Foucault (1984) admite que, para um estudo que empregue os conceitos de
descontinuidade, de ruptura e limiar, faz-se necessrio o abandono de
noes que giram em torno do tema da continuidade. Um exemplo de noo desse tipo a tradio: que visa dar uma importncia temporal singular a um conjunto de fenmenos, ao mesmo tempo sucessivos e idnticos (ou, pelo menos anlogos) [...] autoriza a reduzir a diferena caracterstica de qualquer comeo, para retroceder, sem interrupo, na atribuio indefinida da origem [...] (FOUCAULT, 1984, p. 24). Finalmente, eis a ltima precauo para colocar fora de circuito as continuidades irrefletidas pelas quais se organizam, de antemo, os discursos que se pretendem analisar: renunciar a dois temas que esto ligados um ao outro e que se opem. Um quer que jamais seja possvel assinalar, na ordem do discurso, a irrupo de um acontecimento verdadeiro; que alm de qualquer comeo aparente h sempre uma origem secreta tao secreta e tao originria que dela jamais poderemos nos reapoderar inteiramente. Desta forma seriamos fatalmente reconduzidos, atravs da ingenuidade das cronologias, a um ponto infinitamente recuado, jamais presente em qualquer historia; ele mesmo no passaria de seu prprio vazio; e a partir dele, todos os comeos jamais poderiam deixar de ser recomeo ou ocultao [...]. A esse tema se liga um outro, segundo o qual todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um j-dito; e que este j-dito no seria simplesmente uma frase j pronunciada, um texto j escrito, mas um jamais-dito, um discurso sem corpo, uma voz to silenciosa quanto um sopro, uma escrita que no , seno o vazio de seu prprio rastro. Supe-se, assim, que tudo que o discurso formula j se encontra articulado nesse meio-silncio que lhe prvio, que continua a correr obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz calar. O discurso manifesto no passaria, afinal de contas, da presena repressiva do que ele diz; e esse no-dito seria um vazio minando, do interior, tudo que se diz. (FOUCAULT, 1969, p. 27-28)
No preciso remeter o discurso longnqua presena da origem; preciso
trata-o no jogo de sua instncia Essas formas prvias de continuidade, [...] preciso pois mant-las em suspenso. No se trata, claro, de recus-las definitivamente, mas sacudir a quietude com a qual as aceitamos; mostrar que elas no se justificam por si mesmas, que so sempre o efeito de uma construo cujas regras devem ser conhecidas e cujas justificativas devem ser controladas; [...] (p.28)