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PROST, Antoine. Os fatos ¢ a critica histérica; As quest6es dos historiadores, In: Doze Ligdes sobre a Historia. Belo Horizonte: auténtica, 2008. (Colegio Historia e Historiografia), p. 53-73; 75-91. CAPITULO IIT Os fatos e a critica histérica Se hi uma convieeio bem enraizada na opinizo pablica é que, na historia, existem fatos e que eles devem ser conhecidos. Essa convicgio esteve na origem da contestagio dos programas de historia, desencadeada em 1970 © 1977; além disso, cla exprimiu-se nos debates de 1980 com uma flagrante ingenidade, A acusago mais grave era a seguinte: “Atualmente, os alunos nio sabem nada..". Portanto, em hastéria, existem coisas para conhecer ou, mais exatamente, fatos ¢ datas Pessoas de bem que ignoram se a batalha de Marignan foi uma vitéria ow tuma derrota, € quais ceriam sido suas implicagSes, ficam indignadas pelo fato de que 0s alunos nfo sabem a data de sua ocorréncia, Para o grande pablico, a histéria reduz-se, na maior parte das vezes, a um esqueleto omtituldo por fitos datados: evogagio do Edito de Nantes ~ 1685; Co- ‘muna de Paris ~ 1871; Descobrimento da América ~ 1492, etc. Assim, aprender historia € conhecer os fitos € memorizi-los, E, até mesmo, em niveis de estudo mais avangados: “Se vocé tiver memiria, conseguirs a agrégation de historia”, eis o que cheguel a ouvir, repetidas vezes, enquan- (© eu me preparava para esse Concurso. Neste aspecto, encontra-se, sem dévida, a principal diférenca entre fo ensino e a pesquisa, entre a historia que se expdc didaticamente ¢ aque la que se elabora: no ensino, 0s fatos jf esto prontos; na pesquisa, € necessirio fabricé-los. O método critico Tal como € ensinada nas escolas, inclusive, nas salas de aula das faculdades, a historia comporta dois momentos: em primeito lugar, cO- nhecer os fatos; em seguida, explicé-los, concateni-los em uma exposici0 coerente, Esa dicotomia entre o estabelecimento dos fitos e sua interpre tagio foi teorizada no final do século XIX pela escola “met6dica’” e, em particular, por Langlois e Seignobos; aligs, ela serve de estrutura para o plano dos livros Introduction ax études historiques (1897) © La Méthode histo. rique appliqués avcc sciences scales (1901). Os fatos como provas Para Langlois e Seignobos, os fatos no estio prontos: pelo contri- Flo, esses autores levaram muito tempo para explicar as regras a ser cum- pridas para construi-los. Entretanto, na sua mente e de toda a escola me~ tédica formalizada por eles, 0s fitos io construidos de uma forma definiciva Dai, 2 divisio do trabalho histérico em dois momentos e entre dois gru- os de profissionais: os pesquisadores — entenda-se, os professores da faculdade ~ estabeleciam os fitos que ficavam 3 disposicio dos professores do liceu. Os fatos sio como as pedras utiizadas pata a construgio das patedes do edificio chamado “histéria”. Em seu livrinho sobre L’Histoire dans Venseignement secondste, Seignobos (1906, p. 31) demonstrom certo orgulho nesse trabalho de fabricante de fatos: (© bibito da critica permitiu-me fazer atriagem das hiswrias eradicio- ais, transmits pelos professores de geragio em gericio, supsiniin- do as historietas apdcrifis e os detaes legenditios. Consegui reno- ‘var a provisio de fitos caracteristicos verdadeiros com os quais 0 censino da histéria deve ser alimentado. A importincia atribufda a0 trabalho de construgdo dos fatos expli- ease por uma preocupayio central: como fomecer um status de ciéncia a0 texto do historiador? Como garantir que, em vez de uma seqiiénc de opinides subjetivas, cuja aceitagio ou rejeigio ficaria a0 critério de cada um, a historia & a expresso de uma verdade objetiva e que se imp6e a todos? Esse tipo de questionamento no pode ser incluido entre as indaga- ses declaradas supérfiuas, intteis ow ultrapasadas, Atualmente, & impos- sivel elimind-lo sem graves conseqiiéncias. Para nos convencermos diso, basta pensar no genocidio hilerista. A afimmacio de que a Alemanha na- Zista havia empreendido, durante varios anos, uma tentativa de extermi- nio sistemitico dos judeus no & uma opinio subjetiva que, por simples opcio pessoal, possa ser compartilhads ou rejcitada. Trata-se de uma verdade; no entanto, pata obter esse status de objetividade, convém que ela esteja respaldada em fatos. B um fato, por exemplo, que os SS construiram cimaras de gis em determinados campos; além disso, este fato pode ser comprovado.' Portanto, no discurso dos historiadores, os fatos constituem o elemen- to consistente, aquele que resiste 3 contestagio. Com razio, diz-se que “os fitos sio teimosos”. Em historia, a preocupagio com os fixos € semelhante 4 da adminisragdo da prova ¢ ¢ indisociivel da referén:ia; em nota de rodapé, acabo de apresentar as referéncias relatives 4 exiténcia das cémaras de gis porque essa 6 a regra da profisdo, O historiador riio exige que as pessoas acreditem em sua palavra, sob o pretexto de ser um profissional conhecedor de seu oficio ~ embora esse seja 0 caso em geri] -, mas fomece a0 leitor a possbilidade de verificar suas afirmagdes; 0 “método estritamen- te cientfico a utilizar na exposigio”, reivindicado por G. Monod para a ‘Revue historique, pretende que “‘cada afirmagio seja acompanhada por pro- vias pela indicagio das fontes € citagdes” (Monon; Factz, 1976, p. 298- 296; Moxon, 1976). Da escola metédica & escola dos Annals (ver 0 texto de M. Boleh, boxe 3), a opinio € uninime em relagio a este ponto: trata-se realmente de uma regra comum da profisdo. 3. = Mare Bloch: Hlogio das notas de rodapé [No entanto, quando alguns leitores se queixam de que 2 mais insignificante linha, bancando a insolente no rodipé do texto, Ihes confande 0 cérebro © quando certos editores pretendem gue seus clientes, sem divida, bem menos hipersensiveis na realidade, do que & costume pinti-los, ficam atormentados diante de qualquer folha assim desonrads, tais pessoas delicadas provam simplesmente sua impermeabilidade aos mais elementares precetos de uma moral da inteligencia, Com efeit, fora dos lanes lives da Ganasia, una afirmagio 6 tem o direito de existir com a condicio de poder ser verifeada; e, cabe ao historiador, no caso de utitzar um docamen- to, indicat, 0 mais brevemente possivel, sua proveniéncia, ou seja, 0 meio de encontri-lo equivale, propriamente filindo, a se subme~ ter a uma regia universal de probidade. Deturda por dogmas ‘mitos, nosa opinido, inclusive a menos inimiga das luzes, perdew até mesmo 0 gosto pelo controle. No dia em eve, tendo tomado ‘0 cuidado inicial de nio rechagé-la como se trsse de um initil pedantismo, tivermas comeguido persuadi-ta a avaliar 0 valor de tum conhecimento por sua solcitude em expor-s, antecipadamente, 4 refitagio, as fongas da rico terio obsido uma de suas mais branes "YeeXOGON: LANGDEIN: ROCKER (967) 3h du rset i den “ a ss tec €chegou »conchades gorosanete vera, 2 pegs dr arguvos pa ro ‘afend ase ones, Jan-Clade Presa (1999). ‘vitGrias lis, ela seri preparada pelo aporte de nosss hunildes nous e «de nossas insignificantes e meticulosas reféréncas que, atualmente, sie ssvobadas por um tio grande mimero de epits ilustrads, incapuzes <& compreender su alcance. (Buoct, 1960, p. 40) Devemos levar ainda mais longe esa anilise porque a idéia de uma ver objet, rps em Gon exige una dicots ne ang entanto, ela permanece constitutiva da histéria em um primeito nivel. Os historiadores perseguem cotidianamemte as afimmagdes sem provas, tanto fos exercicios dos estudantes, quanto nos atigos des jomalisa. Indepen- dentemente do que pose ser dito, mais tarde, para evitar os simplismos existe ai uma base essencial para o oficio do historiador: toda afirmacio Aevert Ser comprovada, ou sea, a hiséria 56 & possvel respaldada ern fio. As técnicas da critica Neste estigio da reflexto, deve-se questionar 0 estabeleciment do fatos: como identifcar sua veracidade? Qui feats fee A rsposta reside no método critico, cuja origem pode ser recuada, pelo menos, a Mabillon ¢ a0 seu livro De Re Diplomatca (1681). Langlois e Seignobos empenharam-se em tatilo da forma mais detalhada posst- vel; na realidade, eles interessaram-se apenas pelos fatos construidos a Partir de documentos escritos, cm particular, textos de arquivos, Pode ‘mos criticé-los por nio terem ampliado sua atividade a outras fontes mas trata-se de um motivo insuficiente para desqualifcé-los, Com efei. care aoe em grande niimero, continuam a erabalhar a partir lesse tipo de documentos, inclusive, aqueles que — por exemplo, Febvre, F, Braudel ou J. Le Gof defnderas a ict aise do repertério documental. G, Duby (1991, p. 25) evocava © montio de palaras eseits,extridas py cn vrecisamente das pedrcicas {em que os historiadoresfizem sua provitio, procedendo @ uma ta, sgem, recortando ¢ ajusando para conseiirem, em seguida, 0 ediff io, enja planta proviséria jé havia sido concebida pot eles, Diga-se 0 que se disser, os historiadores comem i lores correm 0 risco de serem reconhecides, ainda durante muito tempo —a exemplo da especialista do século XVIII, Arlette Farge ~ por seu gosto pelos arquivos. “Como ndco tex, Jean Maio (132-1707, ened ne fo uo dee edo ign Seja qual for seu objeto, a critica no é um trabalho de principiante, como fica demonstrado pelas dificuldades dos estudantes 3s voltas com a Eevesiresa ao dein temo dS raecesetio tex ie Miferiador pac cabrio documento porque, no essencial, trata-se de conffonté-lo com tudo o que ji se sabe a respeito do assunto abordado, do lugar e do momento em questio; em determinado sentido, a critica é a propriz historia e cla se afina 4 medida que a histéria se aprofunda e se amplia Eis 0 que é perfeitamente visivel em cada etapa anaisada pelos mes- tres do método critico, Langlois e Seignobos, que estabelecem a distingio ‘entre critica extema ¢ critica intemna, A primeira incide sobre os caracteres ‘materais do documento: seu papel, tint, escrita e marcas farticulares que © acompanham. Por sua vez, a critica intema refere-se 4 coeréncia do texto, por exemplo, a compatibilidade entre sua dita e os fitos mencionados. (Os estudiosos da Idade Média, tais como Langlo's, confrontados com numerosos diplomas régios ou decretos pontificais apécrifos, pres tam toda a atengio & critica extema para distinguir o documento auténtico do filso. As ciéncias auxiliares da histéria constituem, nese dominio, pre~ iosos auniliares; a paleografia, ou ciéncia dos textos antigos, permite dizer se a grafia de um manuscrito corresponde A sua data presumida, Por sua vex, a diplomitica ensina as convengdes segundo as quais os documentos eram compostos: como era seu comego, a forma da introtucio €:do com po do documento (0 dispositive), como se designava o signatirio com seus titulos € a ordem em que eram mencionados (a tilatira); a sigilegrafia repertoria os diversos selos e datas de sua utilizigio. A spigrafa indica as regras segundo as quais, na Antigitidade, cram habitualmente compostas as inscrigdes lapidares, em particular, as funeririas, ‘Assim equipada, a critica externa pode discemir os documentos pro- vavelmente auténticos em relagio aos falsos ou aqueles que softeram modificagdes (critica de proveniéncia); por exemplo, niin hi divida so- bre a falsidade de um documento, pretensamente do século XII, se esti- vver escrito em papel, € nio em pergiminho, Eventualmente, a critica restabelece o documento original depois de retira-the os aditamentos ou ter restituido as partes filtantes, 4 semelhanga do que ocorte, freqiiente- ‘mente, com as inscrigdes lapidares romanas ou gregas (citca de resttui- (Go). Um caso particular de aplicacao desses métodos & a edicio critica, tal ‘como tem sido utilizada com perfeicio pela flologia alema: comparacio de todos os manuscritos para recensear as varlantes; estabelecimento das filia- (es de um manuscrito em relacio a outro; e proposicfo de uma versio tio iat lt proxima quanto possivel do texto primitivo. No entanto, o método nio se Jimita aos textos antigos: vale a pena, por exemplo, conffontar os registros radiofSnicos do marechal Pétain com os textos escritos de suas mensagens discursos, se quisermos saber com exatidio 0 que ele disse (Banas, 1989), Tendo sido resolvido este aspecto, o historiador ainda tem de en- ffentar outros obsticulos. A autenticidade, ou nio, de um documento nada exprime sobre seu sentido. Apesar de nao ser um documento au- téntico, a cépia do diploma merovingio, elaborada trés séculos apos 0 original, no € necessariamente uma fakificagio: pode ser uma reprodu- fo fidedigna. A critica interna analisa, entio, a coeréncia do texto e ques- tiona-se sobre sua compatibilidade com o que se conhece sobre docu mentos andlogos. Essa critica procede sempre por equiparagdes: ela seria totalmente impossivel se ignorissemos tudo de determinado periodo ou de um tipo de documento, Neste caso, toma-se evidente que a critica no poderia ser um comego absoluto: & necesstio ja ser historiador para po- der criticar um documento, Seria um equivoco acreditar que tais problemas existum apenas em relago aos textos antigos. Apresentaremos, aqui, dois exemplos extraidos da historia do século XX. O primeiro & o apelo que o Partido Comunista Francés tera langado no dia 10 de julho de 1940 para incentivar a resistén~ ia contra a invasio das forcas nazistas. Ora, esse apelo menciona nomes de ministros nomeados no dia 13 de julho; além diso, niio se enquadra no que se sabe da estratégia desse Partido em julho de 1940, no momento fem que seus representantes discutem com os acupantes a retomada da Publica¢io de um cotidiano. Portanto, os historiadores consideraram, em geral, que se trtava de um texto posterior e, como iio se integra na série dos exemplares clandestinos do cotidiano comunista L’Humanité, foi im- resso provavelmente em uma data mais tardia, inclusive, que o final do més de julho. © embuste mio resiste i critica. O segundo exemplo é extraido de uma polémica recente a respeito de Jean Moulin? Em uma obra destinada ao grande piblico, o jornalista Thierry Wolton afirma que seu biografido — na época, presidente do departamento de Eure-ct-Lair fomecia informagées a um espiio soviéti- co, Robinson, Para comprovar sua afirmagio, ele cita um relatério envia- do por Robinson para Moscou, indicando uma intensa atividade nos * Paco rnc (1899-1943), fnador do Conselho Nacional da Resins, peso evr, oreo lines tanec paras Aleman NT.) (Os 0s A EMEA HeTRICA aerédromos — obras de ampliacio das pistas até 4,5 km — de Chartres Dreux, cidades situadas nesse departamento, assim como a presenga de 220 grandes bombardeiros no aerédromo de Chartres. Diante da preci- so de tais informacées, © jomalista concluin que esse dirigente seria a Ainica pessoa capaz de fomecé-las, A mais elementar critica interna deve ria dissuadi-lo da utilizago do atgumento, Com eftito, as ciftas citadas sio absurdas: pistas com 4,5 km de comprimento nfo tém qualquer justi- ficagdo para a aviagio de 1940 (para as aeronaves do tipo Boeing 747, basta uma pista de 2 km); além disso, em outubro desse ano, a forca aérea alemd contava com um total de 800 bombardeiros. Em Chartres, seu nti- mero elevava-se a 30, dos quais 22. em condigdes de ope-ar. Nao se podle afirmar que informante de Robinson estivesse bem informado!* Todos os métodos eriticos visam responder a questdes simples: de onde ver o documento? Quem é seu autor? Como foi transmitido e conservado? © autor & sincero? Teri razées, conscientes ou nio, para deformar seu testemunho? Diz a verdade? Sua posigio permitin-The-ia dis- por de informagdes fidedignas? Ou implicaria © uso de alzum expediente? Essas duas séries de questdes sGo distintas: a artica da sinceridade incide sobre as intengdes, confessadas ou nfo, do testemunho, enquanto a artica da exatiddo refere-se 3 sua situagio objetiva, A primeira esti atenta as men- tiras, a0 passo que a segunda considera os erros, Um ausor de memérias seri suspeito de reservar para si o papel mais favorivel e a critica da since~ ridade serd particularmente exigente; se descreve uma agio, ou situagio, ocortida & sua frente, sem ser parte integrante, a critics da exatidio iri atribuir-lhe mais interesse que se tivesse sido o eco de terceiros. Deste ponto de vista, a distingio clissica entre depoimentos vo- luntirios ¢ involuntérios € pertinente: 0s primeiros foram constituidos para a informagio dos leitores, presentes ou firturos. As crdnicas, me- mérias e todas as fontes “em forma de narra¢io” incluem-se nesta cate- goria, assim como os relatérios dos presidentes de departamentos e re- sides, as monografias dos professores primérios sobre suas aldeias para a Exposigio Universal de 1900, além de toda a imprensa... Por sua vez, 0 depoimentos involuntirios no tém © objetivo de fomecer informagies, M. Bloch filava, de forma prazerosi, desses “indicios que, sem premedi- tagio, © pasiado deixa cair ao longo de sua caminhada” (1960, p. 25) “Exenmos ee exenplo de BEDARIDA, 194, p60. Pas ootosexemlos logo propo da rexma lr, preeramente trie, vcr VIDAL-NAQUET, 1993 ‘Uma conespondéncia privada, um diévio verdadeiramente intimo, a con- tabilidade de empresas, as certiddes de casamento, as declaragdes de su- cessio, assim como objetos, imagens, os escaravelhos de ouro encontia- dos nos tiimulos micénicos, os restos de argila langados em grotas do século XIV ou 0s pedagos de metal encontrados nos buracos abertos pe- Jos obuses sio mais instrutivos do campo de batalha de Verdun, na Pri- ‘meira Guerra Mundial, que 0 testemunho voluntitio (fibricado ¢ falsifi- cado) da trincheira das baionetas. A critica da sinceridade e da exatidio € muito mais exigente em ‘elagio aos depoimentos voluntitios, No entanto, evite-se tomar rigida tal distincio porque a habilidade dos historiadores consiste, quase sem- pe, em tratar os testemunhos voluntirios como se fossem involuntirios ¢ questioni-los sobre algo diferente do que eles pretendiam exprimir. Aos discursos pronunciados no dia 11 de novembro® diante dos monumentos aos mortes, o historiador no procurard indagar-se sobre seu conteiido — algo de bem precirio e repetitivo -, mas iri interessar-se pelos termos utilizados, por suas redes de oposigio ou substituigdo, para encontrar nes- Sas formas de expressio uma mentalidade, uma representagdo da guerra, da sociedade ¢ da nagio, Neste aspecto, ainda M. Bloch observava com hhumor que, “condenados a conhecé-lo fo passado] por seus vestigios, acabamos por saber a seu tespeito muito mais que, por ele mesmo, teria sido possivel conhecer” (1960, p. 25), Que o testemunho seja voluntirio ou nio, que 0 autor seja sincero © estcja bem informado ou no, convém, de qualquer modo, nio se equivocar relativamente ao sentido do texto (critica da interpretacio), Neste aspecto, a atengio fica ligada ao sentido dos termos, a0 seu uso distorcido ou irénico, as afirmagdes ditadas pela situagio (0 defunto é, fOrcosamente, bem considerado em seu elogio fiinebre).Jé em seu tempo, M. Bloch achava restrita demais a lista das ciéncias auxiliares da historia Propostas aos estudantes, sugerindo que fosse acrescentada a lingiistica: “Por qual absurdo paralogismo, deixamos que homens que, boa parte do tempo, s6 conseguirio atingit os objetos de seus estudos através das Palavras,[..] ignorem as nogdes fundamentais da lingiistica” (1960, p. 28). Os conccitos tém mudado de tal modo de sentido que os mais ttaigociros sio precisamente aqueles que nos parecem mais transparen- tes: por exemplo, “burgués” no designa a mesma realidade social em lum texto medieval, em um manifesto romintico ou em Marx. Assim, * Comemoricio de sinatra do mito gue em 1918, pte Primi Goer Mandl NT), *“n seria aconselhivel estabelecer a historia dos conceitos como etapa pré- vvia de qualquer outra histéria.® De forma mais geral, qualquer texto serve-se do cédigo de determi- nado sistema de representagdes que, por sua vez, utiliza determinado voc bulirio. Um relat6rio de presidente departamental ou regional da época da Resauragio sobre a siuacio politica ¢ socal de um deparamento rural er, inconsciente e imperceptivelmente, distorcido por sua reoresentago dos camponeses: ele 0s observava de acordo com sua expectatva ¢ conforme sua representagio prévia Ihe permita acer; eventualmente, ele menos- prezava o que mio estava inscrito no interior dessa moldura. A interpretacio de seu relatério supée, portanto, que 0 historiador esteja atento ao sistema de representagdes adotado pelos notiveis da época (Conny, 1992; CHARTER, 1989; Nomrrt, 1989); asim, para a interpretacio dos textos, toma-se indis- pensivel levar em consideracio as “representagées coletivis”. Seria possivel prolongar a desctigio do método crtico; sem diivida, 6 preferivel abordar de forma mais minuciosa 0 espitito que The serve de fandamento. O espirito critico do historiador ; Fica a impresdo, s vezes, de que 2 critica & somente uma questo. de bom senso ¢ de que a disciplina exigida pela corporacio & supérflua, nio pasando de mania de eruditos, pedantismo de cientitas ou sinal de reconhecimento para iniciados. Nada de mais filso. As regras da critica e da erudicio, a obriga¢io de fornecer suas referéncias, no sio normas arbitririas: certamente, elas instituem a diferenga entre o historiador profisional e 0 amador ou 0 romancista, No entanto, sua funcio primordial consiste em educar 0 thar do historiador em relagio a suas fontes; se quiserraos, erata-se de uma ascese ¢, de qualquer modo, de uma atitude aprendida, nio es- pontinea, mas que forma uma disposi¢io de espirito esencial para 0 desempenho do oficio. Eis 0 que é bem visivel quando se procede 3 comparagio entre os trabalhos dos historiadares e os dos sociélogos ou economistas: em ger, 05 primeiros procuram responder a uma questio prévia sobre a origem "Mey KOSELLECK (1990p 98119, Kn cao exemple a te de HARDENBERG (80 "De ae med wma hia cl qo ire na rem py da curs pitiless scene sua ids coe eo que comepond jy necesiadesaitnicse no deprives de wn Eade". Aandi dos ‘oncctn, de pace diferentes, permite Hetifcar« sovidade du afitgfo cx aspect polémico, dos documentos ¢ dos fatos mencionados. Por exemplo, se 0 assunto tem a ver com a estatistica das greves, 0 historiador nio acredita levianamente nas ciffas oficiais, mas ir questionar-se sobre a maneira como elas foram coletadas: por quem ¢ segundo qual procedimento administrative? A atitude critica nio € natural. Bis 0 que afirma, de forma categorica, Seignobos (ver boxe 4), a0 servir-se da comparacio do homem que cai na ‘gua e, limitado a seus movimentos espontineos, acaba por se afogar: “Aprender a nadar € adquirir o habito de reprimir 0s movimentos espon- Hineos ¢ executar movimentos que nio so naturais.” 4.~ Charles Seignobos A atitica nio € natural J aertca€ consra& dispenigio normal da inigncia omana; a texdéncia spontinea leva o homem 4 acedtarno que Ie é dito. £ url acl tous a afirmagées, sobretado, una ainmagio esr ~ mas Gclnente se sver eset em algrinos ~ e, ainda mis fil ments, se for oriunda de uma awtordade ofc, se la fr, como se diz, auénica,Aplicar aera é, porant,adotar um modo de pens sento conto a9 pensmento espontinco, una atte de espizo que lo € natal [o£ impose asm a aide sem exorgo. O ‘movimento espontineo de um homem que cai na gua cote em fier tudo 0 que & necessiio pase aos; aprender a maar 6 aqui ir. hibto de repr os movimentosepontineos ¢exeeutr mov mentor gue nio sio mtu A impressio especial produtida pelos algarismos € particularmente ‘importante em cigncias socias. O algarismo tem um aspecto mate~ miitico que di a ilusio do fito cientfico, De forma espontinea, tende-se a confundir “preciso © exate"; uma nogio indefinida m0 pode ser inteiramente exata, da oposigio entre indefinido e ext, tirsse a conclisio da identidade entze “exato” e “preciso”, Esqu ‘cemo-nos de que uma infomagio muito exata é freqiientemente, bastante fila. Se eu diser que, em Paris, exitem 526,637 almas, tr tarse-d de uma ciffa precisa, muito mais precisa que “2 milhdes e meio” e, no entanto, mito menos verdadeim, Dir-se habitualmente: “brutal como tm algarismo", mais ou menos, em um sentido seme- Jhante & “verdade brutal", © que subentende que 0 algacismo & a forma Perfita dh verdade. Diz-e, também: “Isso So apenas alerimos”, como s¢ todas as proposigdes se tomasiem verdadeiras a0 assumiem uma forma ariemética. A tendéncia€ ainda mais force quando, em vez de um algariomo isolado, vé-se uma série de algarimos ligados por operagbes atitméticas, As operagdes sio ciemtfias e verdadeinas; elas inspiram tama impressio de confianga que se estende aos dados de Lito a partir dos quais foi feita a operacio; & necessirio um esforgo de 62 critica para dttinguir © admitir que, em um cileule exato, os dados podem estar falsifcados, © que desvaloriza completamente os resul- tados. (Se1cNo80s, 1901, p. 32-35) ‘Ainda subsistem, atualmente, as crengas contra as quai, de acordo com Seignobos, seria necessirio prevenir-se. Convém oferecer sempre resistencia 20 prestigio das autoridades oficiais; mais que nunca, convém nio ceder & sugestio dos algarismos precisos, nem 3 vertigem dos niimeres, A exatidio e a precisio sio aspectos diferentes e um algarismo aproximativo, mas adequa- do, & preferivel & ilusio das decimais. Os historiadores haveriam de se enten- der melhor com os métodos quantitativos ~ muitas vezes, indspensiveis -, se ‘prestasem mais atenco em. desmistfcar algarismos e céleules. ‘A essa adverténcias, que penmanecem atuais, convém acrescentar novas observagSes que dizem respeito a0 depoimento das testemurhas dirctas © & imagem. Nossa época, Avida de histéria oral, habituada pela ‘elevisio e pelo ridio a “viver” — como se diz sem soir ~ 05 acontecimentos 20 vivo, atribui um valor exagerado & palavra das testemmunhas. Em um curso de licence em que eu tentava identificar, por critica interna, a data de um pan- fleto estudantil do final de novembro de 1940 — 0 texto referia-se & maniféstagio do 11 de novembro como se tratasse de um fito relativa— mente recente -, alguns estudantes céticos lamentaram a impossibilida- de de encontrar estudantes dessa época que o tivessem distibuido e fos sem. capazes de se lemibrar da data exata; como se a meméria das testemunhas diretas, meio século apés 0 acontecimento, fosse mais fiével que as indica (es materiais fornecidas pelo proprio documento, (© mesmo ocorre com as imagens. A fotografia traz em seu bojo esta conviegio: como seria possivel que a pelicula nko tivese fixado a verda- de? A comparaco meticulosa de duas fotografia da asinatura do pacto getmano-soviético — a primeira, mostrando apenas Ribbentrop ¢ Molo- tov, enquanto 2 outra apresenta esas duas personalidades em um cenério diferente j4 que, atris deles, de pé, se encontram todos os altos funcioné- rios da URSS, incluindo Stalin - permite avaliar a amplitude eventual das trucagens.’ E quando sabemos que, em todos os filmes dos aliados sobre a Primeia Grance Guerra, existem apenas, e somente, duas se- agiiéncias rodadas efetivamente nas frentes de combate, damo-nos conta 7 A ftograin locas & «primeira sem Sli, ato ltt fncinitioe pois, por ast rade (Ces ete: delimit eonzom dt dost pemonsge cons para apa sues Cas Bel oe AMdiooilas, Cc ines: aps 4 feniesslem na Ra, 0c Soham interes ext rinimizaro comprom de Sta, Soles etc do document ogc, ve JAUDERT (1986). 63 de que uma critica, em termos de representagSes coletivas, & essencial antes da eventual utilizago desse tipo de documentos. Entretanto, observamos que a critica dos depoimentos orais e a das fovografias ou filmes no diferem da critica histrica clissica. Trata-se do mesmo método, aplicado a outra documentagio que, 38 vezes, utiliza saberes especificos ~ por exemplo, um conhecimento preciso das con~ digdes de filmagem, em determinada época. Mas é, fandamentalmente, um modo de operar semelhante ao do medievalista diante de seus do- cumentos. © método critico é, conforme veremos mais adiante, 0 dni co apropriado & histéria Fundamentos e limites da critica A histéria, conhecimento por vestigios A importincia atribuida ao método critico por todas as obras relacio- nnadas com a epistemologia da historia € um sinal inequtvoco: esse é real~ mente um aspecto central. Por que nio ha historia sem critica? A resposta € sempre a mesma, a comegar por Langlois e Seignobos até Bloch ¢ Mar- Tou: por referir-se ao pasado, a histéria 6, por isso mesmo, conhecimen- to através de vestigios. Nio se pode definir a histéria como conhecimento do passado — de acordo com 0 que se diz, 3s vezes, de forma precipitada — porque o cati- ter passado & insuficiente para designar um fato ou um objeto de conhed ‘mento. Todos os fitos do passado foram, antes de mais nada, fitos presen 4s: entre uns ¢ outros, neuluima diferenga de natureza, Passado € um adjetivo, no um substantivo, ¢ é abusivamente que se utiliza 0 temo para designar 0 conjunto, ilimitadamente aberto, dos objetos que podem apresentat esse cariter € receber essa determinagio. Tal constatacio acarreta duas conseqiincias 38 quais nunca sera atri- bbufda a devida importincia. Em primeiro lugar, a impossbilidade de es- Pecificar a histéria por seu objeto. As ciéncias propriamente ditas possu- em seu proprio dominio, seja qual for sua interdependéncia; a propria denominagio, por si s6, permite isolar a drea que els exploram em rela- 0 as areas que no Thes dizem respeito. A astronomia estuda os astros, nio os sflices, nem 2s populacdes, etc; no entanto, a histéria pode inte- esar-se tanto pelos sflices, quanto pelas populacies, inclusive, pelo cli- ‘ma. Nio hi fatos histrens por natureza como existem fatos quimizos ou demo- -sifces. O termo histvia ndo pertence ao conjuntco formado por termos, tais aia al alc como bioflica moleadar, fica mucear, cimatologia, nem mesrzo etnolegia. De acordo com a afimacio categérica de Seignobos, “os fitos historicos $6 existem por sua posigio relativamente a um observador”. 5. — Charles Seignobos: Os fatos historicos s6 existem por sua posiclo relativamente a um observador No entanto, desde que alguém procera delimitar praticamente 0 terreno da histéria e tenta tragar os limites entre uma ciéncia hist6rica dos fatos humanos do pasado ¢ uma cncia atual dos fatos humanos do presente, di-se conta da impossbilidade de ‘stabelecer tl limite porque, na realdade, nio hi fitos que sejam hist6ricos por sua natureza, como existem fitos fsiol6gicos ow os. No uso corrente, 0 termo “histbriea* & considerado ainda no sentido antigo: digno de ser relatado, Nesse sentido, diz-se um “dia histérico”, uma “‘palavra historia", Entetanto, esa noglo da histéria foi abandonada; qualquer incidente do pasado fiz parte da historia, tanto 0 traje usado 20r um campo~ nnés do século XVII, quanto a Tomada da Bastlhs;além disso, os Imotivos que tornam um fito digno de'mengio sio infinitamente varidveis. A histria abrange 0 estudo de todos o: fatos do pasa do, sejam eles politicos, intelectuais ou econdmicos; aliis, em grande néimero, eles passaram despercebidos. Segundo parece, pportanto, os fatos histéricos poderiam ser definidos: os “fatos do passado”, por oposigi0 aos fatos atuals que #10 objeto das eiénci- as descritivas da humanidade. Essa oposicio, precsamente, & im- possivel de manter na pritiea: em ver de uma diferenca de cariter interno, dependendo da natureza de um fto, + atribuicio do qualficativo “presente” ou “passado” refere-se a uma diferenga apenas de posigio relativamente a determinado cbservador. Pata nds, a Revolugio de 1830 & um fito do passado e presente pata as pessoas que a promoveram; ¢, do mesmo modo, a sesio de ontem rma Assembleia Nacional é jf um fito do pastado, Porkanto, no hi fitos histricos por sua natureza, mis apenas por saa posigio relativamente a um observador. Qualquer fito que ji no pode ser observado diretamente, por ter deixado de exisir, 6 histS- rico, Em vez de ser inerente 205 fitos, 0 cariterhistrico limitase 3 maneira de conhecé-los; portanto, em ver de ser uma cigncia, a histéria & apenas uum modo de conhecer. Neste caso, levantase a questio prévia a qualquer esudo historico: como seri posivel conhecer um fato real que ji nio exist? Vejamos Revolugio de 1830: alguns parisienses — atvalmene, todos jé fle- ‘idos ~ enfremtaram soldados, também mortos, ¢ apoderaram-se de Dore ucces some 4 Heston unm prédio que jf nio exit, Para citar, como exemplo, um fto eco- nndmico: aperirios mottos, atualmente, digs por um muinistro, eam- ‘bém jf filecido, fundaram a Manuf dos Gobelins Couno apreen- der um fito quando jf nfo € posivel observar dicetente qualquer ‘um de seus elementos? Como eonhecer determinaos acontecimen- tos quand ji nfo & posvel ver dcctamente seus atores, nem o ceni- Fo? ~ Fis a solucfo par esta difculdade. Se os acontecimentos a serein identificados nio tivessem deixado vestigis, seria impossivel obter ‘qualquer conhecimento a seu respeito. No entanto, mits vezes, os fatos desaparecidos deivaram vestgios: i vezes, diretamente, sob a frma de objetos marerais;e, quae sempre, indictamente, sob a for sma de textos redigidos por pessoas que, por sua ver, haviam asistido a ‘ses fitos. Tais vestigos sio os documentos © o método histrico onsite em anais-os para detertnar os ftos anigos dos quais exes documentos sio os vestgios. Ewe método toma come ponto de par- tida 0 documento observado diretamente; a partir da, por uma séxie de raciocinios complicados, ele remonta a alcansaro fo antigo a ser conhecido, Portnt, ele dftre ndicalmente de todos os méodos das contras inca: em ver de observar dietamente fies, ele oper indir tamente ao argumentar a partir de documentos. Como todo conheci- ‘mento hisérico € indiret, a histria € ewencilmente uma cincia de raciocinios ea serve-se de um método indireto, ou sea, por nciacnio. (Socno20s, 1901, p. 2-5) Se, em vex de ser inerente aos fitos, 0 carter histérico imit-se a manei- a de conhecé-los, resulta dai ~ como sublinha claramente Seignobos que, nem por isso, deixa de ser definsor de uma histéria “cientifica” — que, “em ver de ser una ciéncia, a historia ¢ apenas um modo de conhecer”. Esse € um aspecto sublinhado com fieqtiéncia ¢ de forma bastante legitima; por exem- plo, ele justifica 0 titulo do livro de H.-L Manrou, De la connaiseance historique Enguanto modo de conhecer, a histéria é um conhecimento por vvestigios? de acordo com a elegante fSrmula utilizada por J.-Cl. Passeron, trata-se de “um trabalho a partir de objetos perdidos”. Ela scrve-se dos vestigios deixados pelo passado, de “informagées residuais, concordan- tes, de contextos nio diretamente observaveis” (Passeon, 1991, p. 69) Na maior parte das vezes, trata-se de documentos escritos — arquivos, * Manutsors paren intaads ms ofcins dos dotrcros Gobel: xn 1667, por deteminago de CCotber (1619-163), eee de Etado da Cate do Ri, encregnde a ibvingho des mvc pcs * Cora; em squid, epecilzouse ma congo de pear. (NT) * BLOCH (1960p. 21 arb a pucridae dese “Fle oxpresto” Sind. Esto antesorment, texto de Seignobos,apesentado no boxe 5, mor que no mini, iia esa no. Os taO5 € A CHNCA HETONEA Jomais, livros -, assim como de objetos materiais: por exemplo, uma ‘moeda ou um utensilio de argila encontrados em uma sepaltura ou, mais perto de nés, os estandartes de sindicatos, ferramentas, presentes ofereci- dos 20 operirio que se aposenta... Em todos os casos, o historiador efetua sum trabalho a partir de vestigios para reconstituir 05 fatos. Esse traballio & constitutive da historia; por conseguinte, as tegras do método histérico que lhe servem de guia sio, no sentido préprio da palavra, fundamentais. Compreende-se melhor, entio, 0 que afirmam os Fistoriadores a0 falarem dos fitos. Um fato nada mais € que resultado de um raciocinio 1 partir de vestigios, segundo as regras da critica. Temos de confessar: 0 ‘que os historiadores designam, indiferentemente, como “fatos histori- cos”, constitu um verdadeiro “bazar”, digno de um inventirio & maneira de Prévert." Eis, por exemplo, alguns fitos: a cidade de Oxléans foi liber- tada por Joana d’Arc, em 1429; a Franga era © pais mais populoso da Europa nas vésperas da Revolucio Francesa; no momento das eleigdes de 1936, havia menos de um milhio de desempregados na Franga; 10 perfodo da Monarquia de Julho, os operirios trabathavam acima de doze horas por dia; a laicidade tomou-se uma questio politica no final do Se- gundo Império; o uso de vestidos brancos pelas noivas espalhou-se sob a influéneia das grandes lojas, na segunda metade do século XIX; a legis Go anti-semita de Vichy" nao foi ditada pelos alemaes.... C que havers de comum entre todos esses “fatos” heterdclitos? Um tinico ponto: trata-se de afirmagdes verdadeiras por serem 0 resultado de uma elaboragio me- tédica, de uma reconstituicio a partir de vestigios. De pasagem, observar-se-& que, apesar de ser 0 tinico possivel para 0 “pasado”, ese modo de conhecer no exchsivo da historia. Os cientistas politicos que analisam a popularidade dos presidenciiveis, os especialistas do ‘marketing que avaliam a possivel clentela par. um novo produto, os econo Imistas que se questionam sobre a recessio ou 0 retomo 20 crescimento, 0s sociélogos que se debragam sobre o mal-estar dos subiirbios, os juizes que condenam os traficantes de droga ou combatern a corrupglo, todos eles in- terpretam vestigios. © uso do método crtico vai muito além da historia, Néo hé fatos sem questionamento A.cscola metédica que, na Franga, criou a profisaio de historiador, no se contentava com essa anise. No contexto cultural do final do século XIX, Jacques Paver (1900-1977), poeta anc que aa imagens sss 3 zona popu, (NT) "Cidade qu, dane ocupug ds nai (1940-184) serea de sede 20 govero fans, chefido plo maechl Pétain, (NT) a dominado pelo método experimental de Claude Bernard, ela decidiu enfrentar 0 desafio que consistia em transformar a historia em uma “cién- cia” propriamente dita; da, seu combate contra uma concepsio “filos6fi- ca” ow “literiria” da histéria, Essa perpectiva obrigava a situar o historiador em relagio as figuras cientificas do quimico ou do naturalista em seus laboratbrios e, portanto, a fcalizar a argumentagio sobre a observagio. A historia, de acordo com a pretensio de Langlois e Seignobos, & também uma ciéncia da observacio; entretanto, no momento em que 0 quimico on o naturalsta observam di retamente os fendmenos de sua disciptin, o historiador deve contentarse com observagSes indiretss, por conseguinte, menos fiiveis. Suas testemu- nnhas nio sio auxiliares de laboratério que, sistematicamente, estabelecem relatorios de experiéncia, de acordo com protocolos precisos. Neste caso, © método critico serve de fndamento 3 histéria, no s6 como conhecimen- to, mas também como cigncia eis o que Seignobos acabou reconhecendo, apesar de ter declarado que ela no poderia ser uma ciéncia, Essa vontade de fornecer o status de ciéncia a histéria explica além da importincia atribuida por essa geracio de historiadores 3 publicagio sis- tematica e definitiva de documentos submetides & ertica ~ seu sonho de um repertério exaustivo de todos os textos disponiveis, colocados 3 disposicio dos especialiss, apés uma vigilante depuracio no plano da critica. Daf, tam- bbém, a idéia de aleangar conhecimentos definitivos depois que, pela critica, a histéria tenha sido despojada das lendas e flsfcagacs. Dai, por iltimo, a do que ocome com qualquer opornunidade, 0 conhecimento intimo por compromisso pessoal é também um risco; cle permite que 0 historiadar possa avangar, de forma mais répida e mais profuunda, na compreensio de sen tema, mas também pode ofuscar sua lucidez sob a turbuléncia dos afetos. © piiblico traduz, em geral, esa dificuldade a0 afirmar que exes historiadores carecem de “recuo”: de alguma forma, conviria esperar cer- to distanciamento em relagio aos acontecimentos para fazer histdria; trata~ se de uma visio suméria. O bicentenirio da Revolugie Francesa mos- trou-nos que o perfodo de dois séculos € insuficiente para esfiar as paixdes. Em seus trabalhos sobre a Antiguidade, os historiadores fizem referéncia, as vezes, a questdes bastante contemporineas: seria incompreensivel a energia investida, sob a 3* Repiiblica, no estudo de Deméstenes e da resisténcia de Atenas a Filipe de Macedénia se, em filigrana, nto fose percebida, por tris da figura do rei conguistador, a figura de Bismarck e, por tris da cidade grega, a Reptiblica Francesa A hist6ria tem necessidade, certamente, de “recuo” que, entretan- to, no provém automaticamente do afastamento no tempo; além disso, hao basta esperar para que se concretize tal distanciamento. Convém fazer a histéria do tempo presente como profisional, a partir de docu- ‘mentos € nio de lembrangas, para deixi-lo a uma distancia adequada. Neste sentido, de acordo com a afirmagio de Robert Frank (1994, p. 164), a hist6ria do tempo presente no poderia ser uma histéria imedi- ata: convém quebrar a imediatidade da atualidade e, para isso, o histori ador deve reservar 0 tempo para construir mediagSes entre o tempo Presente © a historia que escreve sobre esse tema; isso supde, em parti- cular, que cle esclareca suas implicagdes pestoais. Os historiadores re~ Publicanos do inicio do séeulo XX nfo tinham, aliis, a timider mani- festada por alguns, atualmente, em relagio ao passado proximo. O recuo no ¢ a distincia no tempo exigida como condigio prévia para fazer hist6ria: pelo contrério, a historia € que cria 0 recuo, No entanto, além de ser necessiria para elaborar a historia “quente” ou do tempo presente, a elucidacio das implicagdes pessoais do historia- dor imp6e-se em todos 08 casos. De acordo com a afirmagio de H.-1 Marrou, 20 referi-se a Croce, “toda a hist6ria é contemporiinca”, qual- quer problema autenticamente histérico (que Croce opunha 20 “ato cu- rioso”, oriundo de uma pura e indtil curiosidade), mesmo que se refira 420 passado mais longinguo, é precisamente um drama que se representa za consciéncia de um homem de nossos dias: trata-se de uma questio que © historiador se formula, tal como ele é “em situagdo”, no contexto de sua vida, de seu meio e de seu tempo (1954, p. 205), Ao menosprezarmos essa insergio da questio histérica na conscién~ cia de um historiador situado hic et nunc, correriamos o risco de nos ludi- briar a més mesmos,.A observacio é recorrente e, inclusive, ja havia sido feita por Bardley, em 1874: [Nio hi histéria sem preconceitos;a verdadeira dstincio deve scr eta- belecida entre 0 autor que aio tem consciéncia de seus preconceitos, ‘alvez,flbos,e 0 autor que ordena e cria conscienternente a partir de ‘eferéncias jf conhecidas © que servem de alicerce a0 que, pata ele, € a verdade. Ao tomar consciéncia de seu preconceito, a histéria comeca a tomar-se verdadeiramente critica © se previne (na medida do porsive) contra as fintasas da fiegio. (1965, p. 154) Os historiadores no comprometidos, que pretendem ser cientistas genuinos, estio talvez, neste aspecto, mais ameagados pela falta de Iucidez em relagio a suas prépris idéias preconcebidas por nio sentirem necesidade de elucidar sua motivagio, “Temos o direito de fizer qualouer coisa, com a condigio de saber 0 que estamos fazendo”, diz o bom serso popular: no centanto, precisamente, o historiador munca se limita a faze- hst6ria, Tendo sido um imporante historiador do catolicimo antigo, especial de Santo ‘Agostinho e, a0 mesmo tempo, um catélico convicto e militate de esquer- a, HL, Marrou frmulou perfeitamente essa exigincia, 10. — Hea, Manu Buca «rarer denn asada Pacers gos a bonetlade cones ee eb dase, pot Bee ies heer pensamento& (a medida do pose) exlce eu posdon es ee ee ee thor seu bjt «o ola de a invite. Que ck bee eee eee eee vevalcinment cand, nga wm pose ma pia ana de Fe tae 0 “eau cn otra die Sores de eer ecko ones eee ete ae tmnt Bin sn den ayy mm ioe eee ee ee Se eel oe See een ee ee gar come a “pcn einen” (Manno, 1954 240 Por “psicanilise existencial”, H.-L. Marrou entendia 0 esforeo des- pendido para clucidar as préprias motivagdes; de fato, trata-se de uma ‘atarse, de uma purificacio e de um despojamento, Neste sentido, em vez cde um passatempo ou ganha-pao, a histéria é, em determinados aspectos, uuma ascese pessoal, a conquista de uma liberagio interior. O recuo ctia~ do pela historia ¢, também, recao em relacio a si mesmo e a seus proprios problemas. Vemos, aqui, a seriedade profunda da historia. Além de um saber, ela € um trabalho de auto-andlise; é ainda insuficiente afirmar que € uma excoka de sabedoria, Ao escrever historia, o histotiador se cria a si mesmo. Eis 0 que, no termo de sua obra, Michelet exprimiu em uma pagina impressionante. i livre. 11, — Jules Michelet: Fui criado por meu ‘Minha vida identificou-se com este livro, introduaiu-se nele; als, tomou-se meu Gnico evento, No entanto, ess identidade do livro com 0 autor nia seri wim perigo? A obri nio ficari colorida com os sensimentos, com o tempo, daquele que a elaborou?

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