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José Alberto Kaplan - Ars Inveniendl (P15 - 25) =e Ars Inveniendi ' José Alberto Kaplan (UFPB) Abstract: In this artile the author explains how he uses different inteten in his compositional Key words: composition; intertextuality; palimpsest; rethoric, aaa nme “Nada se eria tudo se copi (Abelardo Barbosa -“Chacrinha”) “0 maior dos génios ¢ 0 hamem que mais deve” (Ralph W. Emerson) “Descobrir as fontes, serve - As vezes-, para pOr em relevo a originalidade” (Dimaso Alonso) Introdugio—O Conceito Borgeano de Originalidade Julia Kristeva (apud AGUIAR e SILVA, 1996, p. 625) escreveu que “todo texto se constréi como um mosaico de citages”, pelo que parte da critica passou a ver a obra ~ neste caso a litersria - como uma rede de ecos de textos anteriores e inter-relacionados, Muito antes, ainda nos anos vinte, Jorge Luis Borges disse, com muita propriedade: E doloosa e obrigatria verdade ade saber que individu pode alcangar escassas aventuras no exeretcio da ae (.). A compreenso de que nossos movimento mais sole lo, na eldade,prefixados desis.) evident para obomem que _superou os meandros da arte (...). Vangloriar-se desta sujeigaioe praticé-la com piedosa observaincis proprio do classicismo. (...) Seu protitipo é Ben fonson, de quem disse den quenvadia autores como um ee que exalt seu credo aponto de excrever um lve de cunho discursive eautobiogrtio feito de tadugbes, onde delarou, através de frases lhelas, a substancia de seu pensar (BORGES, 1996, p. 393).? A.arte em geral, portanto, inclusive a miisica, nfo é espontinea. Esté sempre predestinada, A postura correta a clissica - sustenta que criagdo é, na realidade, um palimpsesto? — o que Kristeva descreveu como um mosaico de citagdes. Assim, 0 conceito de originalidade, no sentids que correntemente se Ihe atribui & segundo Borges, erréneo. Em que consiste, entdo, a originalidade? Na maneira particular como um autor manipula a(s) obra(s) anterior (es), como a(s) refrata, tergiversa e oculta através de sua vistio e de sua idiossincrasia. Segundo 0 grande autor de El Aleph, s6 isso pode ser chamado de originalidade. ste da Invengio", do substantive ars {arte} e 0 gerGndio do verbo inventio (encontrar, descobrit, inventar) * Tradugo do Autor. » Palimpsesto - papiro ou pergaminho cujo texto original era apagado para o material ser reaproveitado, dado seu alto custo. Depois de raspado pelo copista era ainda polido com marfins, Muitas vezes, por mais bem feito que fosse o trabalho, pereebia-s, nee, tragos dos textos anteriores. On : - _ haves 09 at 2008 Histérico A agio de um autor descrever seus processos dle criagio é, de certa maneira, o de despir-se em piiblico, “entregar 0 ouro ao bandido”. Nao me importo. Atribuo aos estudos de Harmonia Tonal que realizei em Rosétio, com o Padre Luis Angel Machado, de 1951 a 1953, meu interesse pela criagiio musical. Foi naquela época que “a masca azut” da composigéio me inoculou seu virus, mas a picada nao teve a intensidade suficiente para me desviar do meu principal objetivo, que era o de me tomar um grande pianista, A leitura de obras de Estética e Hist6ria da Musica de autores do século XIX —realizadas na época - incutit- ‘me idéias proprias do Romantismo a respeito da composigio, que afirmavam sera inspiragao, 0 (atento, aimaginaga0, ccriadora, ete., requerimentos bisicos para um individuo se tornar autor inventivo e fecundo, Mesmo me considerando desprovido dessa centetha, enquanto aluno do professor Machado, escrevi alguns trabathos de cuntio meramente escolar. Quando tentei vos maiores, os rascunhos acabaram indefectivelmente na lixeira, Cheguei & conclusdio de que no dava para aquilo, Parafraseando Jesus, eu era um dos chamados, mas ado um dos escolhidos. A fastei-me da composigdo e me dediquei, em cheio, ao estudo do piano, Anos depois, residindo em Viena (1959-60), a letura de “El taller musical” (“A oficina musical”), do musiastogo Frederick Dorian, abriv-me perspectivas totalmente diferentes. Nele, aprendi que a concepgio da elaboragio artistica riunda dos tempos de Aristételes ~ reaparece na Renascenga, atravessa o Barroco e perdura no classicism ~ que se fundamentava no impulso de imitagdo sob 0 comando da razdo, havia desaparecido submersa nas aguas da subjetividade particularista¢individualizadora do Romantismo. Mas, se aidéia de imitar perdera prestigio no decorrer do século XIX, subsistia, na sua esséncia, 0 conceito da criagao artistica como um processo de fecundagio gerado por amplo e continuo fluxo de influéncias, reelaboragdes, ressondincias ¢ enriquecimentos sem fim, que se encontram na propria natureza do ato criador. Daf se inferia que todo trabatho artistico s6 poderia existir quando vineulado @ um sistema, ndio podendo ter existéncia fora dele, Assim como nao hé gerac%o esponttinea, no é possivel obra ou criagio exnihilo. Mesmo quando se deseja modificar totalmente uma orientagfo, isso apenas & possivel conhecendo-se profundamente aquilo que se pretende mudar. Dorian esclarecia, ainda, que os conceitos de individualidade, originalidade e da tio badalada inspiragio 86 comegaram a ganhar peso - nos critérios que fariam parte da elaboragdo da obra musical - no transcorrer do século XVIII, mesmo que contrariando toda a ideologia dessa época tio reatista e pratica, Para corroborar essa afirmativa, cita Johann Matthesson (1681-1764), o renomado te6rico do Barroco que, no seu célebre tratado “Der volkommene Kapellmeister” (“O perfeito Mestre de Capela”) escreve: “Caso a inspiragd0 niéo nos acuda, pode ser de algum auxifio o ensino da invengdo”, No capitulo dedicado & criagiio melédica, ele mostra como, sem a ajuda da inspiragio, (5 utensflios do artesanato podem socorrer compositor. E exemplifica: “Outra forma de conseguir novas melodias, é a de elaborar variagdes sobre cangdes bem conhecidas, hinos sacros ou cantigas populares. O autor pode apossar- se de frases ou temas das mais diversas procedéncias e desenvolvé-Jas de novas maneiras”* E ilustra sua assertiva, transformando a mefodia de uma antiga cangao alema de tranquilo espitito contemplative — numa que expressa um sentimento de amor apaixonado, tomando a segunda numa criago pessoal O conseiho do te6rico alemao parece sugerir diretamente 0 plagio por parte do autor que usa esse tipo de expediente, Matthesson rejeita com veeméncia essa insinuagiio e, valendo-se da dialétice earacteristica do século XVII, afirma que 0 novo ndo é nada mais que uma permutagao inovadora do velho, Nao importa se o material jé foi utilizado anteriormente, o essencial € que 0 resultado possa ser considerado uma “invengao propria”. Sob a influéncia desta nova visio do assunto, analisei obras de diversos perfodos da evolugio musical. Para tninha surpresa, verifiquei indimeros exemplos que comprovavam que a reutilizagao total ou parcial de obras jd existen- * Johann Maithesson apud DORIAN, 1960. José Alberto Kaplan «Ars Inveniene (P15 - 25) ee me tes nio era nenhuma novidade na histéria da criagao musical. Os eriticos e analistas posteriores costumavam falar, nesses casos, de influéncias, fontes, alusdes, apropriagdes, empréstimos, etc. A técnica do Cantus Firmus, tio utilizada pelos compositores dos séculos XIV e XV, é evidentemente um trabalho desse tipo. O aproveitamento que J.S.Bach (1685-1750) fez das melodias do hindrio protestante nos corais de suas cantatas e paixdes € outro caso tipico de apropriagio, assim como 0 a técnica da variagao, que no € sendo a construgio de uma obra a partir de um tema geralmente pertencente a outro autor. Também os “empréstimos” que George F. Haendel (1686-1758) tomou de muitos compositores da época - como Gottlieb Muffat (1690-1770), Johann. Gaspar Kerll (1627-1693) ¢ Alessandro Stradella (1645-1687) -€ tratamento composicional que deu a.essas apropri- ages, corroboram as afirmativas de Dorian, Trechos inteiros desses autores foram usados por ele no seu orat6rio. “Judas Macabeu”, na “Ode para Santa Cecilia” e em muitas de suas 6peras, Para avaliar a extensio desses emprés- timos e adaptagées, basta esclarecer que 18 pegas de Muffat foram usadas na citada “Ode”. J na pera “Israel em Egito”, mais da metade — 17 dos 30 ntimeros que a compiem - foram literalmente tomados de obras de Stradella, Kerll, e outros autores da época. Essa pritica era, por sinal, muito comum no barroco. Em 1972, tive oportunidade de verificar “ao vivo” que em nossos dias essa forma de criar continuava a set bastante comum. Nesse ano, 0 grande compositor Francisco Mignone (1897-1986) esteve em Joao Pessoa para dar uum recital de piano, Hospedado em minha casa, tive o privilégio de manter longas conversas com ele. Era, além de grande mtisico, homem de cultura geral incomum, Num desses bate-papos, falamos sobre o problema das influéncias ‘no campo da composigio musical. Sentou-se ao piano e tocou sua “Valsa de Esquina N°11”, perguntando-me, depois, seeu tinha gostado. Quando respondi afirmativamente, confessou-me: “é 0 “Tenebroso’ de Ernesto Nazareth em tempo de Valsa”. Depois de manifestar sua admiragio por esse compositor, cuja mésica havia analisado em profun- didade, tomou sua prépria partitura e me mostrou como, através de imaginoso trabalho de transformagiio, aproveitara a melodia da mao esquerda do tango de Nazareth, Foi uma aula de composigiios Ainda em Viena, entusiasmado com 0 novo enfoque que poderia ser dado ao ato de compor, ocorreu-meaidéia de tentar criar, a partir de uma obra que me servisse de base ou ‘“ponto de partida”. A escolhida foi a Sonata em Ré maior, K.271 de Mozart, Guardo ainda os rascunhos da experiéncia, Como nfio poderia deixar de ser, foi um grande fiasco. O “‘cheiro” de Mozart continuava tio acentuado nos meus rabiscos que, bastante decepcionado, abandonei o intento, Hoje acre- dito que o fracasso da experiéncia se originou no fato de ter esquecido 2 recomendagao de Matthesson; “Tomar dos ‘outros é coisa permitida, porém o empréstimo deve ser devolvido com juros. As imitagGes devem serrealizadas de tal maneira que sejam melltores que os modelos” (Matthesson apud DORIAN, 1960). A minha tentativa~ por total inexperiéncia e ignorancia dos procedimentos que fui descobrindo aos poucos em anos posteriores —tinha sido uma aplicago mecéinica dos conselhos de mestre alemio, Faltavam-lhe 0s “juros” de ‘que Matthesson falava! Durante mais de 10 anos, preocupado com minha carreira de pianista e professor, ¢ assediado por problemas de ordem material, abandonei meus intentos no campo da composigio, e s6 0s retomei no inicio da década de 60, j6 morando no Brasil fracasso de Viena me levou 2 rever os pressupostos do que, na época, batizei metaforicamente de “Técnica do Palimpsesto”,® que, na sua esséncia, no é outra coisa sendio escrever uma obra a partir de outra ou outras j4 existentes. ‘Nao foi facil. Demorei bastante tempo para perceber que esse processo podia dar-se em diversos niveis. * Dados mais detalhados sobre a visita de Francisco Mignone a Jodo Pessoa podem ser encontrads em meu livro Caso me Esqueca(m), 10 capitulo IX (KAPLAN, 1999), * Vide Nota 4 @ 18 _ “Chaves N° O1 = Malo 2006 Assim, constatei que, conservando a base harménica da “obra de partida”, era possivel modificar radicalmente a estrutura melédica ou, mantendo a melodia original - Jeve ou bastante modificada -, transformar a textura. Outro procedimento consistia em preencher a disposigiio formal da obra que servia de modelo com contetidos teméticos e melédicos diferentes. Também existia a possibilidade de se aproveitar a organizagao timbrica da “pega de ori- gem” na elaborago da nova, Finalmente, uma mistura de duas ou de varias das probabilidedes apontadas. Na medida em que essas “técnicas de ocultago” me ocortiam, testava-as para ver até onde seu uso era possivel, levando em consideragio meu esforgo de fazer com que as “apropriagées” niio ficassem evidentes, O trabalho que pretendia realizar através dessa técnica equivalia a uma espécie de maquiagem que seria tanto ‘mais eficaz quanto 0 texto aproveitado como “ponto de partida’ estivesse mais sabiamente transformado. Esse processo, portanto, nao pode ser acusado de falta de originalidade ou criatividade, O procedimento em pauta, assim come o concebo, no mera reprodugao e sim uma metodologia dindmica e transformadora na produgao de um novo texto, que deve ser uma versio altamente re-elaborada do(s) que Ihe deu (ou deram) origem. Passei varios anos realizando diversos testes. Muitos deles foram parar na [ata do lixo. Alguns se salva- ram e passaram a integrar uma espécie de banco de dados. A procura do dominio das técnicas de maquiagem nig foi facil. As obras que tentava “apagar” ficavam ainda bastante evidentes e 0 medo de ser taxado de plagidrio me apavorava. Finalmente, em 1978 ~ j tinha completado 43 anos! -, decid que estava na hora de provar se as obras que compusera a partir dessa técnica tinham algum valor, A oportunidade surgiu quando soube da realizagao de am Concurso Nacional de Composigao patrocinado pela Funarte e Editora Vitale. As obras deviam ser assina- das com pseuddnimo e acompanhadas de um envelope lacrado contendo 0 nome do autor. $6 seriam abertos aqueles correspondentes as composigdes escolhidas pelo Jeri como vencedoras. Os outros, devolvidos sem abrir, Portanto, sigilo total. Achei que niio tinha nada a perder e decidi mandar a obra que me parecia ter 0 melhor acabamento, A banca julgadora era altamente qualificada: Souza Lima, Henrique Morelenbaum, Edino Krieger, Marlos Nobre e Ives Rudner-Schmidt. Para minha surpresa e contentamento, a “Suite Mirim’ foi classificada em primeiro lugar. Competi com 104 inscritos, muitos dos quais - como Ernst Widmer, Maria Helena Rosa Femandes e Guitherme Bauer, também premiados - jé possufam justo renome no campo da composigao. O fato de ter concorrido com autores jé consagrados valorizou, inegavelmente, o prémio recebido, Uns anos depois, verifiquei que minha maneira de criar nao se circunscrevia ao campo da miisica, Sem- pre foi profusamente usada na literatura,’ na pintura,’ no cinema, em todas as outras artes. Lendo o ensaio de Affonso Romano de Sant Anna - “Parédia, Parifrase e Cia,” (SANT’ANNA, 1985) - tomei conhecimento de uma série de estudos, no campo da literatura comparada, que vieram desembocar no que hoje se conhece como Teoria da Intertextualidade. ‘Como jd mencionei, para Julia Kristeva, que cunhou o termo, a intertextualidade parte do principio de que “Yodo texto se constrsi como um mosaico de citagdes, todo texto ¢ absorgio e transformagdo de um outro texto. Assim sendo, um texto é, de certa maneira, ele préprio € um outro - ou outros - que © precede(m)” ¢apud AGUIAR e SILVA, 1996, p. 625). Minha tranquilidade aumentou. Agora meu trabalho tinha o aval de gente importante, pois a intertextualidade mostrou que, a0 contrario do que pensamos, a obra de arte néio é uma criagdo ex nihilo e sim o local para onde confluetn os elementos culturais assimilados pelo autor como ser social, fazendo parte de sua experiéncia pessoal. Suite Mirim uiilizei como “obras de partida” composigdes bastante conhecidas de J. S, Bach: a Invengdo N°I e a progressio hharmOnica de Sarabanda da Suite Francesa em Dé Menor, Obras de Osvaldo Lacerda também foram usadas, ® CARVALHO, 1990, » ALTMAN, 1993, José Alberto Kaplan - Ars Inveniendh (P15 - 19 Cy Aplicagiio do Coneeito de Intertextualidade na Musica’? Fora da intertextualidade, a obra musical é simplesmente incompreensivel. S6 podemos aprender os seus sentidos e estrutura se a relacionarmos com sens arquétipos. Estes nao sto outra coisa sendo abstracées de longas séries de textos" anteriores de que constituem, por assim dizer, a constante, Em face desses arqué- tipos, toda obra entra sempre numa relagao de imitagio, transformagio ou transgresso, Mesmo quando, apa- rentemente, 120 apresenta nenhum trago em comum com os géneros conhecidos, longe de negara sua permeabilidade ao contexto cultural onde surge, 0 revela, justamente por essa negagiio, Como jé foi dito, fora de uum sistema, toda e qualquer obra é impossivel de ser compreendida. O que caracteriza todo e qualquer trabalho intertextual, a propria esséncia da intertextualidade, por assim dizer, € a agdo de assimilagdo € transformagao que realiza. O “olhar” intertextual ¢ uma visio critica e, a0 mesmo tempo, repetitiva. A intertextualidade designa nfo uma soma confusa e misteriosa de influéncias, mas 0 trabalho de assimi lagdio e transformagio, ou melhor, de remodelagao, de um ou varios textos operado(s) por um texto centralizador que detém 0 comando do sentido. Fronteiras da Intertextualidade no Campo Musical problema que 0 conceito de intertextualidade coloca de inicio € o de identificago. Com especial énfase na obra musical, a partir de que ponto ou pardmetro se pode falar de presenga de uma composigao - ou de um. trecho dela - numa outra? Para melhor avaliar a complexidade deste ponto, jé explicitei que, no caso espee‘fico da miisica, as referéncia intertextuais numa composigao podem ocorrer em diversos nivei Naestrutura melédica da obra; Nasuatextura; Na sua disposigao formal, Na organizagao timbrica; Na disposigaio ritmica; Em varios dos niveis assinalados, simultaneamente, Acreditamos que se pode falar em intertextualidade sempre que se verifique 0 aproveitamento de uma unidade textual abstrafda do seu contexto original e inserida num novo, sejz ele uma simples alusdo ou reminis- céncia, ou uma versio altamente transformada do texto de origem. Do anterior pode-se inferir que existem ayers iversos graus e tipos de intertextualidade, O Problema da Identificagao Intertextual problema da identificagao intertextual antes mencionado nao é dificil de detectar quando se trata de uma estrutura temética facilmente reconhecfvel. Veja-se 0 caso da utilizago por Schumann da “Marselhesa” no seu Carnaval de Viena Op.26. Mas que dizer quando a estrutura em questio é 0 arcabougo formal da obra? Seré possivel afirmar que uma composigio entra em relagdo intertextual com uma forma musical? Acreditamos que sim, pois os arquétipos formais, por mais abstratos que sejam, constituem ainda estruturas sempre presentes no espitito daquele que escreve, pois todas as linguagens artisticas so, na sua esséncia, sistemas que se utilizam de modelos. "A partir deste momento, o texto esté baseado, principalmente, nos conceitos desenvolvidos por Laurent Jenny no seu artigo “A, cstratéia da forma” (JENNY, 1979). "O tenmo texto, no presente trabalho tem, logicament, o significado de escrita musical. CClaves N° O1 = Mato 2006 Quando 0 cédigo perde sew carter aberto e se enclausura num sistema cujas formas deixaram, de alguma maneira, de se renovar, o c6digo se torna, entdo, do ponto de vista estrutural, semelhante a um texto. Pode-se entao se falar de intertextualidade entre uma determinada obra ¢ sew arquétipo formal. Esta afirmagao fica patente quando comparamos 2° movimento de minha Sonatina para Violiio com a Valsa da Esquina N°S de Francisco Mignone. O esquema formal obedece, em ambas, ao do Lied em trés partes (A-B- AY; da mesma maneira, podemos comprovar que as tonalidades usadas so as mesmas nas duas obras: A, em Mi menor; B, em Mi Maior e, em A’ novamente Mi menor. $6 que na obra em questo - a “Seresta” da Sonatina - procuro “dissimular” esse trabalho de assimilagao intertextual da Valsa de Mignone ~ usado como modelo na parte B da“Seresta” -utilizando em Ae A’ material proveniente da Seresta para piano a quatro mios de Aylton Escobar O trabatho de “dissimulagao” apontado se evidencia também pelo fato de ter tomado como titulo de minha composigio o da obra de Escobar, enquanto que 0 esquema formal, coma jé foi dito, corresponde ao da Valsa da Esquina N°S de Mignone. Problemasde Enquadramento problema principal da intertextualidade, sendo um proceso de absorgao de diversos textos, ¢ fazer caber os mesmos num s6, sem que se destruam mutuamente e nem 0 texto que os acolhe, o intertexto,"® se estilhace como totalidade estruturada, Os intertextos resolvem © problema com maior ou menor sucesso de acordo com as exigéncias que 0 autor impde a si mesmo, As respostas a este problema vao do respeite integral pelos diversos textos - como € 0 caso da citagdo da Marselhesa na obra de Schumann acima mencionada - até & sua quase desintegragio no espago da obra na qual se alojam. Um exemplo claro desta tltima solugdo so as composiges baseadas num Cantus Firmus (C.F) (ex. 1), onde as notas de uma melodia ja conhecida se tornam a base de uma composigio polifonica através da adig&io de outras vozes. Nas obras estruturadas a partir desta técnica composicional, 0 C. F.aparecia mais freqilentemente na voz de Tenor" (ex. 2), geralmente em notas de longa ¢ igual duragio. Este tratamento fazia com que a melodia original ficasse como “desintegrada”, pois, ao perder um de seus pariimetros originais - oritmico - ficava desfigurada e dificil de ser reconhecida, Outro método muito usacto pelos composi- tores era 0 conhecido como discant, no qual o C. F. aparece na voz mais aguda da obra, geralmente de maneira ornamentada. O efeito desta ornamentagao fazia com que a melodia original ficasse “dispersada” dentro do contexto da nova linha melédica criada a partir dela (ex. 3). A. ve ma - tis stel=_ ee ES Ex. {:melodia Ave Maris Stella (BAUR, 1985, pp. 112-113). "= Laurent Jenny (1976, p. 267) dé ao termo Intertexto significade de “texto absorvendo uma multiplicidade de textos, embora centrado ‘num s6 sentido”, Para Aguiar e Silva, Intertexto seria 0 “texto ou corpus de textos com os quais um determinado texto mantém aquele tipo de imteraglo” intertextualidade) enquanto M.Arrivé (apud AGUIAR e SILNA, 1996), utiliza 0 termo no sentido de “conjunto dos textos que se encontram nama relagao de intertextualidade”’ As definigdes anteriores mostram uma acentuada diserepacia entre si. Neste trabatho, sempre que nos referirmos a Intertexto, estaremios acatando o significado atribufdo ao termo por L. Jenny. Procedimento de “ocultagio”, j4 que a parte de Tenor é uma vor interior na estrutura polifénica a 4 vores ou partes. José Alberto Kaplan - Ars Iveniendi (P 15 = 25) 21 § Ex.2: Cabezén Obs. Oesquems ritmico da melodia anterior esti dado pela articulagio das sflabas do texto A seguir, a melodia anterior utilizada por Ant6nio Cabez6n como C. F. numa de suas composigées (ex. 2)e por Du Fay no seu hino Ave Maris Stella (ex. 3) (REESE, 1959, pp. 628-629). Ex.3:DuFay Obs.: Como se pode apreciar, as notas assinaladas nos exemplos anteriores correspondem as da melodia Ave Maris Stella. O Trabalho Intertextual eas Figuras de Linguagem Oenxerto intertextual ndio coloca s6 problemas com referéncia a salvaguarda do sentido do texto onde se atoja A intertextualidade também poe outra questo de capital importincia para se compreender este processo: como um dos preexistentes? A critica literdria contempordinea parece estar de texto assimila os emu ‘ordo em ver, nas relagdies que se estabelecem entre os textos, relagdes de transformago. A nogio de trabalho intertextual como Iransformagao deve estar presente em qualquer reflexio que se realize sobre 0 citado tema no campo especifico da ceriagao musical A conciliagao intertextual, para ser completa, deve unificar a passagem de maneira a reduzir a impossibilidade de combinagiio que 0s textos provindos de contextos diferentes - ¢ muitas vezes heterogéneos - possam apresentar. E ‘© que poderiamos chamar de “técnica de engaste”. Para se realizar esse tipo de montagem, os fragmentos que sio inseridos sofrem, geralmente, uma série de modificagdes Na drea da intertextualidade musical, é bastante raro 0 texto - ou trecho dele - que é ut tal qual ele aparece na obra original."* Em geral, o autor procura fazer com que a apropriagao nao fique evidente. O (rabalho intertextual equivale, pois, ao de uma plastica, que ser tanto mais eficaz. quanto o texto aproveitado resultar ‘mais sabiamente transformado, Para analisar ¢ classifiear com precisao os tipos de alteragdes ou “desvios” sofridos pelo texto no decorrer do processo intertextual, as chamadas Figuras de Linguagem estudadas na Ret6rica - que estio sendo utilizadas com sucesso por alguns musicdlogos na andlise e compreensio dos processos composicionais usados pelos autores do, jizado no novo contexto Perjodo Barroco - oferecem uma base sélida e um vasto campo a ser explorado. “Quando a reprodugi ¢ textual, pode ser clasifiada come o faz a moderna eitcaliterdria, que a denomina de “apropriagio". Esta ‘éeniea chegou literatura através das experincias dadatstas realizadasa paride 1916 no carapo das Artes Péstcas, Ment colagem que utra coisa nao & send a reunitio de materia diversos para a confecgio de um objeto ari taves N° 01 - Malo 2006 Figuras de Linguagem As Figuras de Linguagem' so modificagdes da linguagem - seja nas palavras, seja nas frases - gue podem ocorrer tanto no nivel da expresso, como do contetido. As alteragées apontadas se conseguem acres- centando (levantar - alevantar), subtraindo (ainda - inda ), repetindo (Deus, Deus) ou permutando letras dentro cde unra palavra ou pafavras numa frase (“da vida pela estrada”), tendo como objetivo de conseguir o efeito poético ow estilistico desejado pelo autor. Do anterior se infere que existem dois tipos basicos de Figuras: 1. Figuras de Palavras ou de Diego, que consistem na modificagiio material da forma das palavras. As principais Figuras deste tipo sao: a imterversio, a metétese, o paragrama, a prétese, epéntese, © apécope, ete. Figuras de Construgio, que se referem as transformagdes que se introduzem no que se considera a ordem natural das palavras dentro de uma frase, Entye elas podemos destacar: a paranomesia, a.amplificagdo, a elipse, o paralelismo, hipérbato, anacoluto, ete. Fazer o levantamento completo dos artificios retéricos que utilizei na composigao mencionada - 0 2° movi- mento de minha Sonatina para Violdo - 6 tarefa que foge aos objetivos deste trabalho, No entanto, com intuito de mostrar alguns poucos dos processos intertextuais que use, examinarei a continuagao, a titufo de exemplo, dois pequenos trechos da estrutura mel6dica da obra utilizando as Figuras de Linguagem como “ferramenta” analtt Cabe esclarecer que a lista dos procedimentos que iremos apresentar ndo pretende ser, nem é, exaustiva, Assim sendo, passarei agora a definir algumas das Figuras de Linguagem acima elencadas e verificar sua aplicago no campo da anilise da esteutura melddica da Seresta da Sonatina. Figuras de Linguagem Utilizadas 1 — Interversio: se da quando ocorre uma alteragdo da ordem natural ou habitual de dois fonemas contiguos na cadeia falada Exempio: aredpago - aerspago ‘Obs. Quando os fonemas que mudam de lugar se encontram distantes entre si no seio da palavra se fala em Metitese. 2 Paragrama: consiste segundo Saussure, em dispersar no espago de um texto as Jetras (enemas) de ‘uma palavra ou frase." vy Exemplo: “Sur mon crine incling PLantE son drapEau Noit”, onde se 1é “spleen”. Obs.: O exemplo 3 do discant dado acima seria um Paragrama no Ambito da linguagem musical. 0 efeito da ornamentagio fazia com que 0 Cantus Firmus original, isto 6 0 “texto de partida” ficasse “dispersato” dentro do contexto da nova linha mel6dica criada a partir dele. 3—Paranomésia: designa a Figura de Linguagem que consiste no emprego de vocdbulos semeihantes na forma ou na prosédia, mas opostos ou aparentados no sentido. Exemplo: “Quem nao teme niio treme”, 4 — Paralelismo: € a repetigdo das idéias com palavras ligeitamente alteradas, como acontecia nas “Cantigas do Amigo”."* Também pode ser 2 repetigao de frases com 0 mesmo esquema gramatical, © E nccessiro eslaecer que nem sempre hiconcidénca, entre os autores qe atam da matéria, sobre o sigifcada«extenso e determina Figur de © Saussure apud TRINGALL, 1988. Baudelaire apud TRINGALL, 1988. "-TRINGALL, 1988, p. 130. wager. José Alberto Kaplan - Ars Inveniendl (P15 - 25) 5~Amplificagio: figura de" volvimento de alguns de seus aspectos ou ilo” que consiste no alargamento de uma idéia ou proposigiio pelo desen- \icias. Exemplo: “Ou: que no vereis com vas faganhas, / Fants- ticas, fingidas, mentirosas”. 6 ~ Elipse: nesta figura se omite palavra(s) que se subentende(m) facilmente pelo contexto. Exemplos do Uso das Figuras de Retérica na Andilise Musical A] | tr ‘Motivo: | i | motivo | x. 4 derivago melédia A Aylton Escobar ~ Seresta para piano a 4 mos (compassos 8 12) B— José Alberto Kaplan - Sonatina para Violto ~ 2° Movimento ~Seresta ~ (compassos 8-12) No exemplo 4, o motivo, asado originalmente por Escobar e depois “reutilizado” por mim, pode ser cias- sificado, ou enquadrado, em duas categorias diferentes, segundo seja considerada parte integrante de am todo maior ~ a frase onde est inserido, ou se sua abordagem se dé pela comparago de cada uma de suas notas, No primeiro caso, trata-se de uma paranomésia, figura que se caracteriza pelo emprego de vocdbulos semelhantes na forma e na prosédia. Neste caso, a semelhanga é evidente; na cadeia de sons que se inicia na nota Si (colcheia) e acaba na semfnima Sol do 2° compasso, as notas que constituem ambos os motivos — salvo unta — so idénticas, assim como o movimento ascendente que se faz presente em ambos. No segundo caso, 0 motivo corresponderia a figura conhecida como “Interver io”, que ocorre quando fonemas (neste caso, sons) contiguos mudam de lugar na cadeia falada. No mesmo exemplo, em ‘a temos um caso de Amplificacio e em “b” observa-se um tipo de Elipse. Po Ex Sa: melodias de Escobar e Kaplan A~ Aylton Escobar ~ Seresta para piano a 4 mos (compassos 47 ~ 51) B - José Alberto Kaplan ~ Sonatina para Violdo ~ 2° Movimento ~ Seresta ~ (compassos 16 ~ 20) 24 Chaves N° 01 - Malo 2006 FESQUEMA BASICO DA MELODIA DE AYLTON ESCOBAR ESQUEMA BASICO DA MELODIA DE JOSE ALBERTO KAPLAN Ex. Sb: esquemarritmico basico das melodias anteriores Observando os esquemas basicos (ex. 5b) de ambas as melodias (ex. 5a), verifiea-se que so iguais. Assim, podemos classificar minha melodia como sendo: 1. Um Paragrama ~ Figura que consiste em dispersar no espago de um texto (neste easo, de u texto musical) as letras de uma palavra ou frase — construido a partir do esquema basico da melodia de Escobar, ou 2. Um caso de Paralelismo ~ Figura que se caracteriza pela repeti¢iio das mesmas idéias ou pala vras, ligeiramente alteradas, como acontecia nas “Cantigas do Amigo”, ou a Repetigao de frases como mesmo esquema gramatical. Para Finalizar Ouso consciemte e deliberado que fago da intertextualidade nas minhas composigdes = procedimento que cosiumo de chamar de “téenica de patimpsesto”, ou sefa, a técnica de escrever um texto em cima de, ou a partir de outro — carrega no seu bojo dois problemas basicos: qual o significado real dos termos eriagdo e originalidade? Apesar de sempre escrever a partir de obras que nao sio de minha autoria, o que me poder de plagidrio, considero-me um compositor original, pois geralmente consigo, assim o ereia, transformara composi- glo que me serve de “ponto de partida” numa obra pessoal. Para compreender a afirmagiio anterior devemos entender que no processo intertextual, existe uma ques- «do de capital importineia: de que maneira um texto assimila os enunciados pré-existentes nos quais se basin? Na drea da intertextualidade musical é bastante rara a composigo — ou trecho dela - usada no novo contexto tal qual aparece na “obra de partida”. Como jé foi esclarecido no decorrer deste trabalho, o autor procura fazer com que a apropriago ndo fique evidente, Esse trabalho se equivale a uma espécie de disfarce ou mascara que sera Lanto mais eficaz quanto 0 texto aproveitade coms “ponto de partida” estiver mais sabiamente transforma- do, E € nesta transformacio que reside para mim, 0 que se costuma chamar de originalidade. A titulo de exemplo, gostaria de citar minha Sonata para Piano, baseada na Sanate N° } para piano de Alberto Acredito que minha originalidade — no sentido h& pouco expresso - atingiu um tal ponto de sofistica render a pecha astera consegui transformar “um gaticho bailando um malambo” num “cangaceiro dangando um xaxado”. Em certa ocasido, um colega me perguntou por que usava a intertextualidade como recurso composicional, Respondi-the que, no meu caso, a Intertextualidade é uma técnica que, em lugar de tolher minha imaginago, 2 José Alperco Kaplan - Ars Inveniendi (P15 - 25) ee _ § agua, desperta e estimula, Utilizo-a porque me fascina, encanta-me procurar ser EU no corpo de OUTRO, 0 que convenhamos, nao deixa de ser um desafio e tanto. Referéncias Bibliograficas AGUIAR e SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da Literatura. 8'.ed. Coimbra: ivraria Almedina, 1996. ALTMANN, Fabio. Geniai copiadores. Veja, Sao Paulo, Maio 1993. BAUR, John. Music Theory Through Literature, Vol. 1. 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