Ramos, sobre a qual o proprio escritor manifestou-se tao cético. Dai o recurso do cineasta a superposicao criativa de trés ou qua- tro personagens em um, em vez dos quase trezentos do livro; a reuniao de trés das partes da ‘obra — “Pavilhao dos Primarios”, “Colonia Correcional” e “Casa de Correcio” — em uma; a manutengao dos nomes verdadeiros de alguns personagens de carne e osso, tais como o de Heloisa, mulher de Graciliano, 0 do advogado Sobral Pinto, o de Olga Benario e Luis Carlos Prestes, ao lado da substituicao de outros nomes, como os da dra. Nise da Silveira, Agildo Barata, Rodofo Guioldi, Cescardo, Sisson e varios outros de tanta expressdo nos episédios em questdo, por nomes ficticios ou nenhum nome. Também o fim do filme com a saida de Graciliano da Colonia Correcional rumo a liberdade, quando no livro o autor sai da Col6nia B65 Memérias do cdrcee: do liv 10 filme, do filme 3 Hstoria para retomnar a Casa de Correo. Na vida real, 0 dltimo capitulo do livro, que certamente falaria da sua libertacgo da prisio, nao foi escrito: a morte do autor impediu 0 término das memérias. Ja se disse que o olhar histérico e o olhar estético, e diriamos nds o olhar memorialis- tico/autobiografico, também, “possuem, a um degrau equivalente, o direito de interpretar os fatos ou as obras a luz do peso que eles adquiriram através de seus efeitos’. Ora, esse cireito foi declaradamente exercido por Graciliano e por Nélson Pereira dos Santos. Do primeiro, as passagens de “Viagens” ja disseram tudo; do segundo, para além da sua narrativa filmica temos suas afirmacées, na grande imprensa, de ter construido “uma metafora da prisdo”, uma metafora da sociedade. Aquele cércere na realidade é uma metéfora da nossa sociedade. No espaco exiguo da priséo, a dindmica de cada um é mais clara. A classe média militar, 0 operario, o jovem, a mulher, 0 negro, 0 nordestino, o sulista. 0 encontro com o prisioneiro comum, o ladréo, 0 assaltante, 0 homossexual. Graciliano registrou tudo isso lutando com os préprios preconceitos, deixando um teste- munho generoso, aberto. A opgao de construir uma metafora da prisdo pde de novo em consonancia o escritor eo cineasta, que adaptou a sua obra. Tal como o escritor, também 0 cineasta, no Brasil de 1983, entdo nos estertores de uma opressiva ditadura militar, escolhe, seleciona entre as re 61125 0 escritor aquelas que por se conser varem, crescerem, se associarem, sio capazes de, postas em cena, criar um vinculo de solidariedade entre o passado eo presente. De fato a metéfora da prisdo, ou da sociedade como prisdo, reatualiza fic- cionalmente com felicidade, e sem descaracterizé-lo, © cenario da priséo desenhado na narrativa de Graciliano. Seja no navio-prisdo, no Pavilh3o dos Primarios, na Colonia Correcional da Ilha Grande, ou na Casa de Correcao, o drama de um pats mar- eS aT MIE eo) por brutais desigualdades sociais e pelo A Historia vai ao dines poder insensivel das elites continua a ser encenado enquanto o filme € rodado. Ele € uma metifora da sociedade naquilo que falta: o ser politico. No filme, o lugar social de origem dos personagens define o perfil de cada um, a ocu- pacao do espaco no territorio penitenciario e as aliancas de convivio entre os detentos, tal como na cena em que, enquanto em algumas celas se joga carteado ou xadrez, noutra se dao ligdes de teoria marxista, em outro lugar os militares praticam ginastica, enquanto Graciliano, sozinho, anota e lé. Nessa mesma linha podem ser lidas as diferencas sugeridas entre os aliancistas de colarinho branco, como 0 chefe da Alianca de Alagoas e seu subserviente con- tinuo negro; entre os robustos cadetes da Escola de Aviacao e os populares nordestinos como Soares e Mario Pinto, interpretados por Jofre Soares e José Dumont. Na Ilha Grande, onde entram em cena delingiientes e demais marginais, ¢ expressivo um didlogo, em perfeita fidel- idade ao testo escrito, entre dois detentos supostamente em igualdade de condicées, e o espanto de um deles a revelacio do outro, através da pergunta: “— Tu trabaia?” "— Sim, sou padeiro.” Responde o que perguntou: “— Fala mais comigo nao.” Diz categoricamente pondo fim a amizade, reafirmando, na falta de um lugar politico, o lugar social que ele traz consi- 40, ja introjetado. Nesse ponto podemos dizer que a narrativa cinematografica e memorialis- tica/autobiografica, tal como ja disseram a respeito da biografia, coloca-se como um com- plemento da analise historica das estruturas sociais ¢ dos comportamentos coletivos. A leitura ficcional que o cineasta se propés fazer das Memérias do carcere tem 0 mérito de ficcionalizar a historia, a partir de uma realidade politica verdadeira que informou a nar- rativa memorialistica/autobiografica, e ficcionalizar a politica, cuja existéncia se afirma a partir de uma realidade histérica. Isto é feito através do timo desempenho dos atores e em cenas que retratam com propriedade a coacao politica eo arbitrio das autoridades a pretex- to do combate 20 comunismo, da manuten¢ao da ordem pablica e da defesa da patria, tal como expressas, por exemplo, quando do embate entre Graciliano e o tenente, bastante perndstico, cuja sobrinha ele recusa favorecer enquanto diretor de Instrugdo do Estado de Alagoas, e no tratamento conferido ao escritor quando de sua prisdo. A insensibilidade, o cinis- mo, a cumplicidade com o arbitrio € a corrupgao por parte dos homens do poder durante a ditadura varguista sao também elogiientemente resgatados em diferentes momentos. £ 0 caso do didloco com o diretor da prisio no momento de saida da Colénia Correcional, e na poste- rior acdo protetora dos detentos s paginas escritas pelo escritor ameacadas pela batida poli- tS Memrias do circere: do ie 20 filme, do filme & Histéri as, ordenada pelo mesmo ditetor, alertado da existéncia dos apontamentos de priso iano Ramos. Por sua vez, 25 dificuldades do didlogo politico entre as esquerdas aparecem emblemati- camente expressas no retraimento poitico e solitario de Rodolpo Ghioldi; em manifestacdes de sectarismo politico, tal como do personagem Soares; no autoritarismo e na inflexibilidade do militar e/ou tenente, figura arrogante, que organiza a distribuicao das refeicdes e se recusa a dar a Graciliano a banana que ele lhe solicita, 0 que faz supor que talver se trate de Agildo Barata, retratado sem muita simpatia por Graciliano, por suas atitudes impositivas. Em outros momentos o direter, através de belos recursos cénicos que se utilizam de gestos corporais, sons, movimentos ¢ cores, consegue comunicar de maneira exoressiva a0 espectador fatos que a historia tem destacado e afiancado. Entre eles, a deporta¢ao revoltante e desumana de Olga Bendrio e Elise Berger para os campos de concentiacao na Alemanha nazista. 0 momento dramatico da deportacdo é visualizado no filme por um olhar através de um buraco na parede entre as alas masculina e feminina, como que a sucerir que 0 fato, de tao ignominioso, nao pudesse mesmo ser mostrado &s claras. Como um ato pecaminoso, o olhar que o flagra o faz as escondidas. Através de outra cena tocante o diretor da visibilidade presenca de um contigente maior de populares e de militares subalternos nas hostes aliancistas do Norte e do Nordeste dos que nas do Rio de Janeiro. Tal é caso da cena em que © personagem interpretado por Jost Dumont canta, de maneira contagiante, a misica denominada “O canto da Ema”, no que 6 acompanhado expressivamente pela maioria dos pri- sioneiros, sob o olhar complacente dos demais.. Entre as varias possibilidades oferecidas pelo livro a imaginacio do cineasta, sem dtivida a mais bem explorada & aquela que faz da propria obra Memérias do cdrcere a pedra de ® | toque que movimenta e dota de cozréncia todo o universo da narrativa cinematografica p | empreendida por Nélson Pereira dos Sentos. 0 livro das memérias é como um “outro”, uma : : sombra atada a figura co escritor, projetada todo o tempo as suas costas desde 0 ingénuo sen- timento do escritor, ainda em Alagoas, pensando que o tempo da prisdo seria um tempo de leitura e escrita, livre das pressdes da ida cotidiana, até a sua obsessiva atividade de tomar notas. A virtualidade da obra Memérias do cércere consubstanciada, ao longo do filme, no prazer de ler, no desejo de escrever, ro ato da escrita, mais do que garantir ao escritor a sua humanidade nos dias de prisdo, mais do que se constituir em um elo entre ele e os demais oem A storia vai zo cinema presos da Ilha Grande, desrossuidos dessas habilidades e do prazer e enriquecimento que elas proporcionam, simboliza apessibilidade do resgate da historia e da apreensao do seu senti- do, Isto € 0 que filme possui de mais valioso, 0 que, por si s6, jé the permite, para algm da representago de uma imagem do passado nele esbocada, que ele seja valorizado de um ponto de vista historico como una obra de arta. Afinal ele realiza um encontro feliz, e por que nao dizer insuspeito, entre menéria/autobiografia, ficgdo e historia. Memorias do cércere € um belissimo exemplo de como a narrative cinematografica, neste caso numa conjugacao expres- siva entre estética e politica, é capaz de explorar, através de uma outra linguagem, recursos tao validos quanto os da escrita da historia. Jorge Ferreira Como as seciedaces esquecen: Jango Entao ficou combinado. Eu encontraria minha amiga Suzana na fila da sesso das ito do Leblon 1. Era assim que faziamos quando iamos ao cinema, Mas aquela noite no seria, digamos assim, como as outras. Para comecar, nao lembro 20 certo 0 que ocorrey, eu me atrasei. Jé se passavam varios minutos das 20 horas quando cheguei e nem fila havia. Entrei assim mesmo. Enquanto procurava um lugar na mais absoluta escuridao, reconheci, porque incon- fundiveis, as vozes de José Wilker e Milton Nascimento. A coisa, pensei, prometia. Digo isso porque, muito injustamente, o documentério € considerado um oéneto cinematografico menor, menos nobre quando comparado ao filme ficcional. 0 documentarista, assim, nao teria a liberdade de imacinar, construir paisagens e personagens, moldar vidas, pessoas, relacoes sociais, dramas e, sobretudo, tramas. Ele supostamente estaria condenado a seguir um roteiro previamente determinado pelos acontecimentos, resgatando a realidade como ela se apre- sentou, projetando na tela imagens antigas, artanhadas, muitas vezes sem som original e, pior, com um final que ja conhecemos. “Na verdade”, diz Siwvio Tendler, diretor ce Jango, “as pessoas acham que a arte se desenvolve a partir do imaginario e nao do real. £ um precon- ceito contra o real’.' Pode ser. Mas, transferindo a polémica para o ambiente das ciéncias humanas, trata-se, certamente, da distincao entre os “fatos” do historiador e as “represen- tacdes” do antropélogo, como nos lembra Alessandro Portelli: Representacses’ e ‘fatos’ nao existem em esferas isoladas. As representagées se utilizam dos fatos alegam que sao fetos; 0s fatos sao reconhecidos e organizados de acordo com as representacdes; tanto fatos quan- to representacdes convergem na subjetividade dos seres humanns € séo envoltos em sua lin- ts ‘Hise va an cinema guagem.”" E possivel. Mas o que sei mesmo, logo que encontrei uma poltrona e olhei para a tela, € que Jango é um flme muito bom, diria excelente, no crivo de minha sensibilidade. Silvio Tendler realizou um belo e competente trabalho de reconstituicao histéri- ca, infundindo-the emoyic. Quando do langamento de Jango, em 1984, um critico 0 avaliou como “o melhor documentario politico brasileiro ja feito neste pats” e, ao lado de Bom povo portugués, de Rui Simoes, e Coragdes e mentes, de Peter Davis, “um dos trés melhores documentarios do mundc’.’No entarto, como é comum ocorrer no Brasil, o diretor enfren- tou uma série de dificuldades. Com quildmetros de filmes de arquivos, a maioria em esta- do lastimavel, teve que ecupera-los nos Estados Unidos. Ao procurar o Banco Central, em busca ce délares no cmtio oficial, encontrou, simplesmente, um “no”. Os censores, sem- Pre vigilantes, tentaram impedir sua exibicgo em Gramado. Mas, com a ajuda dos fami- liares do ex-presidente eo apoio de lideres trabalhistas, Tendler contou-nos sua historia, ou melhor, uma historia que é da sociedade brasileira, embora ela tenha, ao longo dos anos, se esforcado para esquecé-La. 0 diretor, assim, embrou que Jodo Goulart existiu e foi protagonista de um momen- to singular da historia do pefs. Participando da politica do Rio Grande do Sul desde cedo, somente em 1950 ele conteceria mais de perto a vida pablica a nivel nacional, sendo eleito deputaco federal pelo PTE. Nas eleigies daquele ano, o sucesso eleitoral dos trabalhistas, embalaco pela expressiva votacdo de Vargas a presidéncia da Repiblica, nao apenas aumen- tou a bancada co partido, mes elegeu deputados comprometidos com o nacionalismo e com mudancas na estrutura econdnica do pafs. Entre eles, estava Jodo Goulart. Apesar do sucess) deitoral, 0 PTB, no inicio dos anos 50, vivia em permanente crise, fragmentado e sot o dominio de Vargas, carecendo de identidade e iniciativa préprias. Os conflitos abriram espacos para que a bancada eleita em 1950 indicasse Goulart 3 presidéncia do PTB, Em curto espaco de tempo, ele impés sua lideranca entre os petebistas e aproximou-se des sindicatos e das esquerdas, particularmente do PCB. Vargas, em outra atitude ousada para recuperar seu prestigio entre os trabalhadores, 0 nomeou para 0 Ministério do Trabalho, exatamente um ano aps ascender a presidéncia do partido. Muito rapidamente ele dexaria de ser um politico desconhecido para tornar-se uma das figuras centrais do traballisno brasileiro. Como is sociedades esquecen: Jango No ministério, ao mesmo tempo em que atuava como mediador nos conflitos entre assalariados e capitalistas, apoiava e mesmo incentivava a mobilizacéo reivindicatoria dos operarios. 0 fim do atestado ideolégico para os sindicalistas, a fiscaizagdo nas empresas visando ao cumprimento da legislacdo trabalhista, 0 apoio a lideres sindicais auténticos, 0 patrocinio do Congreso da Previdéncie permitindo que militantes, sobretudo do PTB e do PCB, participassem da administracao das instituigdes previdenciarias, entre outras iniciativas, aumentaram o seu prestigio entre os trabalhadores e no movimento sindical. No entanto, diante das acusacées de agitador, fomentador de greves, demagogo, corrupto, comunista golpista pelas elites politicas, empresariais e militares, sobretudo apés propor a duplicagao do salario minimo, o lider trabalhista de'xou o Ministério do Trabalho, mas com grande presti- gio no movimento sindical e como uma lideranca incontestavel no PTB. Nas eleigdes presi- denciais que se sequiram apés o suicidio de Vargas, ele comprovou sua inportancia no cendrio politico. Como candidato a vice-presidéncia na alianga PTB-PSD, Goulart cabalou mais votos que Juscelino Kubitschek, obtendo 3.600.000 votos, enquanto o canidato a presidéncia obteve 3.079.410. ‘Ao mesmo tempo, 0 PTB, nessa segunda metade dos anos 50, coheceu mudancas sig- nificativas em seu perfil ideolégico. Segundo Maria Celina D’Aradjo, mesmo com perdas decor- rentes das expulsdes de dissidentes, 0 partido firmou suas posigées no movimento sindical, aliando-se aos comunistas; aproximou-se de setores do Exército ap6s ogolpe preventivo do marechal Lott, com a fundacdo da Frente de Novembro, organizada por militares, sindicalis- tas, comunistas e dirigentes petebistas; formou grupos parlamentares comprometidos com as reformas, como 0 Grupo Compacto; optou pela estratégia da aco diretz, com a mobilizagao de estudantes, trabalhadores e populates; e, embora participando do governo Kubitschek, surgiu também como partido de oposigao. Em sua Convencdo de 1957, 0 PTB assumiu um pro- jeto de cunho claramente reformista, decidindo convocar, para o ano seguinte, o I Congresso Mundial Trabalhista, com convidados do Labour Party e de partidos trabalhistas e socialistas de diversos paises. No encerramento dos trabalhos, Goulart pronunciou um discurso radical e nacionalista a favor das reformas econémicas e sociais. Procurando redefinir o PTB em termos ideol6gicos, programaticas e organizacionais, além de reformular as relacdes de seu partido com sua propria base social — os trabalhadores @ 0s sindicatos —, Goulart esforcou-se para atualizar 0 trabalhismo brasileiro a um contexto nh A Wistéria vai 20 cinewa internacional vivido por sua gera¢do: por um lado, a consolidacao dos valores democraticos e © modelo de estado de bem-estar social que avancavam na Europa Ocidental e, por outro, a pre- gacao antiimperialista e de emancipacao econdmica e politica que se expandia pela América Latina. 0 presidente do PTB, nesse momento, surgiu no cenério politico como o representante de uma geracao que, identificada com os valores defendidos pelas esquerdas — a exemplo de socialistas, trabalhistas e comunistas —, se preocupava com a pobreza da populacdo e a ampliagao de seus direitos politicos. Os tempos, sem davida, eram outros e o trabalhismo procurou responder a novas e crescentes demandas formuladas pelos proprios trabaladores. Goulart fez parte de uma gerag3o que nao viveu os tempos do Estado Novo, mas, resgatando as tradicdes fundadas pelo getulismo, atualizou os seus principios e procurou afinar-se com os movimentos reformistas que se alastravam na Europa e América Latina. Ainda segundo Maria Celina D’Aratijo, 0 PTB se projetou com um dis- curso voltado para as reformas, com um “papel capital na transformacao do sindicato em ator politico visivel” e na definicéo de uma politica que queria fazer dele “uma fonte de poder”. Mais ainda, foi “como um partido de ‘libertagdo nacional’ que o PTB passou a interpelar o eleitorado nos anos seguintes”* Assim, nao seria exagero afirmar que, na década de 1950, surgiu na sociedade brasileira uma geracao de homens e de mulheres que, partilhando de idéias, crencas e repre- sentacGes, acreditou que no nacionalismo, na defesa da soberania nacional, nas reformas das estruturas socioeconémicas do pais, na ampliacao dos direitos sociais dos trabalhadores do campo e da cidade, entre outras demandas materiais e simbélicas, encontraria os meios necessarios para alcancar 0 real desenvolvimento do pais e 0 efetivo bem-estar da sociedade. Essa geracio encontrou em Joao Goulart aquele que, surgindo como o herdeiro do legado de Getilio Vargas, essumiu a lideranca do movimento reformista. Silvio Tendler, portanto, foi muito feliz em construir um documentério que resgatou um pais imerso em um clima politico e cultural que apontava para a necessidade de reformas econémicas e sociais. Em alguns momentos, Jango apresenta cenas vividas por aquela geracao de homens e mulheres que acreditava caminhar para mudancas, sendo Goulart o personagem que representava um conjunto de sentimentos coletivos. Em sua visita a China, falando no Congresso do Povo, saudou os congressistas: “Viva a amizade, cada vez mais estreita, entre a China Popular e os Estados Unidos do Brasil!”, “Viva a amizade dos povos asiaticos, africanos e latino-americanos!” De fato, no auge da Guerra Fria, nao era pouco. Na ONU, respondendo a jornalistas sobre a politica nacionalista de seu governo, afirmou: 65 Como as sociedades esquecem: Jango A necessidade que nés sentimos em colocar em pauta a desapropriagao das companhias, dentro das formas de entendimento, foi exatamente pelas difi- culdades que elas estavam criando em meu pais. Podemos estimular o inves- timento de capital estrangeiro se dermos a esse mesmo capital uma compen- sagéo justa. Elas néo podem obter também lucros excessivos. Lucros que as enriquecam muito depressa em detrimento do interesse nacional, ou & custa do empobrecimento do pais. Por isso desejamos um outro termo justo, em que elas tenham a remuneracdo justa, razodvel pelo seu capital, que possam obter lucros, mas que, se dedicando a atividades de interesse nacional, esses lucros possam também trazer beneficios ao pais. Uma das cenas, das mais belas e emotivas, mostra a esperanca que invadiu as almas dos homens do campo. Com um fundo musical meio caipira e meio moderno, uma maria~ fumaca avanga puxando dezenes de vagdes repletos de camponeses, sorridentes e acenando, sobretudo as criancas. A velha maquina expulsa vapor e fumaca que balangam uma bandeira nacional empunhada por um deles. Outros homens e mulheres caminham pelo campo, entre algumas palmeiras, apressados, querendo chegar a algum lugar. Passam por uma igrejinha, por uma vila com hurrildes casinhas, por um canavial, sempre com pressa, avangando para algum objetivo — como aquela maria-fumaca. Talvez eles acreditassem chegar a um outro pais onde haveria, segundo a narrativa de José Wilke, “democratizacao do uso da terra, voto EY (0 22lfzteto, discipline dos aluguéis, bases jus- tas para o salario minimo”, Rumavam para o pais das reformas de base. “Jango”, diz Wilker, “pro- punha o fim da fome e da miséria num pats onde a justica sempre foi o lado obscuro da democracia” — ainda como hoje, vale lembrar. Enquanto o trenzinho avancava e os camponeses, pelos cam- pos préximos da vila continuavam a caminhar como se fossem a uma festa, a narrativa prossegue: “Os trabalhadores rurais, mobilizados pelo processo de transformacio social, eram des- wT ‘stra vai 20 cinma Pertados conta a secular miséria do campo. A perspectiva de pequenas mudancas num pais de grandes desigualdades reacendeu ilusdes. Milhares de trabalhadores, sem terra e sem tra- balho, embararam neste trem de esperancas, saltando das paginas da literatura para o cenario politico. Jango, com suas reformas, fez 0 pais viver sua utopia.” 0 sentimento nacionalista se confuncia com o projeto de justica social, eis a utopia que atigou a imagi- nagao das esuerdas, como trabalhistas, socialistas e comunistas, 0 movimento operario e sindical, os amponeses que comecaram a se organizar e, inclusive, faccées do proprio Exército. Diversas outras cenas apresentam um pafs um tanto estranho para a populaco brasileira de hoje. A visita de Goulart a antiga Uniio Soviética, onde vemos um robé, com desenvoltura, riscando um fosforo; 2 resisténcia popular em Porto Alegre, em 1961, quando 65 ministros militares vetaram a posse de Goulart presidéncia da Reptiblica, com barricadas e gente armad: pelas ruas engajada em uma ampla mobilizacao pela legelidade e democra- cia; ou militares comprometidos com 0 programa de reformas dos petebistas e nacionelistas, a exemplo do marechal Henrique Lott em sua campanha presidencial. Na tela, surgem trabalha- dores e camponeses que, mobilizados politicamente, acreditam que havia chegado 0 momen- to das mudanzas econdmicas e sociais, sobretudo a tio sonhada reforma agraria. 0 senti- mento reformista e expectativa de um pais mais justo manifestaram-se também nas unas. Nas eleigdes legislativas de 1962, 0 PTB passou de 66 para 116 deputados, reduzindo o ndmero de cadziras dos partidos conservadores, enquanto o plebiscito que decidiu pela volta do sistema presidencialista, em janeiro de 1963, com o apoio de um amplo leque politico, ‘inclusive militar e empresarial, consagrou a lideranca de Goulart. Tendle; inegavelmente, jogou com a emogio ao construir Jango. No Leblon 1, entre a pessoas a minha volta, ouvi pequenos comentdrios, ora de revolta, ora emotivos, sobre os epis6cios que se suceciam na tela. Suzana, que por acaso descobri em uma poltrona atras da minha, tinha amaquiagem escorrendo pelas faces. “Voc8 nao precisa ser frio para ser ver- dadeiro”,* diz, com muita razdo, o diretor. Diversamente de sua obra anterior, Os anos JK, em gue, preocupad em ser “honesto”, “verdadeiro”, “passar informagées”, produziu um exce- lente documentério, mas frie, contido e reprimido. “No Jango”, completa, “eu trabalhei muito a trilha sonora para criar um clima em que a emogao passasse junto com a informa¢ao.” Aqui, ele libertou-se de seus proprios medos e jogou seus sentimentos no roteiro. (Come as societades esquecem: Jango 0 documentario, assim, conseguiu trabalhar com a emocao em uma época de grande radicaliza¢ao. Quando Goulart assumiu a presidéncia da Repiblica, o movimento sindical e o PTB nao eram os mesmos da época em que ele fora ministro do Trabalho, em 1953. Ao longo desses anos, sindicalistas e petebistas cresceram em niimero, alteraram suas formas organi- zativas e radicalizaram em termos ideologicos. Nesse momento, © presidente do PTB e da Repiblica nao mais usufruia do quase monopdlio do prestigio que exercia entre os sindicatos e no proprio partido. Goulart surgira no cerdrio politico em uma época de transi¢ao no PTB: de uma situacio de subordinacao e dependéncia a Getilio Vargas, 0 partido procurou, apés 0 desaparecimento do lider, construir um novo programa € definir, com maior clareza, sua propria identidade politica. Jodo Goulart foi a figura central nese momento de transigao organizativa, programatica e ideolégica do partido. Os tempos, no entanto, eram outros: de radicalizagao. 0 movimento sindical, sob influéncia crescente do PCB e dz esquerda do PTB, unifi- cou-se sob a sigla do CGT. Durante todo seu governo, grandes mobilizagées e greves gerais agitaram 0 pais. Diferentemente da época em que fora ministro do Trabalho, o presidente da Repiiblica nao tinha mais o controle sobre o movimento sindical que, entao com feigdes mais auténomas e com mobilizagdes crescentes pelas reformas, radicalizava seu discurso e sua estratégia politica. 0 PTB, por sua vez, conheceu uma “real quinada 4 esquerda da maioria de seus quadros”, avalia Lucitia de Almeida Neves Delgado.’ Desde finais dos anos 50, 0s novos militantes erem, na sua maioria, adeptos de um reformismo socializante. Diversos grupos nacionalistas e de esquerda apoiavam 0 programa de Goulart. Embora divididas e hete- rogéneas, as corentes reformistas insistiam, sobretudo, na questao da reforma agraria que, se nao contasse com o aval do Congresso, argumentavam, seria implementada por vias extralegais. A Frente de Mobilizacao Populer, liderada por Leonel Brizola, exigia que o presi- dente fechasse 0 Congresso para viabilizar as reformas. ‘Ao mesmo tempo em que, de um lado, 0 movimento sindical, os grupos nacionalis- tas, 0 PTB e, de outro, os setores mais conservadores da sociedade radicalizavam suas posigées, Goulart, sofrendo a desconfianca de ambos, equilibrava-se em bases politicas bas- tante frageis. 0 fracasso do Plano Trienal ¢ ilustrativo. Sob a orientacao de Celso Furtado, o plano de estabilizagao tentava conciliar estruturalismo com monetarismo. Para ajustar a moeda, seguindo 0 receituario do FMI, nosso velho conhecido, o plano pregava a contencao ‘A Mistria vai a0 cinema dos salarios, a redugao das despesas, os juros altos, entre outras medidas recessivas, em flagrante contradicéo com a pregacao teformista e nacionalista dos trabalhistas. Primeiro a estabilizagdo econdmica, depois a reforma agraria, defendia Furtado. “Entre um plano no papel e a dificuldade dos tra- balhadores”, teria dito Goulart, “prefiro ficar ao lado do trebélhador’:* Este, portan- to, foi o dilema do presidente, descrito, pal Te com lucidez, no éepoimento de Celso Furtado: quando ele procurava uma base parlamentar com 0 apoio do PSD, afastando-se das reformas, a Frente de Mobilizacao Popular, o movimento sindical, os grupos nacionalistas e os estudantes iam para as ruas promover comicios, passeatas ameagas de greve geral; quando aproximava-se do PTB radical e das esquerdas, disposto a realizar as reformas, perdia sua sustentagao politica no Congresso. Assim, durante todo o ano de 1963 o presidente oscilou entre os dois grupos. Enquanto os conservadores e as esquerdas negavam-se 2 pactos e comprom‘ssos, Sobretudo com os rumos éa reforma agréria, Goulart mostrava-se incapaz de neutralizar os setores mais radicais de seu partido e de conter o avanco do movimento sindical, perdendo, assim, 0 apoio das liderangas do PSD que, paulatinamente, se aproximavam da UDN. Em outubro de 1963, com a escalada das greves, a insatisfacao da oficialidade das Forgas Armadas, sob feroz ataque de Carlos Lacerda, sofrendo a desconfianca do PSD e isolado pela esquerda do PTB, o presidente, com apoio dos altos escaldes do Exército, propds 0 estado de sitio — para loge depois recuar. Goulart, nesse momento, encontrava-se isolado politicamente. A conjuntura politica, portanto, era muito grave e diversos personagens que partilharam da convivéncia com Goulart na presidéncia da Repiblica alegam que seu temperamento agia como fator complicador da crise. Incapaz de uma atitude de célera ou de vinganca pessoal ou politica, de indole pacifica e conciliat6ria, disposto a negociaco, 2o entendimento e 20 dialogo, sua qualidade mais marcante, reafirmam os depoimentos,” era 2 sua bondade. Mesmo Convivendo com uma sucessio de crises politicas, certo dia ele chamouo chefe da Casa Civil —an Como as sciecadesesquecem: Jengo em seu gabinete e, demonstrando preocupacao, disse que trés parelhas de burro do carrogao de uma familia que acabara de chegar em Brasilia, vinde do Rio Grande do Sul, haviam mor- ido e as pessoas nao tinham como voltar. Hugo de Faria, percebendo as intengies do presi- dente, afirmou que era ilegal a Casa Civil comprar outros burres e que, inclusive, desconfia- va daquela historia. Goulart retrucou: “Nao, coitado, ele esta no carrogao com a mulher, os filhos... Nos temos que dar um jeito.” Com a negativa de Hugo de Faria, o presidente entrou em contato com um amigo que comprou os burros. Assim, diversos depoimentos enfatizam a bondade, a paciéncia e 2 perspectiva humaritaria como tragos caracteristicos de sua person- alidade. Neste aspecto, Hugo de Faria, que partilhou da convivéncia com Gowart durante muitos anos, discorda da maneira como Tendler reconstituiu a imagem do presidente, declarando, inclusive, que tentou alterar o roteiro do filme. Enbora “excelente, bem-feito”, admitiu, “apresenta o dr. Joao Goulart mitico e nao o dr. Joao Goulart humano”. Pode ser. No entanto, se uma obra é aberta — como tomou-se comum afirmar —, ela também é incom- pleta. Nao ha como contar tudo. Assim como o historiador, o cineasta fez as sues escolhas. Bastante explorada no filme, a conspira¢do, patrocinada pelo complex Ipes-Ibad, encontrou campo fértil para proliferar na sociedade. Ela também avancava entre os escaldes médios da hierarquia militar, de majores a coronéis, 0s mesmes que, mais tarde, ocupariam postos estratégicos no regime ditatorial.” 0 depoimento do general Anténio Carlos Muricy, “revolucionario” sincero, mas radical, é revelador da teia conspiratoria, merecedor, portanto, das vaias e apupos que the dedicaram as pessoas no Leblon 1 — entre as quais, muito discre- tamente e sem perder a compostura, claro, eu e Suzanz. No tocante a conspiracio, Tendler encontrou, sabe-se l4 onde, uma pérola. Trata-se de um filme promocional do Ipes. Com ima- gens tensas, uma voz profunda avisava aos incautos: “Vencerao as instituicdes democraticas Tio entrechoque das ambicdes desenfreadas? Da crise ao caos, opais pode ser arrastado 2 uma crise inconciliavel.” A seguir, a voz tenebrosa nomeia quem eram os “homens bons”, como se dizia na época colonial: “Nos os intelectuais, nds os dirigentes de empresas, nés os homens de responsabilidade de comando, nés que acreditamos ne democracia e no regime de livre ini- ciativa no podemos ficar omissos enquanto a crise aurenta dia-a-dia.” Assim, para preser- var as “instituigbes democraticas e tradigies cristas", conciui aquela voz czvernosa, a0 Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais cabera executar os seguintes objetivos: “fortaleci- A Histra vai ao cinema mento das instituicdes democraticas, superacdo do subdesenvolvimento, estabilizacio da moeda, moralizacao e eficiéncia da estrutura governamental. Mas o Ipes nao pode ficar em palavras, & preciso agir’. Pois é. Esse pessoal agiu e, a0 que parece, est agindo até hoje. A coisa se precipitou com a revolta dos marinheiros. As cenas do motim surgem como muito estranhas para nds, tao acostumados a ver soldados marchando com disciptina. Mas, segundo o relato de Wilker, os caras queriam apenas a melhoria da alimentacao nos navios e, vejam 6, 0 direito de casar. Pode? Mais estranho € quando os fuzileiros navais, com ordem para prender os amotinados, se convencem de que a causa era justa e jogam suas armas na talcada, unindo-se aos revoltosos. Muito mais estranho ainda sao as cenas de apoio popular, com pessoas humildes levando comida, galinhas etc. A grande questao, aqui, é que o senti- mento reformista se alastrava pela populacdo, nao se limitando apenas aos camponeses, a0 movimento sindical, as esquerdas € a setores da oficialidade do Exército, mas espalhou-se, também, na hierarquia inferior das Forgas Armadas. Goulart, com seu estilo, anistiou todos. Sua atitude repercutiu com impacto extremamente negativo entre os escalées médios e supe- Fiores do Exército, permitindo que os oficiais legalistas cedessem aos argumentos dos cole- gas conspiradores. Contudo, o presidente perguntou ao seu chefe da Casa Civil por que no Poderia anistié-los. Se nas diversas revoltas militares ao longo da Repdblica, a comecar pela de 1922, os oficiais amotinados se beneficiaram da anistia, por que, lembra Hugo Faria anos mais tarde, com sargentos e marinheiros seria diferente? "Sera que sargento e marinheiro nao € cidadao brasileiro?” Esse foi o raciocinio politico do presidente. Seja como for, agora 0 golpe necessitava apenas de uma grande lideranca no meio militar. No inicio de 1964, com a desconfiange dos grupos economicamente dominantes Comprometidos com os capitais nacionais e estrangeiros, sem o apoio do PSD e perdendo Controle sobre o seu partido, Goulart aproximou-se dos setores progressistas do PTB e selou ‘seu compromisso com 0 movimento sindical e as esquerdas em 13 de marco, no comicio na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Tendler, congelando a imagem de Goulart e sua mulher no palanque, permitiu que 0 piblico do Leblon 1 visse, pela primeira vez na historia do pais, um presidente iniciar 0 processo de reforma agraria. As imagens dos trabalhadores, com suas faixas e cartazes, mostram a mobilizacao popular em torno das mudancas econdmicas e sociais. Ao se comprometer com a coalizao pelo programa maximo de reformas, Goulart passou a com- partilhar das mesmas crencas de seus aliados de esquerda: em um confronto com os conser- Como as sociedades esquecem: Jango vadores, ele sairia vitorioso. Ao tomar tal escolha politica, entre outras disponiveis, suas ‘opcées no futuro tornar-se-iam bastante restritas. Daquela sexta-feira, 13, até 1° de abril, o contiito politico entre os grupos antagoni- os se redimensionou. Nao se tratava mais ce medir forcas com 0 objetivo de executar, lim- itar ou impedir as mudangas, mas, sim, de tomar o poder e impor projetos. Os conservadores tentariam impedir as alteraces econdmicas e sociais, excluindo, se possivel, seus adversarios da vida politica do pa‘s, sem preocupagies de respeitar as instituiges democraticas. 0 PTB, por sua vez, cresceu e se confundiu com os movimentos sociais que defendiam as reformas. Assim, os setores progressistas da sociedade, representados por grupos nacionalistas e pelas alas radicais e mesmo fisioldgicas do PTB, exigiam as reformas, mas, como seus adversérios, sem valorizar a democracia."® Como conclui Argelina Figueiredo, a questo democratica nao estava na agenda de cireita e da esquerde. A primeira sempre esteve disposta a romper com tais regras, utilizando-as para defender seus interesses. A segunda, por sua vez, lutava pelas reformas a qualquer preco, inclusive com o sacrificio da democracia. Direita e esquerda, diz a autora, “subscreviam a nocao de govern democratico apenas no que servisse as suas con- veniéncias. Nenhuma delas aceitava a incerteza inerente as regras democraticas’.® Entre a radicalizacao da esquerda e da direita, uma parcela anpla da populagdo apenas assistia aos contflitos, silenciosa. 0 golpe militar, avalia com razéo Maria Celina D’Aradjo, foi contra o PTB, sua prati- ca politica e suas liderancas. 0 partido surgiu aos olhes dos militares como um inimigo a ser combatido. A ruptura constituciona! foi ura reacao aos compromissos do PTB com as esquer- das no clima da Guerra Fria, as aliangas que tentou con setores militares, a proposta de fazer dos trabathadores 0 sustentaculo privilegiado do poder e a estratégia de atuar pela via da participacao direta. Alem disso, o PTB erao partido que estava no poder. Goulart, segundo algumas verses, inicialmente imaginou que a intenengio militar repetiria as anteriores, como em 1945: 0 presidente € deposto, conhece o exilio dentro do territério nacional e depois a vida politica do pats retomaria os caminhos rormais. 0 presidente, as esquerdas, os grupos de direita, incluindo os militares, a sociedade brasileira, todos enfim, nao perceberam que, em abril de 1964, ocorrera um golpe de tipo nove. No entanto, em Jango, a interpretagdo é outra: a democracia brasileira teria entrado em colapso devido a uma grande conspiracdo — intema e extema, Na verséo que a direite Te AA Histria vai ao cinema ofereceu a Tendler, os depoimentos de Magalhdes Pinto, Afonso Arinos e do general Muricy no deixam dividas. Para a esquerda, a interpretacdo é similar, como a andlise de Aldo Arantes. 0 jornalista Narcos Sa Corréa, por sua vez, reforcou a tese com a “Operacao Brother Sam”. As imagens sobre a radicalizacao ideologica em torno da questdo cudana e as dos gover- nadores Adhemar de Barros e Carlos Lacerda, jactando-se com 0 apoio que receberam dos norte-americanos, reforcam @ teoria da conspiracao. O filme promocional do Ipes, repito, é uma pérola. Contudo, sabemos, a conspiragdo contra o regime democratico existiu desde 1950: a tentative de impedir a posse de Getiilio Vargas naquele ano, nova tentativa de golpe em 1954, outra no ano seguinte, duas no governo Juscelino ainda outra em 1961. Todas fracassaram. A sociedade nao se mobilizou para apoiar os golpistas. Por que, entao, a de 1964 foi vitoriosa? Pesquisas mais recentes demonstram que a conspire¢ao atingiu seus objetivos pelo medo-panico que se apossou de grupos civis e militares que, embora conservadores, defendiam a legalidade. Diante da radicalizagao do PTB e das esquerdas, eles foram conven- cidos pelos golpistas histéricos a romper com a ordem democratica. Nesta histéria, como em Outras, nao na vitimas, ndo ha inocentes. Assim, neste aspecto em particular, eu me afasto de Tendler. Mas 0 curioso € que a minha — embora nao apenas minha — discordancia com © diretor tinha sido prevista ja em 1987 por um critico elogioso do filme: “Alguém dira que nao foi esse [a conspiragao] 0 Gnico motivo."*” Se ele foi sdbio ao prever o futuro, foi mais ainda ao continuar sev argumento em defesa de Jango: “Quem quiser tratar das outras que ponha a camera no onbro e faca 0 filme. Pode ser que o seu produto final [de Tendler] seja apenas uma das versies. Mas jamais sera uma versdo mentirosa. Esse jogo aberto com o espectador ganhou coragdes.” Pois é. Acho que ele tem razio. Seja como for, nao casualmente a queda de Goulart foi seguida pelo declinio politi- co do PTB, com varios parlamentares cassados e, mais tarde, com a prdpria extincao do par- tido, bem como da grande repressio 20 movimento sindical, com intervengdes em inameras entidades, prisdes e cerceamento das liberdades trabalhistas, como 0 direito de greve. Diversas sao as cenas de brutalidade que, em nome da democracia, militares e seus aliados civis, hoje muitos deles ainda no cenério politico, perpetraram contra trabalhadores, popu- lares e estudantes. As imagens de um homem desfalecido e ensangiientedo, vitima de espan- camento de policiais, jogado na calgada como um indigente, embora socorrido por populares, exemplificam 2s violéncias e os horrores daquela época. As cenas do cadaver de Che, inédi- Come as sociedades esquecem: Jango tas até entao, do corpo inerte de Marighella, do enterro de Edson Luis, da passeata dos 100 mil, do depoimento da sempre bela Tinia Carrero, entre outras situagdes, ilustram o clima sufocante. Mais adiante, jovens estudantes, acreditando piamente na teoria cientifica do socialismo, atacaram o regime dos militares. Mais espancamentos, torturas e mortes. Mas tudo, é bom repetir, em nome da democracia, E ai comecou uma outra historia sobre o governo Goulart, ou melhor, uma outra ver- so. Nada de mobilizagdo sindical, camponesa e popular em torno das reformas; nada de sociedade que apoiava o presidente em seu programa. Os militares e seus aliados civis pas- saram a afirmer que tudo antes de 1964 era corrup¢i0, demagogia, caos econdmico e sub- versdo da ordem. Quase ao mesmo tempo, as esquerdas revolucionarias interpretaram 0 apoio dos trabalhadores e do movimento sindical ao presidente como peleguismo, paternalismo, desvio da linha justa e consciéncias desviadas dos seus “verdadeiros” e “reais” interesses. Para completar, finalmente, nds, professores universitdrios, oferecemos uma teor'a “cientifi- ca” a tudo isso: a do populismo. E todas as lutas operdrias, camponesas e populares pela utopia da justi¢a social foram desqualificadas, merecedoras do desprezo politico e académi- co, condenadas, com todo mérito, ao limbo do esquecimento. Tendler, com seu roteiro aber- tamente favordvel a Goulart, portanto, nao escaparia da “maldicao do populismo”. Em Os anos JK, por exemplo, ele foi acusado de ter “res- gatado 0 populismo” e de ter omitido suas “falsas aliancas". Que coisa mais feia, nao 6? Mas a resposta do diretor foi simples e esclarecedora: “O que eu sempre quis foi res- gatar a democracia no Brasil.” Boa, essa! Em vez de qualificar a temporatidade anterior a 1964 como 0 “periodo populista’, ele fala simplesmente em “experiéncia democratica”, Tao simples como dar nomes aos bois. Assim como nao esconde suas co ao presidente deposto. Sua intencio, com Jango, como admite, foi, sobretudo, uma provocagio a sociedade brasileira. Treduzindo na linguagem do historiador, Goulart, apés = oe A Wistéria vai cinema 1964, foi execrado pela direita, desprezado pela esquerda e solenemente ignorado pela pesquisa uriversitaria. 0 resultado, com o tempo, foi uma imagem ocultada, condenada ao esquecimento coletivo. Nos livros didaticos, duas ou trés linhas; na televiséo, ele nao aparece; nos jornais, sumiu de vez; nas pesquisas do Ibope, s6 estao Vargas, Juscelino e ‘Sarney; pate 0s professors universitérios, quando merece ser citado, surge como a sintese do que havia de pior no populismo, e por ai vai. Esse, portanto, foi o objetivo da simpatia de Tendler por Goulart em Jango e, sem davida, seu grande mérito. Assim, o cineasta, de maneira similar ao tistoriador, dirigiu 0 foco de sua lente para um personagem esquecido, apagado da meméria da coletividade, banido da vica politica e cultural do pais, que deixou de existir — ou, pior, que nao merece ser lembrado. 0 diretor lembrou que Goulart foi presidente da Repdblica e que a sociedade foi cimplice no projeto de reformar o pais. “Memoria, esqueci- mento, siléncio”, titulo de um artigo de Michael Pollak, pode definir a relacdo entre Jango, presidente ca Repiblica, e Jango, filme-testemunho. Quando a sociedade relega o primeiro ao esquecimento e dedica-lhe o siléncio, 0 segundo, como objeto de memoria confecciona- do, exerce seu papel ne formacao, reorganizacao, enquadramento e rearranjo da memoria coletiva.” No entanto, é sempre bom lembrar, néo basta os meios de comunicacao silenciarem sobre um personagem para apagé-lo da meméria das sociedades. Por exemplo, o mesmo Proceso ocerreu com Vargas e ele esta ai até hoje. Existe algo de mais profundo nisso tudo. Quando os operérios do ABC paulista comecaram a protestar em 1978, apenas 14 anos tinham se passado desde que Goulart saira do pais. Para um historiador, trata-se de um periodo muito curto. Mas, nesse momento, o ex-presidente e as lutas dos trabalhadores antes de 1964 nao estavam mais presentes nos discursos dos sindicalistas. Em outros segmentos sociais que lutavan pela redemecratizacao do pais, a imagem do presidente deposto também estava ausente. En apenas 14 anos, a sociedade o esqueceu. Somente em duas ocasides, e mesmo assim em um periodo muito especial, ele foi lembrado. Uma, no livro de Moniz Bandeira,” de 1977; acutra, no proprio filme de Tendler, de 1984. Entre uma data e outra, sabemos, 0 pats viveu a conjuntura de crise do regime militar. Goulart, nesses anos, foi lembrado, mas sua figura ‘ci utilizada para criticar 0 governo dos militares. Recordar a sua existéncia era o mesmo que criticar a ditadura que o depés. Depois, muito curiosamente, ele voltou ao esquecimento, Como as seciedades esquecem: Jango Assim, nada teria restado de Goulart, de suas reformas, das lutas dos trabalhadores e do proprio trabalhismo brasileiro. Ao lancar Jango, Tendler declarou: “Se o filme tem alguma importancia nao é daqui para tras, é daqui para frente. Nao se trata de uma meméria nostalgica, € um troco voltado para o futuro’. Aparentemente, ambos os proje- tos, do diretor e do presidente, fracassaram, mas apenas aparentemente. Afinal, 0 que defendem as esquerdas, os sindicalistas e os grupos progressistas no Brasil neste final de século? Quais as suas propostas? Os partidos legais de esquerda, hoje, pregam a sobera- nia nacional, 0 rompimento com o FMI, a defesa das estatais em setores estratégicos, em particular a Petrobras, a reforma agraria, a defesa das leis sociais, educacao e sade publi- cas e de qualidade, a methoria do nivel ce vida da populacao, a preservacao dos salarios, entre outras bandeiras. Mas, ora, se no é, descontando muita coisa, 0 mesmo programa do trabalhismo brasileiro na época de Goulart? Claro que tudo isso é definido pela direita e pelos neoliberais como arcaico, atraso, xenofobia e, a mae de todos os insultos, populismo. Mas nao adianta. Quando uma tradic¢ao se enraiza na cultura politica do pais, ela, volta e meia, se manifesta, mesmo que com outros nomes e rétulos. As esquerdas brasileiras sao trabalhistas, embora, como se dizia antigamente, ainda nao saibam disso. Em 1976, aos 58 anos de idade e 12 de exilio, as quedas bruscas da pressdo arterial, desmaios e fortes dores no peito tornaram-se constantes.” Sedentario, aprecia- dor de carnes gordurosas, despreocupado com o préprio peso e fumando muito, Goulart insistia em ignorar as recomendagdes médicas. “O exilio ¢ duro”, afirma com razao Abelardo Jurema, e a tristeza pode abater, inclusive com a morte, os menos prepara- dos. Na lista negra da Operacao Condor, acao conjunta de militares do Cone Sul, a morte rondava as porteiras de sua fazenda. Nem na festa de aniversario de seus filhos, projeta- da na tela, ele conseguia sustentar o sorriso que sempre o acompanhou. A tristeza tomou-the a alma. Na noite de 6 de dezembro, dona Maria Tereza acordou a noite com alguns ruidos desarticulados do marido. Goulart, fisicamente, nao mais existia. 0 filme sugere que morreu de desgosto, embora cada vez mais se renovem as suspeitas de enve- nenamento. José Wilker, lendo texto do jornalista Carlos Castelo Branco, ilustra o momento: “0 presidente Joao Goulart, sem condicées de voltar ao Brasil, compelido a deixar a Argentina e aconselhado a nado permanecer no Uruguai, morreu como um pedo perdido 4 procura de voltar ao seu galpao.” WT A Hist: vai a0 creme Ao sairmos do cinema, Suzana chorava. Eu, confesso, estava emocionado. Apds tomarmos um breve chope e praguejarmos contra a direita, fui embora. Ou melhor, tentei, Com o velho carro que teimou em quebrar, parei em algum lugar da zona sul do Rio de Janeiro a espera de gente piedosa e altruista que me socorresse. Pior, sabe-se lé por qué, horas mais tarde, em plene madrugada, Suzana rompeu com 0 namorado. Decididamente, aquela nao foi uma boa noite para nés, os gatichos. Notas a ago Silvio Tendler. “A reconstrugdo da meméria’. In Revista Filmecultura, w. 44, to de 1984, p. 20 Portelli, Alessandro ‘0 massacre de Gritela Val di Chiana (Toscana: 29 de juno de 1964) ito, peitca, lutoe senso comum In Mazieta de Moraes Fereir eJaraina Amado (orgs. Usos'e Abusos da Histva Oral. RI, Ed. da Fundecdo Getilio Vargas, 1996, p. 11 Rui Noguera. In Coneio Brasiliense, 24 de julho de 198 Maria Celina WAratjo, Sindicatos. cariema e poder. 0 PTB de 1945-45. RI, Bi. da Fundagéo Getto Varyes, 1996, p. 1:4 Tem, p. 96 ‘Silvio Tendler. Op. ci. pp. 20-25, Delgadc, Lucila de Almeida Neves. PTB: Marco Zero, 1989, p. 221 Raul Ryff(depcimento). RJ, FGV/CPDOC — Histéria Gral, 1984, p. 242 Tdem. p. 333; Abelaréo Jurema (depoimento). RJ, FEV/OPDOC — Hist Dp. 268 e316 e Hugo de Faia (deposmente). RJ, FGV/CPDOC, Histéra Oral — 198% DiAraijo, Maria Celim,; Soares, Glauco Ary D.; Castze, Celso. Vsdes do gope. A memrit ¢ 1966. R, Relume-Dumara, 199% ‘Hugo de Faria. Op. ct, pp. 265 © 258 DAcaijp, Maria Celina. Sindicatos... Op. ‘Argelina Figueiredo. Op. cit., p. 202. Maria Celina D'aradj, Op. cit, p. 160 Rui Nocueira. Op. cit Silvio Tendler. Op. ci, p. 26 Pollak, Michael. "Menéria, esquecimento, siléncio’. In Estudos Mitéricos, wv. 3. BD, Eé da Fundagio Getilio Vargas, 1989, p. 1 Bander, Moniz. 0 governo Jodo Goulart. As lutas sociais no Brasil. 1961-1964. Rd Giilizagéo Brasilia, 1977 ‘Silvio Tendler. Op. cit, p. 26. Pinheiro Neto, Joio. Jengo. Um depoimento pessou!. 83, Re: erate: etulismo co reformisne (1945-19564). Si it., p. 146 1993, p. 15, A 2 2 i & 2 i & e i & 2 i 3 2 i s entre a memoria ee) Historias ih: om Huth =O athe ar Anténio Torres Montenegro Cabra marado para merer ente a membra ¢ 2 Histéra 0 papel do intelectual née é mais o de se colocar ‘um pouco na frente ou um pouco ao lado’ para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da verdace, da consciéncia, do ‘tiscurso.” Michel Foucault Arrumava as malas para uma viagem de estudos nos EUA, quando recebi o surpreendente convite para escrever un artigo sobre o filme de Eduardo Coutinho, Cabra marcado para morrer. Com a cabeca inteiramente voltada para 0 futuro, para os planes da viagem, avaliando, medindo, antevendo, prevendo, ea obrigado a interromper e rapidamente tomer uma decisio que me joga- va numa outra diregdo, pare 0 passado, para as lembrancas do filme e as memarias que ele me fazia reviver. No interior desse ritual de passagem, entre as representacdes ausentes que 0 rememorar atuatizava e a imaginacio inventiva do futuro, o tempo diferenciava-se como expressao inseparavel do que aprendemos a nomear, emocac. No processo de decisoa que 0 convite me remetia, interrompi, por alguns minutos, momentos, horas, © processo imaginario de pensar o futuro daquela viagem com Catarina, Ana e Eduarda, e mergulhei nas imagens da lembranca de Ccbra marcado para momer e nas tantas outras trilhas que © filme me fez reviver quando a ele assisti Lembrangas redescobertas Quando assisti a Cabra marcado para morrer pela primeira ver, imediatamente fui projeta- do num periodo de vida em que o assassinato de trabalhadores rureis ndo vinha apenas como noti- A tlistria vai 20 crema cia de jornal. Meu pai era advogado da Federacdo dos Trabalhadores Rurais da Agricultura (Fetape), € aquele clima retratado no filme, de corfronto com senhor de engenho, com capataz, coma polt- cia, estava inserido em nosso cotidiano familiar. Cresci convivendo com a experiéncia de receber visitas de traba-lhadores fugindo da policia, de nossa casa hospedar alguns desses personagens enquanto se encontrava um luger seguro para eles. A coragem desses homens e mulheres, que narwm, Ee OPT) eT, trespassavam 0 limite do medo da morte, da emboscada, do assassinato, era um enorme mis- tério para mim. Entre as muitas marcas desse periodo, uma em especial ficou, de forma indelével em minha meméria, pois mudou o rumo da nossa vida familiar: 0 caso de Matapiruma, Maio de 1972. Trés trabalhadores rurais — Jodo, José e Luis — fuzilades dentro do canavial do engenho Matapiruma.” Eram trés itmaos. Dois conseguiram sobreviver: Jogo e Luis. 0 primeiro foi internado no hospital, ertre a vida e 2 morte, com ito tiros no corpo, € Luis escapou com um tiro na mao, correndo por dentro do canavial. José faleceu no local. Recordo essa histéria contada inimeras vezes por meu pai, na hora do jantar. Relatava que visitara no hos- Pital um trabalhador com oito tiros no corpo e que quando perguntava a ele se era para colo- car 0 senhor de engenho na justica, ele respondia que “a luta tinha que continuar”. Nunca tinha visto tanta coragem, comentava. Mas aqueles tiros indiretamente também nos alcancariam. 0 presidente da Federacao dos Trabalhadores decide que aquele érgao de classe nao iria se envolver. Foram dias de tensdo, pois meu pai pediu demissao do cargo de advo- gado que ocupava na Federacao e ficou praticamente desempregado. Argumentava que nao tinha 0 que fazer num érgao criado para defender os direitos do trabalhador e que, num caso como aquele, decidia omitir-se. Passados vinte anos, escrevi um piojeto de pesquisa‘ em que um dos objetivos era entrevistar padres e trabalhadores rurais envolvidos na luta de resisténcia politica dos idos das décadas de 1960 e 1970. Descubro-me, em um determinado momento da pesquisa, entrando em contato com Luis de Matapiruma e, por extensio, visualizo a possibilidade de transformar Cabra marcado para marer entre a menére a Wstiria em historia aquela meméria quase esquecida. Assim como Eduardo Coutinho, revisito marcas do passado ameagadas pelo esquecimento encobridor, que parece avancar com 0 tempo. Em 5 de agosto de 1998, estou no municipio do Cabo, interior de Pernambuco, na residéncia de Luis de Matapiruma. Ap6s as apresentagSes, ele concorda em narrar sua historia de vida. A meméria que construi, por meio de imagens recorrentes e associativas a partir da narrativa oral que ouvira no inicio da década de 1970, tornava-se imagem, percepcao imedia~ ta, reconstituida a partir do relato do proprio Luis. Aquele homem de pequena estatura, fala pausada, olhar firme e maneiras educadas, aparentando uns setenta anos, ocupara, por mais de duas décadas, 0 lugar de heidi em meu imaginario. A presenca fisica e o lento rarrar em que descreve sua vida estabelecem em mim um confronto entre a meméria que, de forma consciente ¢ inconsciente, guardei todo esse tempo, e o contato direto, a representacdo imediata do homem e da historia que me relatava. A medi- da que escuto/gravo a histéria, descubro-me em conflito. A representacio mitica do herdi que construi nao resiste & historia do homem. 0 retomo de Eduardo Coutinho, em 1981, ao Engenho Galiléiz, onde, em 1964, ini- ciara as filmagens de Cabra marcado para moner, simbolizara o revisitar coletivo de uma memiéria. Camponeses, atores do filme e diretor se reencontram, tendo como elemento de liga¢o a experiéncia da filmagem. 0 filme os colocaré juntos outra vez, como nao tinham estado desde abril de 1964, quando o Exército cercou o Engento Caliléia, onde estavam sendo realizadas as filmagens. 0 reencontro dos trabathadores que atuaram como atores e a possibilidade de verem-se projetados, 17 anos mais novos, produzem um clima de grande emocao. A memoria 6 atualizada através de conversis acerca de experiéncias comuns vividas naquele periodo mas, sobretudo, através da projecao do filme. As imagens, as falas dos atores, produziréo a redescoberta de lembrancas desconhecidas. A filmagem da reagao do grupo ro momento da projecao, bem como as entrevistas posteriores, em que cada ator relata sua experiéncia em rever aquelas imagens, representa uma inusitada forma de reconstrucao da meméria. 0 depoimento dos atores sobre o filme que nao conheciam e 0 que ocorreu nas suas vidas apés a interrupsao da filmagem projetam uma memdria de lute, cor, conflito entre a histéria pessoal e a histéria do pafs. Alguns foram obrigados a fugir, esconder-se, outros foram presos, torturados... Elizabeth Teixeira, a personagem central do filme, a vitiva de Jcao Pedro, encontrava-se desaparecida desde aquela época. A Mistéria vat ao cinema Fazer histéria e cinema 0 escrever a historia tem recebido, a0 longo do tempo, diferentes matizes, Para muitos historiadores, no final do século XX, © importante é ter uma questo, um problema, uma pergunta. A partir dessa perspectiva, torna-se possivel selecionar a documentacao, muitas vezes diversa e incomensurdvel; seu estudo e a andlise, associados ao debate com a historiografia e com outras areas do conhecimento, séo os passos subsegiientes para a pro- dugao do texto historico. Embora o cinema seja uma atividade muito mais recente, tem também sido alvo de diversas concepcdes que delineiam o seu fazer, ao longo dos pouco mais de cem anos de sua existéncia. No Brasil, um dos periodos de enorme riqueza da producao cinematografica foi marcado pelo que se convencionou chamar de Cinema Novo. A frase “Uma idéia na cabeca e uma camera na mao”, de Paulo César Saraceni, que Glauber Rocha adotou como bandeira, tornou-se quase um paradigma do fazer cinema para esse grupo. No entanto, indissocidvel dessa simples formulacéo conceitual estava toda uma filosofia politica. Nesse sentido, por volta de 1962, escrevia Glauber em carta a Saraceni: Duzentas mil pessoas morrem de fome e sede nas estradas, enlouquecem, assassinam.— dos campos dridos e miserdveis de Pernambuco vem a voz da revolugdo. homens que nao tém carteira de identidade a néo ser o recibo da sociedade. obreiros da morte, onde se inscrevem pra o enterro, quando mor- rerem. a revolugdo crescendo nos campos — pemambuco, paraiba, piaut, maranhdo, goids, bahia, minas — se vocé olhar 0 norte 24 horas, vocé enlouquece de raiva e vibra de entusiasmo. todos os meus amigos estio no Partido. vou entrar esta semana ainda. na universidade, nos sindicatos, nos campos da bahia e pernambuco s6 ha uma palavra — REVOLUCAO!”.. “o brasil de hoje néo tem lugar pro artista roméntico e sim para o artista revolu- ciondrio, mas néo um revoluciondrio da arte e sim da propria historia, esté ca hoje é uma questao politica * Esse pequeno trecho da carta de Glauber resume o espirito de uma 6poca, uma visao de mundo que informava e formava esse grupo de jovens cineastas, entre eles Eduardo Cabra marcato pare morrer entre a menéria a Histivia Coutinho. Este, como um dos membros do CPC (Centro Popular de Cultura da UNE), associado a0 MCP (Movimento de Cultura Popular do Governo do Estado de Pernambuco’), sera 0 respon- sdvel, em 1964, pela producao do longa-metragem sobre a vida de Jodo Pedro Teixeira. 0 filme inseria-se na perspectiva artistica de intervencao na realidade. A arte levando consciéncia, a arte revolucionéria. Nesse sentido, as primeiras imagens do filme so reveladoras das marcas histéricas desse periodo, que a locugéo demarcaré como “a imagem de miséria contrastada com a presenca do imperialismo. Essa era uma tendéncia tipica na cultura daqueles tempos.”* Muitos historiadores, também, escreveram seus livres, acreditando que, ao mostrar as con- tradigdes histéricas, a luta de classes, a exploracdo, a ideologia e os valores da classe domi- ante, estariam produzindo as condigdes necessérias para a transformacao, a revolucao. Passados 17 anos, o diretor Eduardo Coutinho retoma seu projeto interrompido pelo golpe militar de 1964. No entanto, durante quase duas décadas, as mudancas culturais, politi- cas, econdmicas e sociais o fardo construir uma outre visdo de mundo, e sobretudo da funcdo da arte e da relacdo desta com as classes populares. A retomada do filme revela um diretor com as mesmas preocupagées de antes de 1964 mas, entre 1964 e 1981, a postura do dire- tor mudou. Nao ha mais a certeza do caminho, do que fazer para mudar a realidade e, por extensio, a consciéncia a ser ensinada ao povo. Nas, como Elizabeth Teixeira registra no filme: A luta que néo péra. A mesma necessidade de 64 esté tragada, ela nao fugiu um milimetro, a mesma necessidade na fisionomia do operério, do homem do campo e do estudante. ' Uma idéia na cabega e uma camera na mao Numa locucdo no inicio do filme o diretor procura demarcar 0 novo projeto de retoma- da das filmagens de Cabra marcado para morrer, em 1981, afirmando “nado haver nenhum roteiro prévio", apenas “a idéia de reencontrar os camponeses que tinham trabalhado” como atores. Nesse reencontro, eles seriam convidados a falar sobre o passado. Em outros termos, seriam convidados a revisitar suas proprias memorias, Talvez o diretor imaginasse que, assim como ele vivenciara diversas experiéncias ao longo dos anos, os camponeses/atores, inseri- dos em uma outra classe social, também teriam muitas e ricas vivéncias a narrar. A Hlstiria vai ae cinema No entanto, como todo trabalho de rememorar ou de revisitar 0 passado a partir de um Projeto nao é aleatério, algumas trilhas foram definidas pelo diretor. Ele focalizara como ponto de partida da nova filmagem, 2 historia de vida dos atores. Demarcava, como corte temporal, 0 Periodo de 1964, quando a primeira filmagem foi interrompida, até seu reinicio, em 1981. Associada a essa trilha basica, havia também a perspectiva do diretor de colher depoimentos relacionados a “histOria real da vida de Joao Pedro”, “luta de Sapé” e & “Luta de Galilei A pattir desse plano geral, o resulta¢o do filme esteve inteiramente sob 0 dominio do que a memiéria desses camponeses e alguns outros entrevistados narraram. As entrevistas foram tealizadas em tom de didlogo. A participacao do diretor, perguntando, discordando, responden- do, esta presente em diversas passagens. Essa postura é definida a partir do entendimento tedri- co de que a relagao entre entrevistador e entrevistado € assimétrica, em deconéncia do poder que lhe € dado pela camera. No entanto, essa relacdo desigual s6 poderia ser compensada, de uma forma correta, incluindo essa assimetria relativa no produto que vocé faz. Por isso falo que esse microfone pertence aos dois lados, 0 didlogo é entre os dois lados, deve aparecer, inclusive, em seus momentos criticos. Em alguns trechos do filme esses momentos aparecem e sao extremamente reveladores, como na participagao de Abraao, filho de Elizabeth Teixeira, fazendo um discurso politico de acordo com o qual “todos os regimes sao iguais, desde que a pessoa nao tenha protecao politi- ca... Nenhum presta para o pobre”, e em seguida exigindo que aquela sua fala nao fosse corta- da, Nesse momento, o diretor é arrastado pare o interior da cena e, publicamente, confirma 0 compromisso de manter tudo 0 que a familia de Elizabeth Teixeira desejar registrar. 0 didlogo entre o diretor e diversos participantes algumas vezes é iniciado em tom de entrevista, na perspectiva de revisitar memérias; no entanto, @ forma de perguntar nao estimu- la 0 processo de rememoracio. Nesse sentido, perguntas iniciadas por expressdes como “o que vocé achou” ou “vocé gostou” em principio retiram o foco do campo da meméria e remetem para © da racionalizacdo, nao favorecendo 0 processo de livre associacao de lembrancas. Observando- se atentamente as entrevistas, percebe-se algumas vezes uma certa dificuldade do entrevistador em obter narrativas que contemplem toda a extenso do que se deseja saber. As perguntas reali- zadas s40 contempladas em muitas respostas apenas por expressdes como “gostei muito”, “foi (Gra marcado para noner entre 2 neméria e a Historia interessante”, “foi muito bom’, deixando a nitida sensacao de que a expectativa seria de uma resposta ampla, explicativa, associando fatos e acontecimentos do passado. Nesse sentido, ap6s apresentar o filme aos camponeses/atores da primeira filmagem, na entrevista com José Daniel, em lugar de tertar recuperer que sensagGes, lembrancas ou recordacdes o filme suscitou, as perguntas redlizadas sfo: “Gostou do filme? E o que achou?” A resposta de José Daniel é breve e suscinta: ‘Achei muito bem. Achei interessante.” A forma da pergunta retira 0 foco do passado e 0 coleca no campo da avaliacao onde estara em jogo sobretudo um juizo de valor em relacio ao diretor. Assim, perde Coutinto, talvez, muitos ele- mentos que 2 meméria associativa poderia revelar, atiavés de uma percunta que estimulasse no entrevistado realizar livremente seu mergulho no passado revisitado. Na entrevista com 0 ator Braz Francisco da Silva, pergunta-se inicialmente se ele Lembrava do filme; mas, logo em seguida, é feita a indagacao sobre o que ele achou co filme, passando, conseqiientemente, do campo da lembranca para o da racionalizacao e do julgamento. Cicero Anastasio da Silva foi outro ator entrevistado. Por saber ler, trebalhou também no filme como assistente de prodicéo. Em marco de 1980 mu¢ara-se para Limeira, interior de Séo Paulo, apds ficar seis meses desempregaéo en Pernambuco. Nio é dito se o filme também foi projeta- do para Cicero. Mas, diante das perguntas “o que vocé lembra do filme? Que cera vocé lembra do filne que a gente estava fazendo?", a resposta de Ciceo revela uma enorme capacitade de revisitar as marcas do pas- sado, descrevendo a cena em que trabalhava, como também um breve didlogo em que participava. No entanto, a pergunta seguinte nao foi sobre as lembrancas que ver o filme despertaram, mas sobre se pensava ou no que o grupo voltatia para terminar o filme. E Cicero responde afirmativamente, relembrando um dialogo em que discordava da mae, por ela nao acreditar que 0 filme pudesse ser retomado. Essa mesma pergunta, feita a outros atores, teve em Elizabeth Teixeira 2 Gnica resposta negativa, ao dizer nunca ter imaginado ver o filme ter- minado, ou reencontrar sua familia, enfim, reconciliar-se com sua meméria, que o golpe de 1964 a obrigara a esquecer. ; | a A Historia va a0 cinema A dificuldade, muitas vezes revelada, em obter respostas que atendam a todo um cenario descritivo e mesmo explicativo, pode ser relacionada a algumas razdes: primeiro, a memoria, a diferenca da narrativa jornalistica, nao quarda os acontecimentos em sua ordem cronolégica; segundo, a meméria € um processo interativo entre acontecimentos, infor- mages, imagens, sons da reatidade ao nosso redor e a forma como reagimos. Desse modo, 0 que guardamos, ou o que registramos, é resultante do processo ou da relacdo de confronto entre © que recebemos do mundo que esta fora de nds e 2 forma como, de maneira ativa, Feconstruimos 0 que foi percebido. Esse processo jamais se caracteriza por uma interioriza- 40 positiva de marcas exteriores. Por extensdo, sabemos 0 quanto 0 processo de meméria é seletivo, ndo guardando tudo, mas apenas alguns detalhes significativos. No entanto, o que torna algo significative nao é necessariamente o fato externo em si, mas, muitas vezes, 0 valor que inconscientemente lhe é atribuido. Associado a toda essa rede relacional entre o sujeito e a realidade a sua volta, destaque-se que estas marcas da memoria esto registradas, imbricadas numa série que se costuma denominar memorias voluntarias ¢ involuntarias. Dessa forma, nem sempre uma per- gunta ou um estimulo que tenha como alvo a meméria voluntéria € suficiente ou capaz de revelar 0 que foi construido sobre um determinado acontecimento. Muitas vezes 6 através de uma pergunta, ou de uma recordacdo, sem nenhuma relacdo direta com uma determinada meméria, que © outro niicleo de memoria que nos interessa se revela; ¢ a meméria involun- téria, contemplando 0 que desejamos saber. Isso ocorre, sobretudo, porque a forma como se organizam em nds as marcas da memoria atende a um critério de associacao inconsciente, no gual experiéncias diversas se imbricam, sem que tenhamos, necessariamente, consciéncia do Que @ capaz de as manter relacionadas. Dai ser muito comum o processo livre de rememorar Nos remeter a acontecimentos, informagies, imagens construidas em tempos cronolégicos os mais diversos. Um Gltimo elemento a considerar é a dificuldade em transformar a meméria revisita- da, e por extensao reconstruida, em discurso. Sobretudo porque aquele que narra sua memoria tende comumente a express4-la como se 0s que o escutam houvessem compartilhado a mesma experiéncia. Essa postura se constituira em mais uma dificuldade, quando desejamos trans- formar a meméria em um texto para uma determinada area do conhecimento. Nesse sentido, a experiéncia de realizar entrevistas voltadas para o revisitar marcas da meméria possibilita ad (Cabra mercado para morer ente a mena © a Hise constatar como é reduzido 0 ndimero daqueles que se poderiam denominar narradores. Estes se caracterizariam pela capacidade de, ao revisitarem suas memiérias, oferecer uma rica descrigio material da realidade em que deteiminado acontecimento se deu. Associado 2o cenario descritivo, 0 narrador sempre contempla seu préprio imaginario, reconstruido com os olhos do presente, cercado de sonhos, desejos, expectativas, e o imaginario social, que seria 0 que se poderia descrever como sua representaco acerca do imaginario das outras pessoas. Como conclusao do seu relato, o narrador sempre oferece um ensinamento, uma sabedoria, um conhecimento, uma experiéncia a ser transmitida. No filme Cabra marcado para morrer, destacaria trés narradores: Joao Virginio, quan- do relembra a fundacao da Liga Camponesa em Pernambuco, a luta pela desapropriacao do Engenho Galiléia e 0 periodo em que esteve preso e torturado; Elizabeth Teixeire, em diversas passagens, com destaque para o ensinamento que procura transmitir no momento da despedi- da da equipe de filmagem; e, de uma forma muito especial, Manoel Serafim, que conheceu Joao Pedro na época em que este veio para Escada (PE) trabalhar numa pedreira. A passagem em que Manoel recorda a morte de Jodo Pedro, quando toma conhecimento através do jornal Folho do Povo, & um dos momentos mais poéticos e tristes do filme: Por volta de oito horas mais ou menos estavam vendendo jé a Folha do Povo com toda a noticia, com toda a reportagem dele, o pessoal tudo comprando e dizia assim: rapaz, mataram o presidente da Liga Camponesa da Paraiba. E aquele nome surgia assim numa noticia, como se fosse uma grande pessoa né... Eh, @ gente sentimos uma tristeza assim. Houve isso, parece que 0 sol esfriou assim, néo quis sair do lugar, e foi aquela serenidade fria, assim, aque- Ia tristeza arrancando assim, aquela vida, com aquela saudade, Porque existe saudade sem alegria, aquela saudade com tristeza. E todo mundo sentiu... Como narrador, Manoel Serafim, além de descrever a forma pela qual tomou conheci- mento da morte do companheiro de trabalho, reconstruindo seu imaginério e o imaginario social dos que estavam préximos, conclui com um ensinamento sobre a saudade... Deve-se destacar que, quando o diretor inseriu este fragmento de meméria no filme, a pergunta que desencadeou o recordar nao aparece. S6 revendo o copiao poder- ‘A Histcia vai ao cinewa se-ia saber se resultou de uma meméria voluntéria ou involuntéria. Mas, apesar de todos esses desafios que o operar com a meméria projeta, Coutinho revela-se um pesquisador incansavel. Para os diversos fragmentos de meméria que seus entrevistados descortinam, sairé em busca de um enquadramento histérico, com diferentes fontes documentais: jornais, fotografias, filmes. Recorre 4 metodologia da histéria para impedir que preciosos relatos se limitem a curiosos depoimentos de lem- ATU Ee uP a PWT brancas revisitadas. Estabelece um contraponto entre a meméria e a histéria, possibilitando ao espectador ampliar a compreensao do passado e do contexto em que a memoria foi inicialmente construida. Institui um dialogo entre a meméria e 2 historia, transformando a arte em um riquissimo campo de conhecimento e de experiéncia histérica, Mem@ria, identidade, histéria Uma dimensao que sempre me preocupou na pesquisa com as camadas populares foi a forma de retorno do material pesquisado a comunidade. Comumente as pesquisas, 08 projetos, as entrevistas, os filmes sao realizados, ¢ a comunidade jamais conhece 0 resultado daquele seu trabalho. Coutinho, ao retornar ao Engenho Galiléia, em 1981, com o que conseguiu recu- perar das filmagens de 1964, estava de alguma maneira prestando contas aquela comu- nidade do trabalho que haviam realizado 17 anos antes. Apesar de terem perdido o con- tato desde 1964, muitos afirmavam ter esperanca de rever o filme, o que revela a importancia e a expectativa cultivada ao longo dos anos. Mas essa volta significou mais do que um reencontro em um outro tempo histérico. Lentamente, através dos novos depoimentos filmados, constréi-se uma histéria popular de como o golpe militar de 1964 interferiu na vida de todo aquele grupo. As inimeras injusticas cometidas, as persequicdes, as torturas de que muitos foram alvo e que caminhavam para o completo esquecimento, transformam-se em documento, em memoria, em histéria. Cabra marcado para more etre a memériae 2 Historia Um outro aspecto a destacar é como, para todo o grupo participante da fil- magem de 1964, a de 1981 adquire uma timensao inteiramente nova. Nao representa mais desempenhar um papel na histéria escrita jelo diretor. Atuam, agora, como autores e atores do seu proprio roteiro. O filme reconcilia a meméria com a historia de cada um dos partici- pantes. 0s papéis anteriormente assumidossio substituidos pelo relato da historia vivida no intervalo de tempo entre as cuas filmagers. A projecio do filme para os atores, para seus familiares e a comunidade de Galiléia, em fevereiro de 1981, possibilitara a reatualizacao de uma memoria. A identidade coletiva do gnpo é reconstruida através da meméria revisitada pela experiéncia do reencontro que estabelece uma ligacao entre passado e presente. Estava ausente a projecao, em Galléia, Elizabeth Teixeira, vitiva de Joao Pedro, que na filmagem de 1964 vivera o mesmo papelque na vida real. Coutinho, assumindo o papel do pesquisador que nao se detém diante das primeiras dificuldaces, descobre em Patos, na Paraiba, Abrado, um dos filhos de Elizabeth. Através dele, apés dificeis negociagdes, chegara a Sao Rafael, cidade no interior do Rio Grinde do Norte, onde Elizabeth se refugiou com 0 filho Carlos, ainda em 1964. A chegada de Coutinho com a equipe de filmagem, 17 anos depois, teré, para Elizabeth Teixeira, um significado muito maior do que a reatuelizacao de uma meméria. Aquele reencontro restabelece sua pripria identidade, sua propria memoria, Porque, de forma muito mais radical do que todo o restante do grupo, ao refugiar-se em Sao Rafael, mudara de nome e silenciara sobre sua meméria. Por estratégia de sobrevivéncia nao tinha nenhum contato com a familia ou con qualquer pessoa que a remetesse a sua histéria, a0 seu passado. Para os moradores de Sao Rafael, tornara-se Marta, uma mulher com um pas- sado difuso, que nao se revelava claramente. Os trés dias de filmagens da equige de Cabra marcado para morrer, em Sio Rafael, Possibilitaram-the reconciliar-se com sua identidade, com a meméria e com a histéria. Coutinho ainda viajar @ Paraiba e ao Rio de Janeiro procurando entrevistar todos os filhos e filhas" de Elizabeth Teixeira. Essa peregrinacao, restabelecenco 0 elo perdido, a meméria desconhecida, transforma o filme Cabre macado para morrer em um documento de vida. Nao apenas um registro hist6rico sobre o peso da violéncia de um regime, mas a tentativa de interromper, de barrar o siléncio, a perda, 2 dor, a tristeza. it er ‘Quero registrar o agradecimento leitura todas as sugestes tenhar, sido atendidas: A Aparecida Nogueira, Eidilnete Siqueira Regina Faria, Susan L ritica de alguns amigos, embora nem nirea Delgado, Antonio Jorge Siqueira bas Arado, Paulo Henrique Martins, wis. A forma final deste trabalho é de minha inteia respon: sabilidede (Cadre marcado pa er, 1984, Disigido por Eduardo Coutinho, o filme trata da vida do presidente da Liga Camponesa de Sapé, na Paraiba, Jodo Pedro Teixeira assassinado em 1962. As filmagens foram iniiadas em 1984, no Engenho Galiléia, terior de Pernambuco, Trabatham como atowes Elizabeth Teixeira, viva d= Joao Pedro, e camponeses moraiores do engenho. 0 golpe mulitar de 1964 interrompe as flmagens. Em 1581, 0 projeto € retomaco, a partix de entrevistas com o: antigos ra encontra-se cesaparecida deste aquela época, ¢ 0 filme D engenho Matapiruma estélocalizado no municipio de Escada a aproximadamer 0 km: do Recife, na regiao conhecida por 20 Guereiros do Alér-Mar: Pojeto de Pesquisa desenvolvide com que se trabalhou com depoimentos de vida d saraceni, Paulo César. For dentro do Cinema Nt 1993, p. 11 Glauber ro utlizava leva maiiscula no Mantivemas o mesmo eile. Saracens, Patlo ‘0 governador de Pernambuco zessa época e Locugio na pat inicial do Slme Cara mi fala de Elizabeth Teixeira no final do fine Coutinho, Eduardo, “O cinema documentirio e = evista do Programa de Est patifiia Uri Departamento de Historia da yee mora em Cuba, no foie bana, a pedice deste, fez uma entrev a da mata sul io do CNPq, em adres e trabalhadores ura 2. Minha viagem. 80, Nova Fronteiza inicio das f (César, Op. ci ses ou apés un ponto, pp. 130-131 fa Miguel Aaes de Alencar sta sencivel da alteridade”. In dos Pés-Graduados en ae do wersidade Catélica de Sio Paulo, n 15. vistade por Coutinho. Uma equipe de cinema com Isaque, que foi incluida no filme i 2 i 5 2 i = 2 i S z Jaime de Almeida Marvade carne: uma coma caipira pica 0 filme comeca e vocé tem a impressio de que algo (he é familiar. Logo mais, quan- do Nhé Quim sentar-se e acender 0 cigarto de patha, a impressdo se confirmara: estamos via- jando pelo interior ée um quadro a éleo de Almeida Junior, Cajpira picando fumo. Alias, pre- pare o seu olhar, pois a fotografia do filme pediu emprestado aos pintores brasileiros do fim do século XIX a paleta de cores, 0s estudos de luz e sombra, as paisagens e as cenas de género. 0 cenario ristico poderia ser 0 co mundo indigena, e de fato quase isso mesmo, pois Nnd Quim utiliza os mesmos poucrs artefatos da culture material dos bandeirantes paulistas. A soliddoe a modéstia dos utensilios domésticos nao significam necessariamente pobreza: alertados elo conhecimento hist6rico, pedemos ver em Nhé Quim uma sentinela da expansio ocidental pelas imensiddes ca América, alguém como aqueles homens que aden- travam os sertdes com meses de antecedéncia para plantar o milho e a mandioca que ali- mentariam a tropa da bandeira, garantindo a velocidade essencial que fazia deles o pavor dos espanhéis e dos missionarios. Podemos lenbrar ainda que 2 fartura ¢ a escassez S4o experién- cias vividas sem maior espanto por estes homens cujos antepassados vararam sertdes & caca de indios, de ouro ede esmeraldas, destruiram reducdes missioneiras no Paraguai e quilombos negros no Nordeste, enfrentaram castelhenos e guaranis no Prata, recrutados a laco a cada nova guerra de frorteira. Gente acostumada a fugir dos tentéculos do Estado, e que tem a autonomia como valor superior & propredade. Esta pode até ser amealhada mas, neste caso, muitas vezes apenas sob a forma de um recado enigmatico para as geracdes futuras, como ocorre atualmente com tantos fazendeitos goianos que deixam a familia criada na cidade e se metem pelo Norte com a boiada e algurs poucos empregados, instalados em ranchos idénticos A Hlstria vai ao crema a05 de Nh6 Guim, tudo para deixar a0 morrer uma fortuna que os filhos e a vitiva saberao, talvez, dividir. Aliés, os milhares de garimpeiros brasileiros perdidos pelos rios igarapés da Amazonia, ‘gnorando fronteiras de qualquer tipo, sdo também parentes de nosso personagem. Nhé Quim vé conosco o filme e & o narrador que, instalado em nosso tempo presente, conta a sua historia, levando-nos a um tempo que agora para ele é passado, e que para nds é um tempo totalmente pretérito. Oucamos com atencdo, pois o filme entrelaca muitas tem- poralidades. Durante uma hora e 17 minutos ouviremos muitos “causos” com comeco, meio e fim. Nossa vista esta no comero do filme enquanto nossos ouvvides ja escutam o fim da historia, Nho Quim olha a fita e diz que parece até que esta vendo aqueles tempos em que vivia sozinho no ermo. A historia que ja nos esta contando como e por que saiu daquele tempo marcado ini- Cialmente pela soliddo dos emmos e chegou ao nosso tempo e lugar. A marvada came dos seus desejos & que explica tudo... Apés cruzar em diagonal uma paisagem em amarelo deslumbrante, Nhé Quim enfrenta lum rito de passagem tipico da civilizacdo riistica luso-brasileira: o encontro com o Curupira. 0 monstro pareceré engracado 2 quem pensar exclusivamente em folclore; mordidos pela curiosi- dace dos historiadores, notemos a violéncia do “causo”. 0 Curupira exige Fumo. Nho Quim esta- va desprevenido e por isso 0 monstro ameaca comer o seu coracao, evocando um rito sangrento Praticado pela maioria das culturas e civilizacdes autéctones do continente chamado hoje América. A violéncia do dialogo convida-nos a ler, juntamente com Os parceiros do Rio Bonito de Antonio Candido, que é a prircipal referéncia bibliografica do filme, e Homens livres na ordem escravocrata, de Maria Silvia de Carvalho Franco. Corrigindo, talvez sem o saber, uma determinada pas- sagem deste segundo tivo magnifico, Nho Quim vence 0 Curupire recorrendo a sabedoria da oralidade sertaneja — “conversa foi o que nunca faltou para este filho do meu pai” —, ganhando tempo até encontrar uma idéia de cacador — que ele é — e con- segue aplacar 0 desejo do morstro com um presente a altura da violéncia permanente nesta fronteira pri- & mordial entre o mundo indigena eo mundo mestico. aiAU WT), ai uu, aT Atavvadn came: ume comédia cipira pica Enquanto isto, no bairro rural para onde caminha Nhé Quim, Sa Carula ja tem seus dezessete anos e cumpre ritos propiciatorios tipicos do catoicismo ristico, pois precisa casar-se com urgéncia. Santo Anténio, privado do santo menino que carrega nos bracos e viti- ma de muitas outras chantagens, ja que os agrados nao haviambastado, estabelece brusca- mente o contato: observanco sem ser vista, 2 moca apaixona-se por Nh Quim, que nem a conhece ainda. Estamos, portanto, numa sociedade em que 2s criancas tornam-se adultos muito cedo, e na qual os assuntos religiosos dispensam quase inteiramente a intermediacao do clero letrado. Observemos ainda que nesta sociedade de siultos praticamente nao ha anciaos.' Nh6 Quim é recebido por sua tia Nha Tomasa, vitiva doirmao de Nnd Totd, que é 0 pai de Sa Carula. Logo se integra ao trabalho familiar e comeca z ser cortejado por Sé Carula, que conta com a cumplicidade de Nha Tomasa. Embora movido felo desejo ardente de comer carne de rés e de casar-se (nesta ordem), Nho Quim faz-se de sonso, obrigando Sé Carula a empregar recursos sofisticados, como adivinhar os seus segreces compartilhando as ocultas a agua que ele bebe. Conhecedora agora dos desejos de Nhé Guim, 2 moga entra nua no rio evitando que ele distraia a fome comendo carne de peixe. Seu corpo de donzela se confunde com a carne de boi, oferecidcs ambos em casamento numa seqiéncia encantatéria, farta de erotismo, conduzida inteiramente pelas duas mulheres. A iniciativa do namoro passa a Nhé Quim. Na construcéo de sua casa, as normas da reciprocidade, ja esbocadas quando Nha Tomasa recolhia sua parte da carne de um capado morto pelo cunhado, manifestam-se por inteiro no mutirao. Atécnica do pau-a-pique @ a mesma dos bandeirantes; tanbém a fogueira propiciatéria e a canca da catira, quando os pés € as maos que ergueram a casa celebram marcialmente 2 posse co terreno conquistado ao ermo, pertencem ao patriménio cultural caipira brasileiro. A casa, embora mais solide e con- fortdvel que a morada inicial de Nhé Quim, nao constitui um bem de raiz, pois, quando Nho Toté condiciona a mao de sua filha a comprovacao de alguma propriedade, Nh6 Quim the da uma ligdo de dignidade sertaneja: nada feito, ele tem apenas avontade e as maos para tra- balhar, nada a ver com mocas palacianas ou cidadés. Estamos diante de um homem livre e pobre que conhece e evita, a distancia, os circulos aristocratices € burgueses. Seguem varias provas, e Nhé Quim deve demonstrar que domina todos os meandros da cultura rastica luso-brasileira, avaliado pela comunidade e por um capelao leigo, em tudo A Wisteria ai a0 cinera identico aos beates de Canudos, do Contestado, do Caldeirdo e de tantos outros santuarios de Fé camponesa que 56 ganiam visibitidade quando marcados pelo escéndalo ou pela tragé- dia.* A cltima pova consiste em roubar a noiva, segundo uma tradi¢o em que todos os inter. ressados sdo cimplices. 0 jevem casal vende algo no mercado de Sao Luis do Paraitinga — uma des “cidades mortas” de Monteiro Lobato — para ter com o que pagar o juiz pela fria ceriménia do casamento civi, e retorna ao bairro rural onde se integra por inteiro como uma nova familia." Nh6 Quim, aparentemente resignado ao descobrir que Nhé Tot6 nao possuia nenhum boi paia carnear na festa do casamento, semeia e colhe a fartura de sua roca, enquanto S4 Carla the dé um casal de gémeos. Um detalhe a reparar, entre tantos: obser vando a queimada, Nhé Quim, de pé, em nada se parece com a figura grotesca do Jeca Tatu de cécoras, um “piotho da terra” pintado com raiva por Monteiro Lobato na carta intitulada “Velha Praga” que publicou ra segdo “Queixas e Reclamacées” do jornal 0 Estado de S. Paulo em setembro de 1914. pds 0 “causo” da colagem miraculosa e engracada do nariz de um vizinho por Nhé Quim, terminaris a histéria de Nhé Quim e Sé Carula, se nao fosse a marvada vontade de comer una carne de boi 0 narrador nos avisa: aqui é que comeca a ruptura, até agora estivemos mergulhados naquele tempo diferente, tempo mitico no qual Nhé Quim e Sé Carula poderiam estar viven- Go até hoje, uma familia camponesa a mais dentro de um esses bolsdes de mundo caipira que existem pelo Brasil adentro. Mas Nhé Quim tem uma fome que 6 maior do que 0 seu mundo. A came de rs é um fetiche que o leva a romper as amarras com a vida inteira construida até aqui. A desmesura do seu desejo o faz jogar tudo o que tem, arriscendo-se a tudo perder sem saber exatamente o que ganhar em caso de bom éxito na aposta com o diabo. Nho Quim é mais um Fausto caipira, e € por nos darmos conta disto que a sua narrativa pode se misturar, em nossa leitu- LM a OPT PME MOP WT AE 3, com os “causos” de Riobaldo Tatarana, heréi-narrador nu > livro Grande sertdo: veredas, de Guimaraes Rosa. Nha Tomasa, especialista em sortilégios, ensina a Nh6 Quim como enganar o deménio 98 Manda care: uma conédia capa épica arrancando-the 0 dinheiro necessario para o grande salto no escuro. Todos os detalhes do encontro com 0 Dito-Cujo trazem a tela um nivel de sircretismo mais complexo, pois aqui as marcas do inaginério afro- brasileiro sdo muito evidentes. 0 Tinheso, que por um momento parece inspirar-se nas forras cuvas da “Moema” de Amoedo, manifesta-se cono 2 Mulher- Diabo com aparéncias de Pomba-Gira. Para aparecer na América, Mefistofeles também teve que se dobrer a outras determinagoes de género, de etnia de classe... A viagem de trem introduz na histéria toda uma outra medida de velocidade na camento. A paisagem rural € substituid pela ebstracao da modernidade. Nho Quim se pre- cipita, ou talvez esteja sendo arrastado, rumo ao mundo desconhecido da cidaie grande. A vertigem mecénica da locomotiva é 0 pincipio de um rito de agregacao ao mundo urbano, no qual o turbilhao de gente andnima — que se olha sem se reconhecer — tem por espelho alucinado as vitrines das lojas e as telas de televisao. 0 cendrio é inteiramente diferente, mas Nhé Quim acaba por se encontrar de novo, sozinao numa encruzilhada dessacralizada, a meia~ noite, enfrentando de novo, e agora sen poder contar com a sabedoria de Nba Tomasa, 0 mesmo Dito-Cujo que retoma o seu dinhsiro maldito A historia poderia terminar aqui, se Marvada came quisesse somar-se ao imenso rol das tragédias brasileiras... Mas NhO Quim @ un her6i épico modero. Ri de sia desgraca, enfrenta 0 pique do fado e nao esmorece Tendo falhado em sua primeira tentativa de saltar de um mundo para 0 outro recor- rendo a violéncia do sagrado, Nh6 Quim termina por acertar 0 passo juntando-se, como quem no quer nada, a um rito urbano de violéncia coletiva. A multidao que saqueia um supermer- cado atualiza formulas esquecidas de velhos cédigos de economia moral que justificam, em casos extremos, a expropriacdo e mesmo a destrui¢io do exorbitante ostentatorio. Dois dis- cretos movimentos de cimera fazendo passar pela tela o piso manchado de conserva de tomate bastam, para bons entendedores, como sugestao de uma bandeira agitaéa ao vento. Nhé Quim se apodera de um raco de carne com a gravidade de quem etira do sacrério uma héstia consagrada e a carrea contra o peito, como um coracao, enquanto corre A Histiia va! 20 cinema pelo asfalto e vai se apoderando da cidade de Sio Paulo. Um corte brusco e ja temos a nossa frente um homem pobre ca periferia assando um churrasco — seria talvez mais um desses tantos homens pobres que ganham a vida assando carne nas esquinas da cidade. Mas Nho Quim, reuninco a familia e os vizinhos num novo mutirao, celebrando mais uma etapa na construcao de sua casa — ou talvez da casa de um vizinho; toda uma rete de solidariedade e reciproci- dade equivalente aquela da roca esta assim recriada no cenario suburbano. 0 filme ganha de repente toda uma outra feicao. Tudo 0 que nos vinha sendo con- tado até aqui aponta agora para um desfecho inesperado; aliés, os bons filmes sao especial- mente bons para nos fazer pensar, sobretudo quando nao exageram no didatismo. 34 nao mais Nh6 Quim, e sim os autores do filme que sugerem, sem nenhuma palavra, pistas para se Tepensar a relacéo entre cidade e periferia, e nao exatamente entre cidade e campo. Dialogando com tantas leituras — geralmente tragicas — do complexo fenémeno éxodo rural/inchaco urbano/favelizacao, presente em tantos filmes brasileiros, Marvada came apos- ta num acento mais otimista. 0 monstro-cidade-grande, em cujas entranhas nés espectadores circulamos como peixes na agua, esta rodeado por, entre outras, gente como Nhd Quim e sua familia, uma gente que costura dia e noite, com lagrimas e isos, festa e trabalho, inocén- cia e malicia, uma imensa e trabalhosa colcha de retalhos, na tentativa de humanizé-lo sua maneira. Enquanto algumas criancas dessa periferia nos observam através da camera, 0 “causo” termina aqui. Nho Quim se despede, quem souber que conte outro. Notas ‘Tratel do tema dos grupes de idade na sociedade caipra nos quato capitulos da secdo “As idades da vida” de minha tese de Douterado em: Historia Social intitubda Folides. Festas em Sao Luts do Faraitinga 12 passagem do sécule: 1688-19;8. (USP, 1987). 0 capitulo relative as festas da infancia j foi publicado: “Festas na primeira idade da vica em Sdo Luis do Paaitinga, 1888-1918". In Menezes, Albene M. F (org.).distéria em movimento — temas e peruntas. Ersiia, ‘Ver meu artico “Uma sastinha caipia. Milagre e ciéncia em Sao Lu‘s do Paraicinga (SP), 1918. In da Pés-Gradaardo em HistOra da Unf, vo. 3, 1, 1395, "Yer uma sirtese das conitos entre lreja € 0 Estade a propésito do csamento cil, em neu artigo “Liberdade, Igualdade, Matriménio: uma sessio do jini em Sio Luis do Paraitinga, 1909” In Textas de Hist, vol. 6, m2, 1996. Rachel Soihet Eteenamente Fagu: impresses de uma historiadora Que razdes motivaram a realizacio de um filme sobre Pagu? E a primeira pergunta que me ocorre. Afinal, durante muito tempo, o conhecimento sobre sua atua¢ao restringiu-se a alguns circulos paulistas. Sua ousadia, suzs atitudes transgressoras quanto aos costumes, assim como seu engajamento politicamente revolucionério, desafiando as regras ultraconser- vadoras das décadas de vinte e trinta com relagdo ao comportamento feminino, concorreram, e muito, para tal invisibilidade. Nesse sentido, trazer a tona 2 figura de Patricia Rehder Galvao, contribuindo para reparar a injusta desatenco com que esta tem sido tratada his- toricamente, por si s6 ja se constitui num ponto positivo para Eternamente Pagu.” Afinal, sao pouquissimas as referéncies com relacdo a esta personagem, uma rebelde da vida e das artes, figura fascinante pela sua trajetéria assinalada pela multiplicidade de interesses, sempre coerertes com sua pratica existencial. Embora marcasse sua vida pelos ideais caros ao fem nismo da década de 1970, em termos de Luta por autonomia, engajamento politico, realiza- Gao profissional, intelectual, afetiva, sexual, Pagu, pseuddnimo da personagem em foco, nao teve a sua imagem devidamente valorizada pelo referido movimento.’ Foi existencialmente uma feminista, apesar de ter criticado enfaticamente aquelas que no seu tempo assim se con- fessavam. Desacreditava de suas lutas, considerando que as reivindicacdes ditas feministas deveriam estar necessariamente vinculadas a transformagao de toda a sociedade. Impregnada pela utopia da época, da qual posteriormente viria a se desiludir, postulava, de forma hoje considerada equivocada, cue 0 materialismo ao solucionar problemas maiores faria com que esse problema desaparecesse por si. ras ‘AWHisécia vai ao cinena Distava, porém, do ideal feminino do momento em que viveu. Irreveréncia, incon- formismo, coragem idealismo marcaram sua trajet6ria. E algumas destas caracteristicas estdo representadas em Etemamente Pagu. Destaca-se, nesse sentido, uma cena em que Patricia, ainda na Escola Normal, é abordade por estudantes de Direito que buscam intimida-la: “A senhorita ndo sabe que mulher de bem ndo fuma na rua nao usa calca comprida? A nao ser que queira ser confundida com mulheres de vida facil.” Tais agressdes nao ficavam, porén, sem uma resposta @ altura: “Filho disso, filho daquilo. Ela dizia mesmo. Nao tinha problema”, esclarece um de seus contemporaneos. Mas voltando a questo inicial, sem divida, a emergéncia do citado feminismo da década de 1970 lutando pela liberacao das mulheres nos diversos ambitos, a revolucao sexual da mesma década, 0 descrédito gradativo do sociatismo real contribuiram para que Patricia Galvao fosse icada das sombras e alcancasse certa visibilidade. Por outro lado, nao hé como descartar o fato de o filme ser dirigido por Norma Bengell. Até que ponto Pagu nao encarnou para ela a sua propria trajetoria? Em varios aspectos, também, Bengell lutou € rompeu com alguns tabus de sua época. De “estrela da noite” dos shows do empresario Carlos Machado, quando foi considerada uma das “certinhas do Lalau”, passou a participar do Cinema Novo.’ Nele, representou um marco ao realizar 0 primeiro nu frontal do cinema brasileiro no filme 0s cofajestes, dirigido por Ruy Guerra. Posteriormente, atuou na Europa com certa projecio nas décadas de 60 e 70. E, voltando 2o Brasil, atreveu-se a assumir a direcao cinematogrifica, tarefa restrita a pougu‘ssimas mulheres. Tais consideracées nao me impedem de observar que o filme n3o consegue fazer jus a toda versatilidade e riqueza de Patricia Galvao — poeta, desenhista, romancista, joalista, militante politica, tradutora, critica literdria e teatral, incentivadora de grupos teatrais de jovens emadores, além de sua consisténcia ideolégica. Nesse particular, con- corde com uma das critices no sentido de que, em muitos momentos, © roteiro transmite a idéia de uma mulher deslumbrada, festiva, que gostava de buscar complicagao. Do mesmo modo como fumava ou usava calgas compridas para chocar a burguesia local, ia lutar pelo proletaria- do. Sem avaliar consegiiéncias e riscos que the custaram a satde e a prépria vida. ¢ Eteramente Pagu: impresses de uma Fistoriadoa Algumas das cenas iriciais da pelicula — Pagu na Escola Normal driblando a profes- sora e deixando a colega copiar sua prova; em seguida, juntanente com a irma Sidéria, pas- sando batom as escondidas e fugindo da escola; em familia, a repreensao pelo pai por estas e outras atitudes, seguida de ameaca de punicio, o que provocou o seguinte desabafi “Tomara que o Cavaleiro da Esperanca venha me buscar no cavalo branco de Napoleao” — buscam expressar sua rebeldia, como o seu entusiasmo romantico com a figura de Luts Carlos Prestes, alias, repetido em outras cenas. Na verdade, esta foma de apresentar o engajamen- to politico de Pagu como resultado de uma paixdo é dos mais tradicionais, pois reproduz a velha teoria de queas mulheres agem movidas, apenas, por este sentimento. No entanto, seus escritos comprovam uma forte personalidade, consciente e coeente, na opcao pela luta revolu- cionéria como nas diversas esferas em que atuou. 0 ponto alto da reconstrucao da saga de Pagu ocorre especialmente, a partir de seu contato com algurs dos modernistas, mais precisamente a ala cissidente do grupo antropofagico, em torno de 1929, quando tinha apenas 18 anos.’ 0 momento, rico em con- tradigdes, caracterizava-se por indmeras transformacées da scciedade brasileira com extrema repercussdo na hegemonia até entao exercida pela burguesia yaulista: Modernismo, presenca do Partido Comunista, crise do capitalismo desencadeada 3 partir da depressio de 1929, anunciando a Revolucao de 1930, sem esquecer o citaco movimento feminista. Os aconteci- mentos estardo intimamente entrelacados a trajetéria da pesonagem e, alguns deles, repre- sentados no filme. Estreita foi a relaao entre Patricia Galvéo e o movimento modernista, cujo espirito contestatério buscou manter até o fim de sua vida. Logo partici- pa das publicagés do movimento, através de desenhos acompathados de textos poéticos. Também elaborou 0 Album de Pagu, ainda em 1925," obra que secaracteriza por mesclar poesia, prosa e legenda, dalogando 0 texto com a ilus- tracio, tingidos talos eles de malicia e sensuali- dade. Revelaria resse particular uma ousadia impar nao encontrada entre outras mulheres-poetas brasitiras, ou mesmo entre muitos a Astra vai ao cinema poetas homens, antes ov depois do Modernismo. Apesar de todas essas qualidades manifestadas por Patricia Galvao como patticipante do movimento, tal aspecto de sua obra merece no filme apenas répicas citacdes, sem maiores comentarios. Nele, o primeiro plano sera ocupado pelo romance entre Oswald de Andrade e Pagu, além de sua rela¢ao com Tarsila do Amaral. A entrada de Pagu no ambiente antropofagico ocorre em meio a uma festa, em que se destacam Oswald, a pintora Tarsila do Amaral, entio sua esposa, Raul Bopp e Waldemar Belisério. £ é representada da maneira mais tradicional, considerando-se a perspectiva do género. Como em qualquer ambiente convencional, Patricia atrai os olhares masculinos, inclu- sive dos lideres dessa corrente, pela sua beleza e mocidade, provocando ditos chistosos e algo machistas, como este que a equipara a algo bom de se “comer”: “Quem é esse petisco de tirar 0 chapéu?” Ao mesmo tempo, Pagu revela sua iniciativa e espirituosidade, apresentando-se como: Patricia Galvéo, ex-futura estrela de Hollywood, ao que responde Oswald, num jogo de palavras — Rainha-Pagé, rebatizado por Raul Bopp de: Pagu.’ Logo Oswald tira-a para dancar, quando os personagens olham-se fixamente todo o tempo, sugerindo um iresistivel fascinio. Apesar de o roteiro ressaltar a independéncia e, mesmo, a ousadia de Pagu, neste momento a mensagem passada é que ela é uma presa facil da seducao de Oswald. Fato perceptivel através do comentario de Bopp para Tarsila: “Eu se fosse vocé rao deixava essa gazela futurista nas maos do bode velho.” Ao iniciar-se nova danga, Pagu e Oswald dispem-se a continuar, quando sao interrompidos por Tarsila, que enlaca Pagu, e as duas poem-se a dancar, elas também se encarando como que hipnotizadas, sugerindo, igualmente, um forte fescinio miituo. Presente, alias, em outras cenas, como a que antecede o recital de declamagdo de Pagu no Teatro Municipal, quando se intensificava seu relacionamento com Oswald. Diz-the Tarsila: Pagu, Pagu. Nao sei o que vocé tem que a gente, queira ou néo queira, fica te querendo bem. 0 Oswaldo poderia ter escrito estes versos. Ele é louco por voc8. Todos nés somos loucos por vocé. Afirmacdo que deixe entrever o tratamento conferido a Pagu, tornada uma espécie de enfant gaté da lideranca antropofagica, pelo seu talento e identificacao com 0 espirito do grupo. Ao que esta responde: “Vocés so as pessoas que mais amo no mundo. (...) E vocé, temanere Pagu: imprssées de uma historia Tarsila, tem me ensinaco coisas lindas.” Referéncia talvez a influéncia que admite derivar de Tarsila nos seus desenhos. Logo em seguida, apressa-a Tarsila: “Vamos embora que estao todos te esperando.” E, numa poposta bem ao estilo do grupo, incentiva-a: “Vamos escan- Pagu havia se inscrite, aconselhe de seu entéo na uilherme, rum de declan: 0 pa “Coco de Pagu” de Raul Bopp, fo em sua home ou éois dos seus poemas mais cusados: “Nascimento de Pacu", um Pedro de Oliveira Ribeiro ltto. Op. cit., p. 271 Pg AE Tk A a a Ta Pa A a Me aT Mara Lobo. Parque industrial. SF. Editora Alternativa, Ltda., 1933. 0 romance busca expressar a eploracdo das mulheres pobres, sua seducio por conquistadores rico, além Ge satiriar o feminismo burgue: antonio Rist gu: Vida-Obra, Obra Vida, Vida", In Augusto de Campos. Op. 12" teve dezresses gravissimas, assim, de passar tempes sem falar com ninguém jeraldo me chanar pra ver se ela falima comigo © nem ccmigo ea fala. ta com Sidéia tricia Galvic. “Terdade e berdade” Idem, p.289. Sobre carater religioo com que indmeros miltaxtes comunis.aselacionavam-se com a estrutuca partidii, ver importante e original trabalho de autoria de Jorge Ferre os di a ¢ tmogindrt pol m 1956). SP, Tee de tarado em Histbia Social. 1996 AUP PD Og a Mg i FO 4 Drumnond de Ardrade io da. Monhd. 16.3.1963. 1 antonio Risério Op. ct.,p. 23 Uroma-se tal attud sintomética se lembrarmes que a prodvcio da memoria, le- mento fundamensal;ara a producio da histéria, @ sempre una forma de poder. E esse poder se expresa na scciedade como tertativa consciente ou inconsciente de imprimir uma imagen sobre o futuro. J. Le Gof. Beflexdes sobre a Histéria. lisboa, Etigdas 70, 6/4, p. Rachel Soihet. “Tioléncia simbélica, Saberes masculinas e femininas”. Yr. Revit: Estudos Fe 1.5 we. 1 RD, IRS/U Te PT TF ores ee De FazOes e Senti piss . 0 Quatrilhe Di, e-000 oo nui * ae 5 bs 2 all Sandra Jatahy Pesavento De raztese sentimentos: 0 quatitho 2 tala Imagens em tom sépia, numa seqiiéncia de velhas fotografias de época, sao sobrepostas por um pequeno taxto, objetivo e simples, que explica a vinda dos imigrantes italianos para o sul do Brasil, tendo por fundo musical a dolente e singele cancao popular “La Mérica”: “Mérica, Mérica, Mérica, cosa sard{a sta Mérica?"” Imagem, texto e misica nos remetem de imediato a um tempo e a um espaco deter- minados. Diante dos olhos do espectador, o filme 0 quatrilho' expde uma ambiéncia, uma temporalidade, um lugar. Do lado do piblico, o pocesso de recepszo, acionado, correlaciona outras imagens, saberes, cruza informagées, resgata flashes de meméria. A sintonia producao- recepsao se instala. ‘As técnicas de filmagem introduzem com esta cena inicial nao $6 o filme, mas preparam ‘© espectador para a metamorfose perceptiva que se opera: vai entrar em cena a ilusdo referencial propiciada pelo cinema. Um outro tempo e lugar se apresentam, num efeito de real que poe o pblico dentro de um clima de epoca. E claro que, dependendo da bagagem cultural dos espectadores, as associagées se fazem em maior ou menor escala, desvendando sentidos e dando oportunidade a inferéncias. Isto, alias, 6 proprio de todo e qualquer ato de leitura, cue ndo é univoca, mas que proporciona, pela recep¢30, uma gama de significados renovados. Entetanto, este referencial cue se da a ver nao deixa margem de dividas quanto a0 contexto no qual a trama vai ocorrer. Este contexto é 0 da imigracao italiane, com os colonos do extremo sul do Brasil numa ambiéncia inconfundivel e que se associa, de imediato, com um armazenamento de dados prévios: gente pobre, trabalhadora, vinda de Longe, habitos simples, familias numerosas etc. etc. A Wistia vai a0 cinema Mas, atencdo! Este no € um documentério, uma reportagem ao vivo ou mesmo um filme historico. Nao que tais modalidades sejam a reprodugao exata do real, pois, como repre- sentagdes de algo, comportam, em graus variados, a presenca da ficcdo na escolha, na mon- tagem das cenas, na organizagao do enredo e na urdidura de sentidos. Os filmes histéricos ou os filmes documentarios sao s6 na aparéncia realistas, pois permanecem representacdes imaginarias que se constroem e se péem no lugar de um referente. 0 filme documentario, como diz Lucien Boia,’ expée uma aparéncia da vida real, mesmo se é feito com a intencao de copiar a vida ou captar a historia. Fruto ele também da imaginagéo criadora, esta capacidade de representar 0 mundo, o filme documentario lida com materiais incontestavelmente verdadeiros, mas os dispde, recorta e revela de uma maneira dada. Mesmo sendo “documentario”, ele comporta a ficcionalidade na sua feitura. Técnicas filmicas, como tomadas de cena, planos, destaque a detalhes e gestos, fornecem indicios, pontos de atracao a vista do espectador e insinuam sentidos. Eles sao, também, montagem e encenacao, 0 que importa uma atividade de construcéo, que orga- niza 0 espetculo de imagens. Ja o filme histérico trabalha com materiais de fundo real — que chamaremos de verdadeiros, porque acontecidos —, mas onde a liberdade ficcional do diretor se da na criagao de dialogos, na montagem de ambiéncias e na escolha dos personagens. Opera-se aqui também o mecanismo da credibilidade. Tal filme deve proporcionar o efeito do real e evitar anacronismos. Refletindo sobre o filme hist6rico, Georges Duby’ coloca esta tare- fa como dificil e cheia de davidas. Ao recriar a ambiéncia de um tempo, o diretor que realiza um filme, mesmo que se suponha assessorado por um historiador, enfrenta questées bem complexas. A ambiéncia se faz com objetos, construcées e lugares que se articulam em paisagem, recompondo um “clima de época’. Mas esta corresponde sempre ao imaginado por nés, homens do presente, que criamos/recriamos 0 passado para nés... Da mesma forma, com relacdo a gestualidade ou a fala dos personagens, ha também construgio, que busca representar o ja representado pelas fontes que nos chegam do passado. Como saber 0 significadas rituais dos gestos ou 2 entonagio da fala? Como saber as reacies dos indivi- duos de uma determinada época a certas situagies do seu cotidiano? Qual seria a reacdo dos mesmos diante de um acontecimento inesperado, que quebrasse a rotina da vida? De razBes e sentimentos: 0 qustitho ne tela Mas nosso filme, 0 quatrilho, nao € nem um documentario, nem um filme historico. Trata-se, no filme, da transposicéo, para o cinema, de uma obra literaria. Estamos, no caso de 0 quatritho, diante da literature e do cinema, dois grandes marcos de ancoragem ou cristal zacao do imaginario social contemporaneo.* Se palavras e imagens so, por natureza, distin- tas, elas permitem analogias. Ambas dao a perceber 0 mundo de uma outra forma e fazem parte desse sistema de representacao social que da sentido a realidade e a que damos 0 nome de imaginario. Literature e cinema nao guardam com o real relaco de verossimilhanca, mas de credibilidade. Nao mantém com o seu referente — o real — relacdo de cépia ou identi- dade reflexa, pois sio uma representacdo sua, representacao esta que se localiza no campo do imaginério. Podemos dizer que os filmes documentario e historico se inserem também nos dominios do imaginario, pois admitem a intervencao ficcional e criadora do autor, que recria 0 real pela montagem e exposi¢do de imagens. Mas tais filmes quardam uma relacdo de proxi- midade, digamos, mais intima, com o “acontecido”: no caso do filme documentario, as tomadas de cenas “20 vivo"; no do filme historico, personagens e fatos “reais” que um dia existiram. Ja em 0 quatritho, temos a literatura como base da trama narrada que sera transpos- ta para o filme. A literatura é narrativa que confere a producao maior liberdade ficcional, que encontra uma forma de expressao diferente da fala do real. Aquilo do que se fala nao precisa ter acontecido. Mas, para o letor, 0 efeito de real cri do pelo texto o faz reportar-se também a um outro tempo e espaco, entiando no dominio do narrado e captando e ressemantizando a coeréncia de sentido proposta pelo autor. Ha mais liberdade ficcional do lado da producao e da recep¢o, sendo uma forma mais “solta” de expressao do imaginario. Nao se quer dizer, contudo, que a obra literéria dispersa a con- textualizacio, historica, social, localizada e datada, No caso de 0 quatriho, o referente ja foi J, introduzido no inicio do filme: 0 contexto da imi- M/-UWAW. war utp ur, gracdo italiana no Sul. A partir dat, o filme se vale de uma obra literaria, ‘AWistria vai ac cinema com o que temos 2s possibilidades de leitura do real potencializadas pelos caminhos da fic¢ao. Onde, entao, entra a histéria? Como narrativa, a hist6ria no é mais hoje identificada com o real que teria existido um dia, mas se afirma como uma representacao deste. Guarda, porém, com respeito a este “acontecido”, uma relacdo de maior proximidade. A historia fiscaliza, policia e estabelece todos os cruzamentos e combinacdes possiveis com os vestigios que o tempo deixou e que ela chama de fontes. Dai, compde a sua versao sobre 0 acontecido e inventa 0 passado, mas a sua imaginacao criadora tem limites, que the sao dados pelo método e pelo recurso as fontes, indispensaveis para a sua busca da maior aproximacao possivel com aquele real aconte- cido, perdido inexoravelmente na finitude de um tempo fisico que se escoou. No caso em analise, combinacio que se estabelece é a seguinte: é 0 historiador que vai interrogar o filme, que, por sua vez, trabalha em cima de um romance que se refere a uma temgoralidade e espacialidade precisa. Literatura e cinema, contudo, dispensam este maior “policiamento” sobre o imaginario que a historia exerce, pois deve manter com o real © maior nivel de aproximacao possivel. Todavia, também o cinema nao pode desrespeitar as injungdes da verossimilhanga, sem 0 que nao se realiza a magia propiciada pela imagem: fornecer ao espectador um “mundo que se parece”, que realiza fortemente o “efeito de real” de forma sedutora e cativante. 0 olhar do historiador, que assiste ao filme que encerra a obra literaria, nao deve buscar no cinema a veracidade do acontecido, mesmo que tal trama e “personagens” pudessem ter existido na zona colonial italiana do Rio Grande do Sul. Nem cabe, no filme em questo, ficar tecendo consideracdes sobre se um “gringo” da coldnia falaria com aquele sotaque que os atores apresentam... 0 olhar do historiador busca no filme, ou, no caso, na literatura que se apresen- ta em imagens, insights e sintonias finas que introduzem ao clima de uma época e que possam, por sua vez, desve- ar outras possibilidades de emergé-la. Mas @ preciso levar em conta que, com 0 quatritho, 0 historiador nao se encontra diante de uma obra produzida no “calor da hora’. José Clemente Pozenato, 0 autor do liv, apesar de notéria ascendéncia italiana, nao é um Balzac, que escreve sobre a sociedade do Faubourg Saint Germain na yf), Aid ulD Ww); Ba uw. De ries ¢ sentiments: 0 quatro ma tela poca mesma em que a freqiientava. € claro que tem intimidade com o tema e que também deve ter sélida leitura sobre a imigracao italiana no Sul, mas “ele nao esteve la”, no tempo de sua narrativa. Ele recupera pela escritura um tempo outro, ficcional, monta o enredo, organiza a trama, atribui os nomes aos personagens, mas trabalha com temporalidades, espacos e atores q que sdo conhecidos na sua tipologia e contexto s 0 discurso se reporta a imagens que tém ressonncia na bagagem imagindria do leitor. E verossimil, pois. A literatura recria o tempo do mundo que transcorreu no passado, reconfigu- rando-o na narrativa que se apresenta ao leitor, para que este o receba e reconstrua por sua vez. Tudo se passa pelos caminhos do imaginério, estabelecendo correspondéncias, coeréncias e sen- tidos. Tratando-se de um filme — tradugao em imagens da obra literéria —, a evidéncia de real 6 maior ainda, As imagens sdo convincentes, so muito fortes, tém o poder do veridico e so capazes de colocar, com vantagem, no lugar do mundo real. As imagens sao, qualitativamente, mais expressivas e marcantes que as palavias. Essa forca visual se revela ainda mais incisiva no lado de recepcao quanto mais aten- tarmos para critérios cuantitativos. Talvez muitos tenham lido a obra de Pozenato, mas muitos mais devem ter visto o filme, e, portant, séo as imagens desta narrativa que vao prevalecer sobre 0 discurso literdrio. Queiramos ou nao, para indiferenca ou desassosseco daqueles que tém no campo da escrita o seu trabalho, vivemos num mundo cada vez mais dominado pela imagem... E de que estas imagens fimicas nos falam? De um tempo, um espaco e de atores sobre 5 quais ja existem estereétipos, narrativas e outras imagens portadoras de significados. Ha, além daquele contexto que ocorreu um dia, uma totalidade compreensiva jé consolidada: a sociedade dos colonos imigrantes italianos, baseada nos valores da familia, do trabalho e da religiao. Aparentemente, esta é a exoectativa para com 0 casamento de Teresa com Joao: o que Deus dis- de 0 homem nao deve separar. Mas, desde 0 inicio, o filme promete que esta regra sera inver- tida, e a metafora do “quatrilho”, jogo no qual os parceiros se trocam, jé anuncia 0 que se seguiré. Entendemos que a narrativa se expressa em contrastes e “tipos contrarios”, e as ima- gens que dao vida a este principio se apresentam, ao longo da trama, em personagens bem caracterizados. Os casais, a rigor, esto trocados, e a vida se encarregard de reuni-los. Teresa é toda sentimento, emocdo e fantasia, que se expressam nos seus othos azvis que sonham e desejam outra vida e outras emogies. Angelo tem os pés na terra, é racional, comedido, pouco expansi- a 1A Histvia vai 20 cinema vo. Pierina @ econdmica, calculista, metédica, séria. Seu rosto € quase impassivel, sorri pouco, tal como Angelo, marido de Teresa. 0 marido de Pierina, Massimo, tem grandes olhos sonhadores, um sorriso doce e chega a afirmar, falando sobre a dedicacao excessiva a labuta didria: “Eu, se pudesse, nao trabalhava.” Neste sentido, o enredo é simples, e 0 fim da trama cumprira o destino ja divisado: os casais se trocam. A delimitagao fisica e gestual dos personagens atores que compdem os tipos é alta- mente expressiva. Sem cair nos dominios da fisiognomonia cabe assinalar que Teresa e Massimo falam com os olhos e agem com o sentimento. Angelo e Pierina calam, mas agem racionalmente. Eles estariam, no caso, mais proximos do tipo padrao imaginado para o colono imigrante: trabalhador, econdmico, metédico, apegado a familia. Sio menos simpéticos, talvez, que o outro casal — Teresa e Massimo — que, numa ousadia inusitada para o meio, rebela-se contra a ordem e 0 cotidiano, numa explosdo de sentimento e sensualidade, “viran- do a mesa”. Puxando no bati ¢a historia as referéncias, 0 historiador pode fazer consideracées sobre o escandalo de uma atitude destas em um contexto tao tradicional quanto o colonial italiano... Mas 0 que a narrativa filmica nos apresenta, com as suas imagens, é a possibili- dade de pensar na contra-ordem do sistema, na ruptura da normalidade e na prépria quebra de um imaginério ja consolidado sobre a imigracio italiana. As imagens so expressivas para expor a distancia entre os opostos. As cenas falam por si proprias, nao precisando de palavras. 0 signo pelo qual se move Teresa é a Agua, que simboliza a mudanca e a leveza de ser. £ dela 0 gesto que busca romper a rotina do cotidiano, convidando o marido a passear para, descalcos, andarem com os pés nus pelo riacho. E é na beira do rio, no dia de Natal, que Teresa se entrega nos biacos de Massimo. 0 signo de Pierina é a terra. Ela é capaz de fazer comentarios surpreendentes, frios e calculistas, mesmo em meio a maior crise, quando 6 abandonada pelo marido que fugira com Teresa. Diante de Angelo, 0 outro abandonado, que destréi a golpes de machado e queima a cémoda que Massimo fizera para Teresa, a pratica Pierina diz: “Devia ter vendido, em vez de botar fogo...” Para Pierina, “homem é homem, mulher é mulher”. Ela defende a propriedade e, neste sentido, encarna 0 apego a terra, tao celebrado entre os imigrantes no Sul, a labutar no seu minifindio. Mas 0 novo casal — Pierina e Angelo — nao esta destinado a permanecer na De rades e sertinertos: 0 qutritho ma tela agricultura por muito tempo. Angelo lida com a terra, trabalha de sol a sol, tem o respeito dos demais e, lentamente, enriquece. Tal como Pierina, ele é raiz, destinada a ciescer e a fru- tificar. Ambos tém tino para os negécios, pois Angelo reproduz a classica atitude do colono que enriquece: opera como uma espécie de banqueiro com 2 poupanca dos demais, aumen- tando o seu capital de giro. € self-made man, jovem e bonito, mas nao tem charme. Ou, pelo menos, nao corre na faixa do sentimento, onde sintonizam Teresa e Massimo. Angelo e Pierina, razao e fio-terra, foram feitos um para o outro. Como diria Pierina a Angelo, apos a venda das terras e a ampliacio dos negdcios, com o armazém que o levard ainda a ser, no futuro, banqueiro: “Nés dois juntos vamos longe!” Ja Massimo é artesdo, trabalha com madeira e constréi méveis. Neste ponto, sua alma de artista, de alguém que cria, que tangencia 0 dom da arte, aproxima-se “natural- mente” de Teresa. Teresa esté ligada acs momentos mais liricos do filme. £ dela que partem as consideracGes sobre 0 amor € 0 casamento, assim como os didlogos que trava com Massimo 80 sensuais e poéticos. Teresa se identifica com o lado estético da vida, e na sua relacio ‘com a natureza é o lado paisagem que 2 atrai. Massimo e Teresa rompem a rada do cotidiano que esmaga. Quando fogem — 0 artista artesdo e a mulher adiltera, que leva consigo a filha ,, 0 filme nao fala de sua trajetoria posterior. S6 vamos encontré-los depois, famitia amplia- a, na troca de fotos que reconstituem os lacos. A sensibilidade de Teresa, neste momento, afina-se com a razao de Pierina, e 0 contato se recupera. Se a sonhadora Teresa afirma que “a vida, as vezes, obriga a escolhas terriveis”, as cenas posadas para as fotos mostram casais maduros, nas poses tradicionais das fotos en familia, com linda e bem vestida descendéncia. Recompés-se a ordem, aparentemente. Todos parecem bem-sucedidos, embora ja se soubesse do enriquecimento de Pierina e Angelo. Mas esta trama, que recomp5e no seu final 2 ordem prevista para o contexto colonial imigrante e se reconcilia com o esteredtipo vigente, expds, no seu desdobrar-se, outras possibilidades, condutas desviantes, intimidades reveladas como flastes. 0 filme nos traz, com @ forca ea evidéncia da imagem, a possibilidade de enxergar © processo vivid por um outro ponto ce vista: o das sensibilidades. Ja sabemos que a nar- Tativa é ficcional e que as imagens implicam montagem de cenério, recrutamento de atores etc. Mas houve, [4 atrés, numa temporalidade perdida, um referente hist6rico sobre o qual se baseou a ficcdo. Este referente foi fixado em visdes que estereotipizam e classificam 0 con- wa A Historia vai 2 cinema texto de forma exemplar. A literatura-cinema de 0 quatrilho nos exibe uma outra “realidade”, ou nos representa um outro possivel: uma trama de existéncia que joga com a paixdo, com 0 teverso da ordem, com a ocorréncia de comportamentos outros. Inverossimil para a época? Nao necessariamente, pois a ficgao cria efeitos plausiveis. Endo se deve deixar de apontar que, corrgida a rota das sensibilidades em jogo, reorganizado 0 casal-razio e 0 casal-sentimento, recompée-se a ordem social, como foi antes apontado. Os natriménios se estabilizam e se reintroduzem na sociedade estabelecida. Podemos voltar a pen- sar — por cue no? — no complexo colonial imigrante tal como o temos consensualmente difun- ido: religiosidade, familia, trabalho. A discussao final podera se dar sobre o fato de o filme ter respeitado (ou nao) a intengao do escritor. Mas literatura e cinema nao portam significados univacos e possibilitam sentidos outros que advém do processo de recepcao. No caso em pauta, foi o olhar do histo- iador que avaliou e julgou, e se o fez, foi a partir do seu campo de interesse, que é 0 da Nova Fistoria Cultural. Esta, como se sabe, preocupa-se com as representacdes, com 0 imagingrio, as sensibilidades. Neste caso, 0 quatritho, enquanto filme e, portanto, matéria ficcional, traduz uma situacdo que “poderia ter acontecido”. Com isto, apresenta-se ao historiador como uma pos- sibilidade de olhar o real a partir de outras questes. Nao que este filme — ou este romance fil- nado — seja fonte para o seu trabalho, mas pode ser inspiragao ou despertar para indagacoes que passam pela ordem das sensibitidaées, dos valores, da moral, dos sentimentos, enfim, que acompanham, pari passu, as l6gicas das tramas racionais da existénci rE Notas 'aseado no romance de José Clemente Fozenato, o filme 0 quatriho. dtigido por Fibio Barreto, teve adaptacio de Antonio Caimon e rotezo de Leopoldo Serran. Teresa e Angele foram interprecados por Patrica Pillar e Alexandze Paternost,e Pierina e Missimo por Gloria Pires e Bruno Campos. A histGria do filme e do romance se passa no Rio Grand: do Sul, entye as décadas de 1910 e 1930. ?toia, Lucian. Pour une histoire de timaginaire, Paris, Belles Lettres, 1998, p. 47. 3dvby, Georges. “Lhistore devant le cinéma’, In: Le Débat,w*.30, maio de 1984 pp. 63-84 ‘ere, Jeanne Marie. Littératue et cinéma, §/\: Nathan, 1993, > ee Sa se Carlota: . caricatura da Ronaldo Vainfas Carlota: caricature da Historia Um filme historico, um romance histérico, uma vez que nao sdo trabalhos de histo- riador, nao estao obrigados, por dever de ofico, 2 ter cuidado na exposicao dos fatos e na interpretacao deles. 0 historiador, por sua ver, nao sendo cineasta nem critico da “sétima arte” nem critico literario, deve ter cautela ma avaliagao de filmes ou livros que tratem de historia. A historia ndo é, na verdade, monopdiio dos historiadores profissionais, e hd mesmo 0S que conseguem — romancistas, cineastas ou cramaturgos — divulgar muito bem a historia, inclusive interpreté-la com sensibilidade, nao senco historiadores de profissao. Tudo isto complica em demasia a tarefa que me foi confiada neste artigo, ou seja, anali- sar Carlota Joaguina, princesa do Brasil, filme de Carla Camurati que j rendeu muita polémica, despertando protestos da propria fanilia imperial, como se sabe. Um filme que, vale dizer, obteve sucesso de pablico € hoje € visto e discutido em salzs de aula das escolas do Brasil. E justamente esta circunstancia, o sucesso de piblico e seu uso para fins didaticos, © que talvez justifique a intromissao do historiador em dominio que nao the é proprio. Afinal, que tipo de historia do Brasil o filme constr6i edivulga para as multidées que o viram e véem, boa parte em idade escolar? Creio que a opiniéo do historiador deve valer alguma coisa, se 2 Pergunta for essa. Muito bem, 0 filme é uma biografia, meio satirizaéa que seja, de Carlota Joaquina, desde seu tempo de menina, na corte espanhola dos Bourbons, até sua morte, anos depois de retornar a Portugal, vinda do Bnsil. 0 filne conta, portanto, as circunstancias de seu casamento com o entdo Infante D. Joao e abrange 0 periodo conturbado da iminente invasao Napolednica, a protecdo inglesa aos portugueses em troca de vantagens politicas e comerciais A istéria vai 2o cinema no Brasil, a transmigracao da corte para o Rio de Janeiro, a administracdo joanina entre 1808 @ 1821, o retomo de D. Joao ao reino, ja como D. Jodo VI, apés a Revolucao do Porto, o limiar da Independéncia. Aborda, também — e este & 0 cenario principal do filme —, o Rio de Janeiro. no tempo joanino, sua vida cotidiana, a rusticidade da capital do Vice-Reino do Brasil, 0 burburinho das rvas, o impacto da sibita corte na cidade. Aborda, enfim, e nisso reside 0 essencial da narrativa, a vida conturbada da princesa D. Carlota Joaquina, depois rainha, suas insatisfacdes, ambigdes, desejos. Dito deste modo, nao restaria divida de que, independente da qualidade estética do filme, seria ele Ctil para se conhecer um pouco da historia do Brasil, divulgé-la, pensé-la. Mas como a histéria € contada? Antes de tudo, conta-se uma historia cheia de erros de todo tipo, deturpagGes, imprecisées, invencées — coisa que se agrava ainda mais por ter a diretora varias vezes reiterado, em entrevistas, que fez pesquisas exaustivas sobre Carlota e seu tempo para embasar 0 roteiro. Seria decerto cansativo e descabido ficar desfiando os erros factuais do filme. Evitarei fazé-lo. Mas me é totalmente impossivel deixar de comentar alguns deles, especialmente para demonstrar que, se houve pesquisa — do que duvido —, foi pesquisa de péssima qualidade endo contou com assessores profissionais, que num filme como esse se fariam necessarios. Nem vou falar das barafundas dindsticas, informacdes truncadas sobre quem era quem nas realezas de Espanha e Portugal no final do século XVIII, assunto que ocuparia muitas paginas do texto, quica tediosas. Mas lastimo a sorte dos professores que se disponham a explicar aos alunos a matéria, pois o filme mais confunde que esclarece ao tratar das dinas- tias dos reis de Braganca e dos Bourbons na época. Gostaria de iniciar mesmo com um exemplo mais sutil, a cena da princesa Carlota ainda menina, as vésperas de partir para Portugal a fim de casar com D. Joao, o Infante. E cena boa de se vet, fundo escuro, trajes colorides e engalanados da alta nobreza hispanica, as perucas 4 moda dos Luises. Mas seré mesmo que na Espanha dos Bourbons se dancava a flamenca? Na corte afrancesada dos Bourbons, que mais imitava Versalhes? Ha vasta bibliografia sobre isso, de como as cortes européias do século XVIII imitavam Versalhes, até mesmo monarquias periféricas de Europa centro-oriental. A Espanha dos Bourbons, et pour cause, imi- tava-a mais que todas. Pior que isso, s6 a cena seguinte, ou uma das seguintes, a partida da princesa em modesta carruagem, acompanhada somente de sua aia Francisca e do condutor, Carlota: caricature da Histéra sem escolta, sem nada, 2 atravessar fronteiras e coutos de homiziados que o filme absurda- mente desco-nhece. Lembro, entre outros casos, do rigor do ambiente historico e antropolog} co da corte dos Valois, reconstituida em A rainha Margot —, esta sim corte rustica e meio medieval, como eram no caso as cortes do século XVI —, e fico a lastimar o descuido do filme em questo no que toca a corte bourbsnica da Espanha no século XVILI. Sem querer ser exaustive, mas com imensa dificuldade de controlar minhas restrigdes ao filme em matéria factual, ha incongruéncias que nao podem passar sem registro. Com base em qué o filme sugere que a transmigra;ao da familia real, em 1808, teria sido motivada pelas canjuragdes, se estas haviam ocorrido no firal do século XVIIL, a dltima delas em 1801, sendo resolvidas pelas autoridedes da Colénia? Com base em qué 0 filme reitera, através do “narrador escocés”, que o Brasit da épocs era rico em pedras preciosas, ouro e dia- antes, se 6 sabio que 0 apogeu da mineracio ocoirera no reinado de D. Jogo V, na primeira metade do século XVIII? Com base em qué diz o narrador do filme que a corte nio quisera ficar na Bahia, preferindo o Rio de Janeiro, se era ¢ Rio a capital do Estado do Brasil desde 1763, e ja goverrado por Vice-Reis? Além disso, ha detalhes histérico-antropolégicos que empobrecem o filme em dema- ia, A rainha 2 cuspir em reunides com ministros de Estado na presenca de lorde Strangford; a meno a “alyuns chineses” entre os que receberam a corte ao lado de “eurpeus, africanos e indios” (palavras do narrador); a “informa¢o” do incansavel narrador de qu: no Brasil se pensou que a touca na cabeca que Carlota usar por causa de piolhos era moda na Eucopa! 0 filme no esta baseado em nenhuma pesquisa séria, a0 cottrario do que reiterou a cineasta, quer Pu, uP a TT — exaustiva no dominio factual, quer na interpretacao do que era o Brasil na época. Parece ter se baseado sobretudo em un livro: Carlota Joaquina, 4 rainha devassa, de Joao Felicio dos Sartos, obra publicada pela Civitizag3o Brasileira em 1968, Trata-se ce um “romance histérico” cujo titulo resume o seu contetido e, sobretudo, © do filme, obsessivamente preocupado en mostrar D. Carlota como fémea insaciavel. Varios aT A sistria vai ao.cnena dislogos do filme sao diretamente inspirados, quando nao copiados, no livro, a exemplo da frase de Carlota, j4 no navio de retorno ao reino, quando diz que do Brasil nao queria guardar nem 0 pé, a poeira dos sapatos — e ato continuo, como no livro de Joao Felicio, lancaria os sapatos ao mar... ‘A bem da verdade, quase 2 isto se resume o filme. As frustracées, desejos e relagbes amorosas de D. Carlota. Nem ao livro de Joao Felicio o filme é fiel, além de ser deliberadamente infiel histéria do Brasil Exemplo maior 6 a barafunda que faz ao contar os amores de D. Carlota com um negro que D. Joao teria nomeado como presidente do Banco do Brasil — como se isto fosse possivel numa época em que ainda vigiam os estatutos de pureza de sangue em Portugal, a0 menos em relagao aos negros. No livro de Joao Felicio, D. Carlota se interessa por dois negros: Jodo Fernandes da Silva, filho natural de Chica da Silva com o contratador do Distrito Diamantino, Jodo Fernandes (vide o filme de Cac Diegues), e pelo escravo Filisbino, 2 quem provo- Fu), ce uP. Pee balangando seu alvo pé, testando para ver se Filisbino ousava pegé-lo, enquanto ela fingia ler e o escravo, como sempre, se mantinha abaixo, sentando ao pé da cadeira da entéo rainha. No filme, 0 negro é D. Feando Carneiro Leao, de fato amante de Carlota, a confiarmos no que escreve Joao Felicio, 0 autor de A rainha devassa. No filme é D. Joio VI quem o nomeia para presidir 0 banco para, por meio disso, afasté-Lo da rainha. No livro, é a rainha quem urde a nomeacao de Cameiro Ledo para quem sabe conseguir os recursos necessarios a tomada de Buenos Aires. Na mesma pagina em que Joao Felicio dos Santos conta as urdiduras de Carlota para nomear D. Fernando Carneiro Leao, [é-se o relato do pé da rainha a provocar os desejos do escravo Filisbino, este sim, negro. Filisbinos, Femandos e Felicios 3 parte, o fato é que o filme nao leva a sério nem a rainha D. Carlota, nem seu engajamento na questao platina. N40 vou aqui recontar a historia verdadeira ou verossimil desses acontecimentos, pois nao vem ao caso falar de Belgrano e Liniers, da resisténcia de varios Cabildos hispano-americanos, sobretudo o Caleta: caicatura de Historie buenairense, a invasdo napolednica da Espanha, e da séria tentativa de entronizar uma Bourbon legitima no trono da América Platina. Mas nado se pode concordar com a reducao de t4o complexo episédio a simples ambicdo “quase sexual” de Carlota, nem entender que foi somente a recusa de D. Joao 0 que motivou o naufrégio da tentativa. 0 Livro de Joao Felicio é fraco na explicacao do episédio. 0 filme ridiculariza 0 episddio E com isso chegamos ao que talvez seja realmente importante comentar sobre © filme, ou seja, sua obsessio em divulgar estereétipos sobre a histéria do Brasil e sobre o Brasil. Hist6ria que, no filme, tem por narrador um escocés, artificio a meu ver dispensavel, que passa a idéia de que a narrativa de nossa historia é coisa exética a ser contada para entreter indoceis e amaveis meninas a beira do mar do Norte. E ja que falo em mar, o filme é um mar de estereétipos. A rainha, sobretudo, s6 pensa em sexo e quando pensa em outra coisa é por sublimacao. 0 leitor que, ao ver o filme, se disponha a consultar o dicionario de Joel Serrao sobre a Historia de Portugal ler, no verbete D. Carlota Joaguina: Filha de Carlos IV da Espanha, nasceu em Aranjuez. Casou com o Infante D. Jodo, filho de D. Maria I e futuro D. Joao VI. Devota até ao fanatismo, reacionéria e intolerante, participou numa conjura para desapossar do governo seu marido, quando este era ainda principe regente. No exilio do Brasil, por ocasido da primeira invasdo francesa, desenvolveu uma actividade febril para reinar nas colénias espankolas da América Latina. No regresso a Lisboa, em 1821, recusou-se a jurar a Constituigéo e voltou-se a orientar contra a revolugdo. Planeou e preparou a Vila-Francada, a Abrilada e 0 golpe de Estado que levou D. Miguel a rei. Morreu em Queluz, sem chegar a ver a derrota do filho e o seu exilio. Nem tanto ao mar, nem tanto 4 terra. Nem a rainha devota de Joel Serrao, quicd da historia oficial portuguesa, nem a rainha devassa de Joao Felicio dos Santos. Se D. Carlota era devassa, muitos o eram, reis e rainhas, em vérias cortes. Alguns reis, como Henrique III de Franca, eram cantados em verso, na rua, com a quadra A Histria va ap cinema Ils sont accouplés deux a deux dune assez dévote maniére. Mais je les trouve vicieux quand ils s‘enfilent par derriére. File des hemaphrodites, assim era conhecida a corte dos mignons de Henrique II de Valois, em plena procissao religiosa, segundo nos diz Maurice Lever, um expert. E se formos falar de Portugal, falemos de uns versos de D. Diogo de Menezes, no Cancioneiro de Garcia de Rezende, sobre uma dama lésbica da corte, “says y no soys dama”, “soys y no soys macto”. Se quiséssemos aprofundar exemplos desse tipo na corte portuguesa de todos os tempos, teriamos sem diivida mais assunto. Mas nao é 0 caso. 0 caso de lembrar o estereétipo do Brasil so preocupado com sexo, e isto por vocacao antes de tudo portuguesa. A lembrar os exageros bem-humorados de Gilberto Freyre, quando escteveu que os portugueses mal chegavam no trépico e tropecavam em carne, no caso 0 corpo sequioso das indias nuas, corpo sequioso por motivacces priapi cas. A lebrar também o Retrato do Brasil de Paulo Prado, este mal-humorado, a erigir a luxdria, titulo do primeiro capitulo, como um dos maiores males da luso-brasilidade. Luxdria, pecado capital e mal brasilico, a um s6 tempo. Ofilme de Carla Camurati é incansavel em divulgar esteredtipos, chegando ao absur- do de, pela boca do narrador scotish, dizer que, ao se interessar por D. Carneiro Ledo, negro no filme, provavelmente branco na histéria, D. Carlota comegava a se interessar pelas vanta- gens da mistura racial. Nem Gilberto Freyre, injustamente acusado de propagar as exceléncias da democracia racial brasileira pela via da sexualidade, ousaria dizer tamanho exagero. Carlota, a luxiria, D. Jodo, a gula — pecados capitais e mortais. O Regente, depois rei de Portugal, aparece em 90% das cenas comendo coxas de galinha ou de frango, glutio, decadente, patético. Regente que “obra” (defeca) a vista da filha, D. Maria Tereza, e depois pede o almoco, num clima “rabelaisiano” totalmente despropositado. Nao é o que de melhor se pode ensinar a criancas em idade escolar. D. Jodo, caricato no filme, foi na historia do Brasil o mentor da Independéncia que manteve unido 0 territério da América Portuguesa, quase um milagre, através da corte que se estabeleces no Rio e do filho D. Pedro, que ficou, com Dia do Fico ou sem ele. D. Pedro, que Carlota: caricature ca Historia no filme aparece com peito & mostra, meio nalandrdo, a reiterar mais estereétipos, culmi- nando com a cena em que o primeiro imperador do Brasil, Perpétuo Defensor, manteve embalsamado, em seu gebinete, o cadaver do filho natural, bebé ainda, que tivera com a prostituta francesa Noemi. Faltaria falar dos jacarés, lagartos, insetos e outros bichos que sempre aparecem, em gravuras exibidas no filme @ nos didlogos sobre o Brasil, a confirmar mais e mais esteredti- os, alguns dos quais herdados do imaginario ocidental sobre o Oriente, que o diga Le Goff e nosso Sérgio Buarque de Holanda. Sem contaro calor, de que se queixem todos os portugue- ses no filme, Carlota e D. Joao a frente, como se o clima de Lisboa no verdo fosse ameno — hoje, ontem, ou no século XIX. Volto a dizer, como de inicio: a hist6ria ndo € monopélio dos historiadores. Tanto é que 0 falecido historiador francés Georges Duby, um dos maiores medievalistas, disse, em entrevista, que 0 nome da rosa, de Umberto Eco, er um dos melhores livros de historia medieval que havia lido. E olhem que o mosteiro de Umberto Eco sequer existiu! E 0 que dizer do primor de Memorial do convento, obra do Nebel de Literatura José Saramago, cujo livro faz ficcdo com personagens histéricos e historia com personagens ficcionais? Nao, a histéria no é monopétio dos historiadores. Mas a Carlota desse filme quase nada guarda do personagem histérico, da rainka préxima dos setores tradicionais da nobreza portuguesa, da princesa bourbénica cogitada para assumir o trono da regio platina insur- gente. A Carlota Joaquina, bem como a prépriahistéria do Brasil retratada no filme, nao passa de caricatura, a meu ver, de mau gosto. Jacqueline Hermann {magens de Canudes Dentre os indimeros eventos que, em 1997, marcaram o centenario da destruigao do arraial de Canudos, provavelmente o mais divulgado pela grande midia foi o filme Guerra de Canudos, dirigido por Sergio Rezende. Epico grandioso, 0 filme sobre a saga sertaneja de Anténio Conselheito e seu impressionante séquito foi, até entao, o filme mais caro do cinema brasileiro, contou com artistas consagrados e conhecidos do grande piblico, teve esmerada producio e até mesmo a "importacao" de técnico em efeitos especiais. Por tudo isso, seu langamento, programado para o dia 3 de outubro, dois dias antes dos cem anos da vitoria das forgas do Exército sobre os sertanejos, foi cercado de grande expectativa. Grande produc3o em tempos de franca retomada do folego do cinema nacional, Guerra de Canucos parecia ser, tam- bém, uma respeitosa honenagem as vitimas daquela que foi a mais impressionante querra fra- tricida que o Brasil ja conheceu. 0 projeto de fazer um filme sobre a guerra de Canudos traz, ja na concepgao, uma saudavel dose de ousadia, pois se propde a tratar de tema delicado e complexo, apesar de ja bastante estudado e discutido, tanto no meio acedémico como fora dele. Falar de Canudos pode nos levar a refletir, dependendo do enfoque escolhido, sobre um periodo importante de nossa histéria, no qual se fundou a Repibtica brasileira; sobre as relacGes entre um Brasil que se quer avancado e aquele que sobrevive merguthado na mais absoluta miséria; sobre as carac- teristicas de nossa formacao social; sobre o carater retigioso do povo brasileiro e até mesmo sobre a construcao de uma identidade nacional da qual somes, ainda hoje, herdeiros. Na verdade, mesmo que para efeitos puramente metodolégicos, e até didaticos, sepa- remos esses aspectos, Canudos encerra e permite aprofundar essas e vérias outras questdes a ‘Hist vai 0 cinema sobie 0 mais fundo e tortuoso percurso das entranhas de nossa historia. Ao expor a crueza das diferencas sociais, econémicas, politicas e culturais que separavam 0 litoral do sertao, o Sul do Norte, 0 "progresso" e o "atraso" de dois paises que nao se conheciam mas falavam a mesma lingua e habitavam um ter- ritério comum, a guerra de Canudos desnudou o pais para si mesmo e obrigou o Brasil "moderno’ a olhar para tras da cortina de desprezo que construira para esquecer as "sobras da inexoravel civilizaco" Ja pela atualidade das questdes acima enunciadas pode-se ter clareza da atualidade de Canudos. Além disso, a historia da formacao de un arraial em uma fazenda abandonada, cravada em uma das mais ridas regides do sertdo buiano e tendo por lider um beato que havia duas décadas vagava pelo Nordeste construindo igrejas e cemitérios, possui ingredientes suficientemente estimu- lantes para que, até hoje, 0 mistério sobre as causas da composicgo daquele grupo manten- ha o desafio de ‘explicar" Canudos. Pois, se as razdes da represséo aos conselheiristas pelo Exército republicano sdo, quase que de forma consensual, atribuidas ao perigo representado pela resisténcia monarquista que tinha nos "homens do Consetheiro" um forte braco armado, as causas do cortejo sertanejo atrés do beato Antdnio Mendes Maciel deram margem a indimeras, e por vezes contraditorias, interpret No calor dos acontecimentos, 0s seguidores do Conselheiro foram considerados fanaticos, irracionais, ignorantes, quase animalescos, por ilustres letrados da época, a exem- plo do médico Raimundo Nina Rodrigues, que explicou "cientificamente” a "loucura epidémi- ca de Canudos" através do contagio de grave moléstia que acometia seu lider. Depois da ‘invasao da Fazenda Belo Monte pelas tropas co Exército, os conselheiristas foram paulatina- mente transformados em vitimas de uma guerra inacreditavel e vazia, pois nem uma Gnica prova foi encontrada sobre as relacdes do Conselheiro com uma arquitetada conspiracao de restauragao da Monarquia. A designacéo negativa e ameacadora de 'fanaticos" foi cedendo lugar a uma viséo mais cordescendente e compreensiva, embora nao necessariamente menos hierarquizante, que fez dos sertanejos de Canudos um espelho de nosso atraso, despreparo e abandono. Dessa reflexdo contrita surgiu a interpretacao que fez do sertanejo um forte, imor- talizada no lancinante Os Sertdes’, de Euctides da Cunha. Imagens de Canudes Mas a essa leitura ainda um tanto passiva do sécuito conselheirista sequir-se-ia uma outra, que retomaria 0 impeto politico outrora atribuide aos sertanejos, dando-the uma Toupagem positivada e mais em dia com as discussdes que acreditavam ser a reforma agraria a saida para o atraso e a superacao das desigualdades sociais do Brasil. A partir das décadas de 1950-60, Canudos foi recuperado pela esquerda brasileira como uma espécie de bandeira da luta pela terra e como simbolo do ancestral embate entre dominantes e dominados que marcou nossa formaca0 historica e social. A essa leitura revolucionaria da saga conselheirista somar-se-iam ainda anaiises que passaram a cruzar politica € religido na busca do "sentido" da formacao do arraial de Belo Monte. Resumidamente, portanto, podem-se apontar pelo menos duas correntes bem mar- cadas na literatura que procurou "explicar" Canudos: "a eucli¢iana’, baseada no classico que Pretendeu desnudar o sertdo brasileiro para a parte "civilizada" do pais, e que predominou até os anos de 1950, € a “progressista", que fez de Canudos um baluarte da luta pela terra e conferiu aos sertanejos do Conselheiro uma consciéncia razodvel do sentido e da grandeza de seus projetos. Mas vale dizer que, se a vertente "euclidiana” deixou de ser hegeménica a par- tir, sobretudo, dos anos 1960-70, ela nunca deixou de estar embutida nas andlises que res- gataram a forca e a bravura sertaneje, apesar da distancia, cronol6gica e analitica, que sepa- Tou esses dois momentos da construcéo da historia de Canudos. 0 poder adquirido por esse cruzamento interpretativo, e que pode ser observado em diversas outras elaboracdes intelec- tuais e populares’, aparece, no entanto, apenas de forma ténue no filme de Sergio Rezende. 0 épico cinematografico opta claramente pela ja antiga versdo "euclidiana” para a guerra ser- taneja, deixando de lado 0 muito que ja se escreveu sobre Canudos depois de Euclides. Ao fazé-lo, por pouco nao reproduz a imagem negativa que Euclides da Cunha construiu para o beato, que, se foi compreensivel para a época, hoje poderia ser bastante discutida. Numa das primeiras cenas do filme, o Conselheiro aparece em sua vida errante pelo sertao, ja seguido por alguns adeptos e ja em desacordo com as autoridades religiosas Politicas do Nordeste, antes mesmo da proclamacao da Repiblica e sem que fique claro por que o beato incomodava as autoridades. Passado esse rapido primeiro momento, o filme entra logo no periodo que antecedeu a formacao do arraial, cruzando as andancas do Conselheiro com a vida da familia sertaneja que sera o fio condutor para a narrativa da guerra. A criacdo desse "personagem" de cinco cabecas - pai, mée e trés filhos - € a melhor expresso de como Pode ser produtiva e rica 2 intervencéo da ficcdo na elaboracao de um produto ficcional. aT ‘stra vai a0 cinema O processo de empebrecimenteda familia de Zé Lucena pretende representar a situacéo de peniiria, desalento e abandono de sertanejo diante da instauracéo de uma nova ordem politico-institucional, totalmente estrnha e incompreensivel aos olhos de pobres miseraveis que acreditam vir a Repiblica thes tiar 0 pouco que sempre tiveram. Seguir 0 Conselheiro aparece, entéo, como uma das poucasalternativas para um crescente nlimero de deserdados do Império. A fascinacao que 0 Conselieiro exerce sobre Zé Lucena é imediata e acaba gerando uma divisio familiar que leva a filha mais velha a vagar pelo sertao a procura de um salvador menos assustador do que lhe pareceuo beato. 0 Bom Jesus Conselheiro tem um ar grave e severo, sua presenca ¢ altiva, quase arogante, e seu discurso conclama os ouvintes a segui- lo. Diz-se apéstolo de Deus e escolhide para uma missao salvadora. Faz proselitismo de seus poderes e de seu papel de intermediari entre o Pai e os homens. Profetiza a perseguicdo dos Poderasos pelos justos que seguirem Bom Jesus. 0 cardter guerreiro e messianico das pre- gacées do Conselheiro da margem a, péo menos, duas interpretacdes: ou faz crer que Canudos sempre esteve comprometifo com uma luta politica contra uma opressao generalizada dos ricos contra 9s pobres, o que afastari o filme da base euclidiana que o sustenta, ou pode ajudar a reforcar 0 aspecto de puro faratismo que durante tanto tempo caracterizou, negati- vamente, 0 séquito conselheirista. De todo modo, em qualquer dessas duas hipOteses, o filme acaba aumentando a dis- tancia que ainda nos separa da forma como aquele grupo entendeu o mundo que o cercava, reforcando estereétipos que foram cosstruidas em momentos especificos da construgao da propria historia de Canudos. Pois, se 2 verso euclidiana foi composta em meio ao turbilhao que fez de Canudos uma questao de Estaco, fortemente baseada na conviccio de que se tratava de uma conspiracdo monarquica, qui¢a com patrocinio internacional, a interpretacao "progressista" fez dos sertanejos de Canudos um grupode sem-terra avont la lettre. Politicamente corretos cem anos antes, os sertanejos de Belo Monte eram estranhamente guiados por um profeta que acre- ditava na consumacao de un paraiso tereal a beira de um rio seco chamado Vaza-Barris. Mesmo que nao entremos em discusses sobre "a verdadeira” historia e a compreen- sivel e saudavel liberdade ficcional deuma obra ndo-académica, nao @ possivel desprezar 0 conjunto um tanto contraditério de asjectos da personatidade do Conselheiro retratada pelo filme, Profetiza os "quatro fogos", refrrindo-se as quatro expedicées, prediz mas nao pode mudar o futuro, e jamais € questionado por isso. 0 Conselheiro tem, ainda, importante atuacao JWeagens de Camus como estrategista militar, 0 que ficaria patente na escolha da fazenda abandonada para a instalagao da resisténcia 4s forcas da Reptiblica, embora no calor da guerra jamais seja con- sultado. Sua visio estratégica aparece ainda quando estimula a vinda do comércio para o arraial, prevendo os maus ven- tos que virdo, Mas, apesar dessa lideranca jnicial, 0 Conse- theiro assume, no desenrolar da guerra, seu papel pura~ mente espiritual e mesmo um tanto isolado da peleja que © teria como centro e, agora sim, mais de acordo com a historiografia ja disponivel sobre o assunto. ‘A presenca do comércio em Canudos, matéria longamente debatida pela historiografia e que ha muito derrubou a interpretacao que tomava o arraial como j = exemplo de "comunismo primitivo", 6, infelizmente, -WqUwM, Bury, : Pouco explorada no filme. Afinal, se sé havia despossuidos a seguir o WIT, Conselheiro, a excecao do comerciante Vilanova, se a regido era érida e o sertio passara por uma de suas mais terriveis secas, como explicar a circulagdo de moeda no anial? Por que alguns comerciantes, € Vilanova nao foi o Unico, teriam interesse em se instalar na fazenda abandonada? 0 fato de ndo abordar as relacées pessoais e comerciais entre os habitantes de Canudos com os municipios vizinhos nos deixa sem compreender como o reduto se sustentou durante pelo menos os trés anos (1893-1896) que antecederam o primeiro embate armado, e a partir de que momento as relagdes entre os canudenses e as regiées vizinhas comecaram a se tornar tensas e hostis, inclusive com a Igreja. Observagdes semelhantes podem ser feitas sobre, pelo menos, dois outros momentos importantes do filme de Sergio Rezerde. 0 primeiro deles diz respeito a forma provavelmente inverossimil como 0 afamado comandante da terceira expedicdo € retratado. 0 célebre coro- nel Moreira César notabilizou-se como um truculento expoente do Exército brasileiro, depois de, em 1893, desbaratar os federalistas no sul do Brasil, sendo chamado pela alcunha de "Corta-Cabecas". Depois de duas inexplicéveis derrotas diante dos conselheiristas, a indicagao de Moreira César era a certeza de que o problema de Canudos seria "resolvido" sem mais delon- gas e humithagées para as tropas legais. 0 coronel que vemos no filme é uma figura fragile fragilizada, despreparada para 2 importante tarefa que recebeu, e cuja imagem apoia-se tio- was somente na descricéo desabonadora feita por Euclides da Cunha. O autor de Os Sertdes procurou explicar 0 fracasso da expedigao liderada por Moreira César, que foi morto no sertao pelos conselheiristas, pelos "defeitos” fisicos que 0 faziam "organicamente inapto para a carreira que abracara", interpre- ta¢do que contrariava 2 nada desprezivel folha de servicos prestados a0 Exército até aquele momento. A critica a atuacao militar no poderia faltar, mas talvez fosse mais contundente se usasse nao 0 sarcasmo e sim a pura verdade: Canudos jamais pds em risco a estabilidade da Repiblica. Mas se na construgdo de alguns personagens historicos o filme cometeu alguns deslizes, na criacéo ficcional a op¢do foi bastante feliz. Ao desfiar a narrativa a partir da desavenca da familia de Zé Lucena, o filme conseguiu problematizar a questao da fé no Conselheiro, exnor conseqiién- cias duras ainda pouco conhecidas sobre o destino de mulheres e criancas que sobreviveram ao massacre, apresentar a ténue linha que separa moti- vacGes pessoais de ideais politicamente estruturados. Quando Luisa, a filha desgarrada da familia Lucena, destila seu ddio pelo Conselheito, o tenente carioca que a escuta acredita estar diante de "uma verdadeira republicana”. Luisa, como provavelmente todos os conselheiristas, nao sabia o que era a Reptiblica. Para os habitantes de Belo Monte era a "mundica", couptela de imundicie, que queria o fim da religido e da ordem divina do mundo. Para a filha perdida dos Lucena s6 a Repiblica podia salvar sua familia das garras do Conselheiro. Discursos truncados, sentidos diversos para os dois lados do combate. Em outro bom momento, a mae que perde a filha "na vida" e o filho na guerra ques- tiona o poder do Conselheiro e expressa uma outra face da luta dos canudenses. Diz que Deus nunca the tirou nada, que nao acredita em milagre, e luta contra a Repiblica porque acredi- ta ser ela a fonte de sua miséria, Seu apego a vida e & casa de taipa que lhe restou vao trans- formando essa mulher em mais uma feroz combatente da "mundica", amaldigoada até na hora em que é degolada pelos homens do Exército, o que era raro no caso de mulheres e criancas. Na elaboracao dessa personagem o filme assimila claramente a ambigilidade de Os Sertoes. Se 0 sertanejo pode ser, apesar da nefasta mesticagem que the deu origem, um forte, a mulher do sertdo mereceu poucas mas péssimas palavras de Euclides da Cunha. Ela reunia Imagens de Canudos todos os defeitos recriminados no sexo feminino: vivia em desalinho, nao cuidava dos filhos, muitas andavam na "gandaice", e mesmo as beatas foram descritas como mulheres horripilantes, protétipos de bruxas medievais. A mae da familia Lucena encarma uma das poucas mulheres descritas por Euclides: "[...] mulher desenvolta, enérgica, irritadica [...] gesticulacao incor- reta, desabrida e livre [...]. Nao merecia o bem-querer dos triunfadores. Ao sair da barraca, um alferes e algumas pracas seguraram-na. Aquela mulher, aquele deménio de anaguas, aque- la bruxa agourentando a vitoria préxima - foi degolada."* A reproducdo seca da cena nos leva a entender que essa foi a imagem que também o filme adotou para as sertanejas que viveram em Canudos. Zé Lucena representa aquele crente mais puro, e com dois outros sertanejos e uma crianca protagoniza aquela famosa cena descrita por Euclides: "Canudos ndo se rendeu. Exemplo Gnico em toda a histéria, resistiu até ao esgotamento completo."* Sua rapida e definitiva "conversao" ao Conselheiro se da logo no primeiro contato, e nos didlogos que manteve com Luisa se desvela o aprofundamento da crenca no beato e a transformacao do simples criador de animais em soldado convicto do Bom Jesus. Esse foi, provavelmente, o caminho seguido por muitos que acabaram esmagados pelas tropas do Exército brasileiro. Por tudo isso, e por ter trazido de volta 4 discussdo um tema que, ainda hoje, é fre- qiientemente tratado com paixao e comprometimento politico, por tudo que nos leva a refle- tir sobre o Brasil, a produco de Guerra de Canudos deve ser saudada como um marco impor- tante sobre os cem anos do exterminio do arraial conselheirista. Mas, apesar de o diretor Sergio Rezende ter declarado "pata mim aquilo tudo ainda é um mistério", ele opta clara- mente por uma versao consagrada - a euclidiana - para contar "a historia de Canudos". Texto publicado no inicio do século XX, guarda, naturalmente, a marca de seu tempo, e é capaz de inspirar, pela riqueza das cenas descritas, uma narrativa cinematografica extrema mente rica e densa. Assim sendo, Guerra de Canudos, 0 filme, ancora-se no niicleo dramati- co de 0s Sertées, documento imprescindivel para que se compreendam algumas das princi- pais discussdes intelectuais daqueles tempos, mas que certamente nao esgota o que acon- teceu em Canudos, pois encerra tao somente uma das interpretagdes possiveis. Nenhum problema haveria, portanto, em dar ao filme o nome do classico de Euctides da Cunha, home- nagem tanto ao autor como a obra que até hoje, como se pode ver, tem cumprido o impor- tantissimo papel de manter viva a saga conselheirista, dentro e fora do Brasil - na ‘A Wistéra vai a0 cinema Alemanha, por exemplo, a traducéo de Os Sertées na década de 1990 obteve um imenso sucesso de pdblico e critica Mas no ha diivida de que se trata de bom cinema, produgo que contou com avanca- da tecnologia embora tenha repetido as falhas de sempre: roupas muito limpas e passadas, uma familia muito pouco convincerte no papel de sertanejos famintos e miseraveis, Antonio Conselheiro sempre com sua tdnica limpa e jamais nos fazendo lembrar que se tratava de um homem curtido pelo sol e magrissimo, que mal se alimentava havia mais de duas décadas. De todo modo, deve-se louvar e estimular a producéo de filmes histéricos no Brasil. Em pafs tao carente de conhecimento ¢ respeito ao seu passado, reconstruir as imagens de nossa historia e trazer de volta a discussio respeitosa de idéias e versdes, de que tanto carecemos nos dias que correm. fac Notas a 246 'A Gltima versio deste atigo se bereficiou das citicasfeitas pelo dietor do filme, a quem agraieco as observagées, ‘A primeita edicio de Os Sertées foi pubicada no Rie de Janeiro, pela Laemert & Cia., em 1902, "Um exemplo importante de cruzamente dessas duas matrizes expliativas de Canucos pode ser observado no samba de enredo a Escola de Samba im Cina da Hor, de 1976, e que. apesar de se chamar Os Sertes, mistura » sertanejo forte com o proje to de superagdo da omressio dos latfundiaries. “Op. cit, cf. 2° edicao do Circule do Livio, S40 Paulo, 1975, p. $43. ‘0p. cit, cf. 2* edicao do Circule do Livin, Sdo Paulo, 1975, p. 476 Elias Thome Saliba Histria © mobilidade em Certral do Brasil Aos primeiros repérteres enviados para a coberture de um evento, fazia-se uma recomendacao tipica: “Nao se limite a filmar o politico ou o protagonista principal do evento, tente captar 0 clima.” 0 fotégrafo que foi cobrir o discurso de final da campanha de Robert Kennedy, em junho de 1968, seguiu tao fielmente a recomendacao que acabou Perdendo a parte mais inesperada do acontecimento: 0 assassinato de Bob Kennedy — que um colega seu, um fotégrafo bem mais esperto, captou, conseguindo fotografar o momen- to do assassinato. Ou melhor, conseguindo fotografar um cadaver. Chinolope teve mais sorte. “Chinolope vendia jorais e engraxava sapatos em Havana. Para deixar de ser pobre, foi-se embora para Nova York. La alguém the deu de pre- sente uma maquina fotogréfica. Chinolope nunca tinha sequrado uma cémera nas maos, mas disseram a ele que era facil: Voce otha par aqui e aperta ali’ E ele comegou a perambu- lar pelas ruas que mal conhecia. Tinha andad» pouco quando escutou tiros, se meteu numa barbearia e levantou a camera e olhou por aqui e apertou ali. Na barbearia tinham balea- do 0 gangster Joe Anastasia, que estava fazendo a barba, e aquela foi a primeira foto da vida profissional de Chinolope. Pagaram uma fortuna por ela. A foto era uma facanha. Chinolope tinha conseguido fotografar a morte. A morte estava ali: ndo no morto, nem no matador. A morte estava na cara do barbeiro que a viu.” As duas narrativas mostram,' entre outras coisas importantes, que a fotografia nao tem 0 poder do cinema, s6 pode captar o imediato, ndo pode representar mais que a teacdo tresloucada do rosto humano diante caquele momento Gnico por exceléncia, que é a morte. Para fotografar, é preciso “colocar na mesma mira a mente, o olho e 0 coracdo”, 2a A Historia vel ae cinema ja definiu um talentoso fotigrafo.* Mas tanto 2 imagem produzida pelo atento fotégrafo de Bob Kennedy como pela ingenuidade automética do incrivel Chinolope puderam repre- sentar apenas um moribundo ou um cadaver, jamais a passagem inapreensivel da vida a morte. Ao longo deste século, que chege ao seu final, o cinema transformou na sua prin- cipal vocagdo aquilo que a fotografia nunca conseguiu captar: as imagens em movimento, a animacao das cenas, o trénsito das luzes, o ritmo incessante das mudancas de planos. Originalmente fotografia animada que proporcionava a iluso do movimento, o cinema fez com que, pela primeira vez, a imagem das coisas fosse a imagem da propria duracao delas. “0 cinema é de tal forma ligado a0 movimento que o detecta por toda parte, revelando a mobilidade universal”, escreveu Epstein. “Na sua afinidade essencial com o movimento e @ sinuosidade, o cinema sente uma repugnancia instintiva por tudo que é estatico, geométrico, razao raciocinante”, diagnosticou Henri Agel.” Com os iniimeros recursos que permitiram captar revers6es de movimentos, gestos € expressées mutantes, a mobilidade sempre foi uma caracteristica intrinseca do cinema. Registro e reproducao do movimento, segundo seus pais fundadores. Desdobramento do comportamento humano que nao admite equilibrio na auséncia de movimento, segundo abordagens psicolégicas. Uma continuidade entre intimeras rupturas, segundo definigdes, mais modernas. Mobilidade dos tempos em funcdo do espectador, sempre imével na poltrona, embora criativo e participante, segundo as teorias da recepcéo mais recentes. Dai a intima e fecunda proximidade do cinema com a temporalidade e a historia. 0 problema para o historiador e para seu procedimento de anilise € saber: qual histéria? Nao @ necessario repertoriar teorias ou declaragGes liricas acumuladas a respeito desta invengdo centenaria para perceber que em Central do Brasil a mobitidade transcende © aspecto puramente técnico da linguagem para unir, com densidade narrativa e foco dramatico, tanto a forma como o conteiido. Mesmo nas primeiras cenas do filme, onde o cendrio de fundo aparente é a estacao de trens, tudo converge para a mobilidade: as insta- laces dos vendedores ambulantes, barracas facilmente desmontaveis assim como a mesinha de Dora, a escrevedora de cartas. Assistimos Dora cruzar um labirinto de biroscas na impo- nente Estacéo Central do Brasil, no Rio de Janeiro, que o roteiro original descreve com “um verdadeiro circo improvisado” — talvez porque facilmente montado e desmontado todos os dias.‘ 0 foco real das primeiras seqiiéncias do filme néo é uma pessoa mas uma Histérie e mobilidade em Cental do Brasi estagao de trens, um centro ce transporte e de transito cotidiano e constante de milhares de criaturas. Todas as cenas posteriores também engendram a mobilidade — e isto nao apenas Porque o roteiro se enquadra naquilo a que Hollywood batizou de road movie — pois Dora @ Josué estéo sempre em transito, parece que nunca dormem duas noites seguidas num mesmo teto ou num mesmo luger. 0 motorista César, perguntado pelo menino a respeito de sua residéncia, mostra o interior da cabine do caminhao e responde: “Eu moro aqui.” Ele mesmo é de Vitoria da Conquista, mas isto pouco significa: “Desde que eu té na estra- da, parece que eu jé troquei de vida umas dez vezes. S6 é ruim que é tanta gente que vocé conhece e depois vocé nunca mais vé.” Os enderecos daqueles que enviam cartas sio sempre incertos: “Sitio Volta da Pedra, Bom Jesus do Norte, PE"; “terceira casa depois da padaria, Mimoso, PE”. As estradas sao cheias de retirantes, acompanhados de suas carrocas e animais e, em Bom Jesus do Norte, os caminhdes de romeiros criam e recriam uma outra cidade ndmade, como uma grande feira mével. Acrescente-se a tudo isto que Central do Brasil foi filmado em Super 35mm, © que resultou numa espécie de Cinemascope,’ com tela ampliada, que permitiu nao apenas maior nimero de elementos dentro do quadro, induzindo o olhar do especta- dor a uma mobilidade maior para abarcar 0 conjunto, mas também a um desdobramento ampliado da propria ilusao filmica do movimento. Multiddes de passageiros de trem, de Tomeiros em peregrinacao e de veiculos correndo enchem a tela larga do cinema. Mas a estrutura da narrativa, com planos longos, de mais de dois minutos, tam- bém resultou numa acentuagao do movimento. A semelhanca do neo-realismo, a narrati- va de Central do Brasil procura respeitar, ao maximo, a verdadeira dura¢do dos eventos. Mais do que um artificio de montagem, as elipses sdo auténticas lacunas da realidade, ou, pelo menos, das formas pelas quais representamos esta realidade. Todas estas cenas parecem novas quando integradas na nartativa do filme. Mas, quando pensadas historicamente, parecem velhas, repetitivas, reencarnacao de imagens seculares, acumuladas de cenas que a cinematografia brasileira nos legou, pelo menos nos seus melhores momentos. Parece que vemos o passado ressurgir sob forma das imagens em movimento. Dora e Josué partem para sua via crucis num pats que thes afigura imenso, reve- lado em panoramicas que mostram a exigiidade da presenca humana, e no qual todo deslo- aT | Historia va no cinema camento espacial é um deslocamento temporal: parece que séculos de historia desfilam diante dos 6nibus empoeirados e se depositam em camadas, misturando-se num arcaismo de ritmo indecifravel. Cenas que afirmam e reafirmam as caracteristicas instéveis da sociedade brasileira, revelando o descompasso de uma histéria que, 2o longo dos séculos, separa, isola e exclui populacdes inteiras, jogando com uma nassa de deslocados, em eter- na peregrinacao teldrica, produzidas nas sucessivas ondas de crises, modelos, ciclos, Periodos, estagios, fases, modos de producdo, recessdes, planos econdmicos — ou coisa que o valha. Uma gente que parece eterna na sua mobilidade — espécie de exército de reserva, que ressurge sempre — mas sempre inutilmente, pois permanece & margem do cir- cuito produtivo Essa caracteristica errante das populacdes brasileias, assinalada desde sempre pela historiografia brasileira ce todos os tempos, de Capistrano de Abreu a Sérgio Buarque de Holanda, constituia, na maioria dos casos, umaestratégia, recurso de sobre- vivéncia ou expediente de fuga dos brasileiros pobres de todas as épocas € regides, diante dos obstacules impostes pelo latifandio, pela seca ou por outras intempéries, pele escravidao ou pela precariedade do mercado interno. Dai os elementos tio caacteristicos que se consoli- daram num vocabulario peculiar e proprio para expressar tal instabilidade, numa mistura inex- trincavel: estradis moveis, veredas de pé posto, caminhos reais, rogas volantes, rocas de terra nova, varzeas sazonais, criacdes de fron- teira, chocas de palha e barro, pardieiros, ajuntamentos favelados e acampamentos de sem-terra. Também ai os brasileiros receberam designacdes que, nas suas particularidades regionais, referiam-se nao apenas as misturas étnicas, mas aos deslocamentos constantes, a errancia e as formas de ajustamentos peculiares a diferentes paisagens naturais: caipiras, caboclos, sertanejos, mamelucos, moncoeiros, caiporas, cafwzos, catrumanos, caucheiros, tabaréus, emboabas, curibocas, mumbavas, paroaras etc. A mobilidade, a migracio e a mudanga eram meios de escapar algumas vezes das secas ou des contingéncias da dominacao cade em Central do Brasi patriarcal; outras vezes, dos alistamentos forcados, das guerras locais e sempre, quase sempre, da miséria mais profunda. Habitos de errincia que se conservaram ao longo dos séculos, imprimindo marcas indeléveis na provisoriedade dos meios de vida, na parciménia de bens, na auséncia de diregéo permanente, no estiolamento dos projetos de futuro.* Ea esta histéria que Central do Brasil faz alus0? Netaforizando 0 transito constante de parte significative da sociedade brasileira, 0 que vai aproximando afetivamente Dora e Josué — foco dramatico central do filne — € 0 deslocamento, uma viagem em direcao a autenticidade. A mobilidade rasga o véu do isolamento, da incomunicabilidade entre os dois, ‘© movimento descerra 0 universo da exstincia do outra, que 0 desenraizado descobre nos sucessivos percalgos da viagem. Parece que so a mobilidade que lhes ensina algum senso de pertencimento ou de identidade. A sina de Dora e Josué mostra que 0 desenraizado brasileiro é, no fundo, um migrante virtual, um exilado dentro de seu proprio pais. Mas quem 6 esse desenraizado de agora? Qual o cendtio social do desenraizamento de agora? Embora o cendrio nao deixe diividas a respeito do momento no quai se passa a histéria, os desenraiza- dos ce Central do Brasil parecem-se mais con os desenraizados de todos os tempos e de todas as regides do pais, pois a condicao historica dos desenraizados brasileiros @ transposta, no filme, para uma mera condicao existencial. Deixe-me ir preciso andar vou por ai a procurar rir pra néo chorar. Se alguém por mim perguntar diga que eu s6 vou voltar quando eu me encontrar. A errancia social e coletiva se diui na peregrinagao individual que é elevada a simbolo, a mobilidade pode conduzir a uma tomada de consciéncia, mas que é puramente existencial, destituida de qualquer sociabilidade — o que acaba ganhando sentido até no trecho citado acima, de “Preciso me encontrar”, o samba de Candeia interpretado por Cartola, que, incidentalmente, encerra 0 filme. i It ‘A Histva vai zo cinema ‘A imposicao da concepcio neoliberal de globalizacao produziu uma peculiaridade brasileira, deu uma certa cor local ao arcaismo dos desenraizados, excluindo-os do circuito Produtivo, transformando-os en migrantes nao apenas de territérios, mas dos direitos humanos basicos: trabalho, saiide, ecucacao, moradia. A globaliza¢ao seletiva empurrou- os mais ainda para onde sempre estiveram, na linha limite da sobrevivéncia. Mas as condigdes hist6ricas sdo outras, a ocupacao dos territérios do interior do pais ganhou um sentido diverso. Para os pobres, € 0 movimento de fuga das areas que as grandes empre- sas vém ocupando progressivamente, em nome da ampliecdo do territério do lucro ou como instrumentos de obtencio de subsidios e incentivos piiblicos. Surgiram ondas de expansao de fronteiras, nascidas de ocasionais fluxos especulativos, que acabaram deixan- do os rastros tipicos de uma reproducdo de capital superficial e predatéria, criando cendrios de cidades mortas, despovoamento, pasto estéril ou refluxo para a economia mer- cantil simples, sustentada na economia de subsisténcia.’ Nao ha nada no filme, artificio narrativo, suscetibilidade de personagem ou de seqli€ncia que sugira ou aponte, ainda que sutilmente, para este cendrio agnico e perverso. 0 drama de Josué, o 6rfao, vira um drama de qualquer lugar, cheio de universalismo vazio. Central do Brasil fala dos excluidos e desenraizados, mas nao faz nenhuma menco aos gestos de poder que os excluiram. Dai uma persistente ambigiiidade que est no nticleo do filme: este arcaismo estetizado pelo movimento, que omite as condigées reais, corendo o risco de passar ao largo das singu- laridades temporais, diluindo-as nas generalidades dramaticas, escamoteando os proces- sos sociais, achatando a historia. Também a educagao ou a cultura parecem nao ter mais lugar nesse universo de desenraizados. A pergunta do menino, “Como eles contam um quilémetro?”, a professora Dora — desta feita definitivamente aposentada — responde: “Eles inventam...” Nao ha Preocupacao em ensinar algo, mesmo fore da escola: € 0 mundo coisificado do dinheiro e da sobrevivéncia onde parece nao existir escolas e nem referéncia a elas. 0 futuro do meni- no também é vocacionado 4 mobilidade, também sonha ser um motorista de caminhao. A viagem de Dora e Josué nao é marcada por nenhuma seqiiéncia na qual a tomada de conscién- cia que conduz ao entendimento do mundo poderia vir da educa¢ao ou da cultura. Elas nao servem mais sequer como panacéia para alimentar o reformismo daquele discurso politico que quer se livrar rapido das responsabilidades de transformar a sociedade. Histiria e mobitdade em Central do Brasil “Voce conhece trava-lingua?”, pergunta Isaias a0 menino Josué, e propée: “La atrés de minha casa tem um pé de umbu botdo, umbu verde, umbu maduro, umbu seco e umbu secando. Repita!” é talvez a Gnica seqiiéncia em que vemos uma rapida alusao lid aa algum tipo de aprendizagem. Ainda assim, refere-se a uma cultura nao letrada, trans- mitida pelo arcaismo da heranca oral, revelando que o desenraizado também é um desen- raizado da palavra. Pode-se observar uma ligacdo ténue e difusa entre o ritmo das falas dos missivistas, transcrites em cartas por Dora, os trava-linguas propostos por Isafas ¢ as litanias e ladainhas ouvidas no caminhao de romeiros ou entoadas pela multidao com velas acesas. A procura de Josué, Dora mergulha nao apenas naquele fluxo hipnotico da multidao, mas no ritmo recorrente e repetitivo das rezas ¢ ladainhas. Prefigurando a ver- tigem de Dora na sala dos milagres, a cdmera gira mostrando milhares de rostos em fotos Pequenas, bonecas de pano, brinquedos, fitinhas, mechas de cabelo, relégios e caixas de remédios, como uma gigantesca colcha de retalhos. A recorréncia do som ecoa e repercute num fundo encantat6rio, vertiginoso, cujo significado esta além das palavras, provocan- do 0 desmaio de Dora. Aqui certamente, 3 maneira de uma citacdo metaférica, alude-se 3 existéncia de uma cultura popular ou a uma “esfera piiblica plebéia", informal, difusa- mente expressa por meio de comunicacées orais e visuais, mais do que escritas. E nesta chave tematica que Central do Brasil ganha forca e amplitude, talvez porque jogue com os efeitos da transposi¢ao do mundo oral narrado para o mundo escrito. Afinal, 0 que move a historia de Dora, a escrevedora, e Josué, 0 menino per- gram dido, 6 a necessidade que toda aquela gente =a uD UIT. ear Toul desenraizada — os “figurantes mudos da historia brasileira’, na expresséo de Sérgio Buarque de Holanda — tem de ser ouvida. Mais do que a narrativa habil e o roteiro enxuto, © que mais atrai no filme talvez seja a fala daqueles que querem enviar as cartas, 6 a fala dos figurantes mudos de histéria brasileira, silenciados pela narrativa monumental dos Grandes fatos da historia. Seus fragmentos de cartas nos emocionam e nos atraem pela a A Historia vai ao cinema simplicidade, pelo tom simplorio, pela autenticidade, mas sobretudo pela pouqutssima amargura que transmitem e pelo quase nenhum ressentimento, pois suas derrotas nao thes serviram para ensinar algo ruim. Nosso enternecimento ao vé-los chega muito perto de um clima de adesao total: s6 na escrita eles parecem sair do seu mutismo, da sua resignacao e do seu siléncio e reencontrar sua humanidade. Dora é uma espécie de mediadora daque- les viventes sem projegdes, sem nenhum norte, sem nenhum foco organizador, com um centro que esté em toda parte, sem estar plenamente em nenhuma. Gente desiludida com as burocracias estatais, partidarias ou sindicais, e que recorre 20 rédio, a televisio — ou a0 Padre Cicero — para conseguir 0 que as instituigées cidadas nao proporcionam: servigos, justica, indenizacdes, assisténcia, protecdo ou simples atencao. Mas, ainda uma vez, eles séo empulhados, mais uma vez sao derrotados, pois suas cartas nunca chegam ao destino: vao para o purgatério — a gaveta de Dora, como sugere Irene, ou para 0 lixo, muito provavelmente, o inferno. Dora, @ escrevinhadora dos figu- rantes mudos, da-lhes a ilusio vicaria de que falam para alguém, de que alguém esta thes ouvindo, de que alguém se importa com eles. A via crucis de Dora com 0 menino, a qual sentimentalmente aderimos, é uma viagem de aprendizado da solidariedade, uma viagem que nos aturde e nos emociona: ela se salva e nds nos salvamos. Também torcemos para que Josué encontre o pai, se salve e, afinal, nos salve de nossas culpas e de nossa impoténcia diante da historia. Josué ¢ um menino de olhar duro, mas € sobretudo uma silhueta, um andar, um rosto. Fala pouco. Nao fica repetindo ou can- tando, como Gavroche, o loquaz menino da ficcdo de Victor Hugo, @ crianca eterna de todas as épocas, que “a culpa é de Voltaire, a culpa ¢ de Rousseau...” Mas seu olhar duro e desconfiado, que olha longe porque nao enxerga horizontes, parece apontar para nossas culpas, nosso conformismo criminoso, cue estiola o futuro e recusa qualquer transcendéncia. Josué é 0 Gavroche da nossa desesperanca. £ mesmo possivel enxergat — em antitese a mobilidade secular — uma breve metafora da espera messianica. Josué busca o pai, chamado Jesus, em Bom Jesus dos Perdées — ele nao volta, pata desespero dos seus irmaos com nomes de profetas, Isaias e Moisés. No final, todos vao ficar esperando a volta de Jesus: “Vai voltar nunca”, diz Moisés. “Um die ele volta”, diz Josué. Na busca pelo pai, da qual participamos afetivamente, metaforizada na viagem em direcao a um suposto lugar chamado Bom Jesus dos Perdées — entramos firme naquilo a que Sartre chamou, na sua experiéncia infantil com 0 cinema, de aderéncia: nossas culpas serdo perdoadas pela soli- dariedade, nossa impoténcia sera substituida por uma ética de fundo emotivo, nao inteira- mente despida de um certo infantilismo.’ Afinal, 0 movimento, que supera o fixismo fotografico, que conecta e aproxima a repre- sentacio filmica aos proprios movimentos da historia — e que une, definitivamente, a forma e 0 contetido em Central do Brasil, acaba por cair na ambiglidade e na entropia.’ Simples rep- resentagao da falta de projeto do pais e das perplexidades diante do futuro? Ou reforgo de uma ética emotiva que esteriliza 0 surgimento de uma sociabilidade alternativa? Nem o cinema nem a Histéria tém as respostas, mas certamente nao sera por uma ética de fundo emotivo, reencontrada na mobilidade indiferenciada, que omite o cenério social, que reencontraremos 0 eixo do futuro. Pois, como dizia Simone Weil, a mais enga- jada intérprete do desenraizamento humano: “O futuro nao nos traz nada, nao nos da nada; nds @ que, para construi-lo, devemos dar-the tudo, dar-Lhe a nossa propria vida.” oo. 2!25 ‘A primeira namativa fe. recontala a partir de Scrlin, Plere. Indispensi enganosas, as imagens, tustemuntas da Historia In Estudos hist Rio de Janeiro, Eiitora da FGV, 1994, pp.81-85; a segunda narrativa esti’ em Galearo, Eduardo. 9 livre ros. Porto Alegre, LSPM, 1961, pp. 24-25, Hens Cartier-Bresson, ctado In Rosemblum, W. The World History Nora lorque, Abberile Pess, 1988, p. 486 frases de Epstein e Agel esto citadas In Romaquera, J. © Thevenet, HA, (or s del cne, 2°. ed, Madi, Catedra, 1995 Esta ¢as restantes obserragdes sore o rteiro foram retiraias de Central do B te de Jodo Emanvel Carneize e Marcos Bernstein, baseado em historia engin Walter Salles. Rio de > Jorge Ferreira ¢ protessor adjunto de Histéria da Universidade Federal i - Publicou “Trabalhadores do Brasil. 0 imagindrio popular (1931-1945)" e & um dos organizadores ta colegao 0 Sécullo XX. Mariza de Carvalho Soares é Professora adjunta da Universidade Federal Fluminense. € autora de “Devotos da cor. Identidade étnica, TeligoSidade e escraviddo no Rio de Janeito, século. XVUL" Design de capa e miolo >> Tita Nighi 2 i 1 Joao José Reis > Dona Flor e ‘Seus dois maridos: viagem a um minidd Yue mia Marion Brephol de Magalhdes > Aleluia, Grechten: um hotel para o Reich Ménica Pimenta Velloso > Emogao e azo numa {igo de amor Mariza de Carvalho Soares > As trés faces de Xica Marcos Luiz Bretas > Licio Flavio, passageiro da Historia ‘Ana Maria Mavad > Bye bye Brasil e as fronteiras do nacional-popular Frederico de Castro Neves > armadias nordestinas — 0 homem ‘ue virou suco ‘Maria Ligia Coelho Prado > Gaijin. Os caminhos da liberdade: tempo ¢ Histdria André Luiz Vieira de Campos > Pixote: a inténcia brutalizada Carlos Fico > Eles nao usam black-tie: varias histérias, muitos protagonistas Claudio H. M. Batalha > pra trente Brasit 0 retomo do cinema politica ine de Freitas Dutra > Memérias do cércere: do livro ao filme, do filme a Historia Jorge Ferreira > Como as sociedades esquecem: Jango ‘Anténio Torres Montenegro > Cabra marcado para morrer entre a meméria e a Histéria Jayme de Almeida > Marvada carne: uma comédia caipira épica Rachel Soihet > Eternamente Pagu: impressdes de uma historiadora Sandra Jatahy Pesavento > De razdes ‘Sentimentos: 0 quatritho na tela Ronaldo Vainfas > Carlota: caricatura da Histéria Jacqueline Herman > imagens de Canudos Fias Thomé Saliba > Histéria e mobilidade em Central do Brasil A historia vai ao cinema. AOAC

You might also like